Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
86/21.4T8CTB.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: FACTO CONCLUSIVO
ERRO DE DIREITO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
HIPOTECA
SOLIDARIEDADE
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - Tendo a Relação eliminado um facto dado como provado na sentença, não por via da reapreciação da prova produzida, mas por considerar que o referido facto tem natureza conclusiva, por si susceptível de decidir a causa, a reanálise de tal questão não constitui reapreciação da matéria de facto à luz dos elementos probatórios constantes do processo, mas sim a uma apreciação jurídica da natureza do próprio facto, ou seja, a uma questão de direito, como tal susceptível de ser sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

II - Na interpretação das declarações negociais, à luz dos art. 236º e seguintes, deve o interprete considerar a letra do negócio, no quadro das circunstâncias de tempo, de lugar, e de outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, ou seja, a finalidade prática visada pelas partes e o próprio tipo de negócio.

III - Pese embora seja revelante o elemento literal do contrato, as regras linguísticas e gramaticais são, por si só, insuficientes para interpretar negócios jurídicos, razão por que a doutrina foi desenvolvendo teorias jurídicas de tal interpretação, consagrando a lei que uma declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que seria apreendido por um “declaratário normal” – um homem honesto medianamente instruído e diligente - colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, sendo que, para alcançar a “impressão do destinatário”, deve atender-se aos diversos elementos disponíveis que traduzem o contexto em que a declaração foi emitida.

IV - O normal numa hipoteca prestada por solidariedade, ou hipoteca de favor, é que a mesma seja prestada apenas para garantia de obrigações concretas, as que justificam esse favor, o que se assume, em regra, como um ato pontual e excecional, tal se justificando por ser a hipoteca, neste caso, um negócio de risco, no qual o constituinte da hipoteca assume o risco de ter de vir a ser ele a suportar a dívida do devedor, actuando, contudo, com a expetativa de que isso não virá a ser necessário para além do acto que visa garantir, e porque confia que o devedor cumprirá as obrigações ao mesmo subjacente, sendo esta confiança que, em última análise, justifica a outorga da hipoteca unilateral.

V - Sendo a hipoteca de favor um negócio gratuito, sempre deverá prevalecer, em caso de dúvida, o sentido menos gravoso para o disponente, conforme decorre do art. 237.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:

AA, e mulher, BB, instauraram contra CC e mulher DD, EE e mulher, FF, e GG e mulher, HH, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que seja declarada a extinção da hipoteca unilateral constituída pelos Autores a favor dos Réus sobre os identificados prédios rústicos, e que seja ordenado o cancelamento dos registos de tal hipoteca

Para tanto, alegaram, em síntese, terem constituído hipoteca a favor de II e JJ, sobre prédios seus, para garantir o pagamento de contrato de cessão de quotas em que aqueles foram cessionários e uma sociedade a que os réus estão ligados foi cedente.

Tal negócio foi declarado nulo por sentença transitada, tendo-se extinguido a obrigação garantida pela hipoteca.

Os réus contestaram, alegando que a hipoteca não se destinava a garantir somente o pagamento do preço da cessão, mas, além disso, toda e qualquer quantia até ao montante de duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros.

Sendo que II e JJ são devedores para com os RR. da quantia de 314.039,99 €, conforme se alcança da sentença proferida no processo executivo nº 60/08.6..., do juízo Central Cível da Comarca de ....

O valor de 314.039,00€, conforme a escritura de hipoteca, emerge do ato de cessão de quotas.

Pediram a improcedência da ação.

O processo seguiu os seus termos, vindo a ser proferida sentença, que decidiu nos termos seguintes:

«Em face do exposto, julga-se procedente a presente acção e, em consequência;

- Julga-se extinta a garantia em causa a HIPOTECA UNILATERAL a que se alude nos pontos 2), 3) e seguintes dos factos provados, relativamente a todos os prédios rústicos dela objecto, descritos no ponto 1), dos factos provados, ordenando o cancelamento dos conexos registos da hipoteca unilateral constituída pelos Autores a favor dos Réus sobre os identificados prédios rústicos, registada relativamente a cada um dos prédios por força da AP. 10 de 2007/06/12 relativamente a todas as sobreditas descrições prediais.»

APELAÇÃO:

Inconformados recorreram os réus para o Tribunal da Relação de Coimbra, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O tribunal pronunciou-se até sobre matéria de que lhe não era lícito conhecer, por não ter sido alegada nem invocada pelos AA. tornando sentença nula, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais.

2. O tribunal veio a discorrer que a hipoteca poderia ser considerada nula, se os créditos garantidos não forem minimamente determináveis.

3. E que caso se verificasse a validade da hipoteca poderíamos cair num problema de nulidade da hipoteca por parcial indeterminação do objecto.

4. O Crédito está perfeitamente determinado.

5. A hipoteca garante toda e qualquer quantia até ao montante de duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros, à qual não acrescem nem juros nem outros acessórios, de que os supra identificados sejam credores relativamente a II, casado ( ... ) com KK ( ... ); e a JJ (...), designadamente, quanto ao preço não pago das cessões de quotas que os primeiros fizeram aos segundos, por escritura lavrada hoje neste Cartório e relativamente à sociedade comercial por quotas com a firma “J..., Lda. ª

6. Os AA. não invocaram a falsidade da escritura.

7. Nos termos do artigo 238 do C. Civil, nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

8. Ora, caso os AA. tivesse querido que a hipoteca somente garantisse o valor da cessão de quota, teria sido escrito na escritura que a hipoteca se destinava somente à garantia do pagamento do preço, o que não aconteceu, pois na verdade, deixaram declarado na escritura, que a garantia era designadamente, quanto ao preço não pago das cessões de quotas que os primeiros fizeram aos segundos.

9. Não é admissível prova testemunhal para alterar o texto da escritura e a perceção que o Sr. Notário teve quando teve a perceção e fez constar a declaração “Para garantia de toda e qualquer quantia até ao montante de duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros, à qual não acrescem nem juros nem outros acessórios, de que os supra identificados sejam credores relativamente a II, casado ( ... ) com KK ( ... ); e a JJ (...), designadamente, quanto ao preço não pago das cessões de quotas que os primeiros fizeram aos segundos,

10. Esta declaração não pode ser alterada por mera interpretação nem admite prova testemunhal em contrário ou com qualquer outro sentido a não ser que tivesse sido invocada a falsidade da escritura e não o foi.

11. De nada valem os depoimentos prestados pelas testemunhas em face do texto da escritura que faz prova plena da declaração que dela consta por ser documento autêntico.

