Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18962/21.2T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
EFEITOS
INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
SOCIEDADE DOMINANTE
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I- O artigo 82º, n.º 3, alínea c) do CIRE não estabelece uma ilegitimidade absoluta ou definitiva do credor para demandar a sociedade dominante, nos termos do artigo 501º, n.º 1 do CSC, enquanto responsável legal pelo pagamento dos créditos não satisfeitos pela sociedade dominada declarada insolvente. O que esta norma estabelece é uma inibição temporária (enquanto durar o processo de insolvência) para propor essas ações diretamente. Esta solução legal evita que sejam propostas duas ações (uma pelo administrador e outra diretamente pelos credores) com o mesmo objetivo, o que conduziria a uma indesejável duplicação de processos. Por outro lado, permite-se que, de forma centralizada, o administrador da insolvência afira da necessidade de propor ações contra terceiros, face à suficiência ou insuficiência da massa insolvente, tendo em vista, nomeadamente, a igualdade legal de tratamento dos credores.

II- O artigo 82º, n.º 3, alínea c) do CIRE, na medida em que não estabelece uma ilegitimidade absoluta ou definitiva do credor para demandar a sociedade dominante (nos termos do art.º 501.º do CSC), não se poderá considerar como uma norma inconstitucional por violação do artigo 20º da CRP, tanto mais que o credor sempre poderá reclamar os seus créditos no processo de insolvência, não havendo, portanto, qualquer negação do acesso ao direito.

Decisão Texto Integral:





Proc. 18962/21.2T8PRT.P1.S1


Recorrentes:


-AA


-BB


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. AA e BB propuseram a presente ação contra “ÍNDICE NOMINAL, Sociedade Unipessoal, Ldª”, pedindo a respetiva condenação a: 1) pagar à autora a quantia de 240.000,00€, acrescida de juros de mora vencidos (no montante de 10.389,04€), assim como juros vincendos até integral e efetivo pagamento; 2) pagar ao autor a quantia de 577.341,81€, acrescida de juros vencidos (no montante de 19.423,99€), assim como juros vincendos até integral e efetivo pagamento.


Alegaram, em síntese, que adquiriram créditos junto da Banca que titulavam obrigações de sociedades “R..., SA” e “R..., SA”, detidas pela ré, que agora reclamam.


2. A ré contestou, impugnando a versão dos factos apresentada pelos autores e pedindo a condenação dos mesmos como litigantes de má-fé. Sustentou a ilegitimidade substantiva dos autores, por entender que a legitimidade para exigir os créditos à ré pertence exclusivamente ao administrador da insolvência, uma vez que as referidas R..., SA e R..., SA (que têm como única sócia a ré) foram declaradas insolventes. Sustentou também a inexistência do crédito dos autores, por entender que estes não são pessoalmente credores de facto das sociedades insolventes. Concluiu pedindo a condenação dos autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização.


3. Os autores responderam à matéria da exceção e à invocada litigância de má-fé, que negaram, imputando-a, por sua vez, à demandada.


4. Veio a ser proferida sentença que julgou a ação procedente e condenou a ré:


«a) A pagar à Autora a quantia de 240.000,00€ (Duzentos e quarenta mil Euros), acrescida de juros de mora vencidos no montante de 10.389,04€ (Dez mil, trezentos e oitenta e nove Euros e quatro cêntimos), assim como juros vincendos até integral e efetivo pagamento.


b) A pagar ao Autor a quantia de 577.341,81€ (Quinhentos e setenta e sete mil, trezentos e quarenta e um Euros e oitenta e um cêntimos) acrescida de juros de mora no montante de 19.423,99€ (Dezanove mil, quatrocentos e vinte e três Euros e noventa e nove cêntimos), assim como juros vincendos até integral e efetivo pagamento.»


5. Contra tal decisão a ré interpôs recurso de apelação, vindo o TRP a dar-lhe razão, proferindo acórdão com o seguinte dispositivo:


«Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, em conformidade, revoga-se a sentença recorrida e, em sua substituição, declarando a ilegitimidade dos autores, absolve-se a ré da instância.»


6. Inconformados com essa decisão, os autores interpuseram o presente recurso de revista. Nas suas alegações formularam as seguintes conclusões:


«1) O presente recurso tem como objecto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos através de que, em suma, o Tribunal a quo considerou a Recorrente parte ilegítima, entendendo, com base no disposto no artigo 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, que a legitimidade para a mesma estava reservada exclusivamente ao administrador da insolvência no processo de insolvência da sociedade dominada da Recorrida.


2) Por outro lado, fundando-se a ratio do artigo 82.º, n.º 3, do CIRE no princípio da igualdade entre credores (par conditio creditorum), o qual está consagrado no artigo 604.º do CC, e tendo a presente acção sido intentada contra uma terceira sociedade, não se verificará nenhum prejuízo, consequência ou situação de desigualdade para a massa insolvente ou para a generalidade dos credores que justifique que acções como a presente sejam incluídas no âmbito do referido artigo 82.º, n.º 3, do CIRE.


