AA, nascida em 10/9/1983 em Lisboa e residente que foi em Odivelas, foi julgada em processo comum (Pº NUIPC 1795/07.6GISNT.L1), a 23 de Junho de 2009, no Juízo de Grande Instância Criminal Lisboa-Noroeste, e condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131° e 132°, n° 1 do Código Penal, na pena de 12 anos e 3 meses de prisão, de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo crime do artº 254º nº 1 al. a) do C P, na pena de 6 meses de prisão, e em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 12 anos e 6 meses de prisão.
Descontente com a decisão interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, impugnando a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, com as consequentes alteração da qualificação jurídica do crime praticado, de homicídio para infanticídio, a diminuição da pena e sua suspensão.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 11/3/2010, concedeu parcial provimento ao recurso, nos seguintes termos:
· Corrigiu um erro notório verificado na apreciação de facto, eliminando do elenco dos factos provados a referência constante da parte final do facto n° 3 (“matando-o após parto”), e aditando aos factos não provados o seguinte: “não provado que a arguida decidisse matar o nascituro após parto logo que soube que estava grávida”.
· Supriu oficiosamente a nulidade do acórdão, consistente na insuficiência da matéria de facto para a decisão, e aditou os seguintes factos aos provados:
- “a arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança”;
- “penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos”.
· Alterou a condenação da arguida nos seguintes moldes:
a) Ficou condenada como autora material de um crime de homicídio simples, p. e
p. pelos artigos 131° do Código Penal, na pena de 9 anos de prisão;
b) Em cúmulo jurídico com a pena de seis meses aplicada pelo crime de
profanação de cadáver, na pena única de 9 anos e três meses de prisão.
Irresignada, interpôs recurso para este Supremo Tribunal, questionando a qualificação feita e a pena aplicada, e pretendendo, de qualquer modo, a verificação do vício da al. b) do nº 2 do art. 410º do C P P.
A - DA DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA
Transcreve-se a matéria de facto dada por provada na primeira instância com as alterações introduzidas na Relação.
“1. A Arguida e BB, mantiveram um relacionamento amoroso iniciado no ano de 2001, tendo vivido um com o outro em condições análogas às dos cônjuges entre o ano de 2006 e o ano de 2007, na habitação sita emA............., n° .., .. Rinchoa.
2. Por cerca do mês de Maio de 2007 a Arguida suspeitou que estava grávida, o que confirmou nesse mês, através do resultado positivo de teste de gravidez.
3. Pensou em não contar a ninguém esse seu estado, passando a ocultá-lo, e bem assim decidiu livrar-se do nascituro [“matando-o após o parto” eliminado pelo Tribunal da Relação].
4. Em consonância com tal resolução, nunca se dirigiu a um médico ginecologista ou obstetra, durante toda a gravidez.
5. Nem nunca comprou quaisquer artigos próprios para o seu estado de gravidez, para si ou para o nascituro.
6. Tendo-se esforçado durante os meses de gravidez para que a mesma não fosse visível ou perceptível a terceiros, nomeadamente ao seu companheiro, à sua mãe e demais familiares.
7. O que efectivamente conseguiu, inventando que estava com um problema de saúde de cariz ginecológico (tumor) e que carecia de ser submetida a tratamentos de quimioterapia, para o debelar.
8. Também convenceu o seu companheiro e familiares de que esse problema de saúde tinha como consequência fazer inchar a zona abdominal e baixo-ventre, de modo a que não estranhassem o aumento do seu volume corporal.
9. Logrou, desse modo, dissimular a gravidez, durante todo o respectivo tempo.
10. No dia 15 de Novembro de 2007, a Arguida começou a sentir dores de barriga, pelo que, a fim de obter algum alívio, foi deitar-se, após tomar paracetamol.
11. Por cerca da meia-noite as dores intensificaram-se e a Arguida entrou em trabalho de parto.
12. Uma vez que estava deitada no quarto de dormir com o seu companheiro e não o querendo acordar e alertar, a mesma dirigiu-se para a casa de banho.
13. Fechou a respectiva porta e, constatando que estava a perder sangue e líquido amniótico, agachou-se dentro da zona do duche.
14. Cerca das 03H30 de 16 de Novembro de 2007 a Arguida pariu, tendo nascido uma criança de sexo feminino, com o peso de cerca de 3,650 kg e com o comprimento de 54 cm.
15. Imediatamente após o nascimento, a Arguida dirigiu-se à cozinha e, com o auxílio de uma tesoura, cortou o cordão umbilical que a unia à recém-nascida.
16. De seguida foi à dispensa buscar sacos de plástico, enfiou um saco de plástico na cabeça da recém-nascida, dando um nó no mesmo, na zona do pescoço desta, e colocou-a dentro de mais sacos de plástico.
17. Após, escondeu-a num armário existente no outro quarto de dormir da casa que habitava, com o intuito de, posteriormente, a fazer desaparecer.
18. Terminada a tarefa de esconder a recém-nascida, a Arguida deslocou-se para o quarto onde o seu companheiro permanecia a dormir.
19. Contudo, porquanto a mesma começou com fortes hemorragias, teve de acordar o companheiro, que a ajudou a dirigir-se à casa de banho.
20. Já na casa de banho, sentou-se na sanita e permaneceu aí o tempo suficiente para que a placenta fosse expelida, o que veio a ocorrer.
21. Posteriormente a Arguida começou com hemorragias mais fortes, tendo desmaiado.
22. O seu companheiro transportou-a de volta para a cama e comunicou-lhe que ia chamar o «112», para a transportarem para o Hospital.
23. A Arguida ainda lhe disse para não chamar, contudo voltou a desmaiar e o seu companheiro solicitou o auxílio do INEM, que aí ocorreu e procedeu ao transporte dela para as urgências do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora.
24. Aí chegada, os médicos que a assistiram detectaram que a Arguida acabara de ter um parto e perguntaram-lhe pela criança.
25. A Arguida respondeu que tinha deitado a criança num caixote de lixo existente na Rua da sua residência.
26. Após ter regressado do Hospital, no dia 16 de Novembro, o companheiro da Arguida encontrou o cadáver da recém-nascida, dentro dos sacos de plástico, no armário mencionado em 17, subsequentemente ao que, telefonou para a Polícia, tendo comparecido agentes no local, que, designadamente, providenciaram pela remoção do cadáver para o Instituto de Medicina Legal, onde foi autopsiado.
27. A criança que a Arguida deu à luz encontrava-se em termo de gestação, com ausência de malformações internas ou externas.
28. Nasceu com vida, tendo tido respiração extra-uterina.
29. A sua morte ficou a dever-se a asfixia por sufocação, por oclusão dos orifícios respiratórios, em consequência da acção da Arguida mencionada em 16.
30. Através de tal acção, designadamente ao enfiar um saco de plástico na cabeça da recém-nascida e atar o mesmo à volta do pescoço desta, a Arguida, sabendo que ela nascera com vida, igualmente sabia que desse modo lhe provocaria a morte, o que quis que sucedesse.
31. Nessa conduta agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a mesma era proibida e criminalmente punível.
32. Ao esconder o cadáver da recém-nascida, embrulhado em sacos de plástico, dentro de um armário, com vista a, posteriormente, desfazer-se dele, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado, a Arguida agiu igualmente de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que não estava autorizada a tal procedimento e que essa conduta era proibida e criminalmente punível.
(da determinação da sanção)
33. Desde há cerca de um ano a Arguida e BB voltaram a viver um com outro, ainda que de forma concomitante [terá querido dizer-se intermitente], em virtude de este passar alguns períodos na cidade na cidade do Porto.
34. A Arguida não tem filhos.
35. Completou o curso de linguística na Universidade Nova de Lisboa.
36. Dá explicações, de Português e de Inglês, em centro de explicações privado, bem como exerce a profissão de operadora de call center.
