Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | PEREIRA MADEIRA | ||
Descritores: | CRIME DE ROUBO CRIME DE USO ILEGAL DE ARMA BEM JURÍDICO CONSUMPÇÃO CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES | ||
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Nº do Documento: | SJ200612140043445 | ||
Data do Acordão: | 12/14/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário : | I - Segundo resulta directamente do disposto no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente». II - Porém, como resulta dos princípios, muitas normas de direito criminal estão umas para com outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a aplicação de algumas delas, exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia cumulativa de outras, neste sentido se podendo concluir que se estará então perante um concurso legal ou aparente de infracções. II – As relações de subordinação e hierarquia entre as várias disposições de direito criminal, embora sem unanimidade de definição na doutrina, podem repartir-se, grosso modo, por relações de especialidade, consunção (pura e impura), subsidiariedade e alternatividade. III – Pressupõe o conceito de consunção que entre os valores protegidos pelas normas criminais verificam-se por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa. Daí que, ainda com fundamento na regra «ne bis in idem», se tenha de concluir que «lex consumens derogat lex consumtae». IV – Ao contrário do que sucede com a especialidade, a consunção só em concreto se pode afirmar, através da comparação dos bens jurídicos violados. V - Entre os casos claros de exclusão em atenção a este princípio da consunção, apontam-se as disposições que punem o pôr-se em perigo a lesão de bens jurídicos por aquelas que punem a sua lesão efectiva. VI – Porém, tal conclusão – de exclusão de uma pela outra das normas em causa – só pode ter lugar quando uma e outra – a que prevê a lesão efectiva do bem e a que pune o simples perigo criado pela acção – se referem ao mesmo bem jurídico que ambas visam acautelar. Estando em causa bens jurídicos distintos, importa averiguar até que ponto a previsão de uma deles se contém na da outra. O que põe em evidência a necessidade também já referida de uma avaliação concreta, casuística, de cada situação. VII - Resultando dos factos provados, naquele dia 6 de Fevereiro de 2006, (…) o arguido fazendo-se transportar no motociclo identificado, dirigiu-se à farmácia com o intuito de se apropriar das quantias em dinheiro que se encontrassem na posse das funcionárias, mesmo que para o efeito tivesse de as atemorizar, molestar no seu corpo ou na sua saúde, ou até disparar sobre elas, se necessário; para tanto, muniu-se da pistola identificada, e, uma vez no interior da farmácia, aproximou-se da funcionária CC, apontou-lhe a pistola e ordenou-lhe, em tom grave e sério, que lhe entregasse o dinheiro que estava nas caixas registadoras, junto ao balcão de atendimento, o arguido, mesmo antes de consumar o crime de roubo, transportou consigo, ao menos enquanto se deslocou no motociclo, a arma ilegal, e assim criou perigo do seu uso, portanto, pelo menos, desde o local onde a guardava até ao da consumação do roubo. VIII - Não é assim correcta a afirmação do acórdão recorrido segundo a qual não resulta que o arguido tenha detido a arma em outras circunstâncias que não as cingidas à prática do roubo, e, assim, a punição do roubo não abarca esta ofensa autónoma do bem jurídico subjacente à incriminação do uso de arma ilegal, pelo que não é legítimo, no caso, falar em consunção ou exclusão de aplicação desta incriminação, antes havendo concurso real de infracções.. IX - E, se assim, está afastado o perigo de violação do princípio com assento constitucional «ne bis in idem», justamente porque a cada punição corresponde um bem jurídico ofendido, pelo que, se há «bis», está afastado o «idem» – situação que logra inteira cobertura no preceituado no n.º 1 do artigo 30.º do Código Penal.* | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. Em processo comum com a intervenção do tribunal colectivo, o Ministério Público deduziu acusação contra AA, devidamente identificado, imputando-lhe a prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo art. 210º, nº 2, b), ex vi art.º 204.º, n.º 2, f), do Código Penal, e de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo art.º 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27/06, na redacção dada pela Lei n.