Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
218/06.2PEPDL.L3.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
PENA DE MULTA
DESCONTO
PENA CUMPRIDA
ACÓRDÃO
FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
INJÚRIA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
AMEAÇA
CULPA
DOLO
PLURIOCASIONALIDADE
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 01/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática: DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES.
Doutrina: - CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, "A Pena "Unitária" Do Concurso De Crimes", RPCC, Ano 16, n.° 1, p. 162 e ss..
Legislação Nacional: CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 49.º, N.ºS 1 E 3, 77.º, N.ºS 1, 2 E 3, 78.º, N.º1.
Sumário :
I - No acórdão recorrido não foi considerada, para efeitos de cúmulo jurídico de penas, uma pena de multa. Ora, apesar de posteriormente convertida em pena de prisão subsidiária reduzida a 2/3, nos termos do disposto no art. 49.°, n.º 1, do CP, tal pena conserva a sua natureza originária de pena de multa, mesmo que tendo sido, como foi, executada, em conformidade com o estatuído no n.º 3 do mesmo normativo. Sendo assim, a pena referida, mesmo que entrasse no cúmulo jurídico, não seria descontada na pena de prisão, tanto mais que, as penas de diferente natureza, sendo umas de prisão e outras de multa, conservam essa distinta natureza na operação de cúmulo.
II - Por conseguinte, tendo essa pena sido declarada extinta pelo cumprimento e não havendo outras penas de multa nas quais fosse de considerar o cumprimento daquela, não subsistia interesse na sua inclusão no referido cúmulo jurídico. Assim, a decisão recorrida não merece censura por não a ter englobado no cúmulo efectuado, não tendo incorrido na nulidade invocada pelo MP.
III - O tribunal está obrigado a fundamentar a decisão em termos de facto e de direito, indicando, ainda que sucintamente, as circunstâncias (de tempo, lugar e modo) em que foram cometidos os vários crimes que deram origem às várias condenações do recorrente, de maneira a que se perceba qual a ligação ou tipo de conexão que intercede entre os vários factos, encarados numa perspectiva global, e a sua relacionação com a personalidade do recorrente: se esses factos são a expressão de um modo de ser, de uma escolha assumida de determinado trajecto de vida, em suma, se radicam na personalidade do agente, ou se são antes fruto de uma multiplicidade de circunstâncias casuais, ou de uma particular conjuntura da vida do recorrente, uma situação passageira, mais breve ou mais longa, mas não um traço da personalidade (ou seja, aquilo que a doutrina designa de pluriocasionalidade).
IV - No caso sub judice, o tribunal a quo fundamentou a medida da pena única, ainda que seguindo uma via minimalista, ou muito sucinta. O certo é que indicou os respectivos factos, caracterizando-os e referindo em que consistiram e o momento temporal em que foram praticados. A decisão recorrida podia ter ido um pouco mais longe na fundamentação, que não é inexistente ou substancialmente deficiente (só nesse caso merecendo a sanção de nulidade), e apenas demasiado sucinta, mas, ainda assim, perceptível quanto às razões que subjazem à determinação da pena única.
V - Sabendo que os factos consistiram em dois crimes de tráfico de estupefacientes (heroína de uma vez e heroína e cocaína de outra), nas circunstâncias referidas na matéria de facto provada, e ainda num crime de injúria agravada a um guarda prisional que o arguido havia conhecido no EP quando esteve preso, num crime de detenção de arma proibida e em dois crimes de ameaça com faca, em relação a duas pessoas, dizendo o arguido que as matava, ao mesmo tempo que vibrava vários golpes numa porta com aquela arma, acrescendo a isso que todos esses factos foram perpetrados entre finais do ano de 2003 e finais de 2006, temos os elementos indispensáveis para estabelecer as conexões entre os vários crimes por que o arguido foi condenado, ainda que possam ter sido melhor explanadas algumas circunstâncias.
VI - A pena parcelar mais elevada é de 8 anos de prisão e o somatório de todas as penas é de 15 anos e 2 meses de prisão. Entre essas balizas deve situar-se a pena única.
VII - Na actividade delituosa do arguido sobressai uma pluralidade de crimes, cometidos num arco temporal de 3 anos, entre os seus 24 e 27 anos de idade. Na criminalidade a considerar avultam sobretudo dois crimes de tráfico de estupefacientes (os mais graves) e outros crimes de menor gravidade: injúria, ameaça e detenção de arma proibida. A ilicitude global é de considerar de alguma gravidade, com incidência na danosidade social dos crimes de tráfico de estupefacientes, e a culpa referida ao conjunto, dominada pelo carácter doloso de todos os crimes. Estes foram cometidos num período de vida do arguido caracterizado pela sua relativa juventude, na primeira fase da vida adulta, sendo ele imigrante cabo-verdiano.
VIII - O arguido teve um crescimento dominado por uma acentuada instabilidade afectiva, com ausência do pai, visto provir de uma relação extraconjugal, e presença da mãe até aos 5 anos de idade, ficando depois aos cuidados de outros parentes até completar a sua formação profissional; e posteriormente imigrou para o nosso país; tendo a mãe emigrado para os EUA, onde ainda se mantém. O seu desenvolvimento psico-afectivo foi caracterizado pela descontinuidade ao nível das relações com as figuras significativas e pela falta de suporte e presença da figura paterna.
IX - Em Portugal, exerceu actividade ligada à construção civil. Tem apresentado ao longo da execução da pena de prisão um comportamento revelador de alguma instabilidade/imaturidade; evidenciando, contudo, alguma capacidade de análise crítica quanto ao seu comportamento delituoso e vontade de mudança.
X - Na inter-relação entre os factos e a personalidade do arguido, não há fundamento para se concluir pela manifestação de uma tendência para o crime, antes decorrendo do atrás exposto uma certa imaturidade e porventura uma determinação pluriocasional da sua actividade criminosa. Do ponto de vista da prevenção, verificam-se exigências de alguma acentuação, no que toca à prevenção geral e também no âmbito da prevenção especial; carecendo o arguido de algum acompanhamento institucional que favoreça a sua reinserção social.
XI - Deste modo, cremos que a pena aplicada (12 anos de prisão) peca por excesso, o que se deverá a um certo aligeiramento na apreciação dos pressupostos da determinação da medida da pena. Assim; a pena única será fixada em 10 anos e 6 meses de prisão, por se mostrar mais adequada.

