Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FRANCISCO CAETANO | ||
Descritores: | INSTRUÇÃO DECISÃO INSTRUTÓRIA DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA TRIBUNAL DA RELAÇÃO JUIZ RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ASSISTENTE CRIME DIFAMAÇÃO DENÚNCIA CALUNIOSA CAUSAS DE EXCLUSÃO DA CULPA CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE DIREITO DE DEFESA INDÍCIOS SUFICIENTES | ||
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Data do Acordão: | 01/14/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGADO O RECURSO IMPROCEDENTE. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - No crime de denúncia caluniosa o bem jurídico tutelado é não só a realização da justiça, no caso em apreço a justiça disciplinar, mas também a tutela do bom nome, da honra e consideração do caluniado. II - Quanto ao preenchimento do tipo objectivo o mesmo só ocorre quando comprovadamente a pessoa denunciada não tiver cometido o facto, mormente o ilícito disciplinar. III - Quanto ao tipo subjectivo do crime, mormente quando a conduta consistir na falsa imputação de falta disciplinar exige-se o dolo e desde logo a consciência da falsidade da imputação, “o que significa que o sujeito age contrariando o seu melhor saber (wieder bessere Wissen”), o mesmo é dizer que o agente sabe ser o visado inocente da infracção que lhe imputa”, o mesmo é dizer, ainda, que só o dolo directo é punível. IV - No caso de concurso de crimes de denúncia caluniosa e com o crime contra a honra do art.º 180.º do CP em caso de pronúncia e condenação prevalece a qualificação do crime punido com a pena mais greve sobre o da punição mais leve, em ordem à regra “lex specialis derogat legi generali”. V - Com referência ao crime de difamação a honra manifesta-se em duas vertentes. Por um lado, numa vertente interna, que tem a ver com a dignidade pessoal de cada um. Por outro, numa vertente externa, que tem a ver com a imagem que se reflecte perante a sociedade em geral. VI - Existe uma honra subjectiva ou interna, que corresponde ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si próprio e uma honra objectiva ou externa, que corresponde à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, à consideração, bom nome, à reputação que uma pessoa goza no contexto social envolvente. VII - Sobre o que pode ou não ser considerado ofensivo da honra ou consideração a lei não fornece qualquer critério, pelo que terá que se partir do que a generalidade das pessoas pensa sobre o que razoavelmente deva ser considerado, ou não, ofensivo. VIII - Relevante para o preenchimento do crime de difamação é, assim, o meio onde se verifica a ofensa à honra ou consideração, a qualidade das pessoas entre quem ocorre, a forma como tal ocorre, o que tem como consequência que, só em face do caso concreto se pode afirmar se a conduta em presença é ou não ofensiva e preenche o tipo objectivo do crime de difamação. Em suma, interessará contextualizar as expressões eventualmente ofensivas da honra e consideração, sendo tal contextualização elemento essencial para aferir se as mesmas assumem tal natureza. IX - Atento o princípio da unidade da ordem jurídica, um comportamento que é lícito no âmbito de determinado ramo do direito não pode ser punido por outro. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 30/15.8TRLSB.S1 5.ª Secção Recurso Penal
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório AA, juiz ……., participou criminalmente contra BB, juíza …….., por factos que em seu entender integravam a prática, por esta, de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º 1, 184.º e 132.º. n.º 2, alín. l), do Código Penal (CP), por expressões que proferiu e juízos de valor que emitiu no depoimento de parte prestado na qualidade de ré, em 27.01.2015, na acção cível n.º 704/12......…. secção cível – juiz ..., da Instância Central …….. Ao inquérito inicial o Ministério Público (M.º P.º) apensou os inquéritos n.ºs 19/16....... e 20/16....... instaurados pelo mesmo participante contra a mesma participada e contra incertos, mas indicando a mesma como suspeita, bem como ainda contra CC. Findo o inquérito, o M.º P.º procedeu ao arquivamento desses outros inquéritos e deduziu acusação contra a participada pela prática de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alín. l), do CP. Não concordando com a acusação, a arguida BB requereu a abertura da instrução. Também o constituído assistente AA requereu a abertura da instrução relativamente ao arquivamento do inquérito n.º 19/16....... com referência ao participado crime de denúncia caluniosa por factos praticados em 2013 e respeitantes a uma participação da arguida ao Conselho Superior da Magistratura (CSM). Admitida a instrução e produzida prova e efectuadas diligências de prova, foi depois designada data para debate instrutório, onde os mandatários do assistente e da arguida se pronunciaram sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre questões de direito de que dependesse o sentido da decisão instrutória, tendo-se o M. P.º pronunciado pela manutenção do despacho de arquivamento e quanto ao crime de difamação objecto da acusação pública referiu que se indícios havia no momento da acusação, agora tem dúvidas sobre a subsistência de indícios suficientes que permitam um julgamento onde a arguida venha a ser condenada. Após o debate, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia quer pelos factos imputados no requerimento de abertura da instrução do assistente, quer pelos factos constantes da acusação do M.º P.º Inconformado, recorreu o assistente, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões: “I. Em .. de Fevereiro de 2013, a arguida remeteu ao CSM a carta, objecto do presente processo, na qual expressamente consigna que “vem participar disciplinarmente contra o Exmo. Sr. …….. Dr. AA, a exercer funções na secção …….. do Tribunal da Relação ……….”. a) Que no processo 101/01........., do ….. Juízo …….. “é ofendido AA e arguido DD”, quando era ofendida a PSP e o ora Participante se limitou a intervir como testemunha arrolada pelo Ministério Público. b) Que, no processo comum singular 455/09........., é assistente o Recorrente quando este se limitou a dar conhecimento ao Ministério Público de que um tal EE andava a falsificar cheques, que eram propriedade de uma associação cultural; c) Que o Processo Comum Singular n.º 884/06......... seja um processo novo quando se trata do mesmo processo da Instrução n.º 162/04........., do ….. Juízo …….; d) Que o Processo n.º 457/10……., do …. Juízo do Tribunal ……, que à data da participação já estava findo, seja “denunciante AA” pois que o processo “nasce” na sequência de participação do Sr. Juiz do TAF ……. por desobediência do então Presidente da Câmara Municipal ……. a ordem sua contida em providência cautelar. V. Fez tal afirmação de forma falsa pois que bem sabe, por ter tido acesso aos processos, deles obtendo certidão, que o Recorrente apenas invoca a sua qualidade de Juiz quando é ofendido no exercício dessas funções ou por causa delas. VI. Quis desta forma fazer crer ao Conselho Superior da Magistratura que o aqui Recorrente, por um lado, perseguia tudo e todos; e, por outro, que abusava dos seus direitos de Magistrado Judicial para obter vantagens a que não tem direito. VII. Desta forma pretendendo que lhe fosse instaurado processo disciplinar. VIII. Afirmou, igualmente, de forma falsa, com consciência da falsidade da imputação por ter obtido certidão dos processos, que “Nessas acções para defesa da sua honra, o participado (aqui Recorrente) não se coíbe de instrumentalizar os articulados para renovar os sistemáticos atentados contra a honra da aqui participante, do seu Advogado, das testemunhas que depuseram no processo em que foi visado, do Bastonário da Ordem dos Advogados e do Próprio Conselho Superior da Magistratura”; que tal instrumentalização “é feita de molde a criar