Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2485/19.2T8STS.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
PRESSUPOSTOS
OFENSA DE CASO JULGADO
OBJETO DO RECURSO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
FUNDAMENTOS
DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO NO SANEADOR
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A ‘ofensa de caso julgado’, enquanto fundamento excepcional de admissibilidade do recurso (art.º 629º, nº 2, al. a), do CPC) basta-se com a verosimilhança da ofensa (por contraponto à ‘ofensa de caso julgado’ enquanto fundamento do mérito do recurso, em que releva antes a efectividade da ofensa).

II. Nos casos de admissibilidade excepcional dos recursos o objecto do recurso é restrito à matéria que constitui o fundamento da sua admissibilidade.

III. E nesses casos, entendendo-se que a invocação de nulidades enquanto fundamento da revista (artigo 674º, nº 1, al, c), do CPC) tem carácter acessório, haverá ainda de considerar-se só serem susceptíveis de invocação e conhecimento aquelas nulidades que se relacionem com o objecto do recurso.

IV. As declarações genéricas constantes do despacho saneador, porque não correspondem a questões concretamente apreciadas, não estão dotadas de força de caso julgado (artigo 595º, nº 3, do CPC).

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA

ENTRE


HERANÇA INDIVISA DE AA († 04AGO2017)
(aqui patrocinada por ..., adv., com procuração emitida por todos os herdeiros)

Autora / Apelante / Recorrente

CONTRA

BB

e mulher

CC

(aqui patrocinados por ..., adv.)

Réus / Apelados / Recorridos



I – Relatório

A Autora intentou acção de reivindicação do U-6228/13...02 pedindo que seja declarada proprietária do referido imóvel e a condenação dos Réus a reconhecerem essa propriedade e a absterem-se de praticar actos ofensivos da mesma (designadamente utilizar o prédio da Autora para instalar conduta de gás e aceder, a pé e de carro à via pública, com a qual, aliás, o prédio dos Réus também confronta) bem como a proceder à remoção do tubo de gás e portão que nela instalaram e a proceder à reconstrução do muro divisório; a, ainda, a pagarem-lhe as quantias de 5.000 € e 2.500 € a título de indemnização por danos, respectivamente, patrimoniais e não patrimoniais.

Os Réus contestaram por impugnação e, em reconvenção, pedem a condenação da Autora a reconhecer uma servidão de passagem de carro e conduta de gás. Pedem, também, a condenação da Autora como litigante de má-fé.

Houve tréplica na qual se propugnou pela inadmissibilidade e improcedência da reconvenção e se pede a condenação dos Réus como litigantes de má-fé.

Foi proferido despacho saneador tabelar, que não foi alvo de qualquer impugnação.

Foi proferida sentença que, começando por afirmar não ter a Autora personalidade e capacidade judiciária, considerou irrelevante tal circunstância por ser manifesta, dado ter por não demonstrado o direito de propriedade invocado, a inviabilidade da pretensão deduzida, julgou a acção improcedente; considerando verificados os respectivos pressupostos, julgou procedente a reconvenção; não condenou nenhuma das partes como litigante de má-fé.

Inconformada, apelou a Autora, concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto (com repercussão na decisão quanto à reconvenção), não ter sido providenciada a sanação da irregularidade, violação do contraditório e violação do caso julgado.

A Relação não conheceu da impugnação da matéria de facto por a considerar prejudicada pelo facto de não vir questionada a consideração de o direito de propriedade estar inscrito a favor de terceiro, o que sempre levaria à improcedência da acção, julgando a apelação improcedente.

Irresignada veio a Autora interpor recurso de revista nos termos “dos artigos 629.º, n.º 2, alínea a), 674.º, 675.º e 676.º, todos do Código de Processo Civil” concluindo, em síntese, por padecer o acórdão recorrido das nulidades de falta de fundamentação, ambiguidade/inintelegibilidade, omissão e excesso de pronúncia, por ofender o caso julgado formado com o despacho saneador e, subsidiariamente, que concluindo-se pela falta de personalidade e capacidade judiciária não pode haver lugar à sua condenação no pedido reconvencional.

Não houve contra-alegação.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC), bem como, formalmente, mostram-se satisfeitos os ónus de indicação dos elementos específicos de recorribilidade (artigo 637º do CPC).

Sendo o valor da causa inferior à alçada da Relação o recurso de revista estaria, por regra, vedado, nos termos do nº 1 do artigo 629º do CPC.

Porém, o nº 2 do mesmo normativo estabelece algumas excepções a essa regra, sendo uma delas (al. a)) a ofensa de caso julgado; o que é expressamente invocado pela Recorrente como fundamento do recurso.

A ‘ofensa de caso julgado’, enquanto fundamento de admissibilidade do recurso basta-se, em nosso modo de ver, com a verosimilhança da ofensa (por contraponto à ‘ofensa de caso julgado’ enquanto fundamento do mérito do recurso, em que releva antes a efectividade da ofensa).

E em termos de aparência ocorre uma disparidade de posição entre o acórdão recorrido e o despacho saneador, pelo que se tem por verificado o invocado fundamento da revista.

Haverá, no entanto, de fazer notar que, conforme é entendimento consolidado, nos casos de admissibilidade excepcional dos recursos o objecto do recurso é restrito à matéria que constitui o fundamento da sua admissibilidade; no caso presente, o objecto do recurso cinge-se à verificação ou não da invocada ofensa do caso julgado.

Por outro lado, entendendo-se que a invocação de nulidades enquanto fundamento da revista (artigo 674º, nº 1, al, c), do CPC) tem carácter acessório, haverá de considerar-se só serem susceptíveis de conhecimento na presente revista aquelas que se relacionem com o objecto do recurso.