3) No mais, o n.º 3 do artigo 82.º do CIRE, por ser uma norma excepcional que não admite interpretação extensiva, não pode ser alargado à situação dos presentes autos.


4) Em face do exposto, ao decidir como decidiu - i. e., que a Recorrente não é parte legítima na presente acção, que a legitimidade para a instauração da presente acção estava reservada ao administrador da insolvência e, indirectamente, que a Recorrida é, para esse efeito, responsável legal, o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, violou o disposto nos artigos 82.º, n.º 3, alínea c), e 6.º, n.º 2, do CIRE, 31.º do CPC, 604.º do CC e 501.º do CSC.


5) Preceitos esses que, conjugadamente, deveriam ter sido interpretados no sentido de que os credores do insolvente têm legitimidade activa para, ao abrigo do disposto no artigo 501.º do CSC, propor acções contra as sociedades directoras (que se encontrem em relação de domínio com a insolvente), independentemente de o processo de insolvência se encontrar, ou não, encerrado.


6) O artigo 501.º do CSC estabelece um regime que atribui um direito próprio ao credor sobre a sociedade dominante, e estabelece na esfera desta um dever próprio e distinto do da sociedade dominada-devedora, por via da solidariedade que manifestamente opera.


7) O artigo 501.º do CSC não estabelece qualquer direito de garantia, subsidiário a um qualquer tipo de incumprimento. Ao invés prevê um dever a prestar próprio de quem detém integralmente e sem reservas todo o poder de gestão da sociedade devedora – daí o único requisito para o accionamento directo da sociedade directora ser a mora da sociedade dominada.


8) Ora, sendo um direito próprio do credor, não há qualquer justificação possível para a obrigatoriedade da interposição de qualquer outra entidade – e principalmente em nome da sociedade devedora!


9) Acresce que, ainda que assim não se entendesse, a eventual interpretação do artigo 82.º, n.º 3, do CIRE no sentido de que, em casos como nos presentes autos, a legitimidade activa para propor e fazer seguir acções contra a sociedade directora (que se encontre em relação de domínio com as insolventes) está exclusivamente reservada ao administrador de insolvência sempre seria inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.


10) Inconstitucionalidade essa que, ad cautelam, ora se deixa invocada.


11) Destarte, para uma interpretação conforme a constituição, sempre deveria aquele artigo 82.º, n.º 3, al. c) do CIRE ser interpretado no sentido em que o mesmo não retira a legitimidade de um credor de sociedade dominante, intentar diretamente ação contra esta sociedade relativamente a crédito(s) devido(s)/exigível pelas/às suas sociedades dominadas – exatamente nos termos concedidos pelo artigo 501.º do CSC.


Termos em que se conclui pela procedência do presente recurso, e por via dele, pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que considere a ação procedente, assim fazendo V. Exas. JUSTIÇA


7. A ré-recorrida apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência da revista e a inexistência de inconstitucionalidade.


Cabe apreciar.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


Estando presentes os requisitos gerais de recorribilidade, previstos no artigo 629.º, n.º 1 do CPC, e tendo o acórdão recorrido revogado a sentença, absolvendo a ré da instância, a revista é admissível nos termos do artigo 671.º, n.º 1 do CPC.


O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (art.º 635.º, n.º 4 do CPC) consiste em saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito quando considerou que os autores não tinham legitimidade para propor a ação, tendo absolvido a ré da instância, e se essa solução é inconstitucional por violação do artigo 20º da CRP.


Ao tribunal cabe solucionar as questões que integram o objeto do recurso, não tendo que rebater dialogicamente as linhas argumentativas desfiadas pelos recorrentes.


2. A factualidade provada:


«1 - Os autores (“AA.”) são casados entre si, sob o regime de separação de bens.


2 - O autor (“A.”) é filho de CC.


3 - Tendo o autor por irmãos DD, EE e FF.


4 - O irmão do autor, FF, faleceu antes de CC, tendo-lhe sucedido a sua esposa sobreviva, GG, e os filhos do casal, HH e II.


5 - Entretanto, CC veio a falecer em agosto de 2012.


6 - Tendo deixado como únicos herdeiros a mulher JJ, os seus três filhos vivos e, por via de representação, os sucessores do seu, entretanto falecido, filho FF.


7 - A família era, e é, dona da integralidade do capital social da sociedade F..., SA (“F..., SA” – Doc. 3 junto a requerimento inicial de providência cautelar),


8 - Sendo esta, historicamente, a sociedade holding da “Família ...” para investimentos não imobiliários.


9 - Sendo o capital social dividido pelos quatro ramos dos filhos daquele CC, acima identificados.


10 - O autor veio a doar a sua participação social na F..., SA, em partes iguais às suas três filhas, KK, LL e MM em Dezembro de 2016 – Doc. 4 junto a requerimento inicial de providência cautelar.