º 98/2001, de 25/08. Realizado o julgamento, veio a ser proferida sentença em que, além do mais, foi decidido: a) absolver o arguido da prática do crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo art. 6º, nº 1, da Lei nº 22/97, de 27/06, na redacção dada pela Lei nº 98/2001, de 25/08, de que vinha acusado; b) condená-lo, pela prática de um crime de roubo previsto e punido pelo art. 210.º, n.ºs 1 e 2, b), com referência ao art. 204.º, n.º 2, f), ambos do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão; Irresignado com aquele segmento absolutório, recorre o Ministério Público ao Supremo Tribunal de Justiça, assim delimitando o objecto da sua discordância: 1- Nos presentes autos foi o arguido AA acusado da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de roubo do artigo 210.º, n.º 2, al. b), ex vi n.º 2, al. f), do artigo 204.º do C.Penal e de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27/06, na redacção dada pela Lei n.º 98/2001, de 25/8. 2- No acórdão proferido nos autos e agora posto em crise, foi o arguido absolvido da prática dos factos da acusação contra si deduzida quanto ao crime de detenção ilegal de arma, absolvição com a qual não se concorda. 3- Com efeito, o que qualifica o crime de roubo (nos termos do artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), com referência ao art.º 204.º, n.º 2, al. f), ambos do Código Penal), é a utilização de arma de fogo, que constitui infracção autónoma, de forma alguma consumida pela primeira. 4- Dito de outra forma, sendo a detenção e uso de arma de fogo um meio para consumar um crime de roubo, não é o fim em si mesmo nem com ele se confundindo. 5- Porque os crimes de roubo e de detenção de arma proibida protegem interesses diferentes e se consumam em momentos diferentes – o crime de roubo protege a propriedade e a pessoa e o de detenção de arma o perigo relativo às pessoas e às coisas estando consumado quando foi iniciada a prática do roubo – existe concurso real desses crimes quando o roubo é praticado com o emprego de arma proibida. 6- Face ao actual Código, embora tenha desaparecido a referência expressa a qualquer agravação resultante de uso de arma, seja ela qual for, está incluída uma referência agravativa ao emprego de arma, pela remissão para os n.ºs 1 e 2 do artigo 204.º e, relativamente ao crime de detenção de arma proibida, apenas foram alterados os seus requisitos. 7- Tendo o crime de roubo sido levado a cabo com a utilização da arma de fogo melhor descrita no ponto 2 da matéria dada como provada, verifica-se um concurso real de infracções entre o crime de roubo qualificado e o de detenção ilegal de arma – que a utilização desta última comporta. 8- Não existe entre aqueles dois crimes qualquer relação determinante de concurso aparente de normas, nomeadamente consunção. 9- Ocorrendo entre tais crimes verdadeiro concurso real ou efectivo, deve o arguido ser condenado pelo crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art.º 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27/6, na redacção dada pela Lei n.º 98/2001, de 25/8, em pena de prisão efectiva a cumular com a que lhe foi aplicada pela prática do crime de roubo. 10-Ao ter decidido como se decidiu, violou o tribunal a quo o disposto nos artigos 30.º, n.º 1, 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), com referência ao art.º 204.º, n.º 2, f), todos do Código Penal, e art.º 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27/6, na redacção dada pela Lei n.º 98/2001, de 25/8, não se podendo, em consequência, manter. Termina pedindo, no provimento do recurso, a alteração da decisão recorrida com a condenação do arguido também como autor material de um crime de detenção ilegal de arma, em pena de prisão a cumular com a que lhe foi aplicada pela prática do crime de roubo. Respondeu o arguido em defesa do julgado. Subidos os autos, foi promovida a designação de dia para julgamento. A única questão a decidir, consiste assim em saber se foi ou não acertada a decisão de absolver o arguido da autoria de um crime de detenção ilegal de arma, tido por consumido no acórdão recorrido, pelo crime de roubo. 