37. Em Dezembro de 2007 iniciou consultas de neuropsicologia e de psiquiatria, que mantém.
38. Não tem registo de antecedentes criminais.”
[aditados pelo Tribunal da Relação ]
39. A arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança.
40. Penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos.
De relevante para a discussão da causa não resultou provada a seguinte matéria de facto:
“ 1. Que a Arguida tivesse conhecimento que a sua gravidez tivesse sido consequência de relação sexual esporádica, com outra pessoa que não o seu companheiro BB.
2. Que o facto de a recém-nascida não ser filha de BB tivesse tido alguma influência na acção da Arguida que se teve por provada.
3. Que o cadáver da recém-nascida tivesse sido encontrado dentro do armário por elementos da Polícia Judiciária.”
4. Que a arguida decidisse matar o nascituro após o parto logo que soube que estava grávida [aditado pelo Tribunal da Relação]
B - RECURSO PARA ESTE SUPREMO TRIBUNAL
Foram as seguintes as conclusões da motivação do recurso interposto pela arguida:
“A. O aresto recorrido enferma de erro de Direito, no que se refere à interpretação e aplicação do artigo 136º do Código Penal, na medida em que tem dado como provados factos que integram o âmbito da tipicidade do referido normativo, não procedeu à sua aplicação ao caso, que qualificou diversamente como caracterizando o crime de homicídio, subsumível, pois, ao artigo 131º do mesmo diploma;
B. De acordo com o disposto no art. 50º do Código Penal, estão reunidos os pressupostos de tal medida alternativa à prisão, e nada obsta à sua aplicação, ainda que impondo o tempo máximo de suspensão legalmente previsto (i). Do ponto de vista da integração social da arguida, que "a arguida não tem filhos; completou o curso de Linguística na Universidade Nova de Lisboa, dá explicações de Português e Inglês sendo ainda operadora em call center" (ii). Do ponto de vista do seu comportamento pretérito, que, "não tem registo de antecedentes criminais"
C. A pena aplicável deve ser pois configurada em dosimetria mais benigna e atentas as circunstâncias do facto e a personalidade da arguida decretada, nos termos do artigo 50º do Código Penal, a suspensão da sua execução.
D. A haver dúvida quanto ao requisito típico da perturbação, essencial à caracterização do crime de infanticídio, a consequência deve ser, aliás, a absolvição.
E. Se assim não fosse sempre nos encontraríamos perante um vício do artigo 410º do CPP, sendo porém, matéria de facto, será de conhecimento oficioso pelo Supremo Tribunal Justiça, no caso de contradição insanável na fundamentação (nº 2, b) do citado preceito), porquanto a fundamentação jurídica de uma sentença estende-se aos "motivos de Direito" (nº 2 do artigo 374º do CPP].
Nestes termos deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que subsuma os factos ao artigo 136º do Código Penal e que, a não decretar a absolvição da arguida por via de dúvida quanto à verificação do elemento «perturbação» - essencial à tipicidade em causa - decida a aplicação de pena mais benigna, com suspensão da sua execução, tudo isto sem embargo de o tribunal oficiosamente poder considerar que estamos antes caso de reenvio obrigatório (artigo 426º do CPP) por via da verificação do vício tipificado no artigo 410º n.º 2, b) do CPP, como é de JUSTIÇA”
O Mº Pº respondeu dizendo:
“Ao invés do alegado pela recorrente, a materialidade fáctica julgada provada não é subsumível na previsão normativa típica do crime de infanticídio, p. e p. pelo art. ° 136° do Código Penal, senão antes no de homicídio simples, p. e p. pelo art. ° 131.º do mesmo acervo normativo, tendo presente a alteração da matéria de facto operada pelo acórdão ora posto em crise.
Como se lê no douto acórdão prolatado pela 1ª instância, "do exame pericial psicológico a que foi submetida (cfr. 249 a 273), concluindo por um funcionamento intelectual global de nível superior, com processamento cognitivo íntegro, sem indicadores de deterioração mental, não se encontra qualquer característica própria da arguida que obstasse a que assim não procedesse, se o não tivesse querido fazer".
É bem sabido que esta Relação julgou demonstrado, em sede de factos provados, que " a arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança "; e ainda que a mesma se penaliza pelo sucedido, "sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos ".
Todavia, se os factos que se aditam ao elenco dos provados hão-de ter evidente repercussão na medida concreta da pena, manifesto é também, como o fundamenta o aresto ora sob recurso, que deverá improceder a pretensão da ré de ver a sua condenação alterada para a prática do crime de infanticídio.
Esta impossibilidade deriva, como refere o acórdão da Iª instância, no que é secundado pelo ora recorrido, da observação de que "não obstante a Arguida ter matado a filha logo após o parto, decorrendo da factualidade provada que ela já tinha anteriormente ao parto decidido que assim procederia, tem-se por claramente afastada a subsunção da sua conduta ao tipo criminal de infanticídio " infanticídio, que imporia que a morte em questão tivesse meramente advindo de perturbação provocada pelo parto, que afectasse o seu discernimento (cfr. artigo 136º do Código Penal), o que não se concluiu que tivesse sucedido, nem tão pouco se coadunaria com a formação prévia da vontade de assim proceder após o parto ".
Isto mesmo tendo presente a decisão desta Relação em aditar ao elenco dos factos não provados que a ré decidisse matar o nascituro após o parto logo que soube que estava grávida.
Uma breve observação a propósito da conclusão D) da motivação do recurso: os julgadores não se colocaram numa situação de dúvida quanto ao alegado, de que pudesse beneficiar a Ré quedando para nós incompreensível a conclusão E), ante o texto da decisão recorrida.
Destarte, nada há a censurar à alteração da qualificação jurídico-criminal efectuada pelo acórdão sob recurso, ante a alteração que fez à matéria fáctica.
Enfim, a dosimetria, neste novo quadro, é a ajustada, atentas as necessidades de prevenção geral e especial, remetendo nós para a fundamentação desenvolvida no aresto recorrido, e que acompanhamos.
Termos em que o recurso deve ser julgado improcedente, devendo ser mantido o douto acórdão recorrido, assim fazendo V. Ex.ªs fúlgida, inteira e costumada JUSTIÇA !”
O Mº Pº neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer defendendo fundamentalmente o seguinte:
“(…) a) A primeira questão que merece ponderação prende-se com a alteração da matéria de facto, com implicações na correspondente subsunção penal.
Na verdade, a Relação suprimiu do n° 3 da matéria de facto dada como provada a expressão «matando-o após o parto», ficando a constar apenas que «Pensou em não contar a ninguém esse seu estado, passando a ocultá-lo, bem assim decidiu livrar-se do nascituro».
E debruçando-se sobre a subsunção penal dos factos afasta o infanticídio dizendo: "Como se refere no acórdão recorrido, «não obstante a Arguida ter matado a filha logo após o parto, decorrendo da factualidade provada que ela já tinha anteriormente ao parto decidido que assim procederia, tem-se por claramente afastada a subsunção da sua conduta ao tipo criminal de infanticídio, que imporia que a morte em questão tivesse meramente advindo de perturbação provocada pelo parto, que afectasse o seu discernimento..., o que não se concluiu que tivesse sucedido..., nem tão pouco se coadunaria com a formação prévia da vontade de assim proceder após o parto»".
Simultaneamente, a propósito da qualificação do homicídio com fundamento na circunstância da alínea j) do n.° 1 do artigo 132.° do Código Penal, diz: "Desde logo importa realçar que uma das circunstâncias em que o acórdão recorrido assentava a verificação de especial censurabilidade na conduta da arguida, designadamente a persistência de matar por mais de 24 h, deixou de poder ser atendida, perante a alteração dos factos acolhida neste tribunal de recurso, como acima seja deixou consignado".
Sendo compreensível a alteração daquele ponto, face ao que consta a fls. 483 e 484 do acórdão, já se mostra contraditório o que ali se diz (... mas antes terá sucedido ela ter pretendido abortar, porém, sem sucesso, altura a partir da qual efectivamente pôs de parte abortar e determinou-se a eliminar o nascituro) com o que ficou provado e não provado a este propósito (não provado que a arguida decidisse matar o nascituro após o parto logo que soube que estava grávida).