11 - A sociedade F..., SA é atualmente detida, em partes iguais, pelos 4 ramos da Família ... – sendo cada ramo representado pelos filhos de CC e/ou respetivos herdeiros – na proporção aproximada de 25% cada um (...)


12 - À semelhança desta divisão de capital, desde o óbito de CC foi estabelecido e pressuposto que todos os negócios da família reverteriam a favor dos quatro ramos da família em partes iguais.


13 - Sempre e sem exceção.


14 - Desde sempre que este denominado Grupo ..., de que era patriarca CC, se organizou sob a forma de grupo de sociedades comerciais com participações em várias áreas de atividade comerciais e industriais,


15 - Tendo constituído a sociedade F..., SA, uma sociedade gestora de participações sociais, assumindo esta a posição de holding de um conjunto de sociedades por si, total ou parcialmente, detidas (“Grupo ...”).


16 - Todas as sociedades exploradas pelo Grupo eram detidas pela sociedade holding,


17 - À exceção das sociedades imobiliárias, que sempre foram mantidas separadas daquela SGPS por forma a não permitir confusão de atividades, ou implicar risco de perda de património na exploração de atividades comerciais,


18 - Sendo o capital distribuído pelos quatro ramos da família de forma igual.


19 - Todas as sociedades que não eram da sociedade holding (as sociedades imobiliárias) refletiam, como refletem ainda, inevitavelmente a mesma divisão paritária em quatro do respetivo capital social,


20 - Sendo que essas sociedades eram normalmente sociedades imobiliárias de detenção de património imobiliário, fosse pessoal, fosse para arrendamento às empresas de exploração do ramo automóvel, para instalação dos respetivos stands e oficinas.


21 - Toda a organização societária foi assim concebida e implementada pelo patriarca da família, CC, de forma a organizar o património e negócio da família sob a propriedade e gestão de seus filhos.


22 - Sempre foi prática que todas as garantias reais ou pessoais a oferecer para financiamento da atividade empresarial familiar o fossem igualmente sempre a dividir por quatro,


23 - Ou seja, cada ramo da família ofereceria património seu de valor equivalente para efeitos da garantia pretendida, sempre que necessário,


24 - O que, diga-se, sempre foi observado também inelutavelmente até 2016 - data do último financiamento contratado - apenas garantido pela autora e por DD.


25 - O Grupo ... sempre se dedicou à gestão de participações e parcerias em várias atividades industriais e comerciais,


26 - Vindo a dedicar-se, por si só, em particular à exploração do sector do comércio automóvel, bem como a toda a assistência pós-venda nesta área de atividade,


27 - Com grande primazia sobre todos os restantes investimentos que, com o tempo se foram tornando residuais,


28 - Sendo que as operações do ramo automóvel estavam concentradas na sociedade A..., SA (“A..., SA” – cf. Certidão Permanente n.º ..... .......69 - Doc. 5 junto a requerimento inicial de providência cautelar).


29 - A sociedade A..., SA é integralmente detida pela F..., SA,


30 - E tem por objeto a importação e exportação, comércio, reparação e assistência a todo o tipo de veículos automóveis, respetivas peças e acessórios, bem como a compra e venda de imóveis, nomeadamente a compra para revenda de imóveis adquiridos para esse fim – Doc. 5.


31 - A sociedade A..., SA exercia, até Junho de 2016, uma função de sociedade subholding integrada do Grupo F..., SA, responsável pela gestão das participações sociais detidas em sociedades que desenvolvem as suas atividades no âmbito do setor automóvel.


32 - Até essa data, a A..., SA era titular de participações sociais em diversas sociedades do sector automóvel, entre as quais se contavam a C..., Lda1 ., a C..., SA2 , a A..., SA 3 , a A..., SA4 , a J..., SA5 , a J..., SA.6 , a R..., SA e a R..., SA8 –Docs. 6-13 juntos a requerimento inicial de providência cautelar.


33 - A A..., SA, a J..., SA, a J..., SA, a R..., SA e a R..., SA eram, à data e até há bem pouco tempo, as sociedades comerciais titulares de concessões automóveis concedidas pelo Grupo ..., A.... ...... e M....... para efeitos de importação e distribuição, junto do consumidor final, em Portugal, de automóveis das conceituadas marcas J....., L... ....., A.... ...... e M........


34 - Para o bom funcionamento de todas as sociedades dedicadas ao ramo automóvel tinham sido contratadas várias linhas de financiamento, fosse como apoio à tesouraria ou de garantia de pagamento de stocks de viaturas automóveis,


35 - Acresce que todas as sociedades concessionárias tiveram de emitir garantias bancárias avultadas a favor das marcas - partes Principais nos contratos de concessão -, como condição da atribuição dos respetivos direitos de representação e de fornecimento de stocks de viaturas.