2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir. Factos provados 1. No dia 6 de Fevereiro de 2006, cerca das 12h30, o arguido, que se fazia transportar no ciclomotor, de marca “S...”, modelo “TS”, de cor azul e amarelo, sem matrícula, com o número de quadro SA11A-133348, e o número de motor A 109 – 133357, dirigiu-se à farmácia denominada “Farmácia de ...”, sita em ..., Paredes, pertencente a BB, com o intuito de se apropriar das quantias em dinheiro que se encontrassem na posse das funcionárias daquela farmácia e que estas detinham em razão do seu ofício, mesmo que para o efeito tivesse de as atemorizar, molestar no seu corpo ou na sua saúde, ou até disparar sobre elas, se necessário; 2. Para tanto, o arguido muniu-se de uma pistola com carregador, semi-automática, de calibre 6,35 mm B... ( 25 ACP ou.25 Auto na designação anglo-americana), de marca “T... G...”, de modelo GT 27, com o número de série D40601, de origem italiana, em boas condições de funcionamento, contendo quatro munições, de calibre 6,35 mm B..., de marca “G...”, de origem alemã, em boas condições de utilização; 3. Uma vez no interior da aludida farmácia, o arguido aproximou-se da funcionária CC – que aí se encontrava a trabalhar –, apontou-lhe a pistola aludida no ponto anterior e ordenou-lhe, em tom grave e sério, que lhe entregasse o dinheiro que estava nas caixas registadoras, junto ao balcão de atendimento; 4. Em pânico, temendo que o arguido lhe causasse mal irreparável na saúde ou lhe tirasse até a vida, a CC, incapaz de resistir, entregou ao arguido a quantia de € 115,00 (cento e quinze euros), em notas, correspondente às receitas parciais desse dia, dinheiro que o arguido fez dele, apesar de saber que não lhe pertencia e que agia contra a vontade da dona da aludida farmácia e em seu prejuízo; 5. Posto isto, o arguido fugiu do local, conduzindo o ciclomotor supra referenciado e levando consigo a quantia referida no ponto anterior; 6. O arguido, que, no decorrer dos factos supra descritos, empunhou sempre a sobredita pistola contra a funcionária da farmácia, não tem licença de uso e porte de arma, nem tal pistola se encontrava manifestada ou registada em seu nome, encontrando-se a mesma manifestada em nome de DD, pai do arguido; 7. O arguido, com a conduta descrita, agiu com o propósito, conseguido, de, mediante a utilização da pistola conforme referido no ponto 3 e para um fim diverso do que é legalmente permitido, constranger a funcionária daquela farmácia, criando-lhe um estado de intimidação e inquietação e impedindo-a assim de resistir, de forma a subtrair e haver para si a quantia pecuniária aludida no ponto 4; 8. O arguido actuou sempre livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; Mais se provou: 9. O arguido, à data dos factos, era consumidor, em excesso, de bebidas alcoólicas, tendo bebido antes dos factos ocorrerem; 10. O arguido é casado e tem dois filhos, de 6 e 3 anos de idade; 11. Encontra-se separado de facto da sua esposa, encontrando-se os filhos a morar com a mãe; 12. À data dos factos, o arguido trabalhava, auferindo o vencimento semanal de € 125,00, e morava com os pais; 13. Actualmente o arguido mostra-se arrependido dos actos por si praticados; 14. No Estabelecimento Prisional onde se encontra, o arguido trabalha nas camaratas dos guardas; 15. Perspectiva voltar a encontrar emprego, primeiro com um seu cunhado e mais tarde com uma pessoa conhecida, de nome EE; 16. O arguido já foi condenado, no Processo Comum Singular nº .../05.6GAPRD, do ...º Juízo Criminal deste Tribunal, pela prática, em 10 de Janeiro de 2005, de um crime de roubo, previsto e punido pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dezoito meses, por sentença de 13 de Junho de 2005, transitada em julgado em 12 de Julho de 2005; 17. O arguido sofreu a condenação referida no ponto anterior por ter entrado na mesma farmácia referida no ponto 1 e aí se ter apropriado, de forma semelhante à supra descrita – utilizando um objecto semelhante a uma pistola, mas que não foi possível concluir exactamente o que seria –, da quantia de € 260,00. Factos não provados Com interesse para a decisão da causa não se provou: Que a quantia em dinheiro de que o arguido se apoderou foi de € 121,12. Nesta matéria de facto não se vislumbram vícios capazes de afectarem a respectiva validade, mormente os referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Tem-se, assim, como definitivamente adquirida. Encaremos agora a questão de direito posta pelo recorrente. O tribunal recorrido, depois de ter concluído que os factos preenchiam a previsão típica do crime de roubo, afastou assim a incriminação pelo crime