Decisão Texto Integral:

             

           

            I. RELATÓRIO

            1. AA, identificado nos autos, veio interpor recurso do acórdão do tribunal colectivo de 19/07/2012, que, no âmbito do processo n.º 218/06.2PEPDL, do 2.º Juízo Criminal da Comarca de Ponta Delgada e reunido para o efeito, procedeu à elaboração do cúmulo jurídico das penas aplicadas nos processos n.ºs 486/03.1TAPDL, 2298/05.9PBPDL e 218/06.2PEPDL, tendo sido excluídas as penas aplicadas nos processos n.ºs 146/05.9PBPVC e 612/06.9PBPDL, com fundamento em as penas aplicadas, ambas de multa, terem sido extintas pelo cumprimento.

No final foi aplicada ao arguido a pena única de 12 (doze) anos de prisão.

            2. Da motivação de recurso extraem-se as seguintes conclusões:

            1. O recorrente AA foi condenado a uma pena de 12 anos de prisão efectiva nos autos, por força de se ter procedido ao cúmulo jurídico entre o processo em epígrafe e os mencionados no douto acórdão, para o qual se remete e se dá por reproduzido para os devidos efeitos.

            2. Contudo, por força do decurso do tempo e, da demora da realização do seu cúmulo, requerido por si, algumas das penas já o arguido as tinha cumprido na íntegra.

            3. Assim sendo, deveria ter sido aplicada uma pena mais reduzida em cúmulo, o que seria o mais justo face às circunstâncias concretas do caso vertente, bem como serviria perfeitamente na prevenção de futuros ilícitos penais e seria a aplicação de Boa Justiça (…)

            3. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal “a quo”, sustentando não haver reparo a fazer à decisão recorrida, pelo que a mesma deveria ser mantida.

            4. No Supremo Tribunal de Justiça, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta  emitiu parecer em que concluiu:

            Por todo o acima exposto, o acórdão recorrido, ao não incluir no cúmulo jurídico a pena imposta no processo n.º 612/06.9PBPDL violou a norma do art. 78.º, n.º 1 do CP; ao não se mostrar devidamente fundamentado, assim inviabilizando que o Tribunal de recurso possa também apreciar da correcção das operações de determinação da pena imposta, o acórdão recorrido é nulo ao abrigo da norma do art. 379.º, alínea a), com referência ao art. 374.º, n.º 2, ambos do CPP.

            5. Notificado deste parecer, o arguido nada mais veio acrescentar.

            6. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo foi apresentado à conferência para decisão.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            7. Factos que serviram de base à decisão recorrida:

            Provou-se que:

A) Por factos praticados de Janeiro a Abril de 2004, AA foi condenado em 25/10/2005, com trânsito a 26/12/2006, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, punido pelos art.°s 21, n.° 1 e 24o c) do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro na pena de_6_anos de prisão. Os factos consistiram em, juntamente com outros, ter introduzido nesta ilha pelo menos 100,45 gramas de heroína e enviando depois para aqui, por encomenda, mais daquela droga (p. 486/03.1TAPDL, 20 J°).