Se a expressão "decidiu livrar-se do nascituro" pode ter significado ambíguo, percebe-se através da fundamentação de direito e decisão sobre a impugnação da matéria de facto que a Relação identifica "livrar-se" como "eliminar".
Ora, sendo assim, se a arguida decidiu "eliminar" o nascituro em momento anterior ao parto (a partir de data indeterminada da gravidez, provavelmente depois da ida a Espanha), o afastamento do crime privilegiado mostra-se coerente e conforme ao direito, isto é, ocorre conformidade entre o fundamento e a decisão.
Porém, já não se compreende, porque contraditória, a decisão relativa ao afastamento da circunstância constante da alínea j) do n.° 2 do art. 132.° do Código Penal, com fundamento na modificação do n.° 3 da matéria de facto provada, traduzida na eliminação da intenção de matar o nascituro após o parto.
Ou seja: A decisão de afastamento do infanticídio assenta no facto de se ter dado como provado que a arguida formulou o propósito de "eliminar" o nascituro, em momento anterior ao parto (mas não logo que viu confirmada a gravidez); já a decisão de afastamento da qualificação pela persistência do propósito de matar por mais de 24 horas acolhe uma outra interpretação da matéria de facto transpondo a intenção de matar para o momento do parto.
Ocorrendo clara contradição entre estes segmentos decisórios, quer na fundamentação, quer entre a fundamentação e decisão, impõe-se o reenvio do processo, para que tal contradição seja expurgada.
b) Sem prejuízo, fixando-se na matéria de facto, como expressamente consta da fundamentação, a intenção de "eliminar"/matar formulada em momento anterior ao parto, mostra-se claramente desprovida de fundamento a pretensão de qualificação dos factos no tipo privilegiado de infanticídio.
Na verdade, para preenchimento deste tipo exige-se, no que respeita à acção típica de matar, para além da proximidade temporal do parto, que esta ocorra sob a influência do estado puerperal, o que de forma alguma se compagina com aquela matéria de facto - propósito de matar prévio ao parto - (o qual também se infere dos restantes factos dados como provados - dissimulação total da gravidez, ausência de acompanhamento médico, inexistência de qualquer compra própria do seu estado ou destinada ao futuro ser, ou a mínima diligência para entregar o nascituro para adopção).
E, nesta perspectiva, afigura-se-nos que o homicídio terá que considerar-se como qualificado.
c) A questão relativa à medida da pena mostra-se prejudicada pela atrás mencionada contradição. A manter-se a qualificação do homicídio, como entendemos dever, temos a pena fixada em l.ª instância por adequada à culpa da arguida (elevada) e necessidades de prevenção.”
Foi cumprido o art. 417º nº 2 do C P P, e, colhidos os vistos, levou-se o caso a julgamento em conferência, por não ter sido requerida a realização de audiência.
C - APRECIAÇÃO
A pretensão fundamental da recorrente é obter uma convolação do crime por que foi condenada, para o de infanticídio, do art. 136º do C P, com a consequente diminuição da pena e suspensão da sua execução. Circunscrita a matéria a decidir em recurso pelo teor das conclusões, analisá-la-emos pela seguinte ordem, que consideramos ser amais lógica:
1) Vício do art. 410º nº 2 al. b) do C P P (segundo a recorrente “contradição insanável na fundamentação) - Conclusão E.
2) Qualificação do crime (segundo a recorrente terá sido cometido o crime de infanticídio do art. 136º do C P) – Conclusão A.
3) Medida e suspensão da execução da pena – Conclusões B e C.
4) Eventual absolvição da arguida, decorrente da persistência de dúvida sobre a “perturbação” que constitui elemento do tipo do art. 136º do C P. – Conclusão D.
Vejamos então.
1) Vício do art. 410º nº 2 al. b) do C P P.
1. 1. A posição que este Supremo Tribunal tem vindo regularmente a defender em matéria de vícios do art. 410º nº 2 do C P P, vai no sentido de que tais vícios não podem ser invocados pelos recorrentes em sede de motivação.
Como se sabe, o vício há-de resultar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e tanto pode incidir sobre a precariedade, no sentido de insuficiência, daquilo que se considerou provado para se ter decidido como se decidiu [al. a)], como sobre contradições na fundamentação ou entre esta e o decidido [al. b)], como ainda sobre a discrepância entre a prova efectivamente produzida e o que se considerou provado [al. c)]. A recorrente, na conclusão pertinente, faz alusão ao vício da al. b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P.
O conhecimento de recurso em matéria de facto, interposto de decisão final do tribunal colectivo, é só da competência do Tribunal da Relação, mesmo tratando-se da mera invocação dos vícios do artº 410º do C.P.P.. É que, como temos defendido noutros arestos, quando o artº 434º do C.P.P. nos diz que o recurso para o S.T.J. visa exclusivamente matéria de direito, “sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artº 410º”, não pretende, sem mais, com esta afirmação, que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça possa visar sempre a invocação dos vícios previstos neste artigo. Pretende simplesmente admitir o conhecimento dos vícios mencionados pelo S.T.J., oficiosamente, mesmo não se tratando de matéria de direito.
O âmbito dos poderes de cognição do S.T.J. é-nos revelado pela al. c), hoje al. d) do nº 1 do artº 432º, que restringe o conhecimento do S.T.J. a matéria de direito. E refira-se que as alterações do C.P.P., operadas pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, não modificaram os preceitos em causa (al. c), depois d), do artº 432º e artº 434º), de modo a justificar-se uma inflexão da orientação seguida neste S.T.J..
Isto dito, acrescentaremos que, ao pronunciar-se de direito, nos recursos que para si se interponham, o S.T.J. tem que dispor de uma base factual escorreita, no sentido de se apresentar expurgada de eventuais insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos. Por isso conhece dos vícios aludidos por sua iniciativa. Aliás, tem mesmo de os conhecer, nos termos do acórdão para fixação de jurisprudência de 19/10/1995, do Pleno das Secções Criminais deste S.T.J. (Pº 46580-3ª, in D.R. Iª série – A, de 28/12/2005).
1. 2. Sabido que os invocados vícios, não podem ser eles o fundamento do recurso para este S.T.J., ainda assim, importa ver, oficiosamente, se os mesmos resultam da decisão recorrida.
Quanto ao vício da al. a) do nº 2 do artº 410º focado, “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, o mesmo reside em se não terem considerado provados factos, imprescindíveis para se poderem ter por preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime, ou para se considerarem verificados outros factores que moldaram a condenação.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, da al. b), reporta-se, como é sabido, a uma incompatibilidade para cuja superação a decisão recorrida não fornece os elementos suficientes.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova, da al. c), como tem sido repetido à saciedade na jurisprudência deste S.T.J., para além de ter que decorrer da decisão recorrida ela mesma, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida.
1. 3. Na sua motivação, a arguida reporta-se a um vício do nº 2 do art. 410º do C P P, que na conclusão “E” identifica como sendo o da al. b) desse nº 2. Ao que cremos, a contradição que a arguida vê no acórdão recorrido reporta-se a uma discrepância entre a decisão e os respectivos fundamentos. Na verdade, o vício é invocado subsidiariamente, depois da arguida defender que os factos dados por provados integram o crime do art. 136º do C P.
Parece-nos, então, que a arguida confunde um suposto erro na qualificação da sua conduta, nas suas palavras, “erro de Direito, no que se refere à interpretação e aplicação do artigo 136º do Código Penal”, com o vício da “contradição insanável (…) entre a fundamentação e a decisão”. Ora, depois de se ler a fundamentação do acórdão recorrido, a condenação que foi feita, a final, no dispositivo, decorre como sua decorrência lógica. Ou seja, a fundamentação procura dar as razões para que a condenação da recorrente, no tocante ao homicídio, deva ser pela prática do crime do artº 131º do C P.
Vejamos, de seguida, se aflora alguma contradição nos fundamentos sobre que assentou a condenação por esse crime de homicídio simples.
