Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2. ª SECÇÂO | ||
Relator: | ÁLVARO RODRIGUES | ||
Descritores: | ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL INEXISTÊNCIA JURÍDICA DE SENTENÇA JUÍZ APOSENTADO/JUBILADO REPETIÇÃO DO JULGAMENTO | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 05/06/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO AGRAVO, FICANDO PREJUDICADO O CONHECIMENTO DA REVISTA | ||
Doutrina: | - Alberto dos Reis , in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 114. - Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª edição, 2003, Almedina, pgs. 41, 315. - Castro Mendes, Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg 369. - Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, anotado, vol. 3º, pg. 99. - Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL : - ARTIGOS 201.º E SS., 653Q, N.º 2, 654.º, N.º 3, 666.º, 667.º, 668.º, 670.º, N.º 2, 712.º, N.ºS 5 E 6, 716.º, 754.º, .º2. ESTATUTO DA APOSENTAÇÃO: - ARTIGO 37º. LEI N.º 21/85, DE 30-7 (EMJ): - ARTIGOS 66.º, N.º 5, 67.º, N.ºS 1 E 2, ARTIGO 70º, Nº 1 E ALÍNEA C). | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 13-01-1989, IN ACS. DOUTRINAIS, 327º- 397; - DE 23-03-2006, Pº 05B4325; - DE 15-12-2008, SUMÁRIOS, 23º-13; - DE 02-07-2009, Pº 09B0511, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT; ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE ÉVORA, DE 29-4-1999 (AC. RE, DE 29.4.1999: BMJ, 486.°-377). | ||
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Sumário : | I- Fora dos casos em que, nos termos legais, é permitido ao Juiz rectificar a decisão (artºs 666º e 667º do CPC), o seu poder jurisdicional esgotou-se por imperativo legal, pelo que a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente, não vale como decisão jurisdicional. II- Tal falta de jurisdição, por se tratar de vício essencial da sentença ou despacho, determinante da invalidade do acto, não constitui uma nulidade stricto sensu mas inexistência jurídica da citada decisão, que é outra forma de invalidade para além da nulidade. III- Embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais ( artº 666º, nº 3 do CPC), a verdade é que outros vícios podem afectar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que o saudoso Prof. Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites ( C. Mendes, Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg 369). O Prof. Paulo Cunha dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o Juiz lavrar segunda sentença (Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360). IV- Tendo cessado funções por imperativo legal, não pode um Juiz continuar a praticar actos de natureza jurisdicional, nem mesmo episodicamente, salvo se a lei expressamente o permitir, sob pena de tais decisões serem consideradas a non judice, e portanto juridicamente inexistentes, por falta do competente poder jurisdicional. V- Assim, a lei permite expressamente, no nº 3 do artº 654º do CPC, que um Juiz aposentado/jubilado possa exercer funções jurisdicionais, para concluir o julgamento por ele iniciado, em homenagem ao «princípio da plenitude da assistência dos juízes» ou, mais propriamente, de identidade do órgão julgador. VI- No entanto, já não é assim se a decisão tiver sido anulada ou mandada repetir, não podendo, em tal caso, continuar a intervir depois de ter cessado funções jurisdicionais, até porque não se trata da continuação de julgamento, no sentido literal da expressão, mas antes da repetição total ou parcial do mesmo, em que todos os elementos úteis ou já constam do processo ou serão produzidos em audiência a realizar (in hoc sensu, Ac. Relação de Évora de 29.4.1999 in BMJ, 486º- 377). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: Nota Introdutória No presente processo em que é Autor/Recorrente, Dr. AA, actualmente Juiz Conselheiro em serviço no Tribunal Constitucional e Ré/Recorrida, RTP – Radiotelevisão Portuguesa, S.A., foram interpostos 2 ( dois) recursos para o Supremo Tribunal de Justiça: a) Fls. 734 (4º volume) – Recurso de Agravo do Acórdão que indeferiu a arguição de nulidade de Acórdão anterior que, por sua vez, havia rectificado o primitivo Acórdão da Relação, o qual, incidindo sobre o recurso de Apelação interposto, julgara o mesmo procedente e, consequentemente, anulara a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3ºa 6º e 8º a 27º, nos termos e para os efeitos do artº 712º, nº 5 do CPC. A este Recurso, interposto em 28 de Fevereiro de 2008, foi fixado o regime de subida diferida (com o recurso que viesse a ser interposto do Acórdão que pusesse termo ao processo) e atribuído efeito meramente devolutivo. b) Fls. 864 ( 5º volume) – Recurso de Revista do Acórdão proferido pela Relação e que confirmou a nova sentença recorrida, interposto em 5 de Novembro de 2009. Nos termos do artº 710º, nº 1 do CPC, aplicável in casu por força do disposto no artº 726º do mesmo compêndio adjectivo fundamental, os recursos de revista e os de agravo que com aquele tenham subido, são julgados pela ordem da sua interposição, pelo que cabe julgar em primeiro lugar o recurso de Agravo a que se refere a alínea a) supra, dada a anterioridade da sua interposição em relação ao de Revista. É o que, de imediato, se passa a fazer! A) Recurso de Agravo de fls. 734 (4º volume) RELATÓRIO Dr. AA, ao tempo, Juiz Desembargador, intentou esta acção, com processo ordinário, contra Radiotelevisão Portuguesa, S.A., pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 20.000.000$00. Para tanto alegou, em síntese, que a Ré divulgou o incidente, consigo ocorrido e iniciado numa fila de multibanco, perante milhões de espectadores apresentando-o como pessoa desrespeitadora de elementares regras cívicas, actuando com arrogância e abuso de poder e assim em termos deturpados, gravemente ofensivos para a sua honra, reputação e imagem, que lhe causaram sofrimento moral, pelo que considera ser-lhe devida indemnização no montante peticionado. A Ré