nos visados naqueles processos o receio fundado de que o simples exercício dos seus direitos de defesa os leve a ser constituídos arguidos, acusados e até mesmo condenados (ao que parece, com penas de prisão!), bem assim como a pagar altas indemnizações que «engrossarão os cabedais» daquele!” IX. Mais afirmou, com consciência da falsidade da imputação pois chega ao ponto de chamar ao Recorrente litigante crónico, que o Recorrente “teria tomado conhecimento de várias irregularidades - inclusivamente com relevância criminal - na actuação do aeroclube ou de vários dos seus membros”. “Só que, em vez de participar tais irregularidades quando delas teve conhecimento, o Sr. …….. nada fez”. X. Quis, desta forma, fazer passar a imagem ao CSM de que o Recorrente é capaz de esquecer as suas obrigações profissionais, violando deveres estatutários. XI. Afirmou, contra a verdade dos factos dela bem conhecida, que o Recorrente recebeu contrapartida financeira, assim violando deveres estatutários, por ter ministrado a cadeira de direito …… e de ter elaborado um Manual de Legislação…... XII. Afirmou, falsamente, contra a verdade dos factos dela bem conhecidos, que o Recorrente tenha “instrumentalizado o cargo para obter um benefício ilegítimo”. XIII. Como afirmou falsamente, contra a verdade dos factos deles bem conhecidos, que “o Dr. AA acaba por lançar a suspeita sobre os critérios de actuação do CSM, quando se trata de permitir ou vedar o acesso a informações confidenciais”. XIV. Ainda falsamente afirmou que o Recorrente “pretextando problemas de saúde - «falta de condições físicas ou condições psicológicas» se tenha escusado de «executar as suas funções» ”. XV. A Senhora Magistrada Arguida tem conhecimento dos atestados médicos, até da área da Psiquiatria, que o ora Participante apresentou no Tribunal da Relação ………, dos quais obteve certidão. XVI. Falsamente afirmou que “O Sr. …….., no âmbito da sua actividade associativa, valeu-se de «conhecimentos» com vista à obtenção de subsídios para a realização de um passeio de aviões - o Raid Ibérico”. XVII. Todos estes factos têm de se considerar indiciados na medida em que constam da carta remetida pela arguida ao Conselho Superior da Magistratura, cuja autoria foi por ela assumida. XVIII. E tem de se considerar como falsos (os juízos de valor nem susceptíveis de prova são) porque está provada documentalmente a sua falsidade. XIX. Tem de considerar indiciada a consciência da falsidade porque a arguida obteve certidão de todos os processo e os atestados médicos do aqui Recorrente, bem sabendo o que deles consta. XX. Agiu com vontade livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei. XXI. Fê-lo com consciência da falsidade das imputações, querendo que contra o Recorrente fosse instaurado processo disciplinar. XXII. Os factos e juízos de valor referidos têm indiscutível dignidade penal e são objectivamente ofensivos da honra e consideração devidas ao Recorrente. XXIII. Deve, por isso, ser mandada pronunciar a Senhora Magistrada Arguida pela prática de um crime de denúncia caluniosa p. e p. pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 365º do C. Penal XXIV. Para além de imputar factos falsos ao Recorrente, a Senhora Magistrada Arguida reproduziu juízo de valor formulado por um tal FF, sua testemunha de defesa no processo disciplinar, também patrocinado pelo Senhor Advogado, ……. da Arguida: “Quando questionado acerca da personalidade do aqui ofendido, respondeu «que era alguém habituado a fazer a sua vontade, que não é contrariado... e que, logo que fosse contrariado por alguém, essa pessoa passava a ser inimigo dele, que era uma pessoa muito explosiva, que por vezes não olha aos meios para ofender as pessoas e que era alguém capaz de mentir para perseguir um inimigo figadal e que já chegou a tentar aproveitar-se de ……..» (com uma ….. desta cidade, a fim de não as pagar)”. XXV. E afirmou ela própria que o Recorrente é “pessoa vingativa, que não olha a meios contra os seus inimigos e que se envolveu em conflitos judiciais por causa das suas actividades associativas”. XXVI. Chega a falar na “habitual soberba do Dr. AA e o seu sentimento de impunidade”. XXVII. A reprodução de juízo de valor depreciativo, bem como a emissão de juízos de valor depreciativos são, quer uns, quer outros, ofensivos da honra e consideração que são devidas ao ora Recorrente. XXVIII. As expressões em causa, mais não visam do que ofender, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome do Recorrente. XXIX. São objetivamente ofensivas da honra do Recorrente [não olha a meios, mente para perseguir inimigos – quem, e onde???!!! -, até tentou aproveitar-se de horas de voo (quando as pagou em excesso!!!...), habitual soberba]. XXX. Do contexto se extrai que a Senhora Magistrada Arguida quis transmitir ao Conselho Superior da Magistratura uma imagem do Recorrente de pessoa não honrada. XXXI. Agiu dolosamente, com dolo directo, querendo ofender o Recorrente na honra e consideração que lhe são devidas, como ofendeu. XXXII. Ainda que assim se não entenda, sempre terá de se concluir que, ao reproduzir o juízo de valor depreciativo e ao emitir um novo juízo de valor, também depreciativo, necessariamente estava a ofender o assistente na honra e consideração que lhe são devidas. XXXIII. Ou, no mínimo, tinha de prever como possível que podia atingir o Recorrente na sua honra e, apesar disso, conformou-se com o resultado. XXXIV. Como Juiz ……….., que é, do contexto em que falou mal do aqui Recorrente, forçosamente se conclui que o fim último prosseguido era o de achincalhar o Recorrente perante o Órgão de Tutela. XXXV. Terá, por isso, de ser mandada pronunciar também pela prática de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.ºs 180º e 184º do C. Penal, em concurso efectivo. XXXVI. Por outro lado, quando em inícios de 2015 foi ouvida em declarações de parte, como Ré, no âmbito da acção ordinária n.º 704/12.........., que correu termos na … Vara Cível da Comarca ……, imputou ao Recorrente a prática dos seguintes factos: XXXVII. Os factos, na sua globalidade são factos falsos, como se demonstra na motivação deste recurso, tal como se tinha demonstrado documentalmente em sede de inquérito, não podendo a arguida, com as suas declarações infirmar o que está documentalmente demonstrado. XXXVIII. E a Senhora Magistrada Arguida tinha consciência da sua falsidade. XXXIX. Para além dos factos referidos, emitiu os seguintes juízos de valor, uns considerados indiciados e outros nem indiciados, embora todos tenham de se considerar indiciados porque constam da transcrição das declarações da arguida, que não é posta em crise: - Apelidou o Recorrente de vaidoso, de …….. que queria brilhar aos olhos do Conselho; - Mimoseou-o com o vocábulo de deslealdade. - Fez alusão a entre outras aleivosias. - Afirmou que o Dr. AA mente descaradamente; isto é uma mentira, aliás mais uma mentira descarada do Dr. AA”. - Ele não sabe lidar com o exercício de direitos de defesa”. - Pois ele é especialista em negar o evidente. - O ora Recorrente tem “dois pesos e duas medidas”. - “Se o Dr. AA se fosse punido por falsas declarações, já tinha um cadastro que não tem memória. (…) Quer dizer, já em cúmulo jurídico não sei qual era a pena. (…)” XL. Todos os factos e juízos de valor são pejorativos e altamente ofensivos da honra e consideração que são devidos ao Recorrente. XLI. São, por isso, objetivamente ofensivos da honra do Recorrente. XLII. A Senhora Magistrada Arguida quis passar no processo uma imagem do Recorrente de pessoa não honrada. XLIII. Quis achincalhar, denegrir o Recorrente e ofendê-lo na honra e consideração que lhe são devidas. XLIV. Agiu, pois, com dolo directo. XLV. Ainda que assim se não entenda, sempre terá de se concluir que, ao reproduzir o juízo de valor depreciativo e ao emitir um novo juízo de valor, também depreciativo, necessariamente sabia a arguida que estava a ofender o assistente na honra e consideração que lhe são devidas. XLVI. Ou, no mínimo, tinha de prever como possível que podia atingir o Recorrente na sua honra e, apesar disso, conformou-se com o resultado. XLVII. Agiu, pois, dolosamente. XLVIII. Trata-se de uma Juíza ..