Primeiro, recordemos os factos dados por provados e por não provados, relacionados com o propósito da arguida recorrente matar a filha:
Assentou-se em que, por alturas de Maio de 2007, ao verificar que estava grávida, a recorrente “decidiu livrar-se do nascituro”. Porém, excluiu-se que essa expressão “livrar-se do nascituro”, pudesse ter o significado de um projecto formulado, nessa precisa altura, de o matar após o parto (ponto 3 dos factos provados e 4 dos não provados).
Ficam então de pé várias hipóteses, umas mais verosímeis que outras, e umas incompatíveis com outras, tendo em conta o sentido possível daquela expressão, e todo o comportamento assumido entre Maio de 2007 e Novembro de 2007 por AA. Ou seja, durante os últimos seis meses do período de gravidez.
Interessa, de facto, ter em conta, que a recorrente tudo fez para ocultar a sua gravidez, e nada fez para preparar o momento em que pudesse vir a dar à luz.
As hipóteses que é possível configurar serão pois:
· a recorrente, alguma vez, durante a gravidez, terá pretendido abortar,
· a recorrente, em momento ulterior àquele em que descobriu que estava grávida (Maio de 2007), alguma vez terá projectado matar a filha quando nascesse, nomeadamente por não ter conseguido abortar,
· a arguida terá decidido alguma vez, durante a gravidez, entregar a filha aos cuidados de outrem, inclusive dando-a para adopção,
· a arguida terá decidido alguma vez, durante a gravidez, pura e simplesmente abandonar a filha com vida quando esta nascesse,
· a recorrente só terá decidido matar a filha quando esta efectivamente nasceu.
1. 4. Vejamos então como é que, a propósito, discorreu o acórdão recorrido, assim se percebendo, à luz do que se vê como sendo a matéria de facto dada por provada, qual a convicção que o tribunal recorrido formou, tendo como pano de fundo aquelas várias hipóteses, razoavelmente configuráveis (os realces que se seguem são nossos ):
- Um primeiro ponto muito relevante, a considerar, prende-se com o afastamento do momento da formulação da intenção de matar, em Maio de 2007, quando a recorrente soube que estava grávida.
“(…) O acórdão sob apreciação permite, no geral, a reconstituirão do procedimento lógico que presidiu à solução encontrada e que determinou que fossem dados uns factos como provados e outros como não provados. Com excepção, todavia, para um ponto.
Há, com efeito, um ponto dos factos apurados em primeira instância que não encontra nem na prova produzida nem nas regras da lógica e experiência comum base sólida de sustentação, além de que a exposição da convicção do tribunal exposta ao longo da motivação aponta mesmo para a sua negação: trata-se da referência final constante do facto n.° 3, reportada à intenção de matar a criança após o parto firmada logo no momento em que a arguida soube que estava grávida. Na verdade, não faz muito sentido que ao tomar conhecimento da sua gravidez uma mulher decida aguardar pelo termo da mesma para matar a criança que está a gerar. Trata-se de uma decisão que foge a toda a lógica, pelo que se apresenta como inverosímil a uma compreensão normal das coisas. Que a arguida tenha desde o primeiro momento pensado em livrar-se do nascituro, está, com efeito, de acordo com o comportamento apurado à mesma durante a gravidez, designadamente ao ocultá-la de toda a gente, sem fazer qualquer consulta ou exame médico durante todo o tempo de gestação e sem, finalmente, adquirir qualquer peça de enxoval para o bebé, como bem se invocou na motivação do acórdão recorrido. Todavia, todo o referido quadro não permite afirmar que a ideia de se livrar do filho logo formada fosse ao ponto de decidir, a nove meses de distância, que iria matar o nascituro logo após o parto. Tudo indica, pelo contrário, que a arguida terá passado por várias fases ao longo da gravidez no que respeita à ideia do que pretendia fazer com a criança. O próprio tribunal a quo deixa dessa hesitação e alteração de planos clara convicção ao afirmar-se na motivação da decisão de facto, que «não obstante a Arguida ter dito que pôs de parte abortar, admite-se que tal não corresponda inteiramente à verdade, mas que antes terá sucedido ela ter pretendido abortar, porém, sem sucesso, altura a partir da qual efectivamente pôs de parte abortar e determinou-se em eliminar o nascituro (com efeito a Arguida fez pelo menos uma deslocação a Espanha, aparentemente sozinha, supostamente para se tratar do inexistente «tumor», pelo que se afigura provável que o verdadeiro objectivo da viagem tivesse sido a interrupção da gravidez, que já não terá sido possível concretizar devido ao adiantado do seu estado)».
Entende-se, assim, que, em correcção deste erro que se afigura como notório nos termos do art. 410.°/2c) do CPP, deve ser retirado dos factos provados a referência à formação da intenção de matar desde o primeiro momento (final do facto descrito em 3) o qual deverá, assim passar a integrar os factos não provados”.
O acórdão recorrido entendeu portanto que não houve uma intenção de matar formada logo no momento do conhecimento da gravidez. Mas também entende que ao longo da gravidez a arguida formulou vários projectos quanto ao que fazer da criança, e, ao reproduzir a passagem em que a primeira instância aponta a formulação de uma intenção de matar, após a recorrente verificar que não conseguia abortar, parece querer admitir que essa foi exactamente uma das hipóteses configuradas, numa das várias fases por que “a arguida terá passado”.
Acontece é que a matéria de facto que até nós chega, por um lado exclui a intenção de matar a partir do momento em que a arguida soube que estava grávida, e por outro, quanto a este específico ponto, só se afirma tal intenção de matar no ponto 30 dos factos provados, ou seja depois do parto.
Saber se essa intenção surgiu pela primeira vez, nesta altura, ou já vinha de trás reclama a adição de outros elementos de facto. Como sejam o desejo de “livrar-se do nascituro” e o persistente comportamento de ocultação da gravidez.
Mas, para além deste aspecto, que se reporta à exclusão da formulação por parte da arguida, da intenção de matar a criança após o nascimento, logo que soube que estava grávida, o tribunal recorrido entendeu dever acrescentar à matéria de facto o circunstancialismo de dor e perturbação psíquica que naturalmente acompanhou o parto.
“(…)Todavia, existe um aspecto da matéria de facto em que a decisão recorrida se apresenta como insuficiente para a boa decisão da causa. Com efeito, em vão procuraremos ao longo de toda a decisão, quer no elenco dos factos provados quer no dos factos não provados a mais leve referência aos sentimentos manifestados pela arguida bem como ou à dor física, e psíquica vivida durante e após a prática dos factos. E, todavia, ouvidas as gravações da prova logo se verifica ter sido matéria amplamente abordada no julgamento, em especial pela própria arguida e testemunha BB, seu companheiro.
Que se trata de matéria com evidente relevo para a decisão a proferir, não devem restar dúvidas, desde logo perante os normativos legais que prevêem os critérios para a fixação da medida da pena.
Em face do exposto, manifesto é que o Tribunal a quo omitiu a pronúncia sobre factos indispensáveis à boa apreciação da mesma, o que, configura o vício de insuficiência da matéria de facto provada, porquanto nesta expressão devem ser incluídos os factos provados e os factos não provados (neste sentido v. Anotações 82 e 87 ao art. 410°do CPP, inscritas por Paulo Pinto da Albuquerque no seu Comentário do CPP).
O acórdão recorrido enferma, assim, do vício a que alude a alínea a) do n.° 2 do artigo 410.° do Código de Processo Penal, vício que se afigura ser do conhecimento oficioso.
O tribunal de recurso tem o poder de suprir as nulidades da sentença.
Devendo todos os factos integrantes da matéria de facto ser apurados em l.ª instância, certo é que no caso o tribunal de recurso dispõe de todos os elementos necessários para suprir a omissão verificada na 1ª instância, relativamente a factos que, pese embora num outro segmento de argumentação (demonstração da ausência da vontade de matar ou do desconhecimento do nascimento com vida da criança), certo é que foram invocados na motivação de recurso à qual também o MP teve ocasião de responder, o que garante as condições do processo leal e justo (art. 431.º a) e
b) do CPP).