contestou, concluindo pela improcedência da acção. Para o efeito, alega que divulgou o incidente com toda a isenção possível, face aos elementos de que dispunha, e que nunca divulgou a identidade do Autor. Após a legal tramitação, foi a causa julgada e veio a ser proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo a Ré do pedido formulado. Inconformado com tal sentença, o Autor interpôs recurso de Apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, levantando, no mesmo recurso, duas questões essenciais, como se colhe do teor do acórdão proferido, e que consistiram em: 1ª Falta de fundamentação das respostas dadas aos quesitos 3º a 6º e 8º a 27º. 2º Alteração ( ou não) das repostas dadas a tais quesitos e pertinente subsunção jurídica em função dos factos apurados. O Tribunal da Relação, apreciando devidamente as questões levantadas, constatou que o Exmº Juiz da 1ª Instância fundamentou as respostas negativas dadas aos quesitos referidos na 1ª questão e que encerravam a posição do Autor quanto ao modo como ocorreu a dinâmica de todo o evento, referindo singelamente que as testemunhas BB e CC «não nos infundiram segurança bastante». Acrescentou a Relação que «certo é que, tanto quanto se alcança, tais testemunhas foram as únicas indicadas a tais quesitos, pelo que o seu depoimento ganha foros acrescidos de importância. E, lidos os seus depoimentos, confirmaram, de algum modo e em certa medida, o seu teor. Destarte, impunha-se que o Sr. Juiz a quo - pelo menos - concretizasse e, tanto quanto possível, explicitasse, os motivos e razões pelas quais chegou a tal conclusão e formou tal convicção, falta de segurança das testemunhas, rectius - ao que pensamos - dos seus depoimentos. Pois que só assim se poderia sindicar a sua posição e concluir, ou não, pela lógica e razoabilidade da sua convicção e, consequentemente, pelo acerto e legalidade da sua decisão sobre a matéria de facto.. Não o tendo feito, conclui-se que efectivamente ele não cumpriu, mesmo nos limites mínimos exigíveis, o imposto pelo n° 2 do art° 653Q do CPC. Emergindo, consequentemente, a estatuição do artº 712° n°5 do CPC e havendo que retirar todas as consequências jurídicas da posição do recorrente neste particular, maxime a vertida na conclusão VI. Pois que, considerando esta posição e não obstante toda a prova atendida se encontrar no processo, tal não é bastante para que este tribunal se pronuncie, desde já, sobre o acerto, ou não, da decisão sobre a matéria de facto.» (sublinhado nosso). Em face de tais considerandos, a Relação acrescentou o que seguidamente transcrito se deixa, por isso que se nos afigura que tais passagens do referido Acórdão são essenciais para o entendimento do thema decidendi do presente recurso de Agravo: « Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos». Importando, assim, apurarem-se as razões da desvalorização dos depoimentos de tais testemunhas - advenientes, em princípio e designadamente, da força de tais princípios -para que, posteriormente, este tribunal de recurso, se possa pronunciar com mais rigor - e em função dos fundamentos que, necessariamente, com mais clareza, precisão e amplitude terão de ser aduzidos - sobre a adequação das respostas dadas». Após tais considerações, a Relação decidiu julgar procedente o recurso de Apelação interposto e, em consequência, anular a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3º a 6º e 8º a 27º, nos temos e para os efeitos do artº 712º, nº 5 do CPC. Nenhuma das partes reagiu contra tal decisão, pelo que os autos baixaram à 1ª Instância para cumprimento da mesma. Na 1ª Instância, o Exmº Juiz de Direito proferiu o despacho de fls. 708 dos autos, onde começa por afirmar que o Exmº Julgador que proferiu a resposta à matéria de facto já não se encontra ao serviço, tendo-se jubilado em Agosto de 2006 e, de seguida, teceu estas considerações: «Nos termos do artigo 712°, n.° 5 do Código de Processo Civil, se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o Tribunal de 1° instância o fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção de prova quando necessário, sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a causa da impossibilidade. In casu, por um lado, temos a impossibilidade subjectiva do M° Juiz que proferiu a decisão sobre a matéria de facto de cumprir com o Acórdão da Relação (uma vez que já se encontra jubilado) e, por outro lado, temos a desnecessidade de produzir novamente a prova, uma vez que a mesma foi gravada. Nestes termos e pelo exposto, atenta a impossibilidade de cumprir com a elaboração de nova fundamentação, conforme prescrito pelo Tribunal da Relação de Lisboa, voltem os presentes autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos e para os efeitos que tiver por convenientes, atento o disposto no n.° 5 do artigo 712° do CPC, parte final.». Regressados os autos à Relação, em conformidade com o despacho da 1ª Instância, atrás referido, este Tribunal superior, agora com intervenção de outros Juízes que não os que haviam proferido o Acórdão em causa, proferiu novo Acórdão em que considerou o que, dada a sua indiscutível relevância, não é dispensável de transcrição: «Se se exige do juiz aposentado que mantenha a sua jurisdição para o efeito especial de levar até ao fim os trabalhos da audiência em que começou a intervir , mais se justifica que o juiz aposentado, porque assistiu a todos os actos de instrução e discussão, deva suprir a falta de fundamentação. Podendo e devendo esta exigência ser feita ao juiz aposentado, então, visto o disposto no artigo 67º, n.os 1 e 2, do E.M.J., aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho, também pode e deve ser feita ao juiz jubilado. Com efeito os juízes jubilados são juízes aposentados que, além do mais, continuam vinculados aos deveres estatutários e ligados ao tribunal de que faziam parte. Assim a jubilação do Exmo. Juiz, Sr. Dr. DD, que presidiu à audiência final, realizada em tribunal singular, e proferiu a decisão sobre a matéria de facto, só por si não obsta a que deva prosseguir com a determinação do antecedente acórdão, ou seja a que deva prosseguir com a devida fundamentação da decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27°, nos termos e para os efeitos do artigo 712º, n.