… de quem se exige um comportamento ético diferente do assumido pela arguida nas suas declarações, a ponto de ter levado uma reprimenda do Meritíssimo Juiz: “acho que era perfeitamente evitável dizer isto”. XLIX. Terá, por isso, de ser pronunciada pela prática de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.ºs 180º e 184º do C. Penal. L. Os factos e juízos de valor constantes da carta remetida ao Conselho Superior da Magistratura e os das declarações de parte são completamente distintos, embora com algumas semelhanças. LI. Basta confrontar os factos e juízos de valor de um e outro inquérito, para se concluir que se trata de factos distintos e de juízos de valor igualmente distintos. E diferentes. LII. O certo é que se trata de resoluções distintas: num lado, a Senhora Magistrada Arguida está a prestar declarações de parte num processo cível; no outro está a redigir participação disciplinar contra o ora Recorrente. LIII. Tratando-se de resoluções distintas estamos perante crimes diversos, consumados em momentos temporais a merecer tratamento diferenciado. LIV. E nem se pode fazer apelo á figura do crime continuado: LV. Finalmente não pode considerar-se justificada a conduta da arguida, ao abrigo do n.º 2 do art.º 180º do C. Penal, como muito superficialmente se afirma na decisão recorrida. LVI. Desde logo porque não se verifica o requisito do interesse legítimo. Na verdade, numa acção em que está em causa apurar se a Ré é a fonte das notícias caluniosas, que interesse tem esta em ofender o Recorrente? Só se for para prova da verdade dos factos (cuja autoria não assumiu!!!.... Mas se não assume a autoria, que prova quer fazer?). LVII. Depois, porque os juízos de valor são, por definição, insuscetíveis de prova e, por isso, não podem considerar-se verdadeiros ou susceptíveis de os reputar como tais. LVIII. Ainda porque, como se demonstrou documentalmente nos autos, os factos imputados são, na sua totalidade, falsos e, por isso, não podia a arguida tê-los, em boa-fé, como verdadeiros. LIX. Ainda que assim não fosse – e é -, sempre a conduta da Senhora Magistrada Arguida seria punível porque violadora do princípio da proibição de excesso consagrado no art.º 18º da CRP, na medida em que a prolação dos juízos de valor e a imputação dos factos falsos, não era nem adequada, nem necessária e, para além disso, é excessiva relativamente aos fins visados. LX. Como o Meritíssimo Juiz do processo bem advertiu. LXI. Foram violados os art.ºs 180º, 184º, e 365º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal; os art.ºs 283º e 308º do CPP; e ainda os art.ºs 613º, n.º 3 e 615º, n.º 1, al. d) do CPC, aplicáveis, ex vi, do disposto no art.º 4º do CPP, devendo todos eles ser interpretados em conformidade com o expendido na motivação”. O M.º P.º junto da Relação, em resposta, afigurando-se-lhe que a pretensão do recorrente não vai além da impugnação da valoração do tribunal a quo que levou à fixação da matéria de facto provada e não provada, pronunciou-se no sentido da confirmação do despacho de não pronúncia. Por sua vez, a arguida, apresentou extensa resposta onde fundamentalmente pugnou pela não pronúncia da prática dos crimes imputados. Recebidos os autos neste STJ começou-se por deferir pedido de escusa ao relator a quem os autos haviam sido distribuídos e uma vez apresentados ao novo relator igualmente este formulou pedido de escusa, que lhe foi indeferido, como indeferido viria a ser o pedido de recusa contra ele formulado, entretanto tendo passado à jubilação. Após nova distribuição, foi apreciado pedido de realização de audiência que o recorrente havia formulado no requerimento de interposição de recurso, o qual viria a ser indeferido por falta de cobertura legal. Cumprido o disposto no n.º 1 do art.º 416.º do CPP, o M.º P.º junto deste STJ emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso e da confirmação da decisão instrutória de não pronúncia. Após cumprimento do n.º 2 do art.º 417.º do CPP não houve lugar a qualquer resposta. Cumpre decidir. * II. Fundamentação 1. Foi a seguinte a matéria de facto indiciariamente provada na decisão instrutória: a) - Quanto ao requerimento para abertura da instrução (RAI) do assistente relativamente ao despacho de arquivamento do M.º P.º: - “O ora Assistente, que é Juiz ……….., foi nomeado Inspector Judicial em Maio de 2010, tendo tomado posse em Junho de 2010. O Exmo. Vice-Presidente do CSM encarregou-o de, nessa sua qualidade de Inspector Judicial, instruir um processo disciplinar contra a ora Arguida. Tarefa de que se encarregou no início do ano de 2011. Foi também apresentada participação disciplinar contra a ora Participada, que deu origem ao processo disciplinar ……... No âmbito do processo disciplinar ….., a requerimento da aqui Arguida, foi esta acareada com o Assistente no Tribunal Judicial …………….. Na aludida carta [remetida pela arguida ao CSM em 01.02.2013 onde, além do mais que se dá como reproduzido, consignou que “vem participar contra o Exmo. Sr. ………… Dr. AA, a exercer funções na secção …… do Tribunal da Relação ..….”], a arguida faz ao assistente as seguintes acusações: - O Assistente instaurou 20 acções judiciais;- O Assistente, nessas acções judiciais, invoca sempre a sua qualidade de Juiz para ficar dotado de “via verde” para litigar;- O Assistente litiga contra os seus inúmeros [inimigos?] figadais, com o intuito de os intimidar;- Nas acções que instaura, para defesa da honra “o participado não se coíbe de instrumentalizar os articulados para renovar os sistemáticos atentados contra a honra da aqui participante, do seu Advogado, das testemunhas que depuseram no processo em que foi visado, do Bastonário da Ordem dos Advogados e do Próprio CSM”. A instrumentalização “é feita de molde a criar nos visados naqueles processos o receio fundado de que o simples exercício dos seus direitos de defesa os leve a ser constituídos arguidos, acusados e até mesmo condenados (ao que parece, com penas de prisão!), bem assim como a pagar altas indemnizações que «engrossarão os cabedais» daquele!”- O Assistente “teria tomado conhecimento de várias irregularidades - inclusivamente com relevância criminal - na actuação do aeroclube ou de vários dos seus membros”. “Só que, em vez de participar tais irregularidades quando delas teve conhecimento, o Sr. ……….. nada fez”.- O Assistente “ministrou a cadeira de Direito …… num curso …… a pedido do Doutor..... II que é o proprietário da escola de …… a custo zero”; que “fiz... um manual de legislação ……”, e que, o dono da Escola se sentiu agradecido, razão pela qual “fez questão que eu fizesse a qualificação de…….”. Tendo-me sido oferecidas as …… para que fosse concedida a qualificação ….., entendeu a Arguida que “o Sr. ………. não ignora - como resulta das suas palavras - que o art.º 13.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais - o proíbe de exercer qualquer outra actividade remunerada”. - O Assistente confessa “ter instrumentalizado o cargo para obter um benefício ilegítimo”; “o Dr. AA acaba por lançar a suspeita sobre os critérios de actuação do CSM, quando se trata de permitir ou vedar o acesso a informações confidenciais”.- O Assistente “pretextando problemas de saúde - «falta de condições físicas ou condições psicológicas» se tenha escusado de «executar as sua funções»”.- “O Sr. ………., no âmbito da sua actividade associativa, valeu-se de «conhecimentos» com vista à obtenção de subsídios para a realização de um passeio .….