Impõe-se, em suma, um alargamento da matéria de facto apurada de forma a abranger as condições emocionais e físicas em que a arguida viveu os factos, bem como as suas consequências.
Assim, com base:
1) nas declarações prestadas pela própria arguida, num relato várias vezes interrompido pela comoção e a dor sofrida até hoje, numa lembrança que a assola todas as manhãs, logo ao acordar,
2) bem como no depoimento da testemunha BB, firme ao explicar que reatou a relação com a arguida, apesar dos factos, por se tratar de uma pessoa que «não tem mau instinto», se emociona quando vê uma criança e soube sempre estar presente para o ajudar nos seus problemas, apesar de a testemunha nem sempre ter conseguido ajudá-la nos dela,
3) mas sobretudo com base nas regras da lógica e da experiência comum, sabendo-se como pode ser dolorosa fisicamente a vivência de um parto, em especial de um bebé pesado e de dimensões grandes, vivido sem nenhuma ajuda, e que terá deixado a arguida em risco de vida, como testemunhado pela médica obstetra que a assistiu no hospital, julga-se demonstrado ainda, em sede de factos provados que:
- a arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança;
- penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos.
Para justificar que a recorrente praticara um crime de homicídio, e não de homicídio qualificado, no contexto do afastamento da qualificativa da al. j) do nº 2 do artº 132º do C P, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação:
“(…) Desde logo importa realçar que uma das circunstância em que o acórdão recorrido assentava a verificação de especial censurabilidade na conduta da arguida, designadamente a persistência do propósito de matar por mais de 24h, deixou de poder ser atendida, perante a alteração dos factos acolhida neste tribunal de recurso, como acima já se deixou consignado.”
Acrescente-se, por último, que tendo embora querido dar relevo às dores sentidas e ao estado anímico da recorrente durante o parto, este circunstancialismo não foi considerado determinante da conduta da arguida, de matar a filha recém-nascida.
“(…)Ora, neste caso, a arguida agiu debaixo de enorme sofrimento físico e psíquico, sofrendo dores agonizantes e dando à luz uma criança no termo do período de gestação, sem contar com o mais leve apoio médico ou mesmo humano. Não tendo sido determinante do homicídio, a perturbação da arguida não deixou, porém de estar presente ao longo de todo o tempo em que praticou os factos. Uma perturbação ditada por uma dor agonizante e uma situação de evidente e inevitável aflição para a qual não pode contar com ajuda de qualquer espécie. Se não foi por isso que se viu determinada à prática dos factos, não é menos certo, porém, que o estado de perturbação que necessariamente a envolveu, pesou, inevitavelmente, no grau de culpa concreta com que actuou. Não pode, por isso ser ignorado por um Direito Penal em que aquela constitui figura central.
Este estado psíquico e físico, não se tendo apresentado como determinante dos actos que então praticou, não deixaram de condicionar o seu raciocínio. Neste contexto, falar de especial censurabilidade seria ignorar a lucidez dos ensinamentos do STJ acima acabados de recordar: i.e., o de que o crime de homicídio qualificado pela especial censurabilidade não pode ser cometido numa situação de imputabilidade diminuída. Ainda que essa inimputabilidade seja meramente relativa e circunstancial, e não inibidora da sua capacidade de avaliação da ilicitude do facto e se determinar de acordo com a mesma, como no caso em presença.”
1. 5. O modo como se decidiu alterar a matéria de facto, que fora dada por provada na primeira instância, e as considerações tecidas em sede de fundamentação, são susceptíveis de causar, numa primeira abordagem, alguma estranheza.
Referimo-nos ao facto de se ler na fundamentação do acórdão recorrido que “uma das circunstância em que o acórdão recorrido assentava a verificação de especial censurabilidade na conduta da arguida, designadamente a persistência do propósito de matar por mais de 24h, deixou de poder ser atendida”, ao mesmo tempo que se quis realçar a perturbação causada pelo parto, sem se admitir que tal perturbação fora causal do homicídio, o que dificilmente se compatibiliza com uma formulação da intenção de matar, pela primeira vez, por ocasião do nascimento.
Na verdade, fez-se questão de, por três vezes, se alertar para que, apesar do estado físico e psíquico vivido pela recorrente durante o parto, “ não foi por isso que se viu determinada à prática dos factos”. O que inculca claramente que a decisão de matar não teria surgido temporalmente nesse específico contexto, pela primeira vez, o que também a nosso ver explica, aliás, o consequente afastamento pela Relação, do infanticídio.
Importa porém relacionar, também este ponto, com a afirmação de que “Tudo indica, pelo contrário, que a arguida terá passado por várias fases ao longo da gravidez no que respeita à ideia do que pretendia fazer com a criança”, e com o que se deu por provado nos pontos 2 e 3 (quando soube que estava grávida a arguida “decidiu livrar-se do nascituro”).
É possível, a nosso ver, articular todos estes aspectos, reconstituindo um pensamento coerente em termos de fundamentação da decisão final por que se optou. Será pois de afastar, que se esteja perante uma contradição que tivesse que reputar-se “insanável”, como o exige a al. b) do nº 2 do artº 410º do C P P.
Concretizemos pois.
· Em primeiro lugar, afastar a formulação da intenção de matar logo na altura em que a arguida se soube grávida, não implica que essa vontade não pudesse surgir durante a gravidez e muito menos que tivesse que ser remetida exclusivamente para a ocasião do parto.
· Depois, não existe verdadeira contradição entre o que acaba de se afirmar e o afastamento da qualificativa “ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas” (al. j) do nº 2 do art. 132º do C P). A leitura que fazemos da passagem que a tal diz respeito, e que atrás se transcreveu, é a de que, não se dando por provado o surgimento da intenção de matar em Maio de 2007, deixou de contar, enquanto factor de especial censurabilidade, a persistência nessa intenção até ao nascimento, que foi em Novembro desse ano. Mas não se pretendeu dizer, com aquela afirmação, que a intenção de matar tenha aparecido, necessariamente, menos de vinte e quatro horas antes do homicídio.
Apelando para regras de verosimilhança e experiência de vida, a decisão recorrida terá considerado que os projectos feitos pela arguida, para concretização da vontade de “se livrar” da filha, não excluíram o de a matar após o nascimento.
A intenção de assim actuar pode ter surgido durante o tempo da gravidez (mas forçosamente depois de Maio de 2007, quando a vítima tinha três meses de gestação e a mãe soube que estava grávida).
A seguir ao parto, o propósito de matar a filha foi retomado a partir de uma intenção que já antes aflorara, designadamente quando a hipótese de abortar teria falhado, como a primeira instância assinalou, e o acórdão recorrido quis reproduzir na fundamentação que foi a sua.
Isto mesmo se mostra congruente com o comportamento assumido pela recorrente durante toda a gravidez, pretendendo esconder a filha sempre, aliado ao facto de não ter preparado minimamente o nascimento da mesma.
Daí, aliás, que não tenha sentido configurar qualquer violação do princípio “in dubio pro reo” quanto ao momento da formulação do projecto de matar. Na verdade, só se o Tribunal da Relação tivesse caído na dúvida, sobre se tal projecto tinha surgido pela primeira vez, na altura do parto, é que teria tido que aceitar esta versão do acontecido.
Nada inculca que essa dúvida tenha existido, face à afirmação feita, mais de uma vez, de que a perturbação do parto não determinou a morte da criança.
Do que dito fica, resulta considerarmos não enfermar a decisão recorrida de nenhum dos vícios do art.410º nº 2 do C P P.
2) Qualificação do crime
Importa agora ver se tem algum fundamento a pretensão da recorrente de ver convolado o crime por que foi condenada para o crime do art. 136º do C P.
2. 1. A este propósito, diz-se no acórdão recorrido:
“II) Perante os factos apurados, improcedendo a impugnação de facto apresentada pela recorrente, e mesmo considerando os dois factos aditados, manifesto é que deverá improceder também a pretensão de ver a sua condenação alterada para a prática do crime de infanticídio.
Na verdade, a questão do enquadramento jurídico-penal dos factos colocada ao recurso assentava no pressuposto da procedência da impugnação da matéria de facto já acima conhecida e considerada improcedente.