° 5, do Código de Processo Civil. Cumpre pois concluir, como se conclui, pela irrelevância da justificação, devendo consequentemente prosseguir-se na primeira instância com o decidido». Não obstante as considerações tecidas e supra-transcritas, a Relação decidiu oficiosamente, neste segundo Acórdão, ter havido uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos autores do primeiro Acórdão que proferiu a referida decisão anulatória e substituiu tal decisão por outra, de sentido completamente diferente, considerando tal substituição uma rectificação, nos termos seguintes: «- rectificar a decisão constante do antecedente acórdão para passar a ser a seguinte: termos em que se acorda julgar procedente o recurso e, consequentemente, determinar a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27°, nos termos e para os efeitos do artigo 712°, n.° 5, do Código de Processo Civil; - ordenar que se prossiga, em conformidade com o exposto, com o cumprimento dessa decisão». O Autor reclamou, arguindo a nulidade do citado Acórdão rectificador do anterior, por violação das disposições conjugadas dos artºs 666º, n. 1 e 716º do CPC, alegando, além do mais, que «A Relação podia e pode, se o quiser e entender, sobre a decisão anteriormente proferida, "ordenar que se prossiga, em conformidade com o exposto, com o cumprimento dessa decisão." Mas não podia, nem pode, revogar a parte do acórdão anterior na qual decidiu anular a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27, como veio fazer sob o pretexto de proceder a uma rectificação», acrescentando ainda que «O decidido consubstancia uma decisão não só completamente nova, como, ainda por cima, totalmente contrária à anteriormente proferida, com a qual o recorrente se conformou, pelo que o presente acórdão enferma da nulidade de expressa violação do previsto no n° 1 do artigo 666° do Código de Processo Civil, consubstanciando, assim, uma decisão na qual o tribunal se pronuncia sobre questões que já não podia apreciar, cometendo, de pleno, a nulidade prevista na alínea d) do n° 1 do artigo 668° do Código de Processo Civil». Esta arguição, todavia, foi julgada improcedente pelo Acórdão de 12 de Fevereiro de 2008. Veio então o Autor interpor o presente recurso de Agravo do citado Acórdão que indeferiu a reclamação, ao qual foi atribuído efeito meramente devolutivo e fixado, como se disse, regime de subida diferida. Entretanto, por força do efeito meramente devolutivo e da subida diferida do Agravo interposto, o processo regressou à 1ª Instância para o mesmo Juiz que procedeu à resposta aos quesitos, agora jubilado, fundamentar a decisão sobre a matéria de facto, desta feita nos moldes indicados no 2º Acórdão «rectificativo» da Relação e não como havia sido decidido no primitivo Acórdão que anulara as respostas aos quesitos citados por forma repetir-se a produção de prova sobre os mesmos. Assim foi feito, tendo o referido Magistrado, para o cumprimento da decisão deste 2º Acórdão da 2ª Instância, escrito uma nova peça de fundamentação daquelas respostas, remetendo-se o processo de novo à Relação, e tendo esta proferido acórdão em que julgou improcedente a Apelação, confirmando a sentença recorrida. Como atrás se disse, o Autor, inconformado, trouxe recuso de Revista de tal acórdão para este Supremo Tribunal, tendo, conjuntamente com tal recurso, subido também o do presente Agravo, oportunamente interposto e ao qual foi atribuído efeito meramente devolutivo e com regime de subida diferida. I – Da admissibilidade do presente Agravo Cabendo ao Tribunal o conhecimento oficioso da admissibilidade do recurso, como pressuposto lógico e cronológico do conhecimento do mesmo, e, além do mais, tendo o Recorrente expressamente levantado esta questão no início da sua peça alegatória, cumpre, hic et nunc, dela conhecer e decidir. No caso sub judicio, o Agravante começa por afirmar que quando interpôs o presente recurso, em 18 de Fevereiro de 2008, conhecia o conteúdo do estatuído no nº 6 do artº 712º do CPC, segundo o qual «das decisões previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal». Todavia, prossegue o Agravante, não se está a intentar recurso de uma decisão proferida sobre o regulado nos « números anteriores», mas, pelo contrário, «intenta-se recurso de uma decisão que altera outra, há muito transitada em julgado, modificando substancialmente o conteúdo da mesma, com a qual as partes se conformaram». Trata-se, na sua perspectiva, de uma decisão que, sobre o alegado uso do direito de rectificação de uma decisão anterior, revoga a primeira e procede à sua substituição, por uma decisão diferente, em manifesta violação do disposto no nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil, «o que é substancialmente diferente, não podendo ser confundido com uma decisão sobre a modificabilidade da decisão de facto». Advoga que entendimento contrário teria por corolário a inconstitucionalidade do nº 5 do artº 712º do CPC, por expressa violação do nº 2 do artº 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual «as decisões dos Tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades». Desta sorte, conclui o Agravante que a primeira decisão da Relação de Lisboa se impõe a este próprio Tribunal, não podendo ser alterada na sua substância. Tem inteira razão o Agravante, quanto à admissibilidade do presente recurso de agravo. Desde logo, porque, como muito bem diz, este recurso não vem interposto da decisão que foi proferida em sede do disposto no nº 5 do artº 712º do CPC, até porque a Relação já havia proferido decisão nos termos do referido preceito legal, não tendo a mesma sido objecto de qualquer impugnação das partes. O presente recurso foi interposto da