restante: « (…) Mas o arguido encontra-se ainda acusado, em concurso efectivo, da prática de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo art. 6º, nº 1, da Lei nº 22/97, de 27/06, na redacção dada pela Lei nº 98/2001, de 25/08. Não há dúvidas de que o arguido detinha consigo, no momento dos factos, a arma descrita no ponto 2 da matéria de facto e de que o mesmo não tem licença de uso e porte de arma, nem aquela arma se encontrava manifestada ou registada em seu nome, encontrando-se antes manifestada em nome de DD, pai do arguido. Mas será que isso é suficiente para se considerar que o arguido também cometeu, em concurso real, o crime de detenção ilegal de arma? De acordo com o disposto no art. 30, nº 1, do C.P., o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente. Consagra-se aqui uma teoria jurídica e não uma teoria naturalística do concurso, pelo que “o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade”, havendo tantos crimes quantos os valores ou bens jurídicos negados e quantos os juízos de censura de que seja passível a conduta do agente – visto que para que exista uma infracção é necessário que a conduta seja ilícita e também culposa – (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. II, págs. 200 e 201). “O roubo é um crime complexo, protegendo simultaneamente a liberdade individual, o direito de propriedade e a detenção das coisas que podem ser subtraídas, mas apresenta-se juridicamente uno, integrando na sua estrutura vários factos que constituem, em si mesmos, crimes” (Leal-Henriques - Simas Santos, Código Penal anotado, 2º vol. pág. 495). Donde, neste caso “a ofensa aos bens pessoais surge como o meio de lesão dos bens patrimoniais” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II, pág. 160). Ou seja, a dinâmica do crime de roubo define-se “em função do vector de apropriação ilícita e do da efectivação final dessa apropriação”, funcionando a ofensa dos bens pessoais como meio de atingir esse fim. Ora, se a forma como se exerce a violência tendente à apropriação constitui ela própria elemento de um tipo legal de crime autónomo, neste caso o desvalor desta conduta está já contido no tipo legal de crime de roubo, nomeadamente agravado, constituindo a punição autónoma uma dupla valoração e tutela do bem jurídico patrimonial em concreto protegido. Concretizando com o caso dos autos, o arguido utilizou uma arma de fogo como forma de traduzir a ameaça que exerceu sobre a funcionária da farmácia para conseguir apropriar-se do dinheiro. Esta forma de violência está prevista no nº 2, alínea b), do art. 210º do Código Penal, como circunstância agravante do crime de roubo, aumentando a moldura penal, contemplando o desvalor da conduta de deter uma arma de fogo para este efeito, inclusivamente uma arma que não se esteja em condições legais de detenção. A única conduta de detenção do arguido relativamente à arma que consta da acusação e que foi dada como provada respeita aos actos necessários à concretização da apropriação de dinheiro que consubstancia o crime de roubo – o arguido muniu-se da arma, que não era sua mas do seu pai, para concretizar o “assalto” à farmácia. Não resulta, portanto, que o arguido tenha detido a arma em outras circunstâncias que não as que rodearam o roubo anteriormente analisado. Assim, numa situação dessas, a violência (em sentido lato) funciona “como expediente instrumental para o agente conseguir a apropriação, o que implica que, constituindo esta a finalidade tendencial, última ou específica do crime, não seja concebível fazer-se configurar crimes, para além do que consente a respectiva linha típica definidora do mesmo crime” (cfr. Ac. do S.T.J. de 11/04/2002, publicado na Internet, em www.dgsi.pt, e Ac. da R.P. de 09/05/2001, sumariado no mesmo sítio da Internet). Da mesma forma, se a violência tipificadora do crime de roubo é concretizada por intermédio de ameaça com arma de fogo (sendo praticado um crime-meio, se o arguido não puder legalmente ser detentor da arma), estaremos perante unicamente o crime de roubo, sendo o desvalor da conduta do crime de detenção ilegal de arma abarcado pelo desvalor da circunstância agravante prevista para o crime de roubo. Pois que, apenas existirá concurso efectivo de crimes se o crime meio exceder o âmbito de protecção da norma que tipifica o crime de roubo. Conclui-se, portanto, que a conduta do arguido preenche unicamente o crime de roubo