Como se refere no acórdão recorrido, «não obstante a Arguida ter matado a filha logo após o parto, decorrendo da factualidade provada que ela já tinha anteriormente ao parto decidido que assim procederia, tem-se por claramente afastada a subsunção da sua conduta ao tipo criminal de infanticídio, que imporia que a morte em questão tivesse meramente advindo de perturbação provocada pelo parto, que afectasse o seu discernimento (cfr. artigo 136° do Código Penal), o que não se concluiu que tivesse sucedido (sem prejuízo da perturbação que o parto naturalmente provoca na parturiente), nem tão pouco se coadunaria com a formação prévia da vontade de assim proceder após o parto».
Assente que estamos perante um crime de homicídio, vejamos, então se deverá haver lugar à qualificação do crime pela especial censurabilidade.”
O acórdão recorrido revê-se pois nas considerações tecidas, a propósito, na decisão proferida em primeira instância, para afastamento do infanticídio.
Acrescentaremos que, no nosso ponto de vista, a imputação do crime de infanticídio teria, no caso, que se fundar numa relação de causalidade entre a influência perturbadora do parto e o causar da morte. Ora os factos dados por provados não apontam nesse sentido, porque em nenhum deles se afirma que foi em virtude das dores e perturbação psíquica sofridas, que a arguida decidiu matar a filha.
E claro que, se a mera coincidência temporal da perturbação da parturiente com o homicídio da recém-nascida, fosse suficiente, estar-se-ia a desvirtuar a razão do privilegio que o crime do art. 136º do C P P consagra. A diminuição da culpa é aqui originada no facto de “a acção ser praticada por a mãe se encontrar perturbada por efeito do parto” (cf. Maia Gonçalves in “Código Penal Português”, pag. 541). “Fundamento do privilegiamento do homicídio da criança é pois, no nosso direito positivo actual, o estado de perturbação em que se encontra a mãe durante ou logo após o parto” (cf. Figueiredo Dias in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, I, pág. 101).
Por um lado, repetimos, é afirmado em sede de fundamentação da decisão que não foi a perturbação sofrida que determinou a arguida a matar a filha. Por outro lado, quando se justifica a adição dos factos provados que têm que ver com a aludida perturbação, aponta-se explicitamente a repercussão respectiva na medida da pena a aplicar (ver-se-á adiante que tal perturbação responde, ainda, na tese da decisão recorrida, pelo afastamento da qualificação do crime).
2. 2. Sendo pois de afastar a ocorrência do crime atenuado, sob a forma de infanticídio do artº 136º do C P, ainda se poderá ver se o crime cometido não terá sido o de homicídio privilegiado do art. 133º do C P.
Pensamos que não.
Diz-nos Figueiredo Dias que a “compreensível emoção violenta”, ali prevista como factor atenuativo “é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível” (in loc. cit. pág. 50). A atenuação reclama a compreensibilidade da emoção, e esta compreensibilidade não pode ignorar a dimensão ética da dita emoção. Se o estado psicológico do agente como dado de facto, só por si, fosse suficiente, não teria sido necessário acrescentar o requisito da compreensibilidade. Esta, não releva, pois, apenas, como explicação do encadeamento causal do comportamento, porque o que está aqui em causa é a sua força atenuativa, ao nível da culpa, é dizer, da censura ética que o agente merece.
O outro elemento de atenuação que o preceito ora em apreço contém, e que eventualmente poderia aplicar-se ao caso, respeita ao desespero. E, aqui, a mesma condição se nos afigura de exigir. Dificilmente o desespero poderá diminuir a censura dirigida ao agente, quando ninguém mais, para além do homicida, contribuiu para essa situação de desespero, ou, sobretudo, quando ela radica em procedimentos do agente, antecedentes, que sejam, eles mesmos, censuráveis Basta pensar, por exemplo, num gatuno que depois de assaltar um banco se vê perseguido pela polícia, e desesperado mata o agente da autoridade que o persegue ..
Diz-nos Amadeu Ferreira, a propósito desta circunstância (in “Homicídio Privilegiado”, pág. 69) :
“Embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se dela porque coincide, em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança. (…)
II. A lei, mais uma vez, não exige apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua sensivelmente a sua culpa. A redacção do artigo parece ligar tal facto aos motivos que impeliram o agente a agir. Será assim? Como entender tais motivos? Alguns exemplos poderão ajudar a responder, tomando vários tipos de casos:
III. Casos de suicídios alargados: a mãe que tenta matar-se com os filhos para lhes poupar sofrimentos ulteriores., e que sobrevive (…).
IV. Casos de humilhação prolongada (…)”
Para este autor, a autonomia da circunstância “desespero”, como factor atenuativo face à “compreensível emoção violenta”, radica na pressão de certo tipo de motivos, pressão essa que assume um carácter duradouro. E diz a terminar este ponto:
“Em conclusão: há casos de desespero que cabem na 1ª parte do art. 133º e em que o fundamento da atenuação é exclusivamente de culpa; há outros casos em que apenas o valor dos motivos do agente, pela pressão que sobre este exercem no sentido do crime, pode fundamentar a atenuação sensível da culpa. É pois um fundamento de atenuação idêntico ao dos casos de homicídio por compaixão” (in loc. cit. pág. 71).
Para Teresa Quintela de Brito, “o desespero, capaz de dominar o agente e de o arrastar ao homicídio, pode ter quaisquer causas, nem todas de relevante valor moral ou social. Todavia o desespero só pode tornar menos exigível um comportamento conforme ao direito, em função (a) da não reprovabilidade ou, mesmo, da relevância humana, ética ou social dos motivos que orientem o agente e (b) da correspondência de tais motivos a um quadro de vida tão grave que ponha em causa a própria dignidade humana do autor.” (in “O homicídio privilegiado: algumas notas” - “Direito Penal - Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, pág. 340 e 341).
No caso em apreço, muito embora se tenha que admitir que a arguida viveu a angústia de uma gravidez não desejada, ao longo de um período de vários meses, e que tenha morto a filha em desespero de causa, para se livrar dela, o que é certo é que essa motivação não encerra uma carga atenuativa da culpa suficiente para o privilegiamento.
A arguida podia assumir a sua condição de grávida, e optou por ocultar o seu estado.
A morte da filha depois de nascer não era a única saída que se lhe deparava, a partir do momento em que não a queria ter a seu cargo.
2. 3. Caso tenhamos que excluir também a ocorrência de um crime de homicídio qualificado (que a 1ª instância acolheu e para a qual o Mº Pº no S T J aponta), então nenhum reparo teremos a fazer à qualificação efectuada na decisão recorrida.
Vejamos se é o caso.
A justificação para a recusa da qualificação, no acórdão recorrido, é a que se segue:
“Desde logo importa realçar que uma das circunstância em que o acórdão recorrido assentava a verificação de especial censurabilidade na conduta da arguida, designadamente a persistência do propósito de matar por mais de 24h, deixou de poder ser atendida, perante a alteração dos factos acolhida neste tribunal de recurso, como acima já se deixou consignado.
Subsiste, porém, a circunstancia do facto ter sido praticado contra vítima especialmente indefesa e o facto de ter causado a morte (com asfixia da recém-nascida, nomeadamente através da introdução de um saco de plástico na cabeça e atado na zona do seu pescoço), que - ninguém duvidará - constituem circunstâncias que merecem a qualificação de graves.
A estes elementos de facto relevados no acórdão recorrido como factores de revelação de especial censurabilidade, acresce a qualidade de ascendente da arguida em relação à vítima, integradora do exemplo-padrão previsto logo na alínea a) do n° 2 do art. 132.°
Porém, deverão, neste caso em concreto, aquelas circunstâncias de facto ser consideradas como reveladoras de especial censurabilidade?