decisão que julgou improcedente a arguição de nulidade do 2º Acórdão que oficiosamente alterou o julgado e determinado no 1º aresto da mesma Relação, com o fundamento de que se estava a proceder à rectificação daquele, na parte em que «anulara a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3º a 6º e 8º a 27º, nos termos e para os efeitos do artº 712º, nº 5, co Código de Processo Civil». Ora o recurso da decisão que julgou improcedente a arguição da nulidade de outra decisão, não está coberta pela inimpugnabilidade para o STJ a que se refere o nº 6 do artº 712º do CPC. Por outras palavras, o objecto do presente recurso de Agravo é uma decisão autónoma que indeferiu a reclamação, oportunamente apresentada pelo ora agravante, do 2º acórdão da Relação que alterou ( rectificou), erradamente na perspectiva do ora Recorrente, a decisão proferida pela mesma Relação no seu anterior acórdão (esta última, sim, proferida nos termos e para os efeitos do citado artº. 712º, nº 5). Porém, justamente por isso, merece especial consideração o disposto no nº 2 do artº 670º do CPC, onde se estabelece que do despacho que indeferir o requerimento de rectificação, esclarecimento ou reforma não cabe recurso. Há quem entenda que a irrecorribilidade do despacho que indeferir o pedido de rectificação é extensiva ao que indeferir a reclamação relativa a arguição das nulidades previstas nas alíneas b) a e) do nº 1 do artº 668º. Embora tenhamos dúvidas sobre a bondade e constitucionalidade de tal interpretação, a mesma não tem aplicação ao caso « sub judicio», pelo que são irrelevantes maiores considerações sobre este aspecto, em face do que passamos seguidamente a expor. Com efeito, a reclamação oportunamente apresentada pelo Autor, do 2º acórdão da Relação, centrava-se na violação do nº 1 do artº 666º do CPC, como se colhe destes dois breves excertos que se transcrevem: «Salvo melhor opinião, nos termos do n° 1 do artigo 666° do Código de Processo Civil, aplicável aos recursos por força do artigo 716° do mesmo código, "proferido o acórdão fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa", pelo que, sempre com o maior respeito, a Relação de Lisboa, sob o pretexto 'de ordenar, de novo, a descida dos autos à primeira instância, para que o Meritíssimo Senhor Juiz que proferiu a decisão em tribunal singular, com gravação de prova, em primeira instância, a fundamente, mau grado a imensa valia da fundamentação teórica e doutrinal, não pode, agora, alterar substancialmente a decisão então proferida, dado que o seu poder jurisdicional se esgotou, quando proferiu o acórdão em que decidiu: julgar procedente o recurso e, consequentemente, anular a decisão sobre a matéria de facto 110 que concerne às respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27_». E, mais adiante, lê-se na citada reclamação: «Sempre salvo o devido respeito, eliminar de uma decisão jurisdicional a frase: «e, consequentemente anular a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e_8°_a 27°» não consubstancia uma rectificação permitida pelos artigos 716° e 666° do Código de Processo Civil, porque vai muito para lá da faculdade de rectificação prevista nessa disposição legal. Actualmente, com o presente novo acórdão, as partes e entre elas a recorrente, que ora reclama, estão confrontadas com uma decisão totalmente nova, diversa, diferente, com consequências substancialmente alteradas em relação às da decisão anterior, com um alcance totalmente diferente do da decisão anterior, o que, sempre com o devido respeito, não pode suceder sobe o "manto diáfano" da rectificação do acórdão». Como se colhe do transcrito, a reclamação apresentada pelo Autor não incide sobre nulidades da decisão previstas no artº 668º do CPC ( nulidades da sentença/ acórdão) que, como se sabe, são taxativas ( cfr. Ac. deste Supremo Tribunal, de 23-03-2006, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Araújo de Barros, Pº 05B4325), mas antes sobre outro vício, que é o de falta de poder jurisdicional de quem proferiu a decisão reclamada, gerador de inexistência jurídica da decisão, que é o que emerge da violação do artº 666º, nº 1 do CPC, como adiante melhor se demonstrará. Nesta conformidade, o regime legal de arguição da inexistência jurídica não será o das nulidades da sentença, mas o regime geral dos artºs 201º e segs. do CPC, posto que a inexistência torna inválido o acto assim inquinado. Finalmente, também não tem aqui aplicação o disposto no nº 2 do artº 754º do CPC, pois tal restrição recursiva para o STJ é apenas referente aos acórdãos da Relação sobre a decisão da 1ª Instância ou, como expressamente se pronuncia o Ilustre Conselheiro Jubilado, Dr.Amâncio Ferreira, «a disciplina dos nº 2 e 3 do artº 754º tem como pressuposto o conhecimento do agravo interposto na 1ª Instância por parte da relação; se esta dele não conhecer, aplica-se o regime do nº 1 do mesmo artigo» ( Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª edição, 2003, Almedina, pg.315), o que, como não carece de demonstração, não é o presente caso. Consequentemente e em face do exposto, é de concluir pela admissibilidade o presente recurso de Agravo para este Supremo Tribunal. III – Conclusões das Alegações do Agravante A peça alegatória do Agravante é rematada pelas seguintes conclusões: A – Pelo presente recurso não se está a intentar recurso de uma decisão proferida sobre a matéria de facto apurada pelas instâncias, mas, muito pelo contrário, intenta-se recurso de uma decisão, que altera outra, há muito transitada em julgado, modificando substancialmente o conteúdo da primeira, com o qual as partes se conformaram. B – Intenta-se, assim, recurso de uma decisão que, sob o alegado uso do direito de rectificação de uma decisão, anterior, revoga a primeira e procede à sua substituição, por uma decisão diferente, em manifesta violação do disposto no n° 1 do artigo 666° do Código de Processo Civil. C – Se esse entendimento viesse a fazer vencimento, consagrando a