…”. * b) – Quanto à acusação pública: - “O ofendido e assistente AA é Magistrado com a categoria de Juiz ……….., tendo exercido funções de Inspector Judicial entre ….. de Junho de 2010 e ….. de Novembro de 2011. Por razões inerentes à sua função e categoria, o assistente moveu uma acção cível contra a arguida (acção de responsabilidade civil aquiliana). Tal acção recebeu o nº 704/12.......... e correu termos no …., da …. secção cível, na instância Central …..... O Autor (aqui o assistente) com aquela acção pretendia a condenação da Ré (aqui a arguida), por ofensa ao seu bom nome e honra e consideração que lhe são devidos, enquanto juiz e homem. No âmbito da acção supra identificada, a arguida prestou declarações como Ré, nos dias 27 de Janeiro e 24 de Fevereiro de 2015. Previamente, a arguida, prestou juramento legal com compromisso de responder com verdade. A arguida é magistrada judicial e sabia que o ofendido é igualmente magistrado, com a categoria de juiz …… As imputações contidas nas expressões utilizadas pela arguida exteriorizaram-se com factos e adjectivação sobre a actividade e função do ofendido, enquanto magistrado judicial. Entre outras afirmações, comentários e juízos de valor, na sessão de julgamento do dia .. de Janeiro de 2015, a arguida, disse ao tribunal as expressões, declarando, conforme gravado em suporte digital (CD – prova documental) que: - “ eu percebi que o sr. Inspector (referindo-se sempre ao assistente) é……, queria brilhar aos olhos do Conselho (querendo referir-se ao Conselho Superior da Magistratura – CSM) …” --- “… bateu o recorde de deslealdade. (referindo-se a participação disciplinar que o assistente fez ao Conselho Superior da Magistratura). --- Sr. doutor (dirigindo-se ao Mmº juiz que presidiu ao julgamento) não sei se ouviu falar nas vidas do Dr. AA, lá de ……., ele é uma pessoa complicada…” --- “Ele é especialista a fazer isto….. alterando o teor da queixa, na base de outra queixa que ele próprio intentou”. --- “Há quem diga que o Dr. AA é um grande traficante (de droga, entenda-se) …” --- “que alegadamente essas pessoas teriam dito que o juiz (o assistente) seria um ditador”. --- “Ele (o aqui assistente) é um negociante, ele, quando aqui cheguei percebi que ele dominava aí todo o sector imobiliário, só que não posso falar sobre isso”. --- “Ele (reportando-se ao Autor, aqui o assistente), entre outras aleivosias insiste na tese de que a declarante e seu marido reuniam com as testemunhas, que desta feita, constroem uma diferente versão quanto à fonte”. --- “ O Dr. AA não sabe lidar com o exercício dos direitos de defesa (reporta-se ao processo disciplinar que lhe fora instaurado pelo CSM, e em que o assistente interveio como inspector). --- “ Que tem relações (o aqui assistente e ali o Autor), directamente ou por interposta pessoa, que na altura eu ainda não sabia exactamente os contornos daquilo, com alguém que depois veio a ser condenado por um crime de tráfico…” --- “Instigou (ele, o Dr. AA) um polícia a participar criminalmente de mim… a procuradora arquivou o processo, mas fez constar que o polícia foi instrumentalizado e diz por quem e mandou participar disciplinarmente do polícia e do Dr. AA”. --- “… Esses danos que ele (o Dr. AA) agora vem invocar nesta acção, de natureza psiquiátrica, já remontam a 2008, já nessa fase ele andava pelos psiquiatras”. --- “ Esta veia de litigante crónico, ele (o Dr. AA) não me pode pegar”. --- “ Não sei se tinha a ver com a questão do jogo ou com outra questão qualquer”. --- “Se o Dr. AA fosse punido por falsas declarações… meu amigo, quer dizer já teria um cadastro que não tem memória… e em cúmulo jurídico não sei qual era a pena”. Neste momento, tendo a arguida feito esta afirmação, o Mmº juiz que presidia ao julgamento, manifestou o seu desagrado e censurou a arguida (ali declarante), dizendo “Acho que era perfeitamente evitável dizer isso”. * 2. Apreciando: 2.1. O recorrente na motivação arguiu a nulidade do despacho de não pronúncia recorrido por omissão de pronúncia, alegadamente nos termos dos art.ºs 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alín. d) do CPC ex vi art.º 4,º do CPP. Não levou as conclusões a arguição (apenas no final se limitou a referir terem sido violados, entre outros, esses normativos) pelo que sendo as conclusões que delimitam o âmbito de conhecimento do recurso, haveria que não conhecer de tal questão, que, contudo, sempre seria de indeferir, fosse por inaplicação das normas adjectivas de processo civil, fosse porque a pronúncia que era devida seria a decisão ou de pronúncia ou de não pronúncia, como neste sentido veio a ser decidido. Quanto ao mais, o recurso versa sobre a discordância do recorrente quanto à não pronúncia pelos crimes que considera indiciados. Dispõe o n.º 1 do art.º 308.º do CPP que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena (…), o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Por seu turno, o n.º 2 desse normativo torna aplicável à pronúncia o grau de convicção da acusação do n.º 2 do art.º 283.º, no sentido de que, para ambas as fases processuais, “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena (...) ”. O conceito de “suficiência de indícios” corresponde ao que a doutrina há muito estabilizou e que podemos sintetizar nas palavras de Figueiredo Dias: “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”[1]. * 2.2. A motivação recursiva condensada nas conclusões louvou-se, pois, na circunstância de os juízos e afirmações formuladas nas queixas apresentadas pela recorrida contra o recorrente, serem subsumíveis ao crime de denúncia caluniosa do art.º 365.º, n.ºs 1 e 2 do CP e a dois crimes de difamação agravados, dos art.ºs 183.º e 184.º do CP, com referência aos Inquéritos n.ºs 19/16....... e 30/15......., respectivamente. Tecendo breves considerações sobre um e outro tipo legal, quanto ao crime de denúncia caluniosa dispõe o art.º 365.º, n.º 1, do CP que “quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. E, o n.º 2, que “se a conduta consistir na falsa imputação de (…) falta disciplinar o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”. Inserido sistematicamente nesse diploma legal no capítulo “Dos crimes contra a realização da justiça”, conforme doutrina e jurisprudência pacíficas, do ponto de vista da tutela normativa a denúncia caluniosa assume natureza pluridimensional. O bem jurídico tutelado é não só a realização da justiça, no caso em apreço a justiça disciplinar, mas também a tutela do bom nome, da honra e consideração do caluniado (v. Costa Andrade, CCCP, III, p. 529 e Ac. AFJ do STJ de 12.10.2006). Quanto ao preenchimento do tipo objectivo o mesmo só ocorre quando comprovadamente a pessoa denunciada não tiver cometido o facto, mormente o ilícito disciplinar. De acordo com a lição do mesmo autor, “a falsidade não tem de ser total, bastando que atinja o conteúdo essencial da imputação, isto é, que no essencial ela se afaste da verdade. Serão irrelevantes os meros exageros, empolamentos ou deturpações, bem como o aditamento ou omissão de pormenores que não contendam com aquele conteúdo essencial” e, por outro lado, “também não pode falar-se de falsidade (da imputação) na chamada denúncia para clarificação: casos em que o agente, tendo dúvidas, sobre os factos, os comunica como tais à autoridade, isto é, dando conta das suas dúvidas e dos fundamentos da sua convicção” (ob. cit. pp. 540 e 542). Já quanto ao tipo subjectivo do crime, mormente quando a conduta consistir na falsa imputação de falar disciplinar exige-se o dolo e desde logo a consciência da falsidade da imputação, “o que significa que o sujeito age contrariando o seu melhor saber (wieder bessere Wissen”), o mesmo é dizer que o agente sabe ser o visado inocente da infracção que lhe imputa”, o mesmo é dizer, ainda, que só o dolo directo é punível. De resto, como assim entendeu a Comissão Revisora ao formular o respectivo tipo legal e onde a questão foi colocada em concreto a propósito da exclusão do dolo eventual (v. nota 3 ao art.º 365.º do CPP, Anot. e Com. de Maia Gonçalves, 18.