12. Deve, pois, ser mantida a garantia até que se encontre paga toda e qualquer quantia devia aos RR. até ao montante de duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros,

13. Fez-se incorrecta aplicação dos artigos 236, 237, 237, 372, 400 do C.Civil.

Contra-alegaram os Autores pugnando pela manutenção do decidido, concluindo assim:

A. Desde logo, os Recorrentes não especificam devidamente sobre que matéria não era lícito o Tribunal a quo se pronunciar, nem tampouco identificam ou extraem as respetivas consequências, ficando, por atis razões, prejudicado o seu conhecimento;

B. Os Recorrentes não impugnam a matéria de facto dada como provada ou não provada, remetendo a sua fundamentação para a falta de impugnação dos documentos autênticos;

C. Ficou provado que “15) Os autores declararam o exarado na escritura de constituição da hipoteca a que se alude em 2) e seguintes dos factos provados, no sentido por eles pretendido de garantir apenas o pagamento do preço da cessão de quotas da Sociedade J..., Lda., realizada nesse mesmo dia e no mesmo Cartório Notarial, entre os aqui Réus e os mencionados cessionários; - Sendo que os autores não tiveram qualquer intervenção no negócio de aquisição das quotas; como não tiveram intervenção na gestão do conexo estabelecimento (de Panificação): - Limitando-se a conceder a garantia em causa por razões de solidariedade familiar. “;

D. In casu, estamos perante um direito real de garantia sobre imóveis, constituído por declaração unilateral, de carácter vinculativo, celebrado por escritura pública e GRATUITO, porquanto os Recorridos não são os devedores que figuram no negócio garantido nem tiveram qualquer contrapartida;

E. Os Recorridos constituíram hipoteca unilateral sobre cada um dos prédios rústicos descritos nos autos a favor de II e JJ, tendo em vista garantir o pagamento do preço da cessão de quotas da Sociedade J..., Lda., concretizada no mesmo dia entre os Recorrentes e aqueles mencionados cessionários;

F. O limite da hipoteca esgota-se por completo no valor não pago das cessões de quotas, isto é, a soma dos preços parcelares das quotas cedidas (€91.668,00 + €91.668,00 + 45.834,00 + €45.834,00) que perfazem o valor de € 275.004,00;

G. Resulta ainda do texto da hipoteca em causa que a garantia outorgada servia “Para garantia de toda e qualquer quantia até ao montante de 275.004,00 € (…)”, o que se encontra relacionada com o pagamento do preço das cessões (275.004,00 €) em prestações, de acordo com o calendário fixado no contrato de cessão de quotas;

H. A expressão “designadamente” constante do texto da escritura serve única e exclusivamente para especificar a obrigação a garantir;

I. Entendimento contrário levaria a que os Recorridos fossem garantes de qualquer valor devido ou até – como pretendem os Recorrentes - qualquer ato praticado pelos cessionários fora do âmbito da cessão de quotas, porque a não entrega do estabelecimento, depois do negócio anulado, não é componente da transmissão das quotas, mas sim um ato a ele alheio e, sobretudo, totalmente alheio aos Recorridos;

J. Os Recorridos, terceiros em relação ao negócio de cessão de quotas, prestaram garantia apenas sobre uma obrigação concreta, delimitada e identificada, garantindo assim unicamente o pagamento do preço das cessões, sendo essa a condicionante intrínseca da vontade real dos Recorridos para disporem do seu património;

K. Essa delimitação da hipoteca resulta também pelo modo e tempo em que foram realizados os dois negócios jurídicos, ou seja, a hipoteca foi constituída simultaneamente com a concretização das cessões de quotas, e pelo valor máximo correspondente ao valor do preço dessas cessões;

L. Ainda assim, existindo dúvida sobre o sentido da declaração, tratando-se de um negócio gratuito, sempre prevaleceria o sentido menos gravoso para o disponente, isto é, para o declarante que constituiu a hipoteca, conforme o artigo 237.º, do CC;

M. Pelo que, por força da anulação da cessão de quotas, objeto do negócio garantido, e a consequente extinção da dívida implicada com o pagamento do preço das cessões, atenta a acessoriedade da hipoteca, conclui-se pela extinção da hipoteca nos termos do disposto no artigo 730.º, alínea a), do CC;

N. Não se verifica qualquer erro de julgamento ou incorreta interpretação e aplicação das normas de direito, in casu, dos artigos 236.º, 237.º, 238.º, 372.º e 400.º, do CC.

O. A Sentença recorrida interpretou e aplicou corretamente a Lei aos Factos, não merecendo qualquer tipo de censura, pelo que deve ser integralmente mantida, com todas as consequências legais.

Foi proferido Acórdão que concedeu provimento ao recurso e revogou a sentença que decretou a extinção da hipoteca,mantendo-se esta válida, nos termos sobreditos, com as legais consequências.

Tendo sido feita uma declaração de voto nos termos seguintes:

“Concordo com o decidido. E com os fundamentos jurídicos. Não concordo, numa parte, quanto à decisão da matéria de facto: a eliminação do facto provado 15.

Entendo não se tratar de facto conclusivo. Tratou-se de apurar a vontade real das partes, designadamente dos AA declarantes. É por isso um facto.”

REVISTA

Inconformados, vieram os Autores interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, oferecendo as suas alegações, que culminam com as seguintes conclusões:

A. A decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância não enferma de quaisquer erros palmares, nomeadamente, não correspondendo o facto vertido no item 15 da sentença a qualquer tipo de asserção conclusiva, mas sim a um facto concreto, pelo que tal ponto da fundamentação da matéria de facto não deve ser dado como “não escrito”;

B. O facto provado 15, constante da sentença, trata de apurar a vontade real dos Recorrentes, tratando-se de um facto, e não de uma simples asserção conclusiva;

C. Aodeterminar quefossedadocomonãoescritooreferidofacto,oTribunal da Relação deixou de interpretar e aplicar adequada e corretamente ao caso dos autos o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC;

D. A alteração da matéria de facto concretizada pelo acórdão recorrido, dando como não provado o facto constante do item 15 da sentença, sem sequer ter valorado a prova produzida nos autos, sobretudo, a prova documental e o depoimento das testemunhas LL, JJ, MM e do próprio Autor, aqui Recorrente, AA, não se indicando, por outro lado, qualquer prova produzida nos autos ou documento superveniente apto a fundamentar decisão diferente daquela proferida pelo Tribunal a quo, viola as regras de direito probatório adjetivo revistas nos artigos 662.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4 do CPC, tendo o Tribunal recorrido atuado ilicitamente, violando ainda poderes legais que a Lei lhe confere plasmados nos termos dos citados preceitos legais;

E. Está em causa nos autos um direito real de garantia que incide sobre determinados bens imóveis dos Recorrentes, constituído por declaração unilateral, de caráter vinculativo, gratuito e formalizado mediante escritura pública, pelo que, por força do disposto no artigo 238.º do CC, se pairar dúvida acerca do sentido da declaração no âmbito dos negócios gratuitos, deve sempre prevalecer o sentido menos gravoso para o disponente;

F. O acórdão recorrido desconsiderou o dever de prevalência do sentido menos gravoso sobre a declaração exarada pelos Recorrentes, o que resultou numa interpretação desajustada e defasada da realidade em concreto que se apresenta nos presentes autos, e por arrasto, na violação do disposto nos artigos 9.º e 238.º do CC;

G. Resulta provado nos autos que os Recorrentes, terceiros em relação ao negócio de cessão de quotas, prestaram garantia através de hipoteca unilateral, apenas para assegurar exclusiva e unicamente o pagamento do preço da cessão de quotas, sendo essa, e não outra qualquer, a condicionante intrínseca da vontade real dos Recorrentes, para disporem, gratuitamente, do seu património, depreendendo-se a delimitação da abrangência da hipoteca clara e objetivamente pelo modo como e pelo tempo em que foram concretizados os dois negócios jurídicos em apreço nos autos;

H. A hipoteca unilateral dos autos trata-se de direito acessório que subsistiu apenas em função e por causa da obrigação principal, pelo que, por força da anulação da cessão de quotas, objeto do negócio garantido, e a consequente extinção da dívida, extingue-se a obrigação acessória, isto é, a hipoteca, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 730.º, alínea a), do CC.