p. e p. pelo art. 210º, nºs 1 e 2, al. b), com referência ao art. 204º, nº 2, al. a), do Código Penal, como já se referiu, devendo o arguido ser absolvido do crime de detenção ilegal de arma.» Segundo resulta directamente do disposto no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente». Porém, como resulta dos princípios, muitas normas de direito criminal estão umas para com outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a aplicação de algumas delas, exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia cumulativa de outras. «De onde resulta que a pluralidade de tipos que se pode considerar preenchidos quando se toma isoladamente cada uma das respectivas disposições penais, vem no fim de contas em muitos casos, olhadas tais relações de mútua exclusão e subordinação, a revelar-se inexistente. Neste sentido se conclui que se estará então perante um concurso legal ou aparente de infracções.» (1) Essas relações de subordinação e hierarquia entre as várias disposições de direito criminal, embora sem unanimidade de definição na doutrina, podem repartir-se, grosso modo, por relações de especialidade, consunção (pura e impura), subsidiariedade e alternatividade. Para o caso, importa assentar a atenção na figura da consunção. Surpreendem-se no conceito (2) os seguintes traços: «Entre os valores protegidos pelas normas criminais verificam-se por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa. Daí que, ainda com fundamento na regra «ne bis in idem», se tenha de concluir que «lex consumens derogat lex consumtae». O que, porém, ao contrário do que sucede com a especialidade, só em concreto se pode afirmar, através da comparação dos bens jurídicos violados, e não, como queria Honig, através da diversidade de pontos de vista a partir dos quais a lei concede protecção ao mesmo bem jurídico». Entre os casos claros de exclusão em atenção a este princípio da consunção, apontam-se as disposições que punem o pôr-se em perigo a lesão de bens jurídicos por aquelas que punem a sua lesão efectiva. (3). Pois bem. No caso, é apodíctico estarem em concurso dois crimes de natureza distinta: enquanto o crime de roubo integra o conceito de crime de resultado em que sob a forma de comissão por acção o tipo pressupõe a produção de um evento como consequência da actividade do agente. «Nestes tipos de crime só se dá a consumação quando se verifica uma alteração externa espácio-temporalmente distinta da conduta», (4), pois que se impõe que o agente «subtraia, ou constranja a que lhe seja entregue coisa móvel alheia», impondo-se assim a necessidade de que tenha havido a efectiva subtracção de, ou que tenha sido entregue ao gente, coisa móvel alheia, «sendo ainda necessário que tenha havido efectivo constrangimento (também ele um resultado e um dano – desta feita para bens pessoais» (5) Já nos crimes de perigo, a realização do tipo não pressupõe a lesão, mas antes se basta com a mera colocação em perigo do bem jurídico. E não sendo, como no caso, o perigo elemento do tipo, antes, mero motivo da proibição, enfim, um comportamento tipificado em função da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há como que uma presunção inelidível de perigo, e por isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter sido criado ou não um perigo efectivo para o bem jurídico, então é caso de crime de perigo abstracto, de que a posse de arma proibida é um exemplo de escola. (6) Mas seria apressada a conclusão de os dois tipos em causa se excluírem, partindo da ideia acima adiantada de um ser crime de perigo e outro de dano. É que, como é bom de ver, tal conclusão – de exclusão de uma pela outra das normas em causa – só pode ter lugar quando uma e outra – a que prevê a lesão efectiva do bem e a que pune o simples perigo criado pela acção – se referem ao mesmo bem jurídico que ambas visam acautelar. Estando em causa bens jurídicos distintos, importa averiguar até que ponto a previsão de uma deles se contém na da outra. O que põe em evidência a necessidade também já referida de uma avaliação concreta, casuística, de cada situação. Voltando assim ao caso, logo se vê que o crime de roubo visa proteger um bem jurídico plúrimo: direito de propriedade e detenção de coisas móveis, por um lado, e, embora como meio de lesão dos primeiros, também a liberdade individual de decisão e acção e a integridade física e, até, a vida, por outro. Já a incriminação por detenção