Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3119/22.3T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA, DEVENDO ENVIAR-SE À FORMAÇÃO PARA CONHECER DA REVISTA EXCECIONAL A TÍTULO SUBSIDIÁRIO.
Sumário :

I. O Supremo Tribunal de Justiça limita-se a aplicar o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais tal como foram fixados pelo Tribunal recorrido (n.º 1 do artigo 682.º), não podendo alterar a decisão em matéria de facto salvo o caso excecional do artigo 674.º n.º 3 (artigo 682.º n.º 2 do CPC).


II. Devem equiparar-se à “dupla conformidade” as situações em que a Relação profere uma decisão que, embora não seja exatamente coincidente com a da 1.ª instância, é, em todo o caso, mais favorável à parte que recorre.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 3119/22.3T8LRA.C1.S1


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,


1. Relatório


AA intentou a presente ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento contra BA GLASS Portugal, S.A.


Realizado o julgamento foi proferida sentença com o seguinte teor:


“Pelos fundamentos expostos, decide-se julgar procedente, por provada, a presente ação com processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, bem como parcialmente procedente a reconvenção deduzida pelo Trabalhador-reconvinte e, em consequência:


1. Declara-se ilícito o despedimento do Trabalhador AA, efetuado pela Entidade Empregadora “BA Glass Portugal, S.A.” absolvendo a Trabalhadora do pedido contra si deduzido pela Entidade Empregadora;


2. Condena-se a Entidade Empregadora-reconvinda “BA Glass Portugal, S.A.” a pagar ao Trabalhador-reconvinte, AA, a título de retribuições intercalares, a quantia mensal ilíquida de € 1340,15 (mil trezentos e quarenta euros e quinze cêntimos) desde o dia 29/06/2022 e até ao trânsito em julgado desta sentença, deduzida de outras prestações auferidas pelo Trabalhador e do montante de subsídio de desemprego eventualmente atribuído ao Trabalhador, devendo a Entidade Empregadora entregar essa quantia à Segurança Social, a que acrescem os respetivos juros de mora, à taxa legal, desde a notificação da Entidade Empregadora do pedido formulado pelo Trabalhador, até efetivo e integral pagamento;


3. Condena-se a Entidade Empregadora-reconvinda “BA Glass Portugal, S.A.” a pagar ao Trabalhador-reconvinte, AA, a título de indemnização por antiguidade, a quantia correspondente a 35 dias de retribuição base do Trabalhador por cada ano completo ou fração de antiguidade do Trabalhador, no total de € 50.282,49 (cinquenta mil duzentos e oitenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar do trânsito em julgado desta sentença e até efetivo e integral pagamento.”


Inconformada a Ré interpôs recurso de apelação.


O Tribunal da Relação decidiu:


“Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a empregadora a pagar ao trabalhador a quantia de € 50.282,49, condenando-se a empregadora BA Glass Portugal, SA a pagar ao trabalhador AA, a título de indemnização por antiguidade, a quantia correspondente a 30 dias de retribuição base por cada ano completo ou fração de antiguidade, a contar desde 16 de abril de 1990 e até ao trânsito em julgado da presente decisão, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar do trânsito em julgado desta decisão e até efetivo e integral pagamento e no mais, em manter a sentença recorrida”.


O Acórdão do Tribunal da Relação, ora recorrido, decidiu, assim:


- No âmbito da apreciação da impugnação da matéria de facto, alterar a matéria de facto quanto ao ponto 39 dos factos provados (embora tal não seja referido no dispositivo)1;


- Manter a sentença recorrida na parte referente ao juízo de ilicitude do despedimento;


- Conceder provimento parcial ao recurso de apelação da Ré na parte referente ao número de dias a considerar para efeitos de fixação da indemnização devida, baixando de 35 dias (número fixado na Sentença) para 30 dias (ainda assim aquém dos 15 dias pretendidos pela Recorrente).