I. A decisão recorrida está eivada de erro de interpretação e aplicação das normas de direito aplicáveis ao caso concreto, e consequentemente, não atingiu o alcance e sentido corretos das normas estatuídas nos artigos 9.º, 236.º, 237.º e 238.º, todos do Código Civil, pelo que deve tal decisão ser reformada;

J. O acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outra decisão que proceda ao reconhecimento dos pedidos dos Recorrentes.

Os recorridos não contra-alegaram.

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

Antes do mais, reproduzamos aqui os factos que as instâncias julgaram provados (com especial referência ao facto 15, que, julgado provado na 1ª instância; a Relação considerou como não escrito):

1) No âmbito da respectivas descrições prediais contantes do registo predial, os autores AA e mulher BB, constam como são proprietários inscritos dos seguintes prédios rústicos:

a) Prédio rústico, situado em ..., da freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da... sob o número 1023, da mesma freguesia e inscrito na Matriz Predial Rústica sob o artigo 2966, com a área de 2400 m2;

b) Prédio rústico, situado em ..., da freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 6594 da mesma freguesia e inscrito na Matriz Predial Rústica sob o artigo 2897, com a área de 4030 m2;

c) Prédio rústico, situado em ..., da freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória dos Registo Predial da ... sob o número 6631 da mesma freguesia e inscrito na Matriz Predial Rústica sob o artigo 2925, com a área de 4030 m2;

d) Prédio rústico, situado em ..., da freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial, de ... sob o número 6668 da mesma freguesia e inscrito na Matriz Predial Rústica sob o artigo 2933, com a área de 4030 m2; e

e) Prédio rústico, situado em ..., da freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o número 6714 da mesma freguesia e inscrito na Matriz Predial Rústica sob o artigo 2896, com a área de 4030 m2 (Tudo conforme Certidões permanentes e Cadernetas prediais dos referidos prédios juntos como documentos n.ºs 1 a 10 e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais).

2) Por escritura pública, intitulada de “HIPOTECA UNILATERAL”, realizada em 11 de maio de 2007, no Cartório Notarial de ..., os Autores AA e mulher BB constituíram hipoteca unilateral sobre cada um dos prédios rústicos supra descritos.

3) Em tal escritura de “HIPOTECA UNILATERAL”, os autores declararam, entre o mais, que “são donos e legítimos possuidores dos prédios” a que se alude em 1);

“Que, pela presente escritura, constituem hipoteca sobre os supra identificados prédios a favor de: A) CC, e mulher, DD, (…) B) GG, e mulher, HH, (…) C) EE, e mulher, FF (…);

Para garantia de toda e qualquer quantia até ao montante de duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros, à qual não acrescem nem juros nem outros acessórios, de que os supra identificados sejam credores relativamente a II, casado (…) com KK (…); e a JJ (…), designadamente, quanto ao preço não pago das cessões de quotas que os primeiros fizeram aos segundos, por escritura lavrada hoje neste Cartório e relativamente à sociedade comercial por quotas com a firma “J..., Lda.” (…).”

4) Mais declararam “Que a presente hipoteca durará enquanto existir qualquer responsabilidade dos segundos para com os primeiros emergente dos actos antes mencionados.”

5) Por força da AP. 10 de 2007/06/12 – relativamente a todas as sobreditas descrições prediais (quanto aos cinco prédios), consta a inscrição no registo predial de “Hipoteca Voluntária”, com as seguintes menções:

CAPITAL: 275.004,00 Euros MONTANTE MÁXIMO ASSEGURADO: 275.004,00 Euros SUJEITO(S) ATIVO(S):

**EE E MULHER FF, C. NA COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS

** CC E MULHER DD, C. NA COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS

** GG E MULHER HH., C. NA COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS

“Para garantia de toda e qualquer quantia até ao montante de 275.004,00 €, à qual não acrescem nem juros nem outros acessórios, de que os sujeitos activos sejam credores relativamente a II, c.c. KK, na comunhão de adquiridos, residente na Praceta ..., nº 3, 2º esqº., ..., ... e a JJ, solteiro, maior, residente em ...; designadamente quanto ao preço não pago das cessões de quotas que os sujeitos activos fizeram aos referidos II e JJ por escritura lavrada em 11-05-2007 no Cartório Notarial de ..., relativamente à sociedade comercial por quotas com a firma "J..., Lda.", NIPC ... ... .31, com sede em ....”

6) Por escritura pública, intitulada de “CESSÕES E UNIFICAÇÕES DE QUOTAS, NOMEAÇÃO DE GERENTES E ALTERAÇÃO PARCIAL DE CONTRATO DE SOCIEDADE”, realizada no mesmo dia 11 de maio de 2007, no Cartório Notarial de ..., na qual intervieram na qualidade de PRIMEIROS OUTORGANTES

A) CC, e mulher, DD, (…) B) GG, e mulher, HH, (…) C) EE, e mulher, FF (…);

Na qualidade SEGUNDO: II, casado (…) com KK (…);

E na qualidade de TERCEIRO: JJ Pelos primeiros foi dito, entre o mais, que na qualidade de únicos sócios da sociedade comercial por quotas com a Firma “J..., Lda.”

Que o primeiro outorgante e a mulher identificados em A) cedem ao segundo, pelo preço de noventa e um mil e seiscentos e sessenta e oitos euros, aquela quota de mil, seiscentos e sessenta e sete euros da qual ele é titular;

Que os primeiros outorgantes identificados em B) cedem ao terceiro, pelo preço de noventa e um mil e seiscentos e sessenta e oitos euros, aquela quota de mil, seiscentos e sessenta e sete euros da qual o cônjuge marido é titular.

Que os primeiros outorgantes identificados em c) dividem previamente aquela sua quota de mil, seiscentos e sessenta e sete euros da qual o cônjuge marido é titular, em duas novas quotas (…) e cedem: uma ao segundo outorgante (…) e outra ao terceiro (…)” DECLARAM OS SEGUNDO E TERCEIRO OUTORGANTES:

Que aceitam, respectivamente, as presentes cessões de quotas, (…)” conforme documento n.º 12 junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

7) Os cessionários no referido “contrato de cessão de quotas”, intentaram ação declarativa de condenação contra os aqui Réus, cedentes das quotas da referida sociedade, requerendo a anulabilidade do contrato, o que veio a ser declarado no âmbito do processo n.º 60/08.6TBADV, pelo Tribunal da Relação de Évora e confirmado com trânsito em julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme Certidão Eletrónica com o código de acesso n.º GHLT-LJGK-MH7E-QGU7 junta como documento n.º 13 e que se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

8) Em face do trânsito em julgado do Acórdão junto, ocorrido em 12 de maio de 2016, os Autores procederam ao pedido de cancelamento da hipoteca sobre os prédios em causa junto da Conservatória do Registo Predial de ....

9) O qual, no entanto, veio a ser recusado pela referida Conservatória, conforme despacho de qualificação junto como documento n.º 14 e se dá por reproduzido, tendo tal recusa por fundamento o facto de a Sentença proferida no Processo Judicial n.º 60/08.6TBADV não se pronunciar sobre o mencionado cancelamento do registo da hipoteca, pelo que inexistia título.

10) Em face dessa recusa, os Autores tentaram junto dos Réus obter declaração de consentimento para o cancelamento da hipoteca, conforme documentos n.ºs 15 a 17, que foram recebidos pelos Réus e que se juntam e se dão por reproduzidos.

11) Consentimento para cancelamento que, até à presente data, os Autores não lograram obter dos Réus.