Aqui chegados, caberá recorrer de novo ao Ac. STJ já acima citado para salientar que «a especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do facto, pelo que, só deste modo a culpa poderá ser tida por especialmente censurável; ou seja: este tipo de crime não pode ser cometido num estado de imputabilidade diminuída, pois, neste caso, a culpa não excede o grau da mera censurabilidade. Neste sentido, decidiu o STJ no ac. de 18-10-2006 - proc. 2679/06».
É um dado incontroverso que, em regra, um parto natural envolve um enorme sofrimento físico para a mãe e a sua influência perturbadora se faz sentir fortemente. Daí que o acórdão recorrido acolha a tese de que a agente actuou num estado de imputabilidade diminuída, incompatível com uma maior censura.
No caso em apreço, recordou-se ainda que a arguida não contou “com o mais leve apoio médico ou mesmo humano” durante a gravidez e sobretudo durante o parto.
Importa agora ver se esse estado de alegada imputabilidade diminuída neutraliza uma censura acrescida, que poderia assentar na relação de parentesco mãe-filha (al. a) do nº 2 e nº 1 do artº 132º do C P) e no facto de o crime ter sido praticado contra pessoa particularmente indefesa (al. c) do mesmo preceito), para além da premeditação.
2. 3. Essa eventual neutralização do efeito agravativo das circunstâncias qualificativas, por parte de uma quebra de censura relacionada com a perturbação do parto, reclama evidentemente que as ditas circunstâncias sejam atinentes à culpa. Assim o entendemos.
2. 3. 1. O artº 132º do C P utiliza a chamada técnica dos exemplos-padrão, e, a nosso ver, estão em causa no seu nº 2, de facto, circunstâncias atinentes à culpa do arguido e não à ilicitude, as quais, no dizer da lei, podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (assim Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pag. 27, e para uma resenha da controvérsia, na doutrina, sobre se as circunstâncias em causa respeitam ao tipo de culpa ou ao tipo de ilícito, vide Teresa Quintela de Brito in “Direito Penal - Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, pag. 191 e seg.).
É sabido que, por um lado, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas (se bem que valorativamente equivalentes), as quais revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos considerados provados poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do nº 2 do artº 132º, não é só por isso que o crime de homicídio, cometido, deverá ter-se logo por qualificado.
Interessa sim que ocorra uma “imagem global do facto agravada” (Figueiredo Dias ob.cit. pag. 26).
Como resulta da recensão feita no acórdão proferido no Pº 1224/08 desta 5ª Secção (Rel.Cons. Simas Santos), a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se pronunciado, uniformemente, neste sentido [cf. Acórdãos de 13.2.97 (Pº 986/96), de 21.5.97 (Pº 188/97), de 10.12.97 (Pº 1207/97), de 18.2.98 (Pº 1086/97), de 3.6.98 (Pº 301/98), de 8.7.98 (Pº 646/98), entre muitos outros].
Assim sendo, o modo do cometimento do crime, pela motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda pelas qualidades pessoais do agente ou da vítima, tornam-no mais grave. Mas mais grave porque a conduta daquele agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido, dos outros em relação aos quais se possa dizer, que encontra eco “a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir” (a expressão é de Curado Neves in “Indícios de culpa ou tipos de ilícitos?” – “Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, autores vários, pag. 255).
Por outras palavras, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido.
2. 3. 2. E aqui chegamos ao ponto da confluência de efeitos contrários agravativo e atenuativo.
A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, “com efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, in “Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena”, pag. 126), interessará sempre ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ou seja, importa verificar sempre a ausência, no caso, de circunstâncias que neutralizem, ou compensem em sentido inverso, o peso agravativo dos exemplo padrão (ou circunstâncias equivalentes).
No caso em apreço houve logo à partida uma decisão de a arguida se livrar da filha quando soube estar grávida. Coerentemente, procurou esconder sempre de todos, incluindo os mais íntimos, a sua gravidez, inventando que padecia de um tumor. Nunca foi vista por um médico e nada fez que pudesse indiciar estar à espera de um filho. Tudo isto significa que a arguida não só nunca quis aquela gravidez, como nunca aceitou a filha.
Porém, tudo quanto se retira da matéria de facto, quanto ao modo como a arguida projectou livrar-se da filha foi que, durante a gravidez, a intenção assumiu formulações diversas. Não ficou assente que a morte tivesse sido causada em obediência a um projecto calculado com antecedência e nunca abandonado. O que é compatível com a nossa afirmação antecedente de que, com toda a verosimilhança, o propósito de matar a filha foi retomado a partir de uma intenção que já antes aflorara.
Repare-se que a al. j) do nº 2 do art. 132º do C P exige que a intenção de matar tenha persistido por mais de 24 horas. Reclama-se pois uma firmeza, para já não dizer um irrevogabilidade da decisão (no caso, quanto a este meio específico de se livrar da filha), que nos presentes autos não goza de suficiente apoio.
Em relação à relação mãe – filha, que integraria a circunstância da al. a) do nº 2 do art. 132º do C P, também aqui interessa ter em conta que esse facto não funciona automaticamente. O preceito parte do princípio de que devem existir contramotivações éticas assentes no parentesco, que refreiam o impulso para o crime, e que se são vencidas revelam uma especial intensidade dolosa. Daí a maior censura.
Só que, situações haverá, em que se aceita razoavelmente que essas contramotivações éticas tenham pouca força, devendo por isso a censura acrescida ser excluída. A arguida não teve que vencer a resistência oposta por laços afectivos que se estabelecessem, entre si e a pessoa da filha, ambas ligadas por parentesco, porque logo à partida recusou esse parentesco. Ao por de lado assumir a maternidade, num momento inicial, logo que soube da gravidez, teria que ficar prejudicada uma especial censura do homicídio, que radicasse na relação mãe – filha, porque essa relação não chegou a existir em termos psico-afectivos. Nunca passou de um nível biológico.
Poderá censurar-se aquela atitude inicial, do ponto de vista ético (ético, apenas, porque compatível com saídas juridicamente aceites), só que esta última censura não tem a ver com a agravante a que nos vimos a referir.
Em relação à circunstância da al. c) do nº 2 do art. 132º em foco, “Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade”, evidentemente que também ela não pode funcionar automaticamente. Pretende-se com esta circunstância proteger o desamparo da vítima, a sua especial vulnerabilidade, que assim facilita a tarefa do agente.
Ora, no caso em apreço, a idade não foi um factor facilitador do homicídio, porque foi um factor intrínseco à principal motivação da arguida. Na medida em que a recorrente matou a filha logo que esta nasceu por nunca ter aceite a gravidez, não será de lhe dirigir uma maior censura, por ter tirado partido da fragilidade da recém-nascida.
Seja como for, ainda haverá que ter em conta o estado psicológico da recorrente quando asfixiou a recém-nascida. A explicação para o comportamento da arguida não ficou a dever-se à perturbação causada pelo parto (nessa hipótese dificilmente se poderia deixar de enquadrar a conduta no infanticídio), antes terá radicado numa atitude de rejeição da maternidade que vinha de trás. No entanto, o facto de a perturbação não ter sido a causa do homicídio, não significa que não tenha tido papel nenhum a valorar, em termos atenuativos.
Ora, todo este conjunto de circunstâncias reclama a nosso ver o afastamento de uma especial censurabilidade do comportamento da recorrente.
Entendemos pois que a recorrente cometeu o crime do art. 131º do C P.
3) Medida e suspensão da execução da pena
A recorrente foi condenada no Tribunal da Relação, pelo crime de homicídio simples, na pena de nove anos de prisão. A pena prevista no art. 131º do C P é de oito a dezasseis anos de prisão.
O Mº Pº não recorreu da decisão. Nos termos do art. 409º nº 1 do C P P, este Supremo Tribunal não pode modificar na sua espécie ou medida a sanção aplicada, em prejuízo da arguida. Daí que a pena referida só possa ser diminuída ou mantida.
3. 1. Sabido que a pena tem como razão de ser fins utilitários, importa referir que, se o artº 40º do C.P. optou por cumular a defesa dos bens jurídicos com a reintegração do agente na sociedade, não podemos deixar de ver, nesta última, uma finalidade especial preventiva, em versão positiva, e, na dita defesa de bens jurídicos, um fim último que se há-de socorrer do instrumento da prevenção geral. É que, “a defesa de bens jurídicos” é, ela mesma, em geral, o desiderato de todo o sistema repressivo penal, globalmente considerado, e não um fim que se possa considerar privativo das penas.