A Ré BA GLASS Portugal, S.A, novamente inconformada veio interpor:


- Recurso de revista nos termos gerais quanto à parte do Acórdão que decidiu a impugnação da matéria de facto;


- Recurso de revista e, subsidiariamente, excecional quanto à parte em que o Acórdão recorrido manteve a decisão de 1ª instância de considerar ilícito o despedimento, com fundamento nas alíneas a) e c)2 do artigo 672º, nº1 do C.P.C.;


- Recurso de revista nos termos gerais na parte em que o Acórdão a condenou a pagar ao trabalhador uma indemnização correspondente a 30 dias de retribuição base por cada ano ou fração de antiguidade.


No seu recurso suscita as seguintes questões:


A Ré BA GLASS Portugal, S.A, novamente inconformada veio interpor:


- Recurso de revista nos termos gerais quanto à parte do Acórdão que decidiu a impugnação da matéria de facto;


- Recurso de revista e, subsidiariamente, excecional quanto à parte em que o Acórdão recorrido manteve a decisão de 1ª instância de considerar ilícito o despedimento, com fundamento nas alíneas a) e c)3 do artigo 672º, nº1 do C.P.C.;


- Recurso de revista nos termos gerais na parte em que o Acórdão a condenou a pagar ao trabalhador uma indemnização correspondente a 30 dias de retribuição base por cada ano ou fração de antiguidade.


No seu recurso suscita as seguintes questões:


A) Impugnação da decisão em matéria de facto.


Afirma-se, no recurso, expressamente que “a Recorrente pretende impugnar o exercício dos poderes-deveres da Relação da reapreciação do probatório” (Conclusão 1.1)


Assim, “deveria ter-se assentado, o que agora se requer: o Código de Ética da Entidade Empregadora encontrava-se afixado nas instalações da fábrica da ...” (Conclusão 3.5) e o Tribunal da Relação deveria ter atendido à força probatória plena de um documento (Conclusão 4 e seus vários números).


Invoca-se, igualmente, ainda que a propósito da existência ou não de justa causa para o despedimento, que “[o] Tribunal a quo arrimou-se no rol de factos não provados, afirmando não se ter apurado determinada factologia: “Acontece que não se apurou: que (…) E também não se apurou que o comportamento do trabalhador tenha causado danos ou prejuízos à empregadora(…)” (Conclusão 21) e “[n]ão se pode, porém, extrair de factos não provados a aquisição dos opostos. Por exemplo, não se ter provado a existência de danos não inculca que a aqui Recorrente os não haja sofrido” (Conclusão 22).


B) Nulidades do Acórdão recorrido, mais precisamente:


- Nulidade por excesso de pronúncia, uma vez que “violou a garantia de proibição de reformatio in pejus inserta no artigo 635.º, n.º 5, CPC, no que respeita ao cálculo da indemnização substitutiva da reintegração” (Conclusão 40), porquanto “[s]egundo a sentença de 1.ª instância, o termo ad quem no cômputo da antiguidade é a data da propositura da ação; no aresto impugnado, tal termo final corresponde à data do trânsito em julgado (incertus quando e mais dilatado que o fixado no 1.º grau)” (Conclusão 41) e “[a]ssente que o Trabalhador não recorreu daquele entendimento do Juízo do Trabalho, a Relação não poderia – reduzindo embora o fator de cálculo da indemnização – ter determinado que a antiguidade relevante é a acumulada até data futura e incerta, assim prejudicando a Empregadora e desviando-se da interpretação (consolidada, porque não disputada) de que o termo da contagem ocorreu quando da entrada da ação em juízo” (Conclusão 42).


C) Impugna-se a decisão quanto à ilicitude do despedimento (Conclusões 17 a 39; as Conclusões 5 a 16 reportam-se ao tema, mas sobretudo da perspetiva da revista excecional, interposta a título subsidiário).


D) Pretende-se que mesmo que o despedimento fosse lícito sempre a indemnização pelo despedimento seria excessiva, devendo quedar-se pelos 15 dias de retribuição por cada ano de antiguidade (Conclusões 45 a 54), devendo quedar-se pelo mínimo legal.