12) No âmbito do processo n.º 60/08.6..., que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo Central Cível e Criminal – Juiz 1 - referente aos autos de execução para entrega de coisa certa, em que são exequentes DD, FF, EE e HH, GG e CC e executados II, KK e JJ, vieram aqueles requerer a conversão da execução para pagamento de quantia certa, para pagamento da indemnização correspondente ao valor das coisas que estão obrigadas a entregar; sendo que, a final, por decisão proferida a 16.07.2019, foi judicialmente decidido: no que concerne à parte dispositiva:

“Pelo exposto o Tribunal:

A) Determina a conversão da presente execução para entrega de coisa certa em execução para pagamento de quantia certa;

B) Fixa à execução o valor de € 314.039,99 (trezentos e catorze mil e trinta e nove euros e noventa e nove cêntimos).

13) Tal decisão levou em consideração, entre o mais, que os executados foram condenados a abrir mão do estabelecimento comercial em causa, entregando-o aos réus, no estado em que o receberam, concluindo que não foi possível entregar tal estabelecimento no estado em que os executados o receberam, havendo, por isso, lugar à conversão da execução, no valor correspondente ao valor ilíquido do património imobilizado corpóreo da sociedade, que foi o que efectivamente foi entregue aos executados.

14) O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido a 17-12-2020, proferido em tais autos, confirmou a sobredita decisão.

15) (relativamente ao ponto I, dos temas da prova) - Provado que: Os autores declararam o exarado na escritura de constituição da hipoteca a que se alude em 2) e seg., dos factos provados, no sentido por eles pretendido de garantir apenas o pagamento do preço das cessões de quotas da Sociedade J..., Lda.., realizada nesse mesmo dia e no mesmo Cartório Notarial, entre os aqui Réus e os mencionados cessionários; (facto que a Relação considerou como não escrito)

- Sendo que os autores não tiveram qualquer intervenção no negócio de aquisição das quotas; como não tiveram intervenção na gestão do conexo estabelecimento (de Panificação):

- Limitando-se a conceder a garantia em causa por razões de solidariedade familiar.

Apreciando:

No âmbito da presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, intentada por AA e mulher, BB contra CC e mulher DD, EE e mulher FF e GG e mulher HH, vieram os autores interpor recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 27-06-2023, que julgou procedente o recurso de apelação e revogou a sentença recorrida, substituindo-a por decisão que manteve válida a hipoteca unilateral constituída pelos autores.

Em primeira instância, foi proferida sentença que julgou procedente a acção e, em consequência:

- Julgou extinta a garantia em causa – a HIPOTECA UNILATERAL – a que se alude nos pontos 2), 3) e seguintes dos factos provados, relativamente a todos os prédios rústicos dela objecto, descritos no ponto 1), dos factos provados, ordenando o cancelamento dos conexos registos da hipoteca unilateral constituída pelos Autores a favor dos Réus sobre os identificados prédios rústicos, registada relativamente a cada um dos prédios por força da AP. 10 de 2007/06/12 – relativamente a todas as sobreditas descrições prediais.

Inconformados com a decisão assim proferida pelo Tribunal da Relação, vieram os autores apresentar o presente recurso de revista.

O OBJECTO DO RECURSO:

As questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes:

I - Saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao dar como não escrito o facto que havia sido dado como provado em 15. na sentença da primeira instância, por não configurar aquele uma asserção conclusiva, como entendeu o Tribunal da Relação, mas sim um facto que traduz a vontade real dos autores, ora recorrentes;

II - Saber como devem ser interpretadas as declarações negociais constantes no negócio de hipoteca unilateral, a fim de apurar se procede a pretensão dos autores de ver extinta a garantia por si prestada.

No caso em apreço, coloca-se, como vimos, a questão essencial de saber em que sentido deve ser interpretado o negócio de hipoteca unilateral e a declaração de vontade expressa no mesmo por parte dos autores, a fim de descortinar qual a sua abrangência.

A montante, suscita a recorrente uma questão prévia relativa à decisão do Tribunal da Relação que eliminou, por o considerar desprovido de conteúdo factual, o facto provado em 15. da sentença da primeira instância.

Vejamos:

I - Num primeiro momento, os recorrentes insurgem-se contra o sentido da decisão da Relação que incidiu sobre o ponto 15 dos factos julgados provados na sentença, ao considerar esse “facto” como não escrito.

É o seguinte o teor do referido facto 15: “Os autores declararam o exarado na escritura de constituição da hipoteca a que se alude em 2) e seg., dos factos provados, no sentido por eles pretendido de garantir apenas o pagamento do preço das cessões de quotas da Sociedade J..., Lda., realizada nesse mesmo dia e no mesmo Cartório Notarial, entre os aqui Réus e os mencionados cessionários.”.

Considerou o acórdão recorrido, para fundamentar a sua decisão, que o referido ponto consubstanciava, não um facto, mas uma asserção conclusiva, “a qual, a ser considerada, só por si, e independentemente dos outros factos dados como provados, decidia a causa.”.

Esta questão não mereceu, porém, a concordância de todos os juízes desembargadores, constando do acórdão uma declaração de voto que assinala a não concordância com a apontada eliminação do facto provado em 15, por considerar não se tratar de uma asserção conclusiva, mas sim de um facto relativo à vontade real das partes, designadamente dos autores declarantes.

É esta, de resto, a posição sufragada pelos recorrentes, que entendem que o Tribunal da Relação incorreu em erro e não aplicou adequadamente o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 5.º do CPC e, bem assim, o disposto no n.º 1 do art. 662.º do CPC.

Vejamos.

Conforme decorre do art 682.º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista que, salvo nos casos excepcionais contemplados no nº 3 do artigo 674.º do CPC, aplica definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, consistindo as excepções referidas “na ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, como dispõe o nº 3 do artigo 674º do C.P.C..

Como se escreve no Acordão do STJ de 30-11-2022 (revista n.º 2603/19.0T8PDL.L1.S1) “no que tange à matéria de facto, o tribunal de Revista não pode intervir na valoração da prova feita pelo tribunal da Relação, segundo a sua livre e prudente convicção, apenas podendo aferir se o tribunal da Relação observou, quer a disciplina processual aludida nos arts. 640º e 662º, nº 1, quer a análise crítica da prova nos termos ínsitos no art. 607º, nº 4 (aplicável ex vi do artº 663º, nº 2, todos do CPC).”.

No caso presente, o Tribunal da Relação decidiu eliminar um facto dado como provado na sentença da primeira instância, não por via da reapreciação da prova produzida a esse propósito, mas por considerar que o referido facto consubstanciava, afinal, uma asserção conclusiva suscetível de decidir, por si, a causa.

Em nosso entender, tal análise não constitui propriamente a uma reapreciação da matéria de facto provada à luz dos elementos probatórios constantes do processo, mas sim a uma apreciação jurídica da natureza do próprio facto, o que se reconduz a uma questão de direito, como tal susceptível de ser sindicada por este Supremo Tribunal.

Tenha-se presente, quanto à questão de apurar se os factos julgados pelo Tribunal da Relação são, na realidade, conclusivos, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de tal constituir matéria de direito, como tal sindicável em sede de revista, neste sentido se tendo pronunciado, entre outros, o o Acórdão do STJ de 28/09/2017 (revista n.º 659/12.6TVLSB.L1.S1), onde se afirma que “tendo o recurso de revista por objeto saber se um determinado facto julgado provado pelo tribunal da Relação, ao abrigo dos seus poderes decisórios previstos no artigo 662.º do CPC, contém matéria conclusiva e deve, por tal razão, ser eliminado do elenco dos factos provados, nenhum obstáculo legal existe quanto à admissibilidade do recurso de revista por estar em causa uma questão de direito”.