ª ed., p. 1080). O preceito em causa exige, assim, mormente quanto à justiça disciplinar, que no respeitante à intenção de contra alguém ser instaurado o respectivo procedimento o dolo tenha que assumir a forma directa. Nas palavras ainda de Costa Andrade (ob. cit., p. 548) “A consciência da falsidade significa que no momento da acção o agente conhece ou tem como segura a falsidade dos factos objecto da denúncia ou suspeita. O que equivale a excluir nesta parte a relevância do dolo eventual, não preenchendo o tipo aquele que age admitindo a possibilidade da falsidade dos factos”, mais acrescentando que “o erro afasta o dolo nos termos gerais, também não preenchendo o tipo o agente que actua convencido da verdade dos factos (…) ”: o agente tem que ter conhecimento da sua verificação ou existência ou tê-los como seguros”. Neste enquadramento doutrinário uma nota final se impõe e que tem a ver com o concurso de crimes de denúncia caluniosa e do crime contra a honra do art.º 180.º e que, segundo ainda Costa Andrade (ob. cit., p. 554), “a adopção de um bem jurídico individual predetermina desde logo as relações com os crimes contra a honra (art.º 180.º e ss) por princípio subsumíveis na figura e no regime do concurso aparente (ex vi especialidade) ”. Daqui decorre que em caso de pronúncia e condenação sempre prevaleceria a qualificação do crime punido com a pena mais greve sobre o da punição mais leve, em ordem à regra “lex specialis derogat legi generali” o que, no confronto das previsões punitivas do n.º 2 do art.º 365.º e 180.º n.º 1 e 184.º, do CP, prevaleceria a do 1.º tipo legal. Já quanto à acusação pública pelo crime de difamação e por que o M.º P.º acusador revela agora dúvidas sobre a subsistência de indícios suficientes para em julgamento haver lugar a condenação da arguida, importa tecer igualmente uma breve consideração. Como é sabido, nesse tipo legal de crime o bem jurídico protegido é a honra ou consideração das pessoas. Na lição de Beleza dos Santos (RLJ, Ano 92.º pp. 167 e 168) “a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e pelo que vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público”. Oliveira Mendes (O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal, Coimbra, Almedina, 1996, p. 18) delimita os contornos da honra nos seguintes termos: “O homem avalia-se a si próprio, vendo em si atributos e qualidades espirituais e morais, não só como valores íntimos existentes no seu âmago, mas já também como valores projectados no seu modo de ser e de se comportar em sociedade. Compara, então, esses seus atributos e qualidades com os dos demais homens, designadamente na sua vertente exógena, pondo em confronto o seu modo de estar na vida e de agir, com a forma como os demais homens também se apresentam, vivem e comportam. Assim, nasce em si um sentimento de honra alicerçado não só nos valores morais e espirituais que em si existem, mas também e especialmente no papel decisivo que aqueles têm nos seus atributos e qualidades, carácter, probidade, rectidão, lealdade, etc., bem como na projecção exterior que daí decorre, por via do concreto viver e convívio de cada um”. Figueiredo Dias (RLJ, Ano 115, p. 105), integra no conceito de honra não apenas a personalidade moral, como também a sua valoração social, referindo que “nunca teve entre nós aceitação a restrição da «honra» ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer - no outro extremo - estritamente normativo de honra”. Deste modo, a honra manifesta-se em duas vertentes. Por um lado, numa vertente interna, que tem a ver com a dignidade pessoal de cada um. Por outro, numa vertente externa, que tem a ver com a imagem que se reflecte perante a sociedade em geral. Existe uma honra subjectiva ou interna, que corresponde ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si próprio e uma honra objectiva ou externa, que corresponde à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, à consideração, bom nome, à reputação que uma pessoa goza no contexto social envolvente (v. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 1999, p. 603). Sobre o que pode ou não ser considerado ofensivo da honra ou consideração a lei não fornece qualquer critério, pelo que terá que se partir do que a generalidade das pessoas pensa sobre o que razoavelmente deva ser considerado, ou não, ofensivo. “Na realidade, existe em todas as comunidades um sentido comum, aceite por todos ou, pelo menos, pela maioria, sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros, em ordem a que a vida em sociedade se processe com um mínimo de normalidade” (Oliveira Mendes, ob. cit. supra, p. 38). É a própria sociedade que estabelece limites na convivência entre pessoas. Ultrapassados esses limites ou normas de conduta, de que toda a comunidade é conhecedora, surge o comportamento ofensivo. Relevante para o preenchimento do crime de difamação é, assim, o meio onde se verifica a ofensa à honra ou consideração, a qualidade das pessoas entre quem ocorre, a forma como tal ocorre, o que tem como consequência que, só em face do caso concreto se pode afirmar se a conduta em presença é ou não ofensiva e preenche o tipo objectivo do crime de difamação. Em suma, interessará contextualizar as expressões eventualmente ofensivas da honra e consideração, sendo tal contextualização elemento essencial para aferir se as mesmas assumem tal natureza. Em suma, para que um facto ou juízo possa ser havido como ofensivo da honra e consideração e, portanto, merecedor da tutela penal prevista no art.º 180.º, do CP, integrando o tipo objectivo previsto no n.º 1 do citado preceito legal, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável de forma a que a sociedade não lhe seja indiferente. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sociomoral da pessoa, da sua honra e consideração, mínimo este cuja aferição tem que ser feita, não com base numa perspectiva subjectivista do ofendido, mas antes com base na contextualização do concreto facto ou juízo em causa, o que passa por verificar o meio onde se verifica a ofensa à honra ou consideração, a qualidade das pessoas entre quem ocorre e a forma como a mesma ocorre. Com efeito, só assim se poderá aferir se as concretas imputações de factos ou juízos possuem a intensidade ou seriedade exigida para que se encontre preenchido o tipo objectivo previsto no n.º 1 do art.º 180.º do CP. A ofensa pode apresentar-se sob a forma de imputação de facto ou sob a veste de formulação de juízo. Parafraseando José de Faria Costa, “a noção de facto traduz-se naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. Assume-se, por conseguinte, como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência. (...) Um facto é, pois, um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos. (...) De forma simples: um facto é um juízo de existência ou de realidade” (ob. cit., p. 609.) Assim, a imputação de um facto depende da manifestação exterior em que se materializa esse acto. O facto é algo de objectivo. Já a formulação de um juízo é algo de subjectivo e isto quer se trate de um juízo sobre factos ou acontecimentos, quer incida sobre pessoas e respectivos comportamentos. O elemento subjectivo basta-se com o conhecimento e vontade de que as expressões utilizadas sejam aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa considerando o meio social e cultural onde forem proferidas. * 2.3. Voltando à decisão recorrida, vejamos os termos em que foi gizada a não pronúncia. 2.3.1. Quanto à manutenção do despacho de arquivamento do inquérito n.º 19/16........ O M.º P.º, após encerramento desse inquérito, considerou que “Quanto ao apenso - Inq. Nº 19/16.......: Não participa nada de novo à queixa inicial, antes traduzindo novo apelo à investigação dos factos já participados, constituindo, por isso, um volume de documentação relativa à denúncia que a arguida dirigira ao Conselho Superior da Magistratura (CSM), em 2013-02-01, imputando factos ao assistente, enquanto inspector judicial que dirigiu o processo disciplinar instaurado à arguida. Daí que se determina o arquivamento desta matéria, por inadmissibilidade de procedimento, ao abrigo do nº 1, do art.