O que não é o caso das nulidades invocadas pela Recorrente, pelo que as mesmas devem ser apreciadas na Relação, em conformidade com o disposto no artigo 617º, nº 5, do CPC, como se ordenará a final.

Termos em que se admite a revista nos termos gerais, embora restrita à questão da ‘ofensa do caso julgado’.

Atento o disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, o recurso sobe nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.

Destarte, o recurso merece conhecimento.

Vejamos se merece provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a única questão a resolver por este tribunal é a de saber se o acórdão recorrido incorre em violação de caso julgado.


III – Os factos

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

Haverá ainda de ter em conta:

- o teor do despacho saneador:


O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo não enferma de nulidades que o invalidem de todo.
As partes acham-se dotadas de personalidade e de capacidade judiciárias.
Estão representadas.
Mostram interesse direto na lide que lhes confere legitimidade.
Inexistem quaisquer outras nulidades, exceções ou questões prévias de que importe conhecer.

- o seguinte trecho da fundamentação da sentença:


In casu, aferindo-se a matéria fáctica provada, enuncia-se que, pela ap. ...17 de 2011/07/27, afigura-se registada a aquisição a favor de DD do prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...14 e inscrito na matriz respetiva sob o n.º ...95, por partilha extrajudicial de EE e esposa FF, pelo que se presume que DD titula o direito de propriedade do antedito imóvel, o qual curando-se de um bem adquirido por herança, integra a massa patrimonial própria, nos termos consignados no art.º 1722.º/1, al. b), do Código Civil.
Em decorrência, infere-se meridianamente que DD titula o direito de propriedade do antedito prédio, ou seja, os poderes de uso, fruição, transformação, reivindicação, demarcação, e exclusão de terceiros relativamente ao gozo da coisa, e a faculdade de disposição da coisa, incluindo o poder de alienação e o poder de oneração, em congruência com o plasmado nos artigos 1302.º e 1305.º, do Código Civil, i.e., a Autora Herança Indivisa não possui o brandido direito de propriedade, postulando-se o decaimento da pretensão formulada na al. a) do petitório.
Destarte, conclui-se que a Autora não titula personalidade e capacidade judiciárias, sendo que, aferindo-se que estas exceções tutelam o interesse dos Réus, não há outro motivo que obste ao conhecimento do mérito da causa, impondo-se, consequentemente, a improcedência integral dos pedidos formulados na ação, nos termos e para os efeitos consagrados no art.º 278.º/3, do Código de Processo Civil.

- o seguinte trecho do acórdão


No entanto, apurou-se que o prédio acima mencionado, cujo direito de propriedade a Autora se arrogava, afinal pertence a DD, cabeça-de-casal, por se encontrar registada a aquisição a seu favor, por partilha extrajudicial de EE e esposa FF.
Consequentemente, relativamente ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade da Autora, foi julgado improcedente por não deter os poderes de uso, fruição, transformação, reivindicação, demarcação, e exclusão de terceiros relativamente ao gozo da coisa, e a faculdade de disposição da coisa, incluindo o poder de alienação e o poder de oneração, em congruência com o plasmado nos artigos 1302.º e 1305.º, do Código Civil.
A inscrição do direito de propriedade a favor DD não foi questionada em sede de recurso, pelo que não tem qualquer interesse reapreciar as questões de facto suscitadas pela Recorrente.
Por outras palavras, mesmo que a Autora tivesse êxito na sua pretensão de alterar a decisão sobre a matéria de facto nos pontos indicados que se resumem à existência da garagem nas traseiras, data em que foi construído o muro e respectivo alteamento, à não autorização referente à instalação do tubo de gás e à utilização do terreno como passagem, a verdade é que não provou ser dona do prédio contíguo ao prédio dos Réus, pelo que não pode defender a sua eventual violação.
Foi neste sentido que o tribunal concluiu pela improcedência integral dos pedidos formulados na ação argumentando, com manifesto lapso, que a Autora não é titular de personalidade e capacidade judiciárias.
Por outras palavras, o tribunal não absolveu os Réus da instância por falta de um pressuposto processual, antes decidiu de mérito, absolvendo-os dos pedidos por ter ficado provado que o prédio em causa não pertence à Autora.


IV – O direito

Sumária, mas suficientemente, se dirá não ocorrer a invocada ofensa de caso julgado por duas ordens de razões.

A primeira porquanto não existe caso julgado que possa ter sido ofendido.

Com efeito a declaração de as partes se acharem dotadas de personalidade e capacidade judiciária constante do despacho saneador não resulta de uma apreciação concreta dessas questões sendo antes uma mera declaração genérica, pelo que, conforme o disposto no nº 3 do artigo 595º do CPC, não constitui caso julgado formal.

A segunda porquanto do acórdão Recorrido não resulta que a Recorrente tenha sido considerada destituída de personalidade ou capacidade judiciária, pelo que seria insusceptível de ofender um eventual reconhecimento prévio com força de caso julgado dessa personalidade e capacidade judiciária.

Tal acórdão, pelo contrário, é expresso em afirmar que entendeu a referência a essa circunstância feita na sentença como um lapso, pois o que relevava como ratio decidendi era ter ficado provado que o prédio em causa não pertencia à Recorrente (questão que, aliás, esta não havia posto minimamente em causa no recurso e, consequentemente, estava excluída do seu objecto) e não a falta daqueles pressupostos processuais.


V – Decisão

Termos em que se nega a revista.

Custas pela Recorrente.

Baixem os autos à Relação para aí serem conhecidas, se possível pelos mesmos desembargadores, as nulidades invocadas.

                                                                                  

Lisboa, 02FEV2023

Rijo Ferreira (Relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista