Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
| Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
| Descritores: | RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA COMPETÊNCIA MATERIAL CONHECIMENTO OFICIOSO OPOSIÇÃO DE JULGADOS SENTENÇA CRIMINAL PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVEL PRINCÍPIO DA ADESÃO SENTENÇA CÍVEL ORGANIZAÇÃO JUDICIAL INTERNA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA COMPETÊNCIA DAS SECÇÕES COMPETÊNCIA DO PLENO DAS SECÇÕES | ||
| Data do Acordão: | 07/14/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Referência de Publicação: | CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P.226 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
| Decisão: | INUTILIDADE / IMPOSSIBILIDADE DA LIDE | ||
| Sumário : | I - A competência dos tribunais em razão da matéria constitui competência de primeiro grau, gerando a violação das regras sobre a competência material a incompetência absoluta do tribunal, de conhecimento oficioso – arts. 101.º, 102.º e 105.º do CPC, aplicável ao processo penal (art. 4.º do CPP). A competência material e funcional, em matéria penal como em matéria civil, são definidas pelas leis de organização judiciária e pelos códigos de processo – arts. 10.º do CPP e 66º e ss. do CPC. II - No caso em apreço, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência com fundamento em oposição de acórdãos foi interposto pela recorrente, com invocação do art. 437.º, de um acórdão proferido num processo penal. No entanto, a matéria sobre que decidiu, que constituía o objecto único do recurso ordinário interposto e sobre o qual o acórdão recorrido decidiu, no contexto processual determinado pelo princípio da adesão, respeitava exclusivamente a matéria civil, sobre questões exclusivas do pedido de reparação civil deduzido em processo penal, por demandante civil e contra demandado civil. O acórdão invocado como acórdão fundamento do recurso extraordinário foi proferido pelo STJ, por uma secção cível, num recurso em processo civil. III -Aderindo ao processo penal – por força do princípio da adesão, consagrado no art. 71.º do CPP – o pedido («a acção») para indemnização civil mantém, no entanto, relativa autonomia funcional, quer por efeito das regras procedimentais próprias a que está vinculada (arts. 73.º e ss. do CPP), quer pela possibilidade de intervenção dos responsáveis meramente civis que, enquanto tais, seriam extraneus no processo penal. IV - A obrigatoriedade, como regra, da adesão (que só nos casos excepcionais do art. 72.º do CPP cede) determina, porém, para respeitar a finalidade funcional do princípio, que a autonomia qualitativa dos pressupostos se sobreponha e exija a continuidade instrumental do processo para apreciação do pedido de indemnização sempre que, cedendo por circunstâncias próprias a acção penal, se mantenham, ainda assim, em aberto, as possibilidades de verificação dos pressupostos da reparação civil. V - Os fundamentos da acção que, aderindo ao processo penal, ficam interdependentes, sendo qualitativamente diversos, têm, no entanto, que revelar uma unidade material que constitui a base relevante para a verificação, positiva ou negativa, dos respectivos pressupostos. A reparação fundada na prática de crime reverte, na base, às correlações factuais e ao complexo de factos que constituem, ou são processualmente identificados como constituindo um crime: tipicidade dos factos, ilicitude, imputação ao agente, dignidade penal. A dimensão penal é, porém, apenas uma parte (porventura uma parte qualificada) das possíveis relações de uma identificada unidade factual com a ordem jurídica. VI -Consistindo, pois, a ilicitude penal numa «ilicitude qualificada», não está excluído que uma base factual, com autonomia e identidade próprias, que não atinja a dimensão «qualificada» do nível de ilicitude, não possa suportar ou exigir uma valoração de outro nível segundo uma outra fonte de antinormatividade, nomeadamente no plano dos pressupostos da responsabilidade civil. Deste modo, se o arguido for absolvido de um crime, e se subsistir, apesar da absolvição, uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa dos pressupostos), haverá que considerar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos – seja responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco. VII - Estas considerações são inteiramente transponíveis para a matéria dos recursos, onde se mantêm, quer a autonomia substancial das duas distintas dimensões, quer a autonomia e independência em matéria de recurso, no sentido em que pode existir recurso por iniciativa dos exclusivos intervenientes civis, e o recurso restrito à matéria civil pode ser admissível mesmo não havendo recurso da matéria penal, seguindo, então, regras de admissibilidade (alçada e sucumbência) próprias do processo civil (art. 400.