Não sendo este aresto diretamente aplicável à situação sub judice, é transponível, mutatis mutandis, por identidade de razão.

No mesmo sentido, pronunciou-se expressamente sobre a questão concreta que aqui nos ocupa o recente Acórdão do STJ de 24-01-2024 (processo n.º 22913/20.3T8LSB.L1.S1, onde se afirma que “é sindicável pelo STJ a decisão da Relação que elimina, por os considerar desprovidos de conteúdo factual, determinados factos, por tal apreciação ser uma questão de direito.”.

Assente que está a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça sindicar a decisão do acórdão recorrido nesta parte, resta aproximarmo-nos do facto em causa a fim de saber se assiste razão aos recorrentes quando defendem a manutenção do mesmo no elenco da factualidade a considerar por este Tribunal.

Como vimos, o Tribunal da Relação considerou que a sentença enfermava de erro no atinente à consagração dos factos provados e não provados, tendo considerado que o teor do plasmado no facto 15 se revestia de natureza conclusiva, não constituindo um facto concreto. Nesses termos, o acórdão recorrido decidiu dar o referido facto como não escrito.

O referido facto diz respeito à vontade real que presidiu à declaração negocial subscrita pelos autores no negócio jurídico sob escrutínio nos autos, porquanto resulta aí plasmado que os mesmos quiseram, com a sua declaração negocial, “garantir apenas o pagamento do preço das cessões de quotas da sociedade J..., Lda..”.

Ora, é jurisprudência corrente que o apuramento da vontade real dos declarantes, em matéria de interpretação de negócio jurídico, constitui matéria de facto (entre outros, os Acórdãos do STJ de 4-05-2010 (revista n.º 2066/04.5TJVNF.P1.S1), de 28-03-2019 (revista n.º 281648/11.7YIPRT.L1.S1), de 17-11-2021 (revista n.º 4113/18.4T8ALM.L1.S1), de 08-04-2021 (revista n.º 453/14.0TBVRS.L1.S1), de 20-02-2022 (revista n.º 527/19.0T8FND.C1.S1) e de 07-03-2023 (revista n.º 2990/20.8.T8CSC.L1.S1, relatado pelo aqui também relator, que assim sumariou : “Para concluir se as partes tiveram ou não o propósito de criar um vínculo de dependência entre contratos, há que apurar a sua vontade psicológica subjacente às declarações contratuais, com observância das regras de interpretação constantes dos art. 236º e seguintes do Código Civil, constituindo esse apuramento matéria de facto”).

Neste sentido, se a interpretação das cláusulas dos contratos é matéria de facto quando se dirija à averiguação e reconstituição da vontade real das partes, então não pode ser considerado conclusivo o facto dado como provado em 15 na sentença da primeira instância, na medida em que este se limita, de forma concreta, a descrever a vontade dos autores declarantes ao subscrever o negócio jurídico em causa nos autos.

Ou seja, Justificando a Relação a eliminação do facto 15 como provado, por o considerar conclusivo, quando o mesmo retrata a vontade real das partes subjacente à sua declaração negocial, tratando-se, pois, de matéria de facto, como tal não conclusiva, mal andou aquele Tribunal, pelo que deverá aquele facto ser recuperado para o elenco dos provados pela 1ª instância.

Outra coisa seria se aquela eliminação resultasse da apreciação dos meios de prova levada a cabo pela Relação, pois, como sabemos, a Relação tem a última palavra nesse domínio, nos termos do art. 662º nº 1 do CPC.

E nem se diga, como parece pretender defender o acórdão recorrido, que a prova do referido facto decidia, por si só, a causa, ou seja, que o desiderato decisório assentaria em tal facto independentemente dos outros factos dados como provados. É que o referido facto 15. apenas cuida de descrever aquela que foi a vontade real dos autores declarantes, não se tendo demonstrado que os declaratários – cedentes das quotas – tinham da mesma conhecimento. Nesta medida, sempre necessário seria recorrer aos critérios interpretativos supletivos fixados nos arts. 236.º a 238.º do Código Civil, como vem sido entendido pela jurisprudencial e doutrinalmente.

Em conclusão, entendemos que, nesta parte, deve ser revogada a decisão da Relação na parte em que eliminou o facto provado em 15. na sentença da primeira instância, facto esse que, assim, deverá manter-se no elenco da matéria de facto provada a ser considerada por este Tribunal.

III - Importa, pois, já no plano do segundo momento da presente revista, passar à interpretação do negócio jurídico, apreciando o âmbito da hipoteca em causa nos autos.

Como resulta das conclusões do recurso, a posição sustentada pelos recorrentes quanto à questão essencial a decidir – de saber qual a abrangência da hipoteca unilateral em causa nos autos – vai no sentido da tese perfilhada na sentença da primeira instância, que concluiu que a hipoteca prestada apenas se destinou a garantir o preço da cessão de quotas.

Diferentemente, o Tribunal da Relação, dando prevalência ao elemento literal do negócio jurídico, entendeu que aquela garantia real não se destinou a abranger apenas a cessão de quotas, mas também quantias decorrentes de eventuais outros negócios.

O argumentário jurídico expendido em ambas as instâncias sobre o enquadramento teórico-normativo da problemática relativa à interpretação dos negócios jurídicos apresenta-se consonante e em conformidade com o que resulta do regime legal previsto nos arts. 236.º a 238.º do Código Civil e que nos escusamos aqui de reproduzir.

Entende, porém, a recorrente que o acórdão recorrido “desconsiderou o dever de prevalência do sentido menos gravoso sobre a declaração exarada pelos recorrentes, o que resultou numa interpretação desajustada e defasada da realidade em concreto que se apresenta nos presentes autos, e por arrasto, na violação do disposto nos artigos 9.º e 238.º do Código Civil.”.

Vejamos.

Os factos concretos apurados no processo não permitem afirmar com certeza qual foi a comum vontade real das partes no que respeita à correcta determinação do âmbito de aplicação da hipoteca unilateral prestada pelos autores. Com efeito, como vimos, o facto 15 apenas esclarece qual a vontade com que atuaram os autores, ora recorrentes, ao prestarem a garantia real hipotecária que se discute, desconhecendo-se se essa vontade era conhecida dos declaratários, cedentes das quotas.

Sendo desconhecida essa vontade real comum, devem seguir-se os critérios fixados nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, a fim de determinar o sentido juridicamente relevante das declarações negociais dos contraentes, o que ambas as instâncias fizeram, chegando, porém, a resultados diferentes.

O primeiro princípio essencial a considerar nesta matéria é o que resulta do n.º 1 do art. 236.º do Código Civil – a declaração valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

O preceito acabado de citar acolhe a teoria da impressão do destinatário, de cariz objetivista, segundo a qual a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, sagaz e diligente, colocado na posição do concreto declaratário, a entenderia.

Por sua vez, quando estejam em causa negócios formais, como é o caso dos autos, estatui o art. 238.º, n.º 1, do CC que o sentido correspondente à impressão do destinatário não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no texto do respetivo documento.

Acerca da interpretação do art. 236.º do CC, vejam-se os ensinamentos da doutrina, colhidos no Acórdão do STJ de 20/11/2012, proferido no processo 176/06.3TBMTJ.L1.S2:

Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. 1º, pág. 233, em nota ao art. 236º do Código Civil ensinam

“[...] A regra estabelecida no n.º 1, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n.º 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).