interpretação normativa, segundo a qual no n° 5 do artigo 712° do Código de Processo Civil, se proíbe a admissão do presente recurso, então, essa norma, está fulminada por inconstitucionalidade, por expressa violação da disposição constitucional, consagrada no n° 2 do artigo 205° da Constituição. D – A primeira decisão da Veneranda Relação de Lisboa impõe-se a ela própria, não podendo ser alterada, na sua substancia; até porque também a Veneranda Relação de Lisboa, deve acatar o previsto no artigo 671° n° 1 do Código de Processo Civil. E – A nova decisão veio determinar uma consequência inequívoca, de substancial relevo, que é a seguinte: a frase "anular a decisão sobre a matéria de facto no_que concerne às respostas dadas aos Quesitos 3° a 6° e 8° a 27°, " desapareceu do acórdão, alegadamente, rectificado; sendo certo que é essa frase que pode determinar que, na primeira instância, se proceda à repetição da prova, se tal for necessário. F – A dita rectificação do acórdão, só surge, quando aparece a informação segundo a qual, o autor da sentença proferida em primeira instância se jubilou e por isso já não é possível pedir-lhe que fundamente melhor a sua decisão, nem que proceda à repetição da produção de prova, porque o mesmo, já não é um juiz de direito, nos termos do artigo 2° da Lei n° 21/85, dado que um magistrado jubilado é um magistrado aposentado, cuja única obrigação a que está sujeito é a prevista no n° 5 do artigo 66° da citada Lei n° 21/85. G – A dita "rectificação", terá por objecto evitar a repetição da produção de prova, contudo, o problema é que, a decisão proferida em segundo lugar, no segundo acórdão, não consubstancia, em caso algum, uma rectificação da decisão proferida no primeiro acórdão, consiste numa profunda alteração qualitativa da decisão que transitou em julgado. Desapareceu a anulação das respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27°, com tudo o que isso significa. H – Nos termos do n° 1 do artigo 666° do Código de Processo Civil, aplicável aos recursos por força do artigo 716° do mesmo código, a Veneranda Relação de Lisboa, sob o pretexto de ordenar, de novo, a descida dos autos à primeira instância, não pode alterar substancialmente a decisão então proferida, dado que o seu poder jurisdicional se esgotou, quando proferiu o primeiro acórdão. I – O poder de rectificar a decisão proferida está balizado pelo artigo 666° n° 2 do Código de Processo Civil, e, nesse artigo legal, mencionam-se erros materiais; esclarecer dúvidas e suprir nulidades, o que, manifestamente, não é o caso, da decisão recorrida, onde se ordenou uma alteração do conteúdo da decisão. J – O artigo 667°, veio esclarecer o que se pode entender por erros materiais, e tudo o que se prevê neste artigo fica muito aquém do conteúdo do acórdão recorrido. K – As duas decisões são substancialmente divergentes, sendo contraditórias. A segunda altera e revoga a primeira. Eliminar a frase: "e, consequentemente, anular a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27o" não consubstancia uma rectificação permitida pelos artigos 716° e 666° do Código de Processo Civil, porque vai muito para lá da faculdade de rectificação prevista nessa disposição legal. L – Nem cabe no simples conceito de adequar a vontade expressa à vontade real, porque a vontade real consubstanciada na frase anular a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos Quesitos 3° a 6° e 8a a 27°, para um destinatário normal, é totalmente diferente do conteúdo da simples frase: «fundamentação da decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27°» M– A primeira, a anulação das respostas, perante a jubilação do autor da sentença, determina, obrigatoriamente, a repetição do julgamento, com novas respostas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27°; a segunda, leva a que o Excelentíssimo Senhor Juiz, titular do tribunal em questão, ouça as cassetes das gravações e proceda à fundamentação das respostas já constantes da decisão de facto. N – Com o presente novo acórdão, as partes, e entre elas o recorrente, estão confrontadas com uma decisão totalmente nova, diversa, diferente, com consequências substancialmente alteradas em relação às da decisão transitada em julgado. O – A decisão reclamada viola, assim, as normas legais atrás citadas, o artigo 669° do Código de Processo Civil e enferma da nulidade de expressa violação do previsto no n° 1 do artigo 666° do Código de Processo Civil, consubstanciando uma decisão pela qual o tribunal se pronuncia sobre questões que já não podia apreciar, cometendo, de pleno, a nulidade prevista na alínea d) do n° 1 do artigo 668° do Código de Processo Civil. Nota: A subordinação a letras está errada no original das alegações do Recorrente, pois a partir da letra G, voltou-se a repetir a letra F, lapso que, tendo sido detectado, não pode ser repetido na transcrição operada neste acórdão. Por essa razão, enquanto na referida peça alegatória as conclusões terminam na letra M, aqui findam na letra O. O Recorrente conclui as suas alegações, no sentido de que a decisão proferida, no segundo acórdão da Relação, deve ser revogada e substituída por outra, que, aplicando o direito, ordene a baixa dos autos à primeira instância, para que o juiz titular da 11a) Vara - 3a) Secção, proceda às diligências necessárias a responder aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27°, da base instrutória, fundamentando devidamente as suas respostas, assim se respeitando o caso julgado, há muito formado e estabelecido. Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a Recorrida pela manutenção do decidido. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal. IV – Apreciação do mérito do recurso Após a consideração destes aspectos preliminares, mas essenciais, é tempo de se proceder à apreciação do objecto do presente Agravo, apreciação sempre delimitada, como se disse, pelas conclusões que condensam as alegações do Agravante. Como se disse, a Relação de Lisboa decidiu julgar procedente o recurso interposto da sentença proferida e, em consequência, anular a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3º a 6º e 8º a 27º, nos termos e para os efeitos do artº 712º, nº 5 do CPC, não tendo nenhuma das partes reagido contra tal decisão, pelo que os autos baixaram à 1ª Instância para cumprimento da mesma. Tendo anulado a decisão sobre matéria de facto relativamente às respostas dadas aos variados quesitos indicados, outro não podia ser o entendimento adequado que não fosse a necessidade de voltar a produzir prova sobre tal matéria. São, pelo menos, quatro os argumentos demonstrativos de que nenhum lapso, muito menos ostensivo, ocorrera na decisão anulatória das respostas, com vista à repetição da produção de prova: Primo: Desde logo, ao tomar em consideração os pressupostos de tal decisão, pois a Relação considerou, naquele primitivo aresto, que «não obstante toda a prova atendida se encontrar no processo, tal não é bastante para que este tribunal se pronuncie, desde já, sobre o acerto, ou não, da decisão sobre a matéria de facto». Foi assim, perfeitamente ciente e consciente da necessidade de voltar a repetir a produção de prova relativamente aos quesitos em causa, e porque o podia fazer, face à alternativa expressamente prevista na primeira parte « in fine» nº 5 do artº 712º do CPC, que o Tribunal da Relação anulou tais respostas. Secundo: Se fosse apenas para mandar fundamentar melhor as referidas respostas, com base na prova já gravada, a Relação ou fazia-o ela própria ouvindo os depoimentos gravados em material magnetofónico ou determinava que a 1ª Instância o fizesse, sem necessidade de anular tais respostas, até porque não faria sentido que, por um lado, a Relação pretendesse melhor fundamentação das respostas e, por outro, as anulasse antes mesmo de a 1ª Instância proceder a tal fundamentação. Tertio: No referido acórdão que apreciou o recurso de Apelação, o Tribunal da Relação, para fundamentar a determinação de anular as respostas dadas a tais quesitos e não apenas a sua fundamentação, acrescentou, lapidarmente : «Na verdade é muito importante observar e analisar a postura, as reacções, os olhares e os trejeitos das testemunhas para de tal se aquilatar» Não pretendia, portanto, simples fundamentação das respostas, com base num julgamento ocorrido mais de ano antes, pois dificilmente subsistiria recordação de « reacções, os olhares e os trejeitos das testemunhas». Quarto: Decisivo, como dissemos, é também o argumento de que, se a Relação pretendesse apenas melhor fundamentação das respostas dadas, jamais teria anulado tais respostas, pois tendo-o feito, nada haveria que fundamentar, o que irrefragavelmente conduz à conclusão de que pretendia a repetição de produção da prova sobre tal matéria de facto, para então, com a fundamentação nos moldes indicados, proceder à apreciação e decisão do recurso de Apelação. Apesar disso, quando os autos subiram de novo à Relação com a informação do Exmº Juiz da 1ª Instância (prestada em função do determinado no 1º acórdão que anulou as respostas) no sentido de que « in casu, por um lado, temos a impossibilidade subjectiva do Mº Juiz que proferiu a decisão sobre a matéria facto cumprir com o Acórdão da Relação ( uma vez que já se encontra jubilado) e, por outro, temos a desnecessidade de produzir novamente a prova, uma vez, que a mesma foi gravada» (cf. fls.708 deste processo), a Relação resolveu proceder à «rectificação» do que havia sido decidido pelo Acórdão anterior, substituindo a referida decisão do seguinte teor « ... se acorda em julgar procedente o recurso, e, consequentemente, anular a decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3º a 6º e 8º a 27º» , por nova decisão que se transcreve: «rectificar a decisão constante do antecedente acórdão para passar a ser a seguinte: termos em que se acorda julgar procedente o recurso e, consequentemente, determinar a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 3° a 6° e 8° a 27°, nos termos e para os efeitos do artigo 712°, n.° 5, do Código de Processo Civil; - ordenar que se prossiga, em conformidade com o exposto, com o cumprimento dessa decisão». Como fundamento para tal modificação do decidido, sob a designação de «rectificação», a Relação considerou que «quando a vontade declarada na sentença seja desconforme à vontade real, pode o Juiz proceder ao seu ajustamento, mediante rectificação, como por exemplo ocorre no caso seguinte: depois de julgar a acção procedente, com base nos fundamentos que expôs, o Juiz acaba por absolver o réu do pedido». Ora, salvo sempre o devido respeito, em primeiro lugar, nada autoriza a conclusão, extraída a partir do texto do acórdão referido, de que a vontade declarada dos julgadores que subscreveram esse acórdão, não coincidiu com a sua vontade real, como amplamente se deixou demonstrado, tanto mais que esse acórdão, agora indevidamente alterado, havia cuidado de fundamentar devidamente o decidido, e em segundo lugar só pode haver rectificação de uma decisão judicial, nos casos especificamente e expressamente previstos pelos artºs 666º e 667º do CPC. O artº 667º só permite a rectificação de erros materiais, «se sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto» ( sublinhado nosso). Por outro lado, como constitui jurisprudência pacífica, «o erro material da sentença ou lapso manifesto, a que se refere o falado artº 667º, respeita à expressão da vontade do julgador e deve, consequentemente, incidir ou reflectir-se numa conclusão não consentida pelas premissas» (Ac. STJ de 13.1.1989 in Acs. Doutrinais, 327º- 397). Fora das situações previstas nos referidos preceitos legais, não tem o Tribunal o poder jurisdicional para alterar a decisão proferida, pois o mesmo se esgotou com a prolação de tal decisão, como comanda o nº 1 do artº 666º do CPC. Com efeito, como escreve lapidarmente Amâncio Ferreira, «editada a sentença ( ou o despacho ou o acórdão de