º, n.º 2, do CPP). Deste modo, considerando o objecto sobre que decidiram e o conteúdo material das decisões, tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento incidem e decidem exclusivamente sobre questão de natureza (matéria) civil. VIII - A jurisdição do STJ é exercida segundo as modalidades de repartição de competência entre as diversas formações estabelecidas pelas leis de organização judiciária. A forma base da organização judicial interna do STJ relativamente à competência material (em razão da matéria) são as secções, que detêm competência própria, com formações de julgamento segundo a composição determinada nas leis de processo, mas também podem funcionar em formação de Pleno das secções – art. 35.º, n.ºs 1 e 3, da Lei 58/2008, de 28-08, e art. 28.º, n.ºs 2 e 3 da Lei 3/99, de 13-01. IX -A dimensão organizatória das secções do STJ parte de um modelo de competência em razão da matéria – secções cíveis; secções criminais e secção social (além da especificidade da formação e competência da secção de contencioso) – arts. 42.º da Lei 58/2008, e 34.º da Lei 3/99. A organização segundo um modelo de competência material (em razão da matéria) distribui as competências por especialidade, com enunciação da competência das secções por tipos e espécies de matérias – as secções criminais julgam as causas de natureza penal; as secções sociais julgam as causas de natureza cível da competência material dos tribunais de trabalho; e as secções cíveis julgam as causas que não estejam atribuídas a outras secções (art. 34.º da Lei 3/99). X - O Pleno das secções, com formação específica e com autonomia de competências para determinadas questões, tem também competências materiais atribuídas, designadamente a de «uniformizar a jurisprudência nos termos da lei de processo», sendo esta competência atribuída «segundo a sua especialização» – arts. 43.º, al. a), da Lei 58/2008, e 35.º da Lei 3/99. A atribuição da competência em razão da matéria segundo a especialização constitui o critério de repartição de competência do Pleno das várias secções para uniformizar jurisprudência. A repartição faz-se, deste modo, seguindo critérios materiais e não processuais ou da natureza do processo – que, todavia, só excepcionalmente não coincidirão. XI -No caso em apreço, a matéria que está em causa no objecto do recurso é de natureza exclusivamente civil. O objecto das decisões não constitui uma «causa» (no sentido de questão, determinação, controvérsia, objecto e matéria, e não no sentido adjectivo e formal de tipo ou espécie de processo) de natureza criminal. A fixação da jurisprudência «segundo a (…) especialidade» cabe, assim, às secções cíveis pelo Pleno. XII - A circunstância de o acórdão recorrido ter sido proferido num processo penal, por força do princípio da adesão, não altera nem a natureza da «causa» nem a matéria sobre que versa. A espécie de processo em que foi proferido o acórdão recorrido não é, para este efeito, relevante. A competência, por um lado, sendo material, sobrepõe-se ao processo, e, por outro, o recurso extraordinário assume um acentuado grau de autonomia, já desligado dos fundamentos e da função processual do princípio da adesão, que só se justifica para as fases ordinárias do processo. Acresce que o modelo de pressupostos, de construção e de conhecimento do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência está actualmente aproximado em termos processuais – e mesmo com similitude – nos processos penal e civil (arts. 437.º a 445.º, do CPP, e 763.º a 770.º, do CPC). | ||
| Decisão Texto Integral: | Acórdão na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA, demandante civil no processo identificado, que correu termos no 3º Juízo do tribunal da comarca de Vila Real, vem ao abrigo do disposto no artigo 437º do Código de Processo Penal, e invocando oposição de acórdãos, interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência do acórdão proferido no processo pelo Supremo Tribunal de Justiça, invocando os seguintes fundamentos: a) O acórdão recorrido proferido pelo STJ em 20.01.2010, transitou em julgado em 16.03.2010. b) O acórdão fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça proferido na revista n.º 3436/05 – 7.ª Secção (com origem no processo n.º 391/2000 da 6.ª Vara Cível de Vila Nova de Gaia, em que foi relator o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Salvador da Costa, datado de 17.11. 2005, que se encontra publicado in www.dgsi.pt e em www.stj.ptj/?idm=43), transitou em julgado em 2.12.2005. c) Por conseguinte, encontram-se preenchidos os requisitos formais para interposição do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previstos nos arts. 437º, n.º 4 e 438°, n.º 1, do Código de Processo Penal. d) É evidente e notória a similitude das situações de facto em apreço no Acórdão recorrido e no acórdão fundamento. e) Ambos os acórdão, fundamento e recorrido, foram proferidos no domínio da mesma legislação, qual seja, o Código Civil e as suas normas legais dispostas nos arts 562.º, 564º, n.º 2 e 566º, n.ºs 1 e 2. f) Incidiram ambos os acórdãos sobre a questão jurídica da ressarcibilidade da incapacidade permanente (ainda que) sem repercussão profissional e patrimonial, em sede de indemnização por danos patrimoniais futuros e enquanto tal, autónoma e independentemente da sua valoração a título de dano patrimonial, à luz das pertinentes normas legais estatuídas nos arts 562º, 564.º, n.º 2, e 566º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, aprovado pelo Decreto-lei n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966. g) O acórdão recorrido revogou o acórdão da segunda instância Tribunal da Relação do Porto - que havia revogado a decisão de primeira instância, e conferido à demandante ora recorrente indemnização de 25.000,00 € por danos patrimoniais futuros decorrentes de incapacidade permanente - mantendo a decisão da primeira instância e assim, tal como esta, negando à demandante ora recorrente qualquer indemnização a título de danos patrimoniais futuros decorrentes de incapacidade permanente, de tal absolvendo a demandada, h) Com o fundamento de não se sustentar a consideração do dano biológico como de cariz patrimonial para fundamentar a procedência do pedido de Indemnização a título de danos patrimoniais futuros, esgotando-se a sua valoração e ressarcimento em sede de dano não patrimonial. i) O acórdão fundamento decidiu, ao invés e contrariamente ao acórdão recorrido, pela manutenção (ainda que reduzindo o seu quantum de 20.000,00 € para 17.500,00€) a favor da aí autora de indemnização por danos patrimoniais decorrentes de incapacidade permanente, j) Com o fundamento de que, não obstante «a afectação da pessoa do ponto de vista funcional não se traduzir em perda de rendimento de trabalho nem a esfera jurídica patrimonial fique, de algum modo, efectiva e negativamente afectada, como se traduz na perda de capacidade fisiológica geral, determinante de consequências negativas a nível da actividade geral do lesado, releva como dano biológico, de cariz patrimonial, justificando a indemnização a tal título, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. I) Sendo assim diversas e opostas, entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido, as soluções jurídicas preconizadas para a mesma questão de direito, a determinar decisões contrárias e opostas. m) Como tal, verifica-se conflito de jurisprudência entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido e o preenchimento dos requisitos previstos nos arts. 437.º, n.ºs 1 e 3 do CPP. n) Por se concordar com o julgado no acórdão fundamento deve, no presente recurso extraordinário que se Interpõe do acórdão recorrido, ser fixada jurisprudência no sentido de que: «À luz das normas legais estatuídas nos arts. 562.°, 564.º, n. ° 2 e 566.°, n. ºs 1 e 2 do Código Civil, a incapacidade permanente, ainda que sem repercussão profissional e no rendimento, constituindo uma afectação da capacidade fisiológica e relevando como dano biológico constitui per se um dano patrimonial futuro a determinar a atribuição de indemnização a tal título, autónoma, independentemente e para além da sua valoração a título de dano não patrimonial e respectiva compensação.» o) E, nos termos do disposto no art. 445°, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, deve rever-se o acórdão recorrido, revogando-se o mesmo e proferindo decisão que repristine o decidido pelo Tribunal da Relação do Porto. Termina pedindo que o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência seja admitido, fixando-se jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, com a consequente revisão do acórdão recorrido. 