(...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir.

(...) A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”

O declaratário normal deve ser uma pessoa com – “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” – Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita”, 1995, 208.

Ensina MENEZES CORDEIRO (in “Tratado de Direito Civil Português l, Parte Geral”, Tomo l, 1999, págs. 478 e 479), que“A doutrina actual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objectivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo”...“tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança…” […] “entendemos que a interpretação do negócio deve ser assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas. Embora virada para as declarações concretas, ela deve ter em conta o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado, as regras supletivas que ele veio afastar e o regime que dele decorra”»

Já o artigo 237.º do Código Civil estabelece que, para os casos duvidosos, prevalece, nos negócios onerosos, o sentido da declaração que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.

E, relativamente aos negócios formais, quer seja legal ou voluntária a forma adotada, estabelece o artigo 238.º do mesmo Código que:

“1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade”.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.11.92, in BMJ-421/364 (citado naquele mesmo acórdão de 20/11/2012), sentenciou:

“O Código Civil acolheu no artigo 236º, n.º1, a chamada “teoria da impressão do destinatário”. Segundo essa teoria, a declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante. Mas, segundo o n.º 2 daquele artigo, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é esta que prevalece ainda que haja divergência entre ela e a declarada, resultante da aplicação da teoria da impressão do destinatário”.

Acrescenta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2.2.88, in BMJ – 374, 436 (continuamos a citar):

“No tocante à interpretação, o artigo 236º, determinado por razões de protecção ao declaratário e de segurança do tráfico, consagrou a denominada teoria da impressão do destinatário, vindo privilegiar o sentido objectivo da declaração negocial temperado por um elemento de inspiração subjectivista: aquele sentido deixa de prevalecer quando não possa razoavelmente ser imputado ao declarante (n.º 1, “in fine”). O mesmo sentido objectivo igualmente é inatendível quando não coincida com a vontade real do declarante e esta seja conhecida do declaratário (n.º 2). Assim, a interpretação das declarações negociais não se dirige, salvo no caso do artigo 236º, n.º 2, a fixar um facto simples – o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração –, mas o sentido jurídico, normativo, da declaração.

A integração dos negócios jurídicos postula, por seu turno, duas exigências: investigar o que as partes teriam querido se houvessem previsto o ponto omisso, e o que os ditames da boa fé impõem. Estando em causa a aplicação de critérios da lei, ainda que apoiados factualmente, trata-se, nos dois casos, de matéria de direito.”

Mota Pinto – “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – Coimbra Editora – Maio 2005 – pág. 446 e segs, ensina:

“…O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação.

De acordo com o critério propugnado, quanto ao problema do tipo do sentido negocial decisivo para a interpretação, também aqui se deverá operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.

A título exemplificativo, Manuel de Andrade referia “os termos do negócio”; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.”.

É neste quadro legal, doutrinal e jurisprudencial, que se deve mover a interpretação do negócio jurídico sob escrutínio. Nele se consignou expressamente que a hipoteca era constituída:

Para garantia de toda e qualquer quantia até ao montante de duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros… de que os supra identificados sejam credores relativamente a II e a JJ (…), designadamente quanto ao preço não pago das cessões de quotas que os primeiros fizeram aos segundos, por escritura lavrada hoje neste Cartório e relativamente à sociedade comercial por quotas com a firma “J..., Lda. (…).”.

O acórdão recorrido, partindo fundamentalmente do texto da declaração negocial acabada de transcrever, entendeu que o mesmo não admitia outra interpretação que não seja a de que a hipoteca se destinou a garantir toda e qualquer responsabilidade dos garantidos para com os beneficiários da hipoteca.

Apresenta, para tanto, a seguinte fundamentação:

… importa ter em consideração o disposto no artº 9º do CC o qual, ainda que reportado, imediata e diretamente, à exegese de normas, também vale, mutatis mutandis, para a interpretação da declaração negocial.

De tal normativo emergem três ideias mestras, a saber: i) a interpretação não deve cingir-se à letra da lei/negócio jurídico; ii) Porém, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo/negocial que não tenha na letra da lei/contrato um mínimo de correspondência verbal; iii) e o intérprete presumirá que o legislador/contraente soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Ademais, e como se expende na sentença, há que atentar no disposto no artigo 238.º do CC:

“1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.”

Ora no negócio em causa ficou, adrede, consignado que a hipoteca era constituída: «Para garantia de toda e qualquer quantia até ao montante de duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros…de que os supra identificados sejam credores relativamente a II, …e a JJ (…), designadamente, quanto ao preço não pago das cessões de quotas que os primeiros fizeram aos segundos, por escritura lavrada hoje neste Cartório e relativamente à sociedade comercial por quotas com a firma “J..., Lda.” (…).»

Esta redação, máxime as expressões sublinhadas e a negrito, não deixa, desde logo perante as regras hermenêuticas inerentes à língua portuguesa, qualquer margem para dúvida que a hipoteca se destinou a garantir toda e qualquer (não há literalidade homónima mais abrangente) responsabilidade dos garantidos para com os beneficiários da hipoteca.

Ou seja, a responsabilidade dos garantes reportava-se a toda e qualquer quantia oriunda de responsabilidades decorrentes de quaisquer relações negociais que eventualmente viessem a existir entre o II e o JJ e os beneficiários da hipoteca.

E desde logo se mencionou os valores do preço da cessão naturalmente porque este era o negócio que já estava a ser gizado ou já tinha sido concretizado.

Os argumentos esgrimidos na sentença para infirmar esta patente e inequívoca realidade não são os bastantes.

O facto de o limite da responsabilidade coincidir com o valor da cessão das quotas deve ser interpretado que este valor foi tido como referencial do limite quantitativo máximo da responsabilidade dos garantes.

Mas tal não impede o entendimento de que a garantia também pode abranger outros negócios; não pode é ultrapassar, quantitativamente, aquele valor limite.”.

Se, em tese, o argumentário do acórdão recorrido está, na sua essencialidade, conforme com as normas legais citadas, partindo da consideração da expressão literal da declaração negocial em apreciação, o certo é que o mesmo desconsidera, quanto a nós, uma variedade de outros factores, que têm de forçosamente concorrer no âmbito do exercício interpretativo de determinada declaração negocial.

Com efeito, se é certo que, à semelhança do que sucede na interpretação da lei, a busca do sentido relevante de uma declaração negocial, quando documentada, deve partir da sua expressão literal, não é menos verdade que a interpretação deve ter também em conta o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado, os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes os usos ente as partes.

Neste contexto, a sentença da primeira instância faz uma análise exaustiva do clima negocial em causa, de acordo com as suas especificidades e pressupostos, concluindo no sentido de que a hipoteca estaria intrinsecamente ligada ao contrato de cessão de quotas celebrado, no mesmo tempo e lugar, e que, por isso, não visaria garantir quaisquer outras dívidas que não as advenientes da aludida cessão.

Prescrutando o elemento literal da declaração negocial, a sentença da primeira instância não o entende como obstáculo à interpretação defendida, por considerar que a mesma ainda encontra aí o necessário respaldo.

A este propósito, atente-se no exercício interpretativo ensaiado pela sentença da primeira instância, com o qual se concorda na íntegra, por atentar nos elementos estruturantes e essenciais do negócio jurídico em causa nos autos e a todas as circunstâncias conexas relevantes:

Ora, no caso, como primeira circunstância e, porventura, mais decisiva, figuram as circunstâncias do negócio, a relação entre os dois negócios relacionados.