recurso) fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa ( artº 666º, nº 1). Não pode consequentemente o Juiz, por sua iniciativa, alterar a sentença depois de proferida, quer na parte da decisão, quer na parte dos fundamentos que a suportam» ( Amâncio Ferreira, op. cit., pg. 41). E o mesmo Ilustre Autor acrescenta: «mesmo que após a sua prolação, no imediato ou algum tempo depois, adquira a convicção de que errou ou se torne para ele evidente que a decisão desrespeitou o quadro legal vigente, não a pode emendar. A decisão torna-se intangível para o seu autor» (ibidem). Nem colhe aqui o argumento de que a rectificação oficiosa das decisões judiciais pode ter lugar a todo o tempo se nenhuma das partes recorrer, como estatui o nº 2 in fine do artº 667º do CPC, pois tal rectificação só pode ser efectuada independentemente do decurso de tempo, nos exactos termos a que se refere aquele preceito legal, isto é, quando ocorra erro material «externo», isto é, revelado no próprio contexto da decisão, o denominado «erro na expressão», que é diferente do « erro no pensamento» ou erro de julgamento. Esse erro tem de ser manifesto ( lapso manifesto, na expressão legal), isto é, notório, como, por exemplo, o que deriva da nítida contradição entre as premissas e a conclusão tirada. Nem se diga, em abono de posição adversa, que a última parte do nº 5 do artº 712º do CPC, ao permitir que, sendo impossível a fundamentação com os mesmos juízes ou a repetição da produção de prova, o Juiz da causa se limitará a justificar a impossibilidade, se está a abrir a porta para a alteração da decisão proferida. Não é assim! A informação da impossibilidade de fundamentação ou de repetição da produção da prova, se for julgada procedente, tem como consequência que a Relação «deva valorar a relevância de tal impossibilidade nomeadamente para determinar a eventual anulação da decisão apelada» ( Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, anotado, vol. 3º, pg. 99), ou mesmo que adopte outra posição, competirá à Relação proferir novo acórdão indicando a solução que, face a tal impossibilidade, deva ser seguida e não « rectificar» a anterior decisão, por forma a adaptá-la à nova situação! Mas a Relação não seguiu tal caminho! Preferiu modificar a decisão anteriormente proferida, «rectificando» a sua parte decisória, invocando estar perante um lapso daquela, para operar a sua subsunção no artº 666º do CPC, o que lhe estava vedado fazer, posto que nenhum lapso ou erro material ocorrera, já que a mesma estava devidamente fundamentada, dada a concordância manifesta das premissas fundamentadoras com a conclusão decisória. Por outras palavras, a Relação alterou a decisão proferida no primitivo acórdão, fora dos casos em que legalmente lhe era permitido fazê-lo, pelo que já não tinha poder jurisdicional para tanto, por o mesmo se ter esgotado, em face do disposto no artº 666º, nº 1 do CPC. Tal falta de jurisdição, repetimos, por se tratar de vício essencial da sentença determinante da invalidade desta, não constitui uma nulidade mas inexistência jurídica da citada decisão proferida pela Relação e da qual o Autor havia reclamado, embora sob a designação de nulidade. Na verdade, e de acordo com o ensino dos saudosos Mestres de Lisboa, Professores Paulo Cunha e Castro Mendes, embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais ( artº 666º, nº 3), a verdade é que outros vícios podem afectar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites ( C. Mendes, Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg 369). O preclaro Professor denominava de vícios de essência, aqueles que, atingindo a sentença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial e dão lugar à sua inexistência jurídica ( ibidem). O Prof. Paulo Cunha dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o Juiz lavrar segunda sentença (Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360). No caso vertente, é manifesto que fora dos casos em que, nos termos legais, é permitido ao Juiz rectificar a decisão ( artºs 666º e 667º), o seu poder jurisdicional esgotou-se por imperativo legal, pelo que a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente, não vale como decisão jurisdicional, como adiante veremos mais aprofundadamente. Assim, embora a Relação tenha indeferido a arguição de nulidade, o que está em causa é o não conhecimento e subsequente declaração da inexistência jurídica da decisão, pois que a arguição do vício que havia sido efectuada, embora impropriamente designada por nulidade, era a centrada na violação do nº 1 do artº 666º do CPC e, portanto, da inexistência jurídica. De resto, como é consabido, o Tribunal não está vinculado às alegações das partes no tangente à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, de harmonia com o disposto no artº 664º do CPC, que consagrou em letra de lei a ideia subjacente ao vetusto ensinamento dos praxistas, segundo o qual jus novit curia! Consequentemente, ainda que o Reclamante não houvesse expressamente invocado a inexistência jurídica daquela decisão, mas apenas se tivesse referido impropriamente ao termo nulidade, nada impedia que a Relação corrigisse tal entendimento. A nível jurisprudencial e sobre o conceito de sentença inexistente, pode ver-se também o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 2 de Julho de 2009 (Relator, o Exmº Conselheiro Santos Bernardino) e onde, para além do mais, se escreveu: «A sentença inexistente, no dizer do Prof. ALBERTO DOS REIS, é um mero acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença» ( Pº 09B0511, disponível em www.dgsi.pt). Sendo assim, ainda segundo o ensinamento de Paulo Cunha, «quando há inexistência jurídica da sentença, não há necessidade de atacar a sentença, como inexistente, é insusceptível de produzir efeitos, e, demostrado em qualquer altura que existe um vício que corresponde à inexistência jurídica, tudo se passa como se nunca tivesse sido proferida» (ibidem). Porém, para além da violação do princípio