Não houve contra-alegações.


Por despacho do Relator foi admitido o recurso com efeito meramente devolutivo.


Em despacho de 05-03-2024 decidiu-se igualmente que:


“Só depois da decisão do recurso no segmento respeitante à matéria de facto é que será possível aquilatar se existe ou não dupla conformidade decisória quanto à questão da ilicitude do despedimento. Caso tal dupla conformidade exista terá o recurso que ser enviado à Formação prevista no artigo 672.º n.º 2 do CPC, junto desta Secção Social, única com competência para apreciar os pressupostos específicos da revista excecional, interposta subsidiariamente pelo Recorrente”.


O Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código do Processo de Trabalho emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso de revista.


O Recorrente respondeu ao Parecer.


2. Fundamentação


De Facto


Foram os seguintes os factos dados como provados nas instâncias:


1) A Entidade Empregadora, BA Glass Portugal, S.A. (doravante BA Glass) tem por objeto social a produção e venda de artigos de vidro.


2) Por deliberação da Direção Executiva e da Direção de Recursos Humanos da Entidade Empregadora, foi mandado instaurar processo disciplinar ao Trabalhador, em 24 de janeiro de 2022, tendo sido nomeadas como Instrutoras as Senhoras Dras. BB e CC.


3) Com a referida deliberação, foi igualmente determinada a suspensão preventiva do Trabalhador, por se considerar que a sua presença nas instalações da Entidade Empregadora seria inconveniente ao integral apuramento dos mesmos, bem como à execução das diligências probatórias da nota de culpa.


4) O Trabalhador foi notificado da suspensão preventiva no dia 24 de janeiro de 2022.


5) Por carta datada de 22 de fevereiro de 2022 foi enviada, por correio registado com aviso de receção, a nota de culpa ao Trabalhador, contendo a comunicação da intenção de despedimento sem indemnização ou compensação.


6) O Trabalhador foi notificado da Nota de Culpa e dessa intenção de despedimento no dia 04 de março de 2022.


7) O Trabalhador respondeu à Nota de Culpa, por carta registada com aviso de receção, datada de 17 de março de 2022, tendo requerido como diligências probatórias a inquirição de três testemunhas.


8) Em 24 de março de 2022 foi determinada, pela Instrutora do processo, CC, a junção aos autos de eventuais processos disciplinares ou repreensões escritas que constem do registo disciplinar do Trabalhador, bem como do Código de Ética em vigor na BA Glass.


9) Em 07 de abril de 2022 foi proferido despacho pela Instrutora do processo, CC, a determinar a inquirição das testemunhas arroladas pelo Trabalhador na resposta à nota de culpa e agendou o dia 14 de abril de 2022 para o efeito.


10) Em 14 de abril de 2022 foram inquiridas as testemunhas arroladas pelo Trabalhador.


11) Em 18 de abril de 2022, foi ordenada, pela Instrutora nomeada, CC, a inquirição das testemunhas DD, EE e FF, designando para o efeito os dias 27 de abril de 2022 e 03 de maio de 2022.


12) Na mesma data, pela Instrutora nomeada, foi ordenada a junção aos autos da repreensão escrita aplicada ao Trabalhador a 22 de maio de 2015 a qual foi junta aos autos de processo disciplinar.


13) Conforme determinado, a testemunha DD foi inquirida no dia 27 de abril de 2022 e as testemunhas EE e FF foram inquiridas no dia 3 de maio de 2022 [cfr. fls. 57 a 61 do PD].


14) Em 06 de maio de 2022 foi proferido despacho de encerramento da fase de instrução do processo disciplinar.


15) Em 24 de maio de 2022 foi elaborado e concluído o relatório final de instrução e apresentado à Entidade Empregadora.


16) Em 31 de maio de 2022 a Entidade Empregadora decidiu o despedimento do Trabalhador, concordando e dando por reproduzido o teor do relatório final de instrução.