Mais, toda a política social de prevenção da criminalidade não visa senão a protecção de bens jurídicos, e daí que a expressão deva ser entendida, em sede de fins das penas, como uma referência à prevenção geral, designadamente positiva ou de integração.
Sendo junto da comunidade que se pretende fazer sentir o efeito da prevenção geral positiva, a auscultação das expectativas comunitárias, ou do sentimento jurídico colectivo, torna-se ponto de passagem obrigatório quando o julgador é chamado a seleccionar medidas de pena. Nesta tarefa, para além de falta de dados empíricos, em geral, não pode olvidar-se que a opinião pública reage muitas vezes de modo exclusivamente emocional, é flutuante, tende a procurar encontrar bodes expiatórios, ou então, deixa-se conduzir pela comunicação social de modo acrítico.
Também se não podem escamotear as dificuldades que se deparam ao juiz para decifrar o sentimento jurídico colectivo, numa sociedade plural orientada por valorações sociais tantas vezes contraditórias. Sobretudo face a comportamentos como o da recorrente, que decisivamente arrancou de uma atitude de rejeição da sua gravidez.
Isto dito, importa referir que o mecanismo que vem sendo adoptado na determinação da pena concreta a aplicar, passa pelo estabelecimento, a partir da moldura abstracta, de uma sub-moldura, marcada no seu limite superior pelo ponto óptimo das expectativas comunitárias quanto à punição do caso, e no seu limite inferior pelo mínimo ainda adequado à satisfação dessas expectativas. Nessa sub-moldura se deverá situar a medida correspondente às necessidades de prevenção especial reportadas ao agente do crime.
Quanto à culpa, para além dela constituir o fundamento axiológico- normativo da pena, cabe-lhe a função de estabelecer o limite inultrapassável da respectiva medida.
3. 2. O acórdão recorrido considerou que
“ (…) nos termos do disposto no art. 73, 71 a) e b) do CP, ponderando o dolo directo, elevado grau de ilicitude e as consequências irreparáveis causadas, sem ignorar a ausência de antecedentes criminais e a inserção social e profissional da arguida, bem como, finalmente, o sofrimento resultante para a arguida dos actos que ela mesma praticou, numa amargura causada pela morte da própria filha que provavelmente a acompanhará durante toda a vida numa penalização que se impõe a si mesma marcando as primeiras imagens que lhe vêm à memória todas as manhãs ao acordar, julga-se adequada uma pena situada ainda abaixo da média entre os limites máximo e mínimo, que se fixa nos nove anos de prisão, mas já algo distanciada do limite mínimo”.
Aduziremos que, em termos de prevenção especial, se não fazem sentir especiais preocupações, não sendo de prever que haja reiteração por parte da recorrente deste tipo de comportamento.
Já não exactamente assim quanto às necessidades de prevenção geral, designadamente positiva. Está em causa o bem jurídico mais valioso da nossa ordem jurídico - penal, os factos por certo que foram conhecidos e tiveram impacto social.
Tudo visto entendemos não dever alterar a pena de nove anos de prisão aplicada.
3. 3. Mas a arguida foi ainda condenada na pena de seis meses de prisão pela prática do crime do nº 1 al. a) do art. 254º do C P (ocultação de cadáver). Esta decisão é irrecorrível nos termos do artº 400º nº 1 al. f) do C P P.
Quanto ao cúmulo a efectuar, diremos o seguinte:
À luz do nº 1 do artº 77º do C.P., para escolha da medida da pena única, importará ter em conta “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. E é apenas isto que directamente a lei nos dá como critérios de individualização.
Vem-se entendendo que, com tal asserção, se deve ter em conta, no dizer de Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” (in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 291).
A opção legislativa por uma pena conjunta pretendeu por certo traduzir, também a este nível, a orientação base ditada pelo artº 40º do C.P., em matéria de fins das penas.
Sem que nenhum destes vectores se constitua em compartimento estanque, é certo que para o propósito geral-preventivo interessará antes do mais a imagem do ilícito global praticado, e para a prevenção especial contará decisivamente o facto de se estar perante uma pluralidade desgarrada de crimes, ou, pelo contrário, perante a expressão de um modo de vida.
Para usar expressões do Presidente desta 5ª Secção, Conselheiro Carmona da Mota, a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas. Ora, este efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos já aludidos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar no conjunto de todas elas.
A imagem global do ilícito é, no caso, marcada fortemente pelo homicídio qualificado praticado. Surgindo a ocultação do cadáver da filha, por parte da arguida, como um procedimento destinado a ocultar aquele seu crime.
As duas infracções estão ligadas intrinsecamente numa relação de causa e efeito, e, por sua vez, surgiram ambas praticamente ao mesmo tempo, no condicionalismo de uma gravidez não desejada. Nada aponta para que se esteja perante um qualquer risco de reiteração. E não se pode falar aqui evidentemente em qualquer tendência criminosa.
O que tudo apontará neste caso, e excepcionalmente, para um “efeito expansivo” da pena mais grave diminuto ou mesmo negligenciável, com a consequente aplicação de uma pena conjunta, muito pouco acima, ou mesmo igual, à pena parcelar mais grave, que é no caso de nove anos de prisão.
Tendo em conta que foi aplicada pelo crime do artº 254º nº al. a) do C P uma pena de seis meses de prisão, condenação essa, em pena parcelar, que transitou em julgado, procedendo ao cúmulo jurídico da mesma, com a de nove anos de prisão, optamos por aplicar, desta feita em cúmulo, a mesma pena de nove anos de prisão.
Atenta tal dosimetria, fica evidentemente posta de parte a hipótese de suspender a execução da pena de prisão aplicada.
4) Eventual absolvição da arguida, decorrente da persistência de dúvida sobre a “perturbação” que constitui elemento do tipo do art. 136º do C P.
Só porque a matéria foi levada à conclusão “D” é que a ela nos referiremos, sendo certo que o texto desta conclusão está, à primeira vista, em contradição com o que se afirma na motivação.
Na verdade, a fls, 6 da sua motivação, o que a recorrente defende é que “se o tribunal não conseguir obter certezas susceptíveis de considerar verificada, ou de afastar com segurança, aquela influência perturbadora, restar-lhe-á fazer uso do princípio “in dubio pro reo” (…)”. E louvando-se em Figueiredo Dias conclui que a condenação deverá ser pelo crime de infanticídio.
Quando na dita conclusão se diz “D. A haver dúvida quanto ao requisito típico da perturbação, essencial à caracterização do crime de infanticídio, a consequência deve ser, aliás, a absolvição”, por lapso, ao que cremos, terá faltado acrescentar que a absolvição era pelo crime de homicídio do art. 131º do C P por que tinha sido condenada. Sem que isso acarretasse a absolvição, pura e simples, da arguida, pela morte da filha. Já atrás revelamos a nossa posição, acerca de dúvidas que o acórdão recorrido não mostrou, quanto à factualidade que acarretaria a condenação pelo crime do art. 136º do C P.
D - DECISÃO
Por todo o exposto, este S T J, em conferência da 5ª Secção, decide conceder provimento parcial ao recurso, embora por razões que não as invocadas pela recorrente, e assim:
1) Refaz o cúmulo da pena de nove anos de prisão [aplicada pela prática do crime de homicídio simples do artigo 131° do C P], com a pena de 6 meses de prisão [aplicada pelo crime de ocultação de cadáver, p. e p. no artº 254º do C. P., epigrafado “Profanação de cadáver ou de lugar fúnebre”, mais concretamente no seu nº 1 al. a)], e aplica a pena única, conjunta, de nove anos de prisão.
2) Mantém em tudo o mais a decisão recorrida.
Taxa de Justiça: 5 U C
Lisboa, 09 de Setembro 2010
Souto de Moura (relator)
Soares Ramos