2. A Companhia de Seguros F........M......., SA, notificada para os efeitos do n.º 1 do artº 439º do CPP, invocou, por um lado, a extemporaneidade do recurso, e, sobre os fundamentos, a diferença entre as situações de facto apreciadas pelos dois acórdãos. O recurso seria manifestamente extemporâneo, porquanto considerando-se a decisão passada ou transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação nos termos dos artºs 668º e 669º do CPCivil (artº 677º), «a recorrente reclamou, oportunamente, contra o acórdão que decidiu o recurso - não permitindo a lei novas reclamações (da mesma decisão) a não ser as previstas no artº 670º, 3»,e «não admitindo o recurso (n.º 2) a decisão que indeferir a reclamação, resta ao reclamante interpor recurso da decisão reclamada no prazo habitual contado a partir da notificação desta última decisão». Tendo a parte ainda o direito de praticar certos actos processuais no caso de justo impedimento ou ao abrigo do disposto no n.º 5 do art. 145.º do CPC, «essa possibilidade não anula nem suspende o decurso do prazo para o trânsito e apenas dilata no tempo a verificação retroactiva da ocorrência», verificando-se o trânsito logo que esgotada a possibilidade de recurso. Por isso, sustenta que «quando foi apresentado o requerimento de recurso extraordinário, já estava esgotado o prazo de 30 dias dentro do qual o mesmo devia ter sido apresentado». No que respeita aos fundamentos, a recorrida sustenta que as situações de facto apreciadas pelos dois acórdãos são diferentes. Enquanto que no acórdão que fundamenta o recurso verifica-se que «a incapacidade de que a sinistrada ficara afectada implicava um dano futuro previsível em razão do maior esforço no desenvolvimento da actividade geral (da sinistrada), incluindo a vertente profissional», «ou seja, o dano biológico decorrente da incapacidade funcional tinha consequências negativas a nível da actividade geral do lesado», no acórdão recorrido «provou-se exactamente o contrário do que a recorrente afirmava nos artºs 21º e 26º do seu requerimento de indemnização», ou seja, que «as sequelas descritas não ocasionam qualquer rebate profissional» e que a «assistente continua a receber por inteiro o salário correspondente à sua categoria profissional», não a impedindo de progredir na carreira. 3. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, havendo que decidir oficiosamente sobre a questão preliminar da competência das secções criminais. 4. O princípio geral e precedente ou prioritário em matéria de competência determina a atribuição primária a um órgão da competência para decidir sobre a sua própria competência (princípio Kompetenz-Kompetenz). A competência dos tribunais em razão da matéria constitui competência de primeiro grau, gerando a violação das regras sobre a competência material a incompetência absoluta do tribunal, de conhecimento oficioso – artigos 101º, 102º 3 105º do CPC, aplicável ao processo penal (artigo 4º CPP). A competência material e funcional, em matéria penal como em matéria civil, são definidas pelas leis de organização judiciária e pelos códigos de processo – artigos 10º CPP e 66º e segs. CPC. 5. No regime dos recursos, a natureza e a delimitação material do objecto do recurso pode colocar questões sobre a competência em razão da matéria, cuja decisão será, então, prévia relativamente ás demais, mesmo se simplesmente à questão relativa ao procedimento sobre a sequência – admissibilidade do recurso e verificação dos respectivos pressupostos. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência com fundamento em oposição de acórdãos foi interposto pela recorrente, com invocação do artigo 437º do CPP, de um acórdão proferido num processo penal. No entanto, a matéria sobre que decidiu, que constituía o objecto único do recurso ordinário interposto e sobre a qual o acórdão recorrido decidiu, no contexto processual determinado pelo princípio da adesão, respeitava exclusivamente a matéria civil, sobre questões exclusivas do pedido reparação civil deduzido em processo penal, por demandante civil e contra demandado civil. O acórdão invocado como acórdão fundamento do recurso extraordinário foi proferido pelo STJ por uma secção cível, num recurso em processo civil. Dispõe o artigo 71º do CPP («processo de adesão») que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deve ser deduzido, por regra, no processo penal respectivo, consagrando a interdependência das acções penal, para aplicação das reacções criminais adequadas, e civil, para a reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa. A interdependência das acções significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objecto), sendo a acção penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, e a acção civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil (artigo 129º do Código Penal) nos respectivos pressupostos, e só processualmente é regulada pela lei processual penal. A interdependência das acções significa, pois, independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível ao processo penal. Aderindo ao processo penal, o pedido («a acção») para indemnização civil mantém, no entanto, relativa autonomia funcional, quer por efeito das regras procedimentais próprias a que está vinculada (artigo 73º e segs. do CPP), quer pela possibilidade de intervenção dos responsáveis meramente civis que, enquanto tais, seriam extraneus no processo penal. A obrigatoriedade, como regra, da adesão (que só por excepção e nos casos enumerados cede – artigo 72º do CPP, permitindo-se, então, o uso autónomo dos meios processuais civis) determina, porém, para respeitar a finalidade funcional do princípio, que a autonomia qualitativa dos pressupostos se sobreponha e exija a continuidade instrumental do processo para apreciação do pedido de indemnização sempre que, cedendo por circunstâncias próprias a acção penal, se mantenham, ainda assim, em aberto as possibilidades de verificação dos pressupostos da reparação civil. Os fundamentos da acção que, aderindo ao processo penal, ficam interdependentes, sendo qualitativamente diversos, têm, no entanto, que revelar uma unidade material que constitui a base relevante para a verificação, positiva ou negativa, dos respectivos pressupostos. A reparação fundada na prática de um crime reverte, na base, às correlações factuais e ao complexo de factos que constituem, ou são processualmente identificados como constituindo um crime: tipicidade dos factos, ilicitude, imputação ao agente, dignidade penal. A dimensão penal é, porém, apenas uma parte (porventura uma parte qualificada) das possíveis relações de uma identificada unidade factual com a ordem jurídica. As categorias que assumem dignidade penal concreta por concorrência de todos os elementos de uma infracção penal, apresentam-se, valorativamente, num plano de intervenção mínima e de ultima ratio, porque a fragmentaridade e a descontinuidade da tutela penal converte a ilicitude penal numa expressão qualificada de ilicitude, extremando-a pelo teor elevado das suas exigências face às demais manifestações da ilicitude e antinormatividade (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal”, I, 2ª ed., p. 388). Consistindo, pois, a ilicitude penal numa «ilicitude qualificada», não está excluído que uma base factual, com autonomia e identidade próprias, que não atinja a dimensão «qualificada» do nível de ilicitude, não possa suportar ou exigir uma valoração de outro nível segundo uma outra fonte de antinormatividade, nomeadamente no plano dos pressupostos da responsabilidade civil. Deste modo, se o arguido for absolvido de um crime, e se subsistir, apesar da absolvição, uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa dos pressupostos), haverá que considerar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos – seja responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco (cfr., v. g., ac. do STJ de 25/1/96. CJ (STJ), IV, t. 1, p. 89; de 2/4/98, CJ (STJ), VI, t. 2, p. 179). Estas considerações são inteiramente transponíveis para a matéria dos recursos, onde se mantêm, quer a autonomia substancial das duas distintas dimensões, quer a autonomia e independência em matéria de recurso, no sentido em que pode existir recurso por iniciativa dos exclusivos intervenientes civis, e o recuso restrito à matéria civil pode ser admissível mesmo não havendo recurso da matéria penal, seguindo, então, regras de admissibilidade (alçada e sucumbência) próprias do processo civil (artigo 400º, nº 2 do CPP). Deste modo, considerando o objecto sobre que decidiram e o conteúdo material das decisões, tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento incidem e decidem exclusivamente sobre questão de natureza (matéria) civil. 