17) Por carta datada de 31 de maio de 2022, expedida sob registo e com aviso de receção, a Entidade Empregadora comunicou ao Trabalhador a decisão de despedimento sem indemnização ou compensação, assente em justa causa, aderindo e dando por integralmente reproduzidos os fundamentos e conclusões do relatório final anexo, fazendo este parte integrante da referida decisão.


18) O Trabalhador recebeu a comunicação de despedimento no dia 13 de junho de 2022.


19) O Trabalhador foi admitido ao serviço e sob a direção da Entidade Empregadora, em 16 de abril de 1990, desempenhando, à data do despedimento, as funções de Verificador de Qualidade na fábrica da BA Glass, sita na ..., e auferia a remuneração mensal ilíquida de € 1340,15.


20) No âmbito das suas funções, o Trabalhador tem obrigação de controlar a ferramenta antes desta entrar na máquina da fabricação (máquina IS).


21) No âmbito das suas funções, o Trabalhador deve certificar-se de que os moldes e contramoldes que são colocados nas máquinas da fabricação, bem como todos os respetivos acessórios (boquilhas, punções, tampões, etc.), estão em bom estado e em conformidade com o estabelecido, não padecendo de defeitos e que estão conformes às necessidades, especificações, dimensões e procedimentos internos adequados ao artigo a produzir.


22) O posto de trabalho do Trabalhador insere-se na oficina de moldes da Fábrica.


23) As embalagens de vidro produzidas pela BA Glass são fabricadas com recurso a moldes e contramoldes que são incorporados nas diversas máquinas da fabricação.


24) Os moldes e contramoldes integram diversos outros acessórios, tais como boquilhas, tampões e punções, entre outros.


25) Os moldes, contramoldes e os seus diversos acessórios e componentes são adaptados à configuração e dimensões de cada embalagem a produzir.


26) Em virtude das características próprias do processo de fabrico das embalagens de vidro, do uso intensivo dos contramoldes, da respetiva utilização em equipamentos automáticos, aliado às altas temperaturas a que são sujeitos, estes têm de ser alvo de frequente manutenção.


27) Para efeitos de manutenção dos moldes, contramoldes e respetivos acessórios, a BA Glass recorre, entre outros, a um fornecedor externo, denominado J..., Lda., com sede no Bairro ....


28) A relação comercial mantida entre a BA Glass e a J..., Lda. remonta há já, pelo menos, 16 anos - desde 2006.


29) À data do despedimento, a J..., Lda. era a única entidade externa reparadora de boquilhas contratada pela BA Glass.


30) Até meados de 2021 a J..., Lda. apenas reparava boquilhas para a BA Glass.


31) E só a partir dessa altura é que passou a reparar também moldes e contramoldes.


32) Em virtude da já longa relação comercial entre ambas as empresas, todos os trabalhadores da fábrica da BA Glass ... que exercem funções na oficina de moldes – como é o caso do Trabalhador - conhecem a J..., Lda..


33) Os moldes e contramoldes só devem ser enviados para reparação externa quando careçam de reparação e não possam ser reparados internamente pelos trabalhadores da BA Glass.


34) Cabia ao Trabalhador verificar se os moldes e contramoldes que eram retornados pelos reparadores externos estavam corretamente reparados e, com exceção das boquilhas que estavam em produção, também lhe cabia verificar as boquilhas que retornavam do reparador externo.


35) Quando se encontrava presente, e no respetivo horário de trabalho, das 8:00 horas às 16:30 horas, de segunda a sexta-feira, o Trabalhador poderia ainda rececionar as boquilhas e moldes já reparados.


36) A preparação das guias de remessa que identificam o número de moldes e boquilhas que são enviados para reparar pela J..., Lda., contendo a informação que, posteriormente, será utilizada por esta empresa para emissão da competente fatura e cobrança do valor devido pelas reparações efetuadas, era efetuada pelo gestor de turno, podendo sê-lo também pelo Engenheiro que estivesse presente, pelo Trabalhador ou por outro colega de trabalho, nomeadamente pelo chefe da oficina, e ex-trabalhador, GG.