Desde logo, o coevo contexto temporal (e até coincidência física – o contexto físico).

Por um lado, temos a escritura pública, intitulada de “HIPOTECA UNILATERAL”, realizada em 11 de maio de 2007, no Cartório Notarial de ..., outorgada pelos Autores AA e mulher BB; e, por outro, a escritura de pública de “CESSÕES E UNIFICAÇÕES DE QUOTAS, NOMEAÇÃO DE GERENTES E ALTERAÇÃO PARCIAL DE CONTRATO DE SOCIEDADE”, realizada no mesmo dia 11 de maio de 2007, e no mesmo Cartório Notarial de ....

Desde logo, a relação entre os dois negócios é evidente, na medida em que em tal escritura de “HIPOTECA UNILATERAL”, os autores declararam, entre o mais, que constituem hipoteca sobre os prédios em causa “Para garantia de toda e qualquer quantia até ao montante de duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros, (…), de que os supra identificados sejam credores relativamente a II, casado (…) com KK (…); e a JJ (…), designadamente, quanto ao preço não pago das cessões de quotas que os primeiros fizeram aos segundos, por escritura lavrada hoje neste Cartório e relativamente à sociedade comercial por quotas com a firma “J..., Lda.” (…).”

Isto, naturalmente, ninguém discute.

Que a hipoteca se destinou a garantir o preço da cessão de quotas, é, pois, indesmentível.

A divergência está só em saber se apenas se destinou a garantir o preço da cessão de quotas ou algo mais.

Ora, militam a favor da primeira interpretação os termos da hipoteca, conjugados com os termos da cessão de quotas.

Como foi realçado em julgamento e decorre do teor do compulso dos termos dos negócios, olhando para a escritura de cessão de quotas, vemos que, se somarmos os preços parcelares das quotas cedidas (€91.668,00 + €91.668,00 + 45.834,00 + €45.834,00) – atingimos rigorosamente o valor de €275.004,00 (duzentos e setenta e cinco mil e quatro euros) – que corresponde exactamente ao limite da hipoteca.

Se olharmos ainda para os termos da cessão de quotas, vemos que, no dia da escritura de cessão, nenhuma quantia foi entregue, pelo menos relativamente ao preço declarado.

De acordo com o calendário de pagamentos, as primeiras prestações relativas ao preço das cessões de quotas apenas se iriam vencer no prazo de um mês – após a data de escritura de cessão.

Ou seja, se atentarmos bem, no contexto temporal da escritura, e ao cabo de, pelo menos mais um mês, a garantia prestada nunca poderia exceder o preço das cessões de quotas.

Dito doutra forma, o limite da hipoteca esgota-se por completo no valor das cessões de quotas.

Nesta medida, pelo menos durante aquele período, e desde logo no contexto temporal das escrituras em causa – não havia qualquer espaço ou cabimento para que a garantia prestada fosse mais além do que o preço das cessões de quotas.

Qualquer declatário normal, minimamente sagaz, colocado na posição dos declaratários ajuizados, perceberia isso – ou seja, se o limite da hipoteca equivale integralmente ao preço das cessões – e se no momento das cessões nada é pago àquele título – a garantia não podia cobrir suplementarmente ou adicionalmente mais nada, por total exaurimento.

Mais, num cenário de incumprimento do pagamento do preço das cessões de quotas – iríamos ter exactamente aquele mesmo esgotamento – o limite da hipoteca atingia-se com o valor do preço das quotas cedidas.

Qualquer declatário normal, minimamente sagaz, colocado na posição dos declaratários ajuizados, perceberia igualmente isso mesmo.

E, qualquer declaratário normal tem razoavelmente que contar com a possibilidade de incumprimento integral do preço das cessões – tanto é assim que, no caso, tiveram a preocupação de convocar a garantia real ajuizada – justamente a hipoteca em causa.

Se não havia espaço para aquele “plus” é porque, razoavelmente, as partes medianamente com ele não contaram.

Por assim dizer, se o “copo da hipoteca” está cheio com o “líquido das cessões” – temos de concluir, como qualquer declaratário normal concluiria – que não caberia mais nada (não tem por onde).

E, veja-se que os autores/declarantes tiveram a preocupação de consignar que ao montante de 275.004,00 € - não acresceriam nem juros nem outros acessórios – como que a sinalizar que aquele era o limite intransponível.

Ainda correlacionando os termos dos dois negócios, sublinha-se que da hipoteca desponta que a garantia outorgada servia “Para garantia de toda e qualquer quantia até ao montante de 275.004,00 € (…)”.

Ora, aquela expressão afigura-se razoavelmente relacionada com o facto de, no contrato de cessão, se prever o pagamento do preço das cessões (275.004,00 €) em prestações, de acordo com o calendário ali fixado.

Pelo que, razoavelmente, toda a qualquer quantia até ao montante de €275.004,00 – tem que ver com a previsível fluidez – variabilidade – do preço das cessões em dívida – em função da amortização do preço ao longo do calendário em causa.

Certo que, mais à frente nas declarações de hipoteca temos o seguinte segmento “designadamente quanto ao preço não pago das cessões de quotas”.

Aquele advérbio “designadamente” comporta sentidos não exactamente coincidentes, podendo usar-se no sentido de “nomeadamente” “exemplificativamente” ou pode usar-se num sentido de especificação ou pormenorização e, nesta medida, tanto assenta numa interpretação como noutra.

Nesta medida, afigura-se que tal elemento literal, a partir dos termos do próprio negócio, não é decisivo (dado que equívoco), devendo o interprete buscar o sentido normal da declaração no sentido noutros elementos.

Ora, como se disse, os supra realçados contributos interpretativos persuadem no sentido de se considerar que um declatário normal, atentas todas aquelas circunstâncias, teria de considerar que a hipoteca estava exclusivamente indexada ao pagamento do preço das cessões de quotas.

Mais, olhando ainda aos termos da declaração de hipoteca, nela exararam os declarantes que “Que a presente hipoteca durará enquanto existir qualquer responsabilidade dos segundos para com os primeiros emergente dos actos antes mencionados.”

Vislumbra-se ali, portanto, como que uma indexação da hipoteca e sua duração – à responsabilidade dos segundos para com os primeiros emergente dos actos antes mencionados.

Ora, antes de mais, por “segundos”, atento o teor da declaração de hipoteca no seu todo, não pode deixar razoavelmente de entender-se que são os designados II, casado (…) com KK (…); e JJ (os cessionários das quotas ajuizadas).

E, por “primeiros”, atento ainda o teor da declaração de hipoteca no seu todo, não pode deixar de entender-se que são dos designados A) CC, e mulher, DD, (…) B) GG, e mulher, HH, (…) C) EE, e mulher, FF (os cedentes das quotas). (…)”.

Segue-se de perto esta fundamentação, a melhor que, quanto a nós, avalia todos os elementos essenciais da interpretação: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar, e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas; a finalidade prática visada pelas partes e o próprio tipo negocial.

Pese embora o destaque dado pelo acórdão recorrido ao elemento literal do contrato, o certo é que as regras linguísticas e gramaticais são, por si só, insuficientes para interpretar negócios jurídicos. É, por essa razão, que a doutrina foi desenvolvendo teorias jurídicas de interpretação dos negócios, consagrando a lei que uma declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que seria apreendido por um “declaratário normal” – um homem honesto medianamente instruído e diligente - colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. E para alcançar a “impressão do destinatário”, deve atender-se aos diversos elementos disponíveis que traduzem o contexto em que a declaração foi emitida.