B) Por factos praticados em 07/12/2005, AA foi condenado em 04/05/2007, com trânsito em 20/05/2007, como autor de um crime de injúria agravada punido pelo art.° 181, n.° 1 e 2 e 184o do Código Penal na pena de 3 meses de prisão, por se ter dirigido a um guarda prisional que conhecera quando estivera preso como "filho da puta". Neste processo foi efectuado cúmulo jurídico que abrangeu, além de uma pena de multa aplicada noutro processo e que já está extinta, a pena referida em A), do qual resultou uma pena única de 6 anos e 1 mês de prisão (p. 2298/Ò5.9PBPDL, 20 J°).

C) Por factos praticados entre 09/10/2005 e 09/11/2006, AA foi condenado em 06/05/2011, com trânsito em 09/03/2012, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes punido pelo art.° 21º, n.° 1 do DL 15/93 de 20 de Janeiro, de um crime de detenção de arma proibida punido pelo art.° 86, n.° 1 d) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro e de dois crimes de ameaça punidos pelo art.° 155º, n.° 1 a) do Código Penal nas penas de 8 anos, 3 meses, 4 meses, 4 meses de prisão, e na pena única de 8 anos e 4 meses de prisão, que cumpre até 26/08/2019. Os factos consistiram, em síntese, em ter vendido cocaína e heroína a vários indivíduos residentes nesta ilha, em deter três saquetas sendo duas de heroína com 25, 660 gramas e 6,507 gramas dessa droga e uma com 0,535 gramas de cocaína, deter duas munições de calibre 7,65 mm e, na primeira data, ter ameaçado duas pessoas de que as matava, munido de uma faca com a qual vibrou vários golpes numa porta (p. 2i8/o6.2PEPDL,2°J°).

D) Para além destas, AA já sofreu as seguintes condenações: em 19/06/2006 por condução em estado de embriaguez em pena de multa e proibição de conduzir; Em 05/11/2007 por receptação em pena de multa, que foi convertida em prisão. Natural de Cabo Verde veio para Portugal no ano 2000 começando a trabalhar na construção civil. A sua mãe encontra-se nos Estados Unidos da América para onde pretende imigrar. Na prisão mostra-se indisciplinado e tende a desvalorizar as consequências da sua conduta. Tem alguma dificuldade de interiorização de regras e em auto controlar-se.

Com interesse para a decisão da causa não ficaram por apurar quaisquer factos.

8. Na parte da fundamentação de direito, diz o acórdão recorrido:

§2 Não há dúvidas de que os crimes a que se referem as condenações acima descritas de A) a C) estão em relação de concurso relevante nos termos do art.° 78°, n.° 1 do Código Penal, nada mais restando do que determinar a pena nos termos desse preceito e do disposto nos art.°s 71o e 77, n.° 1 e 2 do Código Penal. Assim, tendo em consideração de que se trata em todos os casos de crimes dolosos, que o concurso abrange já duas penas significativas por outros tantos crimes de tráfico de droga, que o arguido revela uma personalidade impulsiva e um comportamento indisciplinado em meio prisional, desconsiderando em boa medida a gravidade dos factos que pratica, julga-se adequada na moldura de 8 anos a 15 anos e 2 meses de prisão a pena única de 12 anos de prisão.

            9. Questões a decidir:

            - Anulação do acórdão recorrido

            - Medida da pena única

                       

            9.1. A Sra. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal advogou no seu parecer a anulação do acórdão recorrido por não ter sido incluída no cúmulo jurídico a pena aplicada no processo n.º 612-06.9 do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada e por falta de devida fundamentação do mesmo aresto.

            Relativamente à pena aplicada no processo n.º 612/06.9, trata-se de pena de multa aplicada por crime de receptação, que, posteriormente, por falta de pagamento, foi convertida em pena de prisão subsidiária e suspensa na sua execução. Por falta de cumprimento das condições desta, foi revogada a suspensão da pena de prisão subsidiária de 24 dias, tendo o arguido cumprido essa pena e a mesma sido declarada extinta.    

Nos termos do art. 77.º, n.º 1 do CP, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, sendo nesta considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 1).

A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo, contudo, ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e como limite mínimo, a mais elevada daquelas penas (n.º 2).

Sendo umas penas de prisão e outras de multa, mantém-se a diferente natureza dessas penas no cúmulo a efectuar (n.º3).