da extinção do poder jurisdicional, legalmente consagrado, o Recorrente invoca a intangibilidade do caso julgado, com a modificação operada a título de rectificação (indevida, como vimos), da decisão anulatória proferida no acórdão anterior. Como salienta o Recorrente nas suas doutas alegações, «intenta-se recurso de uma decisão, que altera outra, há muito transitada em julgado, modificando substancialmente o conteúdo da primeira, com o qual as partes se conformaram» ( conclusão 1ª, sendo nosso o sublinhado). Assim seria, efectivamente, se não se tratasse de uma decisão juridicamente inexistente, pois sendo inexistente não só não produz efeitos, tal como a decisão nula ( quod nullum est nullum producit effectum), como apenas constitui um «estado de facto com a aparência de sentença» na expressiva asserção de Alberto dos Reis (Cód. de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 114). Deste modo, o que não tem existência jurídica não pode violar o transitado em julgado, nem pode ser anulado. Resta, finalmente, apreciar a questão levantada pelo Recorrente ainda neste Agravo, condensada na conclusão F) das alegações, segundo a qual o Juiz que proferiu a sentença, sendo um Juiz jubilado tem como única obrigação a prevista no nº 5 do artigo 66º da Lei 21/85, questão esta que é, de resto, de conhecimento oficioso, já que de um pressuposto processual de validade de instância se trata, na medida em que concerne à jurisdição ou poder jurisdicional do Juiz. Como refere o nº 1 do artº 67º da Lei 21/85, de 30/07, mantido ainda em vigor pela Lei nº 26/2008, de 27 de Julho, os Magistrados Judiciais que se aposentem por limite de idade, por incapacidade ou nos termos do artº 37º do Estatuto da Aposentação, excluída a aplicação de pena disciplinar, são considerados jubilados. Por sua vez, o artº 70º, nº 1 e alínea c), do mesmo diploma legal proclama que os Magistrados Judiciais cessam funções no dia imediato em que chegue à comarca ou ao lugar onde servem o DR com a publicação da nova situação. Portanto, tal significa que o Exmº Juiz que se jubilou em Agosto de 2006, cessou funções muito antes da prolação deste acórdão ora em apreço, que é datado de 13.12.2007. Consequentemente, tendo cessado funções por imperativo legal, não pode um juiz continuar a exercê-las, nem mesmo esporadicamente, salvo se a lei o permitir, sob pena de tais decisões serem consideradas a non judice, e portanto juridicamente inexistentes, por falta do competente poder jurisdicional. Assim, a lei permite expressamente, no nº 3 do artº 654º do CPC, que um Juiz aposentado/jubilado possa exercer funções jurisdicionais, para concluir o julgamento por ele iniciado, em homenagem ao «princípio da plenitude da assistência dos juízes» ou, mais propriamente, de identidade do órgão julgador. Já não é assim para, se a decisão for anulada ou mandada repetir, continuar a intervir não obstante ter cessado funções jurisdicionais. É, com efeito, vasta a jurisprudência em tal sentido, como se colhe, inter alia, dos Acórdãos deste Supremo Tribunal de 15. 12. 2008 onde se sentenciou que «O disposto no artº 654º do CPC respeita a ocorrências como a transferência ou promoção do Juiz, surgidas durante a discussão e julgamento, não abrangendo aquelas que se verificarem entre uma audiência e a posterior repetição da mesma, determinada nos termos do artº 712º, nº 2 do CPC» ( Sumários, 23º-13) e do Acórdão da Relação de Évora, de 29.4.1999 assim sumariado: «A repetição parcial do julgamento, por terem sido anuladas as respostas a alguns quesitos e ordenada a formulação de um novo quesito, por acórdão do Tribunal da Relação, deve ser realizada pelos juízes que no tribunal competente substituíram os juízes que intervieram no julgamento parcialmente anulado e entretanto foram transferidos ou se jubilaram. II — E assim porque não se trata da continuação de um julgamento mas antes da repetição do julgamento em que todos os elementos úteis para a decisão constam do processo ou serão produzidos na audiência a realizar, não havendo actos que estejam excluídos da apreciação dos juízes que irão proceder a essa repetição do julgamento (Ac. RE, de 29.4.1999: BMJ, 486.°-377). Em face do quanto se disse, caberá aos actuais Juízes do referido Tribunal o cumprimento do decidido no referido Acórdão. Não se torna necessário, assim, debruçarmo-nos sobre outros vícios imputados ao Acórdão referido, cabendo apenas conceder provimento ao agravo interposto, por procederem, em consequência de tudo quanto amplamente exposto e analisado se deixa, as conclusões da alegação do Agravante. DECISÃO Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em conceder provimento ao Agravo interposto e, em consequência, declarar a inexistência jurídica do 2º acórdão da Relação, revogando tal decisão datada de 13.12.2007 ( fls. 715-718 deste processo – 4º volume), e mantendo o decidido pela Relação no seu Acórdão anterior, de 29. 05.2007 [embora, por lapso manifesto, nele se refira 2005 (fls. 696-700, deste processo – 4º volume) com a primitiva redacção] e, nos termos do disposto no artº 201º, nº 2 do CPC, anular também os actos subsequentes que dependeram da decisão juridicamente inexistente, ora revogada, designadamente o acórdão confirmatório da sentença proferida, uma vez que tal sentença depende do que vier a ser decidido depois de respondidos os quesitos cujas respostas anteriores foram anuladas pela 1ª decisão da Relação, transitada em julgado. Por consequência, deverá o processo baixar à Relação para efeitos de reapreciação da informação prestada pelo Senhor Juiz da 1ª Instância (fls. 708), tendo em consideração o ora decidido, seguindo-se os demais termos legais. Em face do ora decidido, prejudicada fica a apreciação do recurso de Apelação interposto neste autos e a que se faz referência na nota introdutória supra exarada. Custas pela Recorrida. Processado e revisto pelo Relator. Supremo Tribunal de Justiça Lisboa, 6 de Maio 2010. Álvaro Rodrigues (Relator) |