No caso, entende-se existir uma conexão óbvia entre a hipoteca e o contrato de cessão de quotas, tendo os declarados exarado expressamente, depois de aludirem especificamente à garantia de pagamento do preço das cessões de quotas, “Que a presente hipoteca durará enquanto existir qualquer responsabilidade dos segundos para com os primeiros emergente dos actos antes mencionados.” (sublinhado nosso)

Ora, antes dessa declaração só foi mencionado o ato de “cessão de quotas”, sendo que, como reforçado na sentença, a referência temporal “durará enquanto existir qualquer responsabilidade dos segundos para com os primeiros emergente dos actos antes mencionados”, faz pleno sentido se atentarmos que, no negócio garantido (cessão de quotas), se previa um plano de pagamentos temporalmente delimitado.

Havendo ainda que atentar na posição assumida pelas partes na execução do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os direitos e as vinculações que para cada uma delas emergem do negócio.

Neste contexto, resulta provado do facto 15) que os autores declararam o exarado na escritura de constituição da hipoteca convictos de que o faziam para garantir apenas o pagamento do preço das cessões de quotas da sociedade J..., Lda., realizada nesse mesmo dia e no mesmo Cartório Notarial, entre os réus e cessionários.

Mais resultou provado que os autores concederam a garantia por razões de solidariedade familiar.

Do exposto, resulta claro que estamos perante uma verdadeira “hipoteca de favor”, na medida em que os autores, que constituíram a hipoteca, não são os devedores do negócio garantido.

Este contexto negocial assume primordial importância no âmbito da interpretação da declaração exarada pelos autores aquando da constituição da hipoteca, porquanto não se nos afigura expectável, à luz dos usos e costumes habitualmente seguidos em negócios idênticos, que outra relação negocial, que não a identificada expressamente no documento constitutivo da hipoteca - as cessões de quotas, pudesse justificar um alargamento indeterminado da garantia prestada, ainda que pecuniariamente limitado.

Não se nos afigura razoável nem justa outra interpretação à luz das circunstâncias e factos apurados neste caso.

Com efeito, o normal é que uma hipoteca prestada por solidariedade, uma hipoteca de favor, seja prestada para garantia apenas de obrigações concretas, as que justificam esse favor, que se assume, em regra, como um ato pontual e excecional. A razão parece óbvia: a hipoteca é, neste caso, um negócio de risco, no qual o constituinte da hipoteca assume o risco de ter de vir a ser ele a suportar a dívida do devedor, atuando, contudo, com a expetativa de que isso não será necessário porque confia que o devedor cumprirá as suas obrigações (é esta confiança que, em última análise, justificará a outorga da hipoteca unilateral).

Acrescente-se que, sendo a hipoteca de favor um negócio gratuito, sempre deveria prevalecer, em caso de dúvida, o sentido menos gravoso para os disponentes (os autores), conforme decorre do art. 237.º do Código Civil, correspondente esse, no caso, precisamente ao sentido com que comprovadamente actuaram (cf. facto provado em 15.).

Certo é também que, como bem salienta o acórdão recorrido, a interpretação da lei ou do negócio jurídico, maxime nos negócios formais, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento/sentido da declaração que não tenha na sua letra um mínimo de correspondência verbal (art. 9º nº 2 e 238º do CC).

No caso, porém, não seguimos a interpretação inflexível seguida pelo acórdão recorrido no que concerne aos vocábulos utilizados pelas partes.

Como vimos, não podemos desconsiderar todo o contexto negocial que presidiu à outorga da hipoteca e a sua evidente, directa e íntima conexão com o contrato de cessão de quotas, que ocorreu e tivera celebração no mesmo dia e local da constituição da hipoteca.

Neste âmbito, a expressão “para toda e qualquer quantia até ao montante de
€ 275.004,00
” não pode ser interpretada de forma desgarrada dos termos da cessão de quotas. Este contrato previa o pagamento do preço das quotas a prestações, de acordo com o plano de pagamentos aprovado. Assim, como salienta a sentença da primeira instância, com a qual concordamos, a referência a toda e qualquer quantia pode também referir-se a todo e qualquer valor das prestações concretamente em dívida, em função da amortização que se verificasse à data do eventual incumprimento, com o limite fixado do preço global da cessão de quotas.

A interpretação por nós sufragada não deixa, assim, de ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.

O acórdão recorrido referencia ainda a utilização da expressão “designadamente”, como tendo um sentido meramente indicativo e demonstrativo da maior abrangência da hipoteca relativamente ao contrato de cessão de quotas.

Reconhece-se que este é o elemento literal que pode causar maiores dúvidas interpretativas. Acompanha-se, no entanto, aqui a argumentação seguida pela primeira instância, que nos parece mais consentânea com todo o circunstancialismo negocial a que acima se fez referência: aquele advérbio pode ainda comportar o sentido de especificação, pretendido pelos declarantes, do ato concreto que a hipoteca visava garantir: a cessão de quotas. Veja-se que é o facto provado em 15. que suporta esta mesma conclusão interpretativa. E se, ainda assim, considerarmos a utilização daquela expressão como equívoca, então sempre deveria ser acionada a regra prevista no art. 237.º do CC, no sentido de que deve prevalecer o sentido menos gravoso para os disponentes.

No contexto negocial concretamente em causa, não é de estranhar que, pese embora a utilização da expressão “designadamente”, um declaratário normal, colocado na posição dos declaratários ajuizados, entenderia que a hipoteca estava indexada ao contrato de cessão de quotas, de resto, o único ato expressamente mencionado na escritura de constituição da hipoteca.

Entendimento interpretativo diverso conduziria, quanto a nós, a um resultado manifestamente injusto e demasiado gravoso para os autores que constituíram a hipoteca por solidariedade familiar, sem que lhes tenha sido estabelecida qualquer contrapartida pela prestação da garantia. Neste específico contexto, não vemos que para as partes contratantes - autores e os beneficiários da garantia – fosse concebível, num quadro de normalidade negocial, que os primeiros se predispusessem a garantir outras obrigações que não as concretamente decorrentes da cessão de quotas, à que a hipoteca está inegavelmente conexionada. Veja-se que, mesmo no contexto literal da hipoteca, é evidente a preocupação dos garantes em estabelecer um limite à garantia prestada ao consignarem que ao montante de € 275 004,00 não acresceriam nem juros, nem outros acessórios.

Por conseguinte, tudo aponta que, para o efeito que nos ocupa, a hipoteca foi constituída apenas para garantia do cumprimento do contrato de cessão de quotas, conclusão a que sempre se alcançaria, caso dúvidas houvesse, por aplicação do princípio previsto no art. 237.º do Código Civil.

Consequentemente, tendo sido anulado o contrato de cessão de quotas, de que a hipoteca era acessória, deve esta garantia ser declarada extinta, em conformidade com o disposto no art. 730.º, al. a) do Código Civil.

Em conclusão, à luz dos fundamentos de direito atrás expendidos, a pretensão dos recorrentes revela-se, quanto a nós, fundada, pelo que deve o presente recurso de revista ser julgado procedente e alterado o juízo decisório em conformidade.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram esta 7ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a revista e revogar o Acórdão recorrido, repristinando-se a sentença da 1ª instância.

Custas pelos recorrentes.


Relator: Ataíde das Neves

1º Adjunto: Senhor Conselheiro Lino Ribeiro

2ª Adjunta: Senhora Conselheira Fátima Gomes