ilegal de arma visa acautelar a lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas. Importa assim indagar se, punindo o arguido pelo crime de roubo com uso ilegal de arma, o tribunal recorrido deu a legal cobertura ao segundo dos mencionados bens jurídicos, único caso em que poderia ter-se como operante a consunção excludente. Ora, como resulta dos factos provados, naquele dia 6 de Fevereiro de 2006, (…) o arguido fazendo-se transportar no motociclo identificado, dirigiu-se à farmácia com o intuito de se apropriar das quantias em dinheiro que se encontrassem na posse das funcionárias, mesmo que para o efeito tivesse de as atemorizar, molestar no seu corpo ou na sua saúde, ou até disparar sobre elas, se necessário; para tanto, muniu-se da pistola identificada, e, uma vez no interior da farmácia, aproximou-se da funcionária CC, apontou-lhe a pistola e ordenou-lhe, em tom grave e sério, que lhe entregasse o dinheiro que estava nas caixas registadoras, junto ao balcão de atendimento. Ou seja, ao contrário do que defende o acórdão recorrido, o arguido, mesmo antes de consumar o roubo transportou consigo, ao menos enquanto se deslocou no motociclo, a arma ilegal, portanto, pelo menos, desde o local onde a guardava até ao da consumação do roubo. E podia ter usado dela em várias circunstâncias desse percurso, portanto, antes da consumação do roubo, assim ofendendo efectivamente o bem jurídico respectivo, que, como se viu é de mero perigo abstracto. Enfim, um crime consumado, mesmo antes de se iniciar o roubo. Não é assim correcta a afirmação do acórdão recorrido segundo a qual não resulta que o arguido tenha detido a arma em outras circunstâncias que não as cingidas à prática do roubo. Logo, a punição do roubo não abarca esta ofensa autónoma do bem jurídico subjacente à incriminação do uso de arma ilegal, pelo que não é legítimo, no caso, falar em consunção ou exclusão de aplicação desta incriminação. E, se assim, está afastado o perigo de violação do principio com assento constitucional «ne bis in idem», justamente porque a cada punição corresponde um bem jurídico ofendido, pelo que se há «bis», está afastado o «idem» – situação que logra inteira cobertura no preceituado no n.º 1 do artigo 30.º do Código Penal, citado. É este, de resto, o sentido da jurisprudência mais representativa deste Supremo Tribunal, como se vê dos acórdãos de 17/4/96 e 4/2/93, respectivamente nos recursos n.ºs 29550 e 18023, ambos com sumários acessíveis em http://www.stj.pt sendo do primeiro este excerto doutrinal: «Porque os crimes de roubo e de detenção de arma proibida protegem interesses diferentes e se consumam em momentos diferentes – o crime de roubo protege a propriedade e a pessoa e o de detenção de arma o perigo relativo às pessoas e às coisas, estando consumado quando foi iniciada a prática do roubo – existe concurso real desses crimes quando o roubo é praticado com o emprego de arma proibida.» Em suma, impõe-se a condenação autónoma do arguido pela prática do crime de uso ilegal de arma, pelo qual foi acusado, tal como defende o recorrente. Atenta a matéria de facto provada, a situação sub judicio enquadra-se na previsão típica do artigo 86.º, n.ºs 1, al. c), e 2, da Lei n.º 5/2006, de 23/2/2006 - cf. artigos 2.º, n.º 1, as), e 3.º, n.º 4, a), da mesma Lei, uma vez que se trata de uma "arma da classe B1", "fora das condições legais". Trata-se, assim, de crime punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. Considerando que tal moldura abstracta é significativamente mais gravosa que a prevista no artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, na redacção dada pela Lei n.º 98/2001 - prisão até 2 anos ou multa até 240 dias - e sendo exactamente iguais os critérios legais de determinação da medida concreta da pena (artigo 71.º do Código Penal), face aos dois regimes legais sucessivos de incriminação, a punição tem de ser equacionada em função do regime decorrente das Leis n.ºs 22/97 e 98/2001, invocadas na acusação, por ser manifestamente o que, em concreto, mais favorece o arguido, tudo em conformidade quer com o disposto no artigo 2.º, n.