36 - Todos estes financiamentos, assim como a emissão de todas a necessárias garantias bancárias, eram normalmente garantidos por património pessoal familiar,


37 - Sendo que cada um dos ramos oferecia património pessoal seu para, na medida do possível, cobrir 1⁄4 do valor a garantir.


38 - Estas sociedades dedicadas ao ramo automóvel laboravam em instalações que tomavam de arrendamento, sempre que possível, a sociedades imobiliárias da família,


39 - Sendo que, no caso das sociedades com atuação na área do ..., essas instalações eram propriedade de sociedade imobiliária da família, denominada S..., SA


40 - E na área de ... eram propriedade da ré.


41 - A ré foi constituída em dezembro de 2008 com a única finalidade de adquirir prédio urbano composto de cave para garagem e rés do chão para escritório e armazém, sito na Zona de ..., da freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... (anterior ..., de ...), então com o valor patrimonial tributário de 2.315.770,00€, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... - adiante designado por (...) – Doc. 14 junto a requerimento inicial de providência cautelar,


42 - O que veio a suceder em 6 fevereiro de 2009, beneficiando do regime de benefícios fiscais aplicáveis às sociedades imobiliárias nesta matéria – Docs. 15 e 16 juntos a requerimento inicial de providência cautelar.


43 - Em 23 de Junho de 2016, os administradores da A..., SA, sendo igualmente gerentes da ré, e sendo DD o único sócio da Ré, organizaram a cessão da totalidade do capital social, entre outras, das sociedades R..., SA e R..., SA para a aqui Ré. – Docs. 17 e 18, juntos a requerimento inicial de providência cautelar,


44 - Apresentando a operação a toda a família (restantes acionistas do Grupo) como um facto consumado,


45 - Tendo estes tomado conhecimento da referida transação apenas no dia 20 de junho de 2016.


46 - Por força daquela operação, a ré passou a deter, como ainda hoje detém, 100% do capital social daquelas sociedades – Docs. 19 e 20, juntos a requerimento inicial de providência cautelar.


47 - Apesar da referida cessão de participações sociais, mantiveram-se e, pontualmente reforçaram-se, as garantias reais com o património pessoal da família, e em particular, dos autores em benefício das sociedades dedicadas ao negócio do ramo automóvel, Ou seja,


48 - Mantiveram-se em vigor todos os financiamentos e emissão de garantias já contratados, como se mantiveram todas as garantias reais dadas pelos autores, e restante família, como colaterais desses financiamentos.


49 - A sociedade F..., SA é uma sociedade imobiliária familiar, onde cada um dos ramos da família tinha parqueado o seu património imobiliário de gozo pessoal,


50 - E que era, e é, detida, em partes iguais, pelos 4 ramos da família.


51 - Tal sociedade era proprietária da fração autónoma identificada pela letra “Q”, correspondente a uma habitação T3 no 5.º andar esquerdo, garagem 12, com arrecadação na cave, com entrada pela rua do ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na rua do ..., união de freguesias de ..., concelho do ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... (“Imóvel 1”) – Doc. 21, juntos a requerimento inicial de providência cautelar.


52 - Constituindo esta fração, a casa de morada de família dos autores.


53 - Por outro lado, os autores foram sucessivamente proprietários do Prédio urbano denominado Lote 31, correspondente a uma habitação de rés-do-chão, primeiro andar e garagem, quatro terraços e logradouro com piscina sita na Urbanização denominada Quinta ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., da freguesia de ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ... (“Imóvel 2”) – Doc. 22 juntos a requerimento inicial de providência cautelar.


54 - Por escritura de 19 de fevereiro de 2015, a sociedade F......, constituiu a favor do BCP primeira hipoteca sobre o Imóvel 1 para garantia das responsabilidades assumidas ou a assumir perante o mesmo pela sociedade J..., SA – atualmente denominada R..., SA – , até ao limite de 800.000,00€ de capital (em euro ou em divisas), provenientes de garantias bancárias prestadas ou a prestar pelo BCP a seu pedido, créditos documentários, operações cambiais à vista ou a prazo, empréstimos de qualquer natureza, aberturas de crédito sob a forma de conta corrente, livranças, letras e seus descontos, avales em títulos de crédito, débitos devidos em virtude da utilização de quaisquer cartões de pagamento, e de financiamentos concedidos pela permissão da utilização de descobertos de contas de depósitos à ordem, de operações de locação financeira mobiliária ou imobiliária e de quaisquer operações de factoring até ao indicado limite, acrescido dos juros correspondentes e despesas, tudo no montante global garantido de 1.084.000,00€.