º 277º, do Código de Processo Penal.” A decisão instrutória referiu então que “a este respeito não podemos deixar de concordar com o despacho de arquivamento proferido pelo Mº Pº, dando-se o mesmo por reproduzido supra, para além de que, e tendo em conta o número de processos em que a denunciada é ou foi arguida (tendo sido despronunciada em pelo menos um processo), o certo é que os factos participados pela arguida ao CSM em 1.02.2013, mais não são já do que a repetição, nos diferentes temas de processos crime, dispersos já instaurados pelo assistente contra a arguida (e que constam de documentos juntos nos autos), se bem que compartimentados, num ou noutro, estes factos, foram debatidos e julgados ou despronunciada (alguns ainda não transitados em julgados, pelo menos que se tenha conhecimento) em processos crimes em que o ora assistente foi o queixoso e a arguida em fase inicial ou final, arguida, ou ainda de terceiros onde a arguida assumiu a qualidade de testemunha. A titulo exemplificativo referem-se os processos 114/12......., do Tribunal da Relação de …… onde BB foi constituída arguida, bem como o seu mandatário, o processo nº 2396/14……. do Tribunal Judicial da comarca …….., juízo local criminal ……… e onde a arguida foi anteriormente despronunciada através de decisão transitada em julgado, tendo o processo seguido contra JJ, o qual veio a ser absolvido ( decisão transitada em julgado), no processo 144/11.......... ( decisão do STJ) onde a arguida não foi pronunciada pelos factos que lhe eram imputados, (decisão transitada do STJ), participação criminal feita pelo assistente contra a arguida que deu origem ao processo 5/13……., pendente no TR.. que tem por objecto as declarações prestadas pela arguida na qualidade de assistente no processo comum singular, nº 593/11…… e outras decisões que constam dos presentes autos, onde é recorrente a “discussão” jurídica sobre os mesmos factos estando os mesmos dispersos em vários processos. Ou seja, existe aqui uma nítida sobreposição e duplicação sobre factos posicionados de forma repetida, de forma diversa e dispersa em vários processos crimes, e querendo posicioná-los, sob uma perspectiva e natureza diferente, mais não sendo verdadeiramente, que o “culminar” e o “revolver”, de uma parte, de toda, digamos, a intrincada e dispersa, “situação processual”, existente entre o assistente e a arguida, se bem que agora com uma fonte alegadamente diversa. Inclusivamente nestes autos, recorrente se torna também a discussão sobre alguns, se, porventura também de todos destes mesmos factos, derramados que foram, das declarações da arguida em sede de declarações de parte na acção cível, a saber e que são objecto da presente instrução, como seja o número de processos instaurados pelo assistente (utente crónico da justiça) com a finalidade de condicionar, com a instrumentalização dos articulados/ao mesmo tempo que fará valer os seus direitos constitucionalmente consagrados, a já tão propalada isenção de custas que lhe vem sendo concedida, não em todos mas em alguns processos, as noticias veiculadas em órgãos de comunicação social, a questão dos “inimigos figadais”, a questão do aeroclube, o estado de saúde do assistente (psicológica), a questão, e é o assistente que o afirma/ protecção a traficantes, noticia veiculada pelo Correio da manhã, questões societárias, etc. Nestes termos, se bem que de forma muito concisa, o Digno PGA, no despacho de arquivamento, ponderou todos estes considerandos ao afirmar que aquela participação: ”antes traduzindo novo apelo à investigação dos factos já participados”, o que não deixa de ser verdade, pois de outra forma correr-se-ia o sério risco, de estar a imputar à arguida os mesmos factos com relevância criminal, que alegadamente já teriam sido objecto, ou são examinados, ou foram, noutros processos-crime, em confronto com o que temos entre mãos, os quais como se sabe á saciedade resultaram do depoimento de parte que a arguida prestou na qualidade (ré) no dia 27/01/2015, no âmbito da acção cível com o nº 704/12.......... da Instância Central ……-….. secção cível-…..., na audiência de discussão e julgamento, em que era autor o ora aqui participante, e onde alegadamente grande parte daqueles factos, serão novamente ressuscitados no presente processo-crime, que se encontra na fase de instrução, ao que acresce, e encontra-se documentalmente indiciado nos autos, que tais factos se mostram de alguma forma contrariados por esses mesmos elementos de prova. - Os quais em parte vão voltar à temática objecto de outros processos-crime, como é por todos bem consabido. Ora salvo melhor opinião, de uma forma ou de outra, havendo identidade de factos/e/ou imputações com contornos de ilícito penal mas manifestados noutra sede, mas onde a consequência para o alegado infractor é a mesma por ofender alegadamente, exactamente os mesmos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, (se bem de que de forma alegadamente repetida, mas sempre no seio da mesma resolução da arguida) que é o que parece acontecer no caso em apreciação, (devido á dispersão e objecto de diversos processos crime) cautelosamente, o despacho de arquivamento proferido pelo Mº Pº, parece fluir com naturalidade, face aos factos sob escrutínio nestes autos”. “Assim, e para além de alguns destes factos não assumirem indiciariamente relevância criminal e representarem uma duplicação, dos factos em análise na presente instrução, e noutros processos cujas certidões se encontram juntas aos autos, estes, não se mostram num patamar mínimo de indiciação da pratica de qualquer crime indicado pelo assistente à arguida (pese embora ter sido arquivado o inquérito disciplinar pelo plenário do C.S.M./…. estando o mesmo junto aos autos, doc. nº 2 do inq. 19/16......., por falta de indícios suficientes), pelo que se conclui mais uma vez, concordar na íntegra com o despacho de arquivamento, o que se declara, tanto mais que o cerne “fáctico” da sua discordância é feito em termos de negação pelo assistente ao dizer por inúmeras vezes que “é dolosamente falso”(...) que “a arguida falsa e dolosamente”(…) pelo que tais alegações não resultam também suficientemente indiciadas, ou seja entre o mais não está minimamente indiciada nos factos e no acervo de prova trazida à colação nestes autos, supra transcritos que esteja subjacente uma conduta dolosa da arguida, em qualquer dos seus diferentes patamares ( artº 14º do CP), pelo que subjaz a conclusão deste Tribunal, a qual na óptica do assistente teria tido assento na carta enviada pela ora arguida ao CSM e que originou a oclusão de um processo disciplinar ao ora assistente (…)”. “ O dolo (elemento subjectivo) encontra-se omisso da conduta indiciariamente perpetrada pela arguida, e para além do mais, acresce, também o que, oportunamente supra se referiu a propósito do despacho de arquivamento e que despoletou o RAI apresentado pelo assistente e tudo o que demais ali consta, pelo que se chega à conclusão de não estar também suficientemente indiciado a prática pela arguida deste ilícito criminal, da forma gizada pelo assistente na queixa crime que apresentou (…)”. Adere-se sem esforço à fundamentação da decisão recorrida. Os autos, nos seus 17 grossos volumes (escrevemos agora no 18.º) mostram ex abundanti, todo um contexto repetitivo das mesmas imputações e dos mesmos juízos gerados por outros inquéritos ou processos que vão sendo instaurados, numa infindável espiral de singular animosidade entre recorrente e recorrida. Seja porque alguma da matéria participada ao CSM não assume relevância criminal, seja porque a própria qualidade profissional de magistrados de ambos os intervenientes, seja ainda o contexto em que a mesma se insere, de exacerbada inimizade mútua, não só não está suficientemente indiciado o elemento objectivo, como o subjectivo do crime de denúncia caluniosa, como o de difamação, nesse sentido se sufragando a decisão instrutória proferida. * 2.3.2. Quanto à acusação pública pelo crime de difamação a que respeitam as imputações e juízos formulados pela recorrida no depoimento de parte que prestou no dia 27.01.2015 no processo cível n.