ºs 1 e 4 , do Código Penal. O crime é, assim, punível com prisão até dois anos ou multa até 240 dias. Tendo em conta que o arguido já se encontra condenado em pena de prisão, a pena de multa é aqui e agora de desaconselhável aplicação, face aos inconvenientes associados às chamadas «penas mistas»: A propósito da manutenção desse tipo de penas no Código Penal então vigente, escreveu o Prof. Figueiredo Dias: “Uma tal pena «mista» é, numa palavra profundamente dessocializadora, além de contraditória com o sistema dos dias de multa: este quer colocar o condenado próximo do mínimo existencial adequado à sua situação económico-financeira e pessoal, retirando-lhe as possibilidades de consumo restantes, quando com a pena «mista» aquele já as perde na prisão! O desaparecimento da pena complementar de multa (e portanto da pena mista de prisão e multa) impõe-se, pois, numa futura revisão do CP, como forma de restituir à pena pecuniária o seu sentido político-criminal mais profundo e de aumentar a sua eficácia penal.” (7) A situação, não sendo a mesma, é no entanto equivalente. Daí, com os mesmos inconvenientes em concreto. Pena de prisão, portanto. Para doseamento concreto da pena aplicada pelo crime de roubo o tribunal recorrido relevou: «- a intensidade do dolo, elevada, pois existiu na modalidade de dolo directo; - as exigências de prevenção geral são elevadas, tratando-se de um tipo de crime que se generalizou e que, sendo cometido também em pleno dia, cria um forte sentimento de insegurança nas pessoas, provocando grande alarme social; - não existiram consequências pessoais dos factos para a funcionária da farmácia; - quanto às consequências materiais, verifica-se que o que foi subtraído foi a quantia de € 115,00, o que não é um montante elevado; - a quantia em causa foi recuperada; - o facto de o arguido ser, à data dos factos, consumidor de bebidas alcoólicas, em quantidades excessivas, tendo bebido antes dos factos ocorrerem; - os seus antecedentes criminais constantes dos pontos 16 e 17 da matéria de facto, curiosamente por um crime de roubo praticado de forma semelhante ao dos presentes autos, na mesma farmácia, em 10 de Janeiro de 2005, encontrando-se o arguido no período de suspensão da execução da pena quando praticou os factos dos presentes autos, o que agrava os contornos da sua conduta e aumenta as exigências de prevenção especial; - por outro lado, diminuindo essas mesmas exigências encontra-se o facto de o arguido se mostrar arrependido; - de o arguido ter confessado integralmente e sem reservas os factos, unicamente com excepção da quantia em dinheiro subtraída, mas apenas porque não sabia a mesma com exactidão; - e as suas condições pessoais arguido descritas nos pontos 12, 14 e 15 da matéria de facto.» Estas circunstâncias, em que, afinal, avulta um grau de culpa médio e relativamente moderado de ilicitude, além de circunstâncias pessoais e comportamento posterior favoráveis, são aqui invocáveis de igual modo e permitem uma fixação da pena concreta ligeiramente acima do limite mínimo (art.º 41.º n.º 1, do Código Penal), ou seja, em 60 dias de prisão, sem perder de vista os fins preventivos e de ressocialização associados. E, em cúmulo jurídico, tendo em conta essa relativa gravidade dos factos, assim como alguns aspectos positivos da personalidade do arguido, maxime os revelados no seu arrependimento, a mostrar interiorização do mal do crime, fixar a pena única em 3 (três) anos e 7 (sete) meses de prisão. Deste modo, logra provimento o recurso. 3. Termos em que, no provimento do recurso, revogam em parte o acórdão recorrido, ora condenando o arguido: - Como autor material de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo art.º 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27/06, na redacção dada pela Lei n.º 98/2001, de 25/08, na pena de 60 (sessenta) dias de prisão. - Em cúmulo jurídico com a pena de três anos e seis meses, pelo crime de roubo, na pena única de 3 (três) anos e 7 (sete) meses de prisão. O arguido porque decaiu na oposição ao recurso, pagará as respectivas custas com taxa de justiça que se fixa 5 unidades de conta. Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Dezembro de 2006 Pereira Madeira (relator) Santos Carvalho Costa Mortágua Rodrigues da Costa _____________________________________ (1) Cfr. Eduardo correia, Direito Criminal II, 204 (2) Autor e ob. cits, págs. 205. (3) Autor o ob. cits., págs. 205-6, nota 2. (4) Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2004, págs. 289. (5) Cfr. Conceição Ferreira da Cunha, apud Comentário Conimbricense, págs. 171/2. (6) Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 292 (7) Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 192 |