Nos termos do art. 78.º, n.º 1 do CP, «Se depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.»

O último segmento desta norma consagra uma inovação introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, indo ao encontro de preocupações de justiça e equidade que se fizeram sentir no domínio da lei anterior.

A lei anterior tinha uma redacção completamente diferente: Se depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena se encontrar cumprida, prescrita ou extinta se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior.

Com a alteração introduzida visa-se beneficiar o condenado, incluindo no cúmulo superveniente todas as penas, ainda que cumpridas, dos crimes em concurso, obviando, assim, às desigualdades e injustiças relativas advenientes do protelamento no tempo dos julgamentos dos vários crimes em concurso, sendo certo que, em princípio, tudo deveria passar-se como se o julgamento de todos eles se fizesse em simultâneo e reportando-se ao momento da primeira condenação transitada em julgado. Se assim sucedesse, o arguido beneficiaria da aplicação de uma pena única que abrangeria todos os crimes cometidos antes daquele momento temporal.

No caso de pena cumprida (o que não será o caso, por exemplo de pena prescrita sem cumprimento, ou de pena extinta, por amnistia ou perdão total), é descontado na pena conjunta o tempo de cumprimento.

Ora, no caso sub judice, a pena aplicada foi uma pena de multa.

Apesar de posteriormente convertida em pena de prisão subsidiária reduzida a dois terços, nos termos do disposto no art. 49.º, n.º 1 do CP, tal pena conserva a sua natureza originária de pena de multa, mesmo que tendo sido, como foi, executada, em conformidade com o estatuído no n.º 3 do mesmo normativo.

Sendo assim, a pena referida, mesmo que entrasse no cúmulo jurídico, não seria descontada na pena de prisão, tanto mais que, como vimos, as penas de diferente natureza, sendo umas de prisão e outras de multa, conservam essa distinta natureza na operação de cúmulo.

Por conseguinte, tendo essa pena sido declarada extinta pelo cumprimento e não havendo outras penas de multa nas quais fosse de considerar o cumprimento daquela, não subsistia interesse na sua inclusão no referido cúmulo jurídico.

Por tal motivo, a decisão recorrida não merece censura por não a ter englobado no cúmulo efectuado, não tendo incorrido na nulidade invocada.   

9.2. Quanto à falta de fundamentação, temos sustentado, de acordo com uma corrente jurisprudencial deste Tribunal que tem vindo a afirmar-se de forma crescente, que o tribunal está obrigado a fundamentar a decisão em termos de facto e de direito (…), indicando, ainda que sucintamente, as circunstâncias (de tempo, lugar e modo) em que foram cometidos os vários crimes que deram origem às várias condenações do recorrente, de maneira a que se perceba qual a ligação ou tipo de conexão que intercede entre os vários factos, encarados numa perspectiva global, e a sua relacionação com a personalidade do recorrente: se esses factos são a expressão de um modo de ser, de uma escolha assumida de determinado trajecto de vida, em suma, se radicam na personalidade do agente, ou se são antes fruto de uma multiplicidade de circunstâncias casuais, ou de uma particular conjuntura da vida do recorrente, uma situação passageira, mais breve ou mais longa, mas não um traço da personalidade (ou seja, aquilo que a doutrina designa de pluriocasionalidade). Esse é, de resto, o substrato da própria fundamentação da medida da pena única, que não consiste numa simples adição de penas, mas na imposição da pena conjunta mais adequada a uma determinada avaliação do ilícito global e da “culpa pelos factos em relação”, para retomarmos a expressão de CRISTINA LÍBANO MONTEIRO ("A Pena "Unitária" Do Concurso De Crimes", RPCC, Ano 16, n.° 1, p. 162 e ss.).

No caso sub judice, o tribunal “a quo” fundamentou a medida da pena única, ainda que seguindo uma via minimalista, ou muito sucinta. O certo é que indicou os respectivos factos, caracterizando-os e referindo em que consistiram e o momento temporal em que foram praticados, é certo que com alguns lapsos, como nota a Sra. Procuradora-Geral Adjunta (no caso do processo n.º 486/03.1, os factos foram praticados entre Novembro de 2003 e Março/Abril de 2004 e integraram o crime de tráfico simples, e não o de tráfico agravado).