5. A jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça é exercida segundo as modalidades de repartição de competência entre as diversas formações estabelecidas pelas leis de organização judiciária. A forma base da organização judicial interna do Supremo Tribunal relativamente á competência material (em razão da matéria) são as Secções, que detêm competência própria, com formações de julgamento segundo a composição determinada nas leis de processo, mas também podem funcionar em formação de Pleno das secções – artigo 35º, nºs 1 e 3 da Lei nº 58/2008, de 28 de Agosto (LOFTJ) e artigo 28º, nºs 2 e 3 da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (anterior LOFTJ). A dimensão organizatória das secções do Supremo Tribunal parte de um modelo de competência em razão da matéria – secções cíveis; secções criminais e secção social (além da especificidade da formação e competência da secção do contencioso) – artigos 42º da Lei nº 58/2008 e 34º da Lei nº 3/99. A organização segundo um modelo de competência material (em razão da matéria) distribui as competências por especialidade, com enunciação da competência das secções por tipos e espécies de matérias – as secções criminais julgam as causas de natureza penal; as secções sociais julgam as causas de natureza cível da competência material dos tribunais de trabalho; e as secções cíveis julgam as causas que não estejam atribuídas a outras secções (artigo 34º da Lei nº 3/99, de 6 de Janeiro). O Pleno das secções, como formação específica e com autonomia de competências para determinadas questões, tem também competências materiais atribuídas, designadamente a de «uniformizar a jurisprudência nos termos da lei de processo», sendo esta competência atribuída «segundo a sua especialização» - artigo 43º, alínea a) da Lei nº 58/2008, e 35º da Lei nº 3/99. A atribuição da competência em razão da matéria segundo a especialização constitui o critério de repartição de competência do Pleno das várias secções para uniformizar a jurisprudência. A repartição faz-se, deste modo, seguindo critérios materiais e não processuais ou da natureza do processo – que, todavia, só excepcionalmente não coincidirão. 7. A matéria que está em causa no objecto do recurso é, como se salientou, de natureza exclusivamente civil: o acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidiram apenas uma questão de natureza civil – a determinação da responsabilidade por facto ilícito, nos termos da lei civil, e especificamente a reparação das consequências de uma incapacidade biológica como dano não patrimonial ou como dano patrimonial. O objecto das decisões não constitui uma «causa» (no sentido de questão, determinação, controvérsia, objecto e matéria, e não no sentido adjectivo e formal de tipo ou espécie de processo) de natureza criminal. A fixação da jurisprudência «segundo a […] especialidade» cabe, assim, às secções cíveis pelo Pleno. A circunstância de o acórdão recorrido ter sido proferido num processo penal, por força do princípio da adesão, não altera nem a natureza da «causa» nem a matéria sobre que versa. A espécie de processo em que foi proferido o acórdão recorrido não é, para este efeito, relevante. A competência, por um lado, sendo material, sobrepõe-se ao processo, e, por outro, o recurso extraordinário assume um acentuado grau de autonomia, já desligado dos fundamentos e da função processual do princípio da adesão, que só se justifica para as fases ordinárias do processo. Por fim, o modelo de pressupostos, de construção e de conhecimento do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência está actualmente aproximado em termos processuais – e mesmo com similitude – nos processos penal e civil (artigos 437º a 445º do CPP e 763º a 770º do CPC). 8. Nestes termos, a competência em razão da matéria para conhecer do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência cabe às secções cíveis. Lisboa, 14 de Julho de 2010 Henriques Gaspar (Relator) Armindo Monteiro Pereira Madeira |