º 740/12.......... Secção Cível do Juiz ...... da Instância Central ……. importa aqui recordar o que a decisão instrutória considerou. Desde logo, o seguinte: “Refutou e negou a arguida, de forma peremptória, toda a factualidade que lhe vinha imputada na acusação deduzida pelo Ministério Público (…) e que tais expressões que proferiu tivessem como intenção difamar ou caluniar o assistente, pois estas decorreram no âmbito de declarações de parte como ré que prestou na acção ordinária nº 704/12.........., instaurada pelo assistente contra a ora arguida e sobre factos que reputava como verdadeiros face aos documentos que tinha em seu poder para além de deter um conhecimento directo sobre alguns outros. Em síntese, descreveu detalhadamente que tais declarações foram feitas no âmbito do seu direito de defesa, e ainda invocando a excepção peremptória de má reputação do autor e a “ exceptio veritatis”, sendo que conforme os documentos acima indicados, a arguida tinha toda a legitimidade para concluir e pensar, que tais asserções fossem verdadeiras, umas porque resultam directamente de documentos, como sejam as de teor empresarial/ cheques, outras de fotografias que atestam, as relações próximas do assistente com o HH, tendo estado presente no casamento do filho deste realizado em 2002, ainda outras resultam do que a arguida experienciou aquando da proposição do 1º processo disciplinar e das complicações subsequentes do telefonema que o colega Drº KK afirmou ter assistido (e não corresponder à verdade), e que a arguida insiste que foi ela quem reportou tal ao assistente em conversa particular e este, por seu turno, contrariando tal versão, conclui ter sido ele a descobrir tais factos face à sua experiência na judicatura, perante ter ouvido o Dr.º KK em declarações. Ora perante estas duas versões, as quais se resumem enfim a duas posições, a do assistente, e a da arguida, pelo face a tal “tête à tête “, era lícito à arguida proferir tais expressões “ da completa deslealdade”. Também anote-se as referências a ser vaidoso (…) querer brilhar perante o Conselho, têm a ver com tais depoimentos contraditórios, quanto ao facto de o assistente afirmar que foi ele quem descobriu tal discrepância no depoimento que a arguida arrolou no 1º processo disciplinar quando o inquiriu, enquanto esta afirma que foi ela quem reportou tal facto ao assistente. Que a expressão traficante, decorre também de documentos juntos aos autos, no Processo crime de FF, e do que tinha ouvido perante terceiros, e também da expressão “ditador”. E concluiu que “estamos perante um estádio de indícios, não resulta que a arguida tenha agido com dolo, querendo com todas as expressões que proferiu difamar ou caluniar o assistente, tendo ao invés e na qualidade de parte, ré, ao prestar o seu depoimento de parte em acção cível, defender-se dos factos alegados pelo autor na sua petição inicial, (e outros alegados por ela na sua contestação) com alguma convicção e veemência, e que constituíam a sua “causa petendi”, e que culminavam num pedido indemnizatório por danos morais sofridos no valor de meio milhão de euros, pretensão e excepção que até foi atendida pelo Tribunal cível na sentença (…)” . Mais salientou que “acrescenta-se que a arguida nas expressões que proferiu e que resultaram provadas, reporta-se ao assistente, de uma forma negativa e até por vezes algo acutilante, mas tal não se reconduz a uma vontade de agressão gratuita e de confronto com a pessoa em causa ou ao propósito de a rebaixar ou humilhar, ou seja, de atingir a sua honra e dignidade pessoal. Antes exprimindo uma reacção, reveladora de uma evidente indignação, a uma posição (…) do assistente (a interposição da acção cível dela se defendendo), mesmo recorrendo a imputações feitas por terceiros, mas que, de alguma forma sempre se justificavam, atento o seu posicionamento, e a prova que carreou para os autos, nunca o tendo feito com a intenção de difamar o autor”. Para concluir que “indiciariamente em todas as condutas que adoptou (crime de difamação agravado), estas, não foram motivadas por razões ilícitas e censuráveis, e a verdade é que, ainda assim, tais razões ou motivações para proferir em discurso directo tais expressões, que não podem ser vistas” de forma “isolada,” descontextualizadas, ou desgarradas da globalidade do seu depoimento de parte na acção cível 704/12.........., o qual, diga-se, foi lido (vol. I) e ouvido por este Tribunal em simultâneo, nasceram de uma conduta, licita é certo, prévia do visado (pela interposição da acção cível), e que a arguida, na qualidade de ré para se defender e deduzindo na contestação a figura técnica da excepção da má reputação do autor, se limitou a responder a perguntas feitas pelo seu advogado, com base em factos anteriormente alegados na sua contestação e pretendendo rebater os factos alegados na p. i. no âmbito da sua defesa naquele processo, mas sempre estribada em razões de ciência que aventou e sustentou através dos já atrás propalados meios de prova . O certo é que, mais declarou no seu depoimento de parte (que teve a duração de horas…), factos e ocorrências que anteriormente precederam a oclusão de tais expressões, que efectivamente resultaram indiciariamente provadas, mas não se tendo assim provado o tão necessário elemento subjectivo do crime que lhe era imputado, para que se pudesse ter como indiciariamente perfectibilizado todos os elementos do tipo, até porque, na maioria das situações, a arguida está convencida da veracidade desses mesmos factos (com base em documentos ou pela sua vivência directa nesta sede), noutros se limita a reportar conversas que teve com terceiros, (e que nalguns casos até almejou provar a veracidade dessa mesma imputação) sendo que aquelas expressões foram referidas por aqueles e não por ela em primeira linha, e que de alguma forma quando proferiu aquelas expressões, que diga-se não podem ser vistas isoladamente, mas sempre, tendo em mente, o encadeamento do seu depoimento (diga-se de longa duração..…), tendo aquelas a sua razão de ser, também deflui que, aquelas expressões alegadamente difamatórias de forma clara, serviram para, no seio da acção ordinária onde formam proferidas, para a realização de um interesse legitimo da arguida, e que era precisamente provar os factos alegados na sua contestação, refutando os factos alegados na petição inicial apresentada, ou melhor deduzida pelo ora aqui assistente contra a arguida, no âmbito da estratégia da sua defesa, pelo que destarte assim se concluiu pela falta de tal elemento do tipo/o dolo - o subjectivo”. O que vem de ser transcrito não merece crítica. De resto, as declarações da arguida, aí ré-reconvinte, ainda que no plano civilístico, não foi considerada ilícita. Obrigada que estava à prestação do depoimento com verdade, as declarações que proferiu visaram dar resposta ao tema da prova da, como tal seleccionada, excepção peremptória da “má reputação do A.” e foi a coberto do seu direito de defesa que prestou o depoimento nos termos em que o fez e que serviu de fundamento à improcedência da acção, com reflexo na sua absolvição do pedido na sentença de 27.05.2015, de onde se respiga o seguinte: “A questão da ilicitude oferece aqui alguma complexidade, não propriamente porque esteja em causa um exercício de liberdade de expressão, mas fundamentalmente por estar em causa o exercício do direito de defesa no quadro dum processo judicial. De facto, as expressões que no entender do A. são para si desprimorosas foram alegadas pela R. no contexto da invocação na contestação da «exceptio veritatis» e da excepção de má-reputação. Temos de reconhecer que a invocação da «exceptio veritatis» se nos afigurava à partida algo despropositada na estrita consideração que a R. negava de princípio ser a fonte das notícias desabonatórias do A. Nesse pressuposto, fazia pouco sentido que a R. se onerasse com a demonstração de que as notícias, que não eram da sua autoria, eram verdadeiras. De todo o modo, admitimos que essa defesa tivesse sido suscitada por mera cautela, em função das várias soluções admissíveis em direito. Já a excepção de má-reputação tinha mais interesse, porque através da demonstração dos factos em causa poderia ser reduzida ou mesmo excluída a indemnização, no quadro legal do Art. 570º, n.