Sabendo que os factos consistiram em dois crimes de tráfico de estupefacientes (heroína de uma vez e heroína e cocaína de outra, nas circunstâncias referidas na matéria de facto provada, e ainda num crime de injúria agravada a um guarda prisional que o arguido havia conhecido no estabelecimento prisional quando esteve preso, num crime de detenção de arma proibida e em dois crimes de ameaça com faca, em relação a duas pessoas, dizendo o arguido que as matava, ao mesmo tempo que vibrava vários golpes numa porta com aquela arma, acrescendo a isso que todos esses factos foram perpetrados entre finais do ano de 2003 e finais de 2006, temos os elementos indispensáveis para estabelecer as conexões entre os vários crimes por que o arguido foi condenado, ainda que possam ter sido melhor explanadas algumas circunstâncias.

O certo é que a exigência que tem vindo a ser feita por uma parte substancial da jurisprudência deste Tribunal quanto à fundamentação também não pode redundar na transcrição integral dos factos dados como provados em todos os processos, como sistematicamente tem sido feito, em aparente cumprimento dessa jurisprudência. Isto sem prejuízo de reconhecermos, conforme já assinalado, que a decisão recorrida podia ter ido um pouco mais longe na fundamentação, que não é inexistente ou substancialmente deficiente (só nesse caso merecendo, a nosso ver, a sanção de nulidade), e apenas demasiado sucinta, mas, ainda assim, perceptível quanto às razões que subjazem à determinação da pena única.    

            Por outro lado, o tribunal “a quo” também considerou os aspectos de direito relevantes, embora igualmente de forma muito sucinta, podendo ter desenvolvido melhor alguns aspectos da personalidade do arguido, nomeadamente a partir do relatório social.

            Certo é que a decisão não sofre de nulidade por falta de fundamentação.

            Deste modo, passamos à análise da medida da pena única.

             

            9.3. Tendo presente as coordenadas definidas em 9.1., temos que a pena parcelar mais elevada é de 8 anos de prisão e o somatório de todas as penas é de 15 anos e 2 meses de prisão. Entre essas balizas deve situar-se a pena única.

            Na actividade delituosa do arguido sobressai uma pluralidade de crimes, cometidos num arco temporal de 3 anos, entre os seus 24 e 27 anos de idade (nasceu a 02/08/79). Na criminalidade a considerar avultam sobretudo dois crimes de tráfico de estupefacientes (os mais graves) e outros crimes de menor gravidade: injúria, ameaça e detenção de arma proibida.

            A ilicitude global é de considerar de alguma gravidade, com incidência na danosidade social dos crimes de tráfico de estupefacientes, e a culpa referida ao conjunto, dominada pelo carácter doloso de todos os crimes.

            Estes foram cometidos num período de vida do arguido caracterizado pela sua relativa juventude, na primeira fase da vida adulta, sendo ele imigrante cabo-verdiano.

            O arguido teve um crescimento dominado por uma acentuada instabilidade afectiva, com ausência do pai, visto provir de uma relação extraconjugal, e presença da mãe até aos cinco anos de idade, ficando depois aos cuidados de outros parentes até completar a sua formação profissional (foi auxiliar no Hospital de Santa Catarina, em Cabo Verde), e posteriormente imigrou para o nosso país, tendo a mãe emigrado para os Estados Unidos, onde ainda se mantém. O seu desenvolvimento psico-afectivo foi «caracterizado pela descontinuidade ao nível das relações  com as figuras significativas e pela falta de suporte e presença da figura paterna», segundo uma das conclusões do relatório social.

            Em Portugal, exerceu actividade ligada à construção civil.

            Segundo outra das conclusões do relatório social, «tem apresentado ao longo da execução da pena de prisão um comportamento revelador de alguma instabilidade/imaturidade, evidenciando, contudo, alguma capacidade de análise crítica quanto ao seu comportamento delituoso e vontade de mudança.»

            Na inter-relação entre os factos e a personalidade do arguido, não há fundamento para se concluir pela manifestação de uma tendência para o crime, antes decorrendo do atrás exposto uma certa imaturidade e porventura uma determinação pluriocasional da sua actividade criminosa.

            Do ponto de vista da prevenção, verificam-se exigências de alguma acentuação, no que toca à prevenção geral e também no âmbito da prevenção especial, carecendo o arguido de algum acompanhamento institucional que favoreça a sua reinserção social.

            Deste modo, cremos que a pena aplicada peca por excesso, o que se deverá a um certo aligeiramento na apreciação dos pressupostos da determinação da medida da pena.

            Assim, a pena única será fixada em 10 anos e 6 meses de prisão, por se mostrar mais adequada.

            III. DECISÃO

            10. Nestes termos, acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando-se a decisão recorrida no tocante à medida da pena única, que agora se fixa em 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão.

            No mais, mantêm a decisão recorrida.

            Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Janeiro de 2013

                                                          

                                               Rodrigues da Costa (relator)

                                                           Arménio Sottomayor