55 - Da mesma forma, constituiu, na mesma data, a favor do mesmo banco, segunda hipoteca sobre o mesmo Imóvel 1, mas para garantia das responsabilidades assumidas ou assumir perante o mesmo, pela sociedade J..., SA, - atualmente denominada R..., SA – até ao limite de 850.000,00€ de capital (em euro ou em divisas), provenientes de garantias bancárias prestadas ou a prestar pelo BCP a seu pedido, créditos documentários, operações cambiais à vista ou a prazo, empréstimos de qualquer natureza, aberturas de crédito sob a forma de conta corrente, livranças, letras e seus descontos, avales em títulos de crédito, débitos devidos em virtude da utilização de quaisquer cartões de pagamento, e de financiamentos concedidos pela permissão da utilização de descobertos de contas de depósitos à ordem, de operações de locação financeira mobiliária ou imobiliária e de quaisquer operações de factoring até ao indicado limite, acrescido dos juros correspondentes e despesas, tudo no montante global garantido de 1.151.754,00€.


56 - A 13 de agosto de 2010, o autor constituiu, entre outras, hipoteca, a favor do então Banco Espírito Santo, S.A., sobre o Imóvel 2, destinada a garantir o bom e integral pagamento de contrato de mútuo, no montante de 3.000.000,00€ com a A..., SA.


57 - A 23 de setembro de 2016, a autora constituiu hipoteca, então em quarto grau, a favor do Novo Banco, sobre o Imóvel 2, para garantia do contrato de financiamento n.º .............70, celebrado entre este e a sociedade T..., SA – atualmente R..., SA, no valor máximo de 1.400.070,00€.


58 - Por força do incumprimento dos referidos contratos de financiamento, quer o BCP quer o NB resolveram os respetivos contratos.


59 - Com o BCP a resolver os respetivos contratos em 1.07.2019 e 19.02.2020.


60 - E o NB a denunciar os contratos de financiamento a 24.05.2020.


61 - As sociedades R..., SA e R..., SA, foram declaradas insolventes - Docs. 28, 29, 30 e 31, juntos a requerimento inicial de providência cautelar.


62 - Em face de tal resolução, a autora, em 20 de setembro de 2019, adquiriu à F...... a referida fração, por dação em pagamento dos créditos de suprimentos de que era então titular,


63 - E, para obstar a que o Imóvel 1 fosse penhorado, diligenciou, em 21 de setembro de 2020, pelo pagamento ao BCP, a título de amortização de créditos por este detido, a quantia global de 240.000,00€ para efeitos de distrate da hipoteca que incidia sobre o imóvel – Docs. 23 e 24, juntos a requerimento inicial de providência cautelar.


64 - Tal quantia foi afeta à liquidação parcial das seguintes responsabilidades – Docs. 24, 25 e 26, juntos a requerimento inicial de providência cautelar:


a) 110.605,96€ (Cento e dez mil, seiscentos e cinco mil Euros e noventa e seis cêntimos) à liquidação parcial da Livrança n.º ................48, no montante de 861.841,80€, subscrita pela T..., SA – atualmente designada R..., SA – e vencida em 2020.02.19;


b) 3.912,92€ (Três mil, novecentos e doze Euros e noventa e dois cêntimos) à liquidação parcial da Livrança n.º ................94, no montante de 40.489,47€, subscrita pela R..., SA, vencida em 2019.07.01;


c) 10.847,49€ (Dez mil, oitocentos e quarenta sete mil Euros e quarenta e nove cêntimos) à liquidação parcial da Livrança n.º ................13, no montante de 84.523,64€, subscrita pela T..., SA – atualmente designada R..., SA – e vencida em 2020.02.19;


d) 104.908,09€ (Cento e quatro mil, novecentos e oito Euros e nove cêntimos) à liquidação parcial da Livrança n.º ................30, no montante de 817.443,84€, subscrita pela T..., SA – atualmente designada R..., SA – e vencida em 2020.02.19;


e) 9.725,54€ (Nove mil, setecentos e vinte e cinco Euros e cinquenta e quatro cêntimos) à liquidação parcial da Livrança n.º ................08, no montante de 75.781,45€, subscrita pela R..., SA, vencida em 2019.07.01.


65 - O autor, em 18 de dezembro de 2020, para obstar a que o Imóvel 2 fosse vendido em processo executivo - no âmbito do processo de execução no 1957/19.3... pendente no Juízo de Execução de ..., comprou, por Acordo de Cessão de Créditos (cf. Doc. 27, junto a requerimento inicial de providência cautelar) o crédito que o NB detinha sobre a R..., SA


66 - Despendendo, para tal, a quantia de 577.341,81€ (Quinhentos e setenta e sete mil, trezentos e quarenta e um Euros e oitenta e um cêntimos) – Cláusula SEGUNDA, alínea a) do Doc. 27.»


A segunda instância aditou o seguinte ao facto n.º 61:


«encontrando-se pendentes os respetivos autos de insolvência, aquando a instauração da presente ação»


*


3. O direito aplicável


3.1. O acórdão recorrido, para concluir que os autores não tinham legitimidade para propor a presente ação, sustentou-se na seguinte fundamentação:


«A segunda questão que o recurso suscita prende-se com a ilegitimidade dos autores, a qual, segundo a apelante, o tribunal não conheceu, omitindo a pronúncia sobre questão expressamente suscitada e, por isso, inquinando de nulidade a sentença.


Na sua contestação, a apelante veio suscitar a ilegitimidade dos demandantes, invocando que a legitimidade pertence exclusivamente ao administrador da insolvência, por força do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 82º do CIRE e, citando um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, apelidou tal ilegitimidade de “ordem substantiva”, por respeitar “ao mérito da causa”.


E continua, nos seguintes termos:


«No saneamento dos autos (…) o tribunal recorrido considerou os autores, processualmente, partes legítimas e acrescentou que a legitimidade substantiva equivale ao mérito, havendo que conhecer dela – ou melhor dele – a final, atenta a existência de factualidade controvertida. Posteriormente, em sede de sentença, o tribunal apreciou o mérito da causa, mas não “aquela” ilegitimidade, nem em momento algum, antes ou então, ponderou ou se pronunciou sobre a aplicabilidade aos autos do preceito do CIRE expressamente invocado pela ré.


Independentemente da qualificação que a ré lhe atribuiu – e que temos por incorreta, pois o que está em causa é uma ilegitimidade processual – não podemos ignorar que o tribunal nunca se pronunciou sobre o fundamento da alegada ilegitimidade e, fazendo-o equivaler ao mérito, não se pronunciou sobre o “mérito” da invocação. Verdadeiramente, o tribunal recorrido somente se pronunciou sobre a legitimidade processual à luz do artigo 30, n.º 3 do CPC, mas nunca sobre a substituição processual, que é um caso de legitimidade legal e que, verdadeiramente, foi a invocada pela ré.


Por ser assim, e entendendo que a hipótese de ilegitimidade invocada pela ré não foi objeto de concreta pronúncia, não se formou caso julgado. E, mantendo-se a omissão de pronúncia, desde logo e também na sentença, padece a mesma de nulidade (615, n.º 1, alínea d) do CPC), o que impõe a este Tribunal da Relação a pronúncia (665, n.º 1 do CPC).


E a questão é clara: Pode o credor da sociedade insolvente, na pendência da insolvência, demandar a sociedade dominante, com vista a reclamar desta um crédito de que a dominada (insolvente) lhe era devedora?


A resposta é negativa e a legitimidade para demandar a sociedade dominante pertence apenas ao administrador da insolvência. Sendo uma legitimidade legal e exclusiva, nenhum credor tem legitimidade para demandar a sociedade dominante.


J.M. Coutinho de Abreu, comentando o artigo 501º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) refere:


“Importa agora referir sumariamente algumas especialidades de regime no caso de a sociedade dominada ser declarada insolvente. A declaração de insolvência da sociedade determina o vencimento de todas as obrigações não subordinadas a condição suspensiva (CIRE, art. 91.º, 1). A sociedade dominante, porque responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das obrigações da dominada, é considerada “responsável legal” (art. 6.º, 2). Por conseguinte, durante o processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir as ações judiciais contra a sociedade dominante/responsável legal (art. 82.º, 3, c))”.


Neste preciso sentido, citamos o acórdão de 4.04.2022, deste Tribunal e Secção [Relator, Desembargador Miguel Baldaia de Morais, Processo n.º 5038/20.9T8MTS.P1, dgsi], onde se acrescenta e fundamenta:


“(...) os objetivos que justificam a atribuição dessa legitimidade exclusiva são essencialmente dois: (i) um objetivo de concentração processual, na medida em que se evita a proliferação de ações e assegura-se economia processual, correndo a ação por apenso ao processo de insolvência; (ii) igualdade entre os credores, visando-se garantir que todos eles são satisfeitos na mesma medida através do património dos responsáveis. O propósito do legislador foi, assim, claro no sentido de “transferir” para o administrador da insolvência os poderes para propor todas as ações contra terceiros que possam influenciar, de forma direta ou reflexa, o valor da massa insolvente, incluindo, portanto, a ação em que se pretenda acionar a responsabilidade de sociedade dominante ao abrigo do citado art. 501º, a qual assume inequivocamente a qualidade de “responsável legal” (...) Essa transferência de competências é coerente com o papel deste órgão no processo de insolvência, o qual assume o controlo da massa insolvente e está incumbido de proceder à sua administração e liquidação para repartir o respetivo produto final pelos credores de acordo com o mencionado princípio da igualdade dos credores. Daí que, sob esse enfoque, não faria sentido permitir que, no decurso do processo de insolvência da devedora, algum dos credores pudesse ser pago antes dos demais ou mesmo em condições mais vantajosas, sem justificação objetiva, mormente por recurso ao património de uma “responsável legal” pelas dívidas daquela”.


Justificada a razão de ser da atribuição exclusiva da legitimidade ao administrador da insolvência e sendo claro o disposto no artigo 82, n.º 3, alínea c) quanto a essa atribuição, só podemos concluir que os autores são partes ilegítimas, porque e enquanto pendente a insolvência da sociedade dominada.


A ilegitimidade constitui exceção dilatória que conduz à absolvição da instância (artigos 576, n.º 2 e 577, alínea e) do CPC), ficando prejudicada a questão enunciada em c), aquando da definição do objeto do recurso.


A recurso revela-se, assim procedente, havendo que revogar a decisão apelada.»


3.1.1. A questão de saber se os autores-recorrentes tinham legitimidade para propor a ação em tribunal contra a sociedade dominante, com base no artigo 501.º do CSC ou se tal legitimidade pertencia exclusivamente ao administrador da insolvência (das sociedades dominadas), nos termos do artigo 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, implica uma compreensão teleológica e uma harmonização normativamente funcional dos preceitos em causa.


Vejamos o conteúdo destas normas.


Dispõe o artigo 501º do Código das Sociedades Comerciais (com a epígrafe “Responsabilidade para com os credores da sociedade subordinada”)


1 - A sociedade directora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada, constituídas antes ou depois da celebração do contrato de subordinação, até ao termo deste.


2- A responsabilidade da sociedade directora não pode ser exigida antes de decorridos 30 dias sobre a constituição em mora da sociedade subordinada.


3 - Não pode mover-se execução contra a sociedade directora com base em título exequível contra a sociedade subordinada.»


Quanto aos efeitos da declaração de insolvência sobre os administradores e outras pessoas dispõe o artigo 82º do CIRE


«3 - Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:


a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;


b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;


c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente


A noção de “responsáveis legais”, com relevo para a aplicação da referida alínea c), é fornecida pelo artigo 6.º, n.º 2 do CIRE (com a epígrafe: “Noções de administradores e de responsáveis legais”).


«2 - Para efeitos deste Código, são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário


Como facilmente se compreende, não está em causa nos presentes autos (nem os recorrentes o suscitam) uma questão de saber se a autora tem legitimidade para propor a ação à luz dos critérios processuais gerais previstos no artigo 30.º do CPC. Efetivamente, invocando os autores que são credores das sociedades dominadas, e sendo a ré a sociedade dominante, a responsabilidade desta última, nos termos do artigo 501.º, n.º 1 do CSC, conferir-lhes-ia, a partir da configuração processual desenhada pelos autores, a legitimidade para estarem em juízo, a fim de que na sua esfera jurídica se produzissem os efeitos decorrentes da pertinente aplicação do direito substantivo.


Todavia, o caso concreto apresenta a particularidade de as sociedades dominadas terem sido declaradas insolventes e de, consequentemente, desse estatuto decorrer a aplicação de regras específicas que afastam, a vários níveis, tanto a aplicação de normas gerais de direito substantivo, como de direito processual (vd. TÍTULO IV - Efeitos da declaração de insolvência – artigo 81.º e seguintes do CIRE).


Ao dispor que durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir as ações contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente, o artigo 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE não está a estabelecer uma ilegitimidade absoluta ou definitiva do credor para demandar (nos termos do art.º 501º.º do CSC) esses responsáveis legais (tendo em vista o pagamento que o devedor insolvente não satisfez).


O que a norma estabelece é uma inibição temporária (enquanto durar o processo de insolvência) para propor essas ações diretamente, o que acaba por conduzir à ilegitimidade para esse efeito, porque o poder para demandar se encontra (temporariamente) transferido para uma entidade que, de forma centralizada, aferirá da necessidade e da oportunidade de propor ações contra terceiros, bem como do seu potencial resultado, tendo em vista, nomeadamente, a harmonização de tratamento dos credores (segundo os critérios legais).


Afirmam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda1 que esta norma “tem natureza exclusivamente processual, não colidindo, nem com os requisitos da responsabilidade, nem com os da titularidade do direito.”


E acrescentam estes autores2: “quando cesse o processo de insolvência, se, por qualquer razão, os responsáveis não honrarem efetivamente obrigações vinculadas a essa responsabilidade que se encontram por cumprir, então os titulares de direitos correspondentes podem exercê-los por qualquer meio, recuperando, nomeadamente, a faculdade de recorrer à via da ação judicial para o conseguir.”


Conferindo legitimidade exclusiva ao administrador da insolvência para propor aquelas ações contra os responsáveis legais pelo pagamento evita-se a hipótese de serem propostas duas ações em simultâneo (uma pelo administrador e outra diretamente pelos credores) com o mesmo objetivo, o que conduziria a uma indesejável duplicação de processos.


Por outro lado, ao centralizar no administrador da insolvência a legitimidade para demandar terceiros (que também se verifica na resolução em benefício da massa insolvente – art.º 120.º e segs do CIRE), tendo em vista, nomeadamente, o aumento da massa insolvente, o legislador terá pretendido que, por essa via, se garanta, na medida do possível, a igualdade de tratamento dos credores.