º 1, do C.C. Dito isto, em qualquer dos casos, estamos claramente no quadro do exercício do direito de defesa, através da invocação de excepções de direito material que, em abstracto, seriam relevantes para a apreciação do mérito da causa. Também temos de reconhecer que, em qualquer dos casos, o tipo de defesa escolhido pela R. é particularmente delicado, porque envolve a invocação de factos que são potencialmente ofensivos para a parte contrária, porque em causa estão direitos de personalidade particularmente sensíveis, como sejam a honra e o bom nome duma pessoa, agravado aqui pela circunstância de estarmos perante duas partes que são juízes. São assim difíceis de traçar os limites dentro dos quais o exercício do direito de defesa é legítimo e aqueles a partir dos quais estamos perante uma violação ilícita dos direitos doutrem. Sendo certo que, o exercício do direito de defesa, através da invocação de factos torpes, falsos e manifestamente infundados tem uma forma de tutela processual própria, que se reconduz ao instituto da litigância de má-fé (Art. 542º e ss do C.P.C.), nos termos do qual as partes podem pedir uma indemnização pelos prejuízos que dessa conduta poderiam resultar. No entanto, apesar da delicadeza da matéria, não poderá uma parte ser inibida do exercício de direitos próprios, incluindo o exercício da sua defesa, só porque há um risco de serem alegados factos que são particularmente sensíveis para a contraparte. Está assim patente a existência dum conflito de direitos, os quais merecem tutela constitucional, e que devem ser ponderados. Por um lado, o direito ao bom nome do A., cuja tutela é prevista no Art. 26º da C.R.P.. Por outro, o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses, que é reconhecido a todos (Art. 20º n.º 1 da C.R.P.). A realização destes direitos pode determinar a existência de conflitos entre eles, o que impõe, como regra geral prevista no Art. 335º do C.C., que os titulares desses direitos, devam ceder na medida do necessário para que todos produzam igual efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. Sendo que, se os direitos em conflito forem desiguais ou de espécie diferente, deve prevalecer o que deva considerar-se superior. Aliás, igual solução já parece resultar do Art. 18º n.º 2 da C.R.P.. Em tese geral o direito ao bom nome e honra duma pessoa é superior ao direito à defesa apresentada nos tribunais. Mas, o adequado equilíbrio dos direitos em confronto resultará da consideração que a R. deveria apresentar a sua defesa de forma objectiva e ponderada, sem necessidade de pôr em causa em bom nome e honra do A., exceto no que estritamente relevasse para os termos da defesa apresentada, o que no caso implicava a alegação e prova da «exceptio veritatis» e da exceção de má-reputação. O exercício do direito de defesa seria assim ilícito caso se traduzisse num abuso de direito (Art. 334º do C.C.), nomeadamente na vertente do respeito pelo princípio da materialidade subjacente, que implicaria, no caso, que os factos invocados servissem para obter a máxima penalização para o visado com proveitos mínimos a defesa exercida. É assim para nós claro que a defesa inutilmente danosa é ilícita. Mas se a defesa servir um propósito válido relevante no quadro do conhecimento do mérito da causa ela poderá ser tida por legítima e, logo assim, ilícita. No caso, a R. voltou a repetir os factos que já havia alegado no incidente de suspeição e nas participações disciplinares e criminais. Factos que em grande parte foram provados e relevados nos processos em que foram invocados. Sendo certo que o processo de suspeição não foi objecto de decisão, porque o A. entretanto pediu escusa (cfr. doc. de fls 1281 a 1330) e o processo-crime foi arquivado, por se considerar que a esses factos não correspondia a prática de qualquer crime previsto e punido na lei penal (cfr. doc. de fls. 1399 a 1510). Já quanto ao processo disciplinar movido contra o A., este acabou com a condenação do aí arguido (cfr. doc. de fls. 2760 a 3768). Constata-se que, numa parte substancial, a R. conseguiu provar os factos que alegou, sendo que aqueles que não logrou provar, percebe-se quais as razões que a levaram a criar a convicção de que eram verdadeiros. Aliás, neste particular, a posição da R. é muito semelhante à do A. relativamente à sua convicção de que foi aquela quem foi a fonte voluntária das notícias que apareceram nos jornais a que se reporta a presente acção. Resulta assim evidenciado dos autos que ambas as partes apresentaram as suas razões para fazerem crer que o que alegavam era verdadeiro, mas daí não resulta que o eram verdadeiramente. Ora, a alegação de factos relevantes para o conhecimento do mérito da causa no convencimento da sua verdade é lícita, mesmo que esses factos acabem por não ser provados após a produção dos meios de prova em julgamento e sujeitos ao princípio do contraditório. O não cumprimento do ónus de prova não torna ilícito o exercício do direito invocado, nem a defesa apresentada. É neste contexto que entendemos que não podemos imputar à R. a prática de nenhum acto ilícito, pois limitou-se a exercer um direito dentro de limites que julgamos razoáveis e de acordo com a sua convicção íntima sobre a veracidade do que alegou, o mesmo se passando com o A.”. Ora bem. Atento, desde logo, o princípio da unidade da ordem jurídica, um comportamento que é lícito no âmbito de determinado ramo do direito não pode ser punido por outro. Numa perspectiva mais dogmática, quanto à imputação de factos, face a todo o contexto em que a mesma ocorreu, de recíproca forte animosidade (repetimos), com ela visou a ora recorrida o interesse legítimo da sua defesa numa acção em que lhe era peticionada avultada quantia (meio milhão de euros), sendo que ela tinha fundamento sério para, em boa fé, reputar tais factos como verdadeiros, por isso não sendo punível a sua conduta face à específica causa de justificação do n.º 2 do art.º 180.º do CP. Embora os juízos de valor também formulados não possam acobertar-se na exceptio veritatis, os mesmos respeitaram a crítica objectiva a comportamentos ou actuações do ora recorrente, não à sua personalidade, pelo que ou carecem de relevância penal no contexto em que foram produzidos, ou apresentam conexão com aqueles factos integrando a causa de exclusão da ilicitude da alín. b) do n.º 2 do art.º 31.º do CP, em qualquer caso se não podendo concluir pela excessividade da conduta da recorrida relativamente aos fins visados alcançar. Em suma, não merece censura a decisão de não pronúncia quando concluiu não resultar suficientemente indiciada factualidade consubstanciadora da prática, pela arguida, dos crimes imputados, o que faz razoavelmente concluir pela grande probabilidade de, se sujeita a julgamento, não vir a ser condenada pela sua prática, razão por que há que a manter. * III. Decisão Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida de não pronúncia. Sem custas, por delas estar isento o recorrente. * Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Janeiro de 2021
Francisco Caetano (Relator)
António Clemente Lima
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