O exercício do direito que o artigo 501º, n.º 1 do CSC confere aos credores da sociedade dominada (que não cumpre as suas obrigações) de demandarem diretamente a sociedade dominante, deve compatibilizar-se com o disposto no artigo 82º, n.º 3, alínea c) do CIRE, enquanto durar o processo de insolvência da sociedade dominada, conduzindo a que os credores da sociedade insolvente exerçam os seus direitos no processo de insolvência, e aguardem o resultado das ações propostas contra terceiros pelo administrador da insolvência.


Sobre o alcance do artigo 501º do CSC em caso de insolvência da sociedade dominada, afirma Coutinho de Abreu3:


«Importa agora referir sumariamente algumas especialidades de regime no caso de a sociedade dominada ser declarada insolvente.


A declaração de insolvência da sociedade determina o vencimento de todas as obrigações não subordinadas a condição suspensiva (CIRE, art. 91.º, 1). A sociedade dominante, porque responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das obrigações da dominada, é considerada “responsável legal” (art. 6.º, 2). Por conseguinte, durante o processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir as ações judiciais contra a sociedade dominante/responsável legal (art. 82.º 3, c)).»


Poderá ainda questionar-se (a título meramente teórico, porque tal matéria não está diretamente em causa no presente recurso) qual o caminho a seguir pelo credor da sociedade dominada se o administrador da insolvência não demanda a sociedade dominante, nos termos do artigo 82º, n.º 3, alínea c) do CIRE, quando tal se mostra necessário para dar satisfação ao interesse do credor.


Luís Carvalho Fernandes e João Labareda propõem, em tal hipótese, que além de poder responsabilizar o administrador da insolvência (nos termos do art.º 59.º do CIRE) ou de requerer ao juiz a sua destituição (nos termos do art.º 56.º) 4, os credores possam agir em lugar do administrador faltoso, depois de o interpelarem e demonstrarem o respetivo incumprimento5.


No caso concreto (e face ao aditamento introduzido no ponto n.º 61 da factualidade provada), quando a presente ação foi proposta, encontrava-se em curso o processo de insolvência das sociedades dominadas (as devedoras diretas dos autores), pelo que se encontrava preenchido o requisito temporal que determina a competência exclusiva do administrador da insolvência, nos termos do artigo 82º, n.º 3, alínea c) do CIRE (e não estando em causa qualquer questão respeitante ao incumprimento desse dever pelo administrador), tem de se concluir que o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito quando declarou a ilegitimidade dos autores, absolvendo a ré da instância.


Improcede, assim, a pretensão dos recorrentes.


*


3.2. A alegada inconstitucionalidade do o artigo 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE.


Nos pontos 9 a 11 das conclusões das alegações, afirmam os recorrentes que a decisão recorrida, ao aplicar o artigo 82.º, n.º 3, do CIRE ao caso concreto, violaria o artigo 20º, n.º 1 da CRP.


Mas não lhes assiste razão.


Sendo o processo de insolvência “um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” (art.º 1.º do CIRE), tendo tal processo natureza urgente (art.º 9.º do CIRE), do estatuto legal deste específico processo resultam múltiplos desvios tanto às regras de natureza processual como às regras de natureza substantiva previstas noutros diplomas legais, tendo em vista a realização das finalidades próprias de tal processo, assumindo o administrador da insolvência um papel central no cumprimento da satisfação do interesse dos credores. Na prossecução de tal objetivo, cabe ao administrador da insolvência, entre outras funções, proceder, por exemplo, à “resolução em benefício da massa insolvente” (art.º 120.º e seguintes do CIRE), tal como lhe cabe propor as ações previstas no art.º 82º do CIRE.


No que ao caso concreto diretamente interessa, pode afirmar-se que o artigo 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, na medida em que não estabelece uma ilegitimidade absoluta ou definitiva dos credores para demandarem a sociedade dominante (nos termos do art.º 501º do CSC), mas apenas uma inibição temporária desse direito, enquanto durar o processo de insolvência (da sociedade dominada), não se poderá considerar como uma norma inconstitucional por violação do artigo 20.º da CRP, tanto mais que os credores sempre poderiam reclamar os seus créditos no processo de insolvência, nos termos do artigo 36º, n.º 1, alínea j), enquanto credores da insolvência (art.º 47.º do CIRE), não havendo, portanto, qualquer negação do acesso ao direito.


*


Em resumo, deve concluir-se que o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito face à factualidade provada.


DECISÃO: Pelo exposto, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas: pelos recorrentes


Lisboa, 29.05.2024


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Luís Correia Mendonça


Luís Espírito Santo








_________________________________________________

1. “A situação dos acionistas perante dívidas da sociedade anónima no Direito português”, in Direito das Sociedades em Revista, Ano 2 (setembro 2010), Vol. 4, página 66.↩︎

2. Op. cit., página 68.↩︎

3. Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. VII, página 269↩︎

4. Op. cit., página 69.↩︎

5. Op. cit., página 72.↩︎