37) No dia 20 de janeiro de 2022 a Entidade Empregadora teve conhecimento que o Trabalhador se encontrava a prestar atividade no fornecedor externo J..., Lda..


38) Tal facto foi inclusivamente confirmado pelo gerente do aludido fornecedor, HH, em reunião então mantida com o Diretor da Fábrica da BA Glass ..., II, e com o Responsável da Manutenção da mesma fábrica, JJ.


39) Já em março de 2012, o Trabalhador havia prestado trabalho na aludida reparadora J..., Lda., sendo, simultaneamente, trabalhador subordinado da BA Glass, facto que chegou ao conhecimento da direção da fábrica nessa ocasião (alterado pelo Tribunal da Relação)


40) Nessa altura, a J..., Lda. já era o reparador fornecedor externo da BA Glass e onde eram sempre reparadas as boquilhas.


41) Na J..., Lda. o Trabalhador reparava boquilhas enviadas pela BA Glass.


42) O serviço prestado pelo fornecedor J..., Lda. respeita ao departamento da BA Glass em que o Trabalhador se integra, bem como às concretas tarefas desempenhadas pelo mesmo.


43) A BA Glass é o maior cliente da J..., Lda.


44) A J..., Lda. executa trabalhos para o grupo BA Glass, que inclui as fábricas ..., de ... e ... (Espanha).


45) Na J..., Lda. o Trabalhador é remunerado em função do número de peças reparadas, enquanto que na BA Glass auferia uma remuneração fixa mensal independentemente do número de peças reparadas internamente.


46) Segundo o Código de Ética da Entidade Empregadora “Os colaboradores deverão atuar com independência, imparcialidade e com lealdade à BA e à margem de interesses próprios ou alheios. Deverão pois abster-se de intervir ou influenciar a tomada de decisões que possam afetar pessoas a que estejam ou tenham estado ligados por laços de parentesco ou afinidade ou entidades com que colaborem ou tenham colaborado. Eventuais situações de potencial ou efetivo conflito de interesse devem ser comunicadas ao superior hierárquico. Os colaboradores deverão ainda abster-se de exercer funções em sociedades fora do Grupo sempre e quando essas atividades interferirem com o cumprimento dos seus deveres ou com os objetivos e atividades das empresas do Grupo.”


De Direito


Como já se referiu, “a Recorrente pretende impugnar o exercício dos poderes-deveres da Relação da reapreciação do probatório” (Conclusão 1.1).


Tal pretensão esbarra, contudo, com os poderes muito limitados deste Supremo Tribunal de Justiça na matéria. As decisões proferidas pelo Tribunal da Relação sobre a matéria de facto no âmbito dos seus poderes-deveres não são, como resulta inequivocamente do n.º 4 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, suscetíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça limita-se a aplicar o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais tal como foram fixados pelo Tribunal recorrido (n.º 1 do artigo 682.º), não podendo alterar a decisão em matéria de facto salvo o caso excecional do artigo 674.º n.º 3 (artigo 682.º n.º 2 do CPC). Ora o tipo legal do n.º 3 do artigo 674.º não está preenchido: um documento é um meio de prova a apreciar livremente pelo Tribunal e não foi invocada qualquer circunstância de prova tabelada, isto é, qualquer “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência de um facto”. E o facto de o Tribunal da Relação chamar na fundamentação da sua decisão atenção para os factos que não foram provados no processo compreende-se perfeitamente quando se atenta a que seriam factos relevantes para a decisão sobre a existência, ou não, de justa causa de despedimento e cujo ónus da prova cabia ao empregador. Assim, por exemplo, dizer-se que não se provou a existência de danos significa isso mesmo e só isso: que o empregador não provou, como lhe competia, a existência de quaisquer danos.


Improcede, pois, o recurso da decisão do Tribunal da Relação em matéria de facto.


Relativamente à invocada nulidade por excesso de pronúncia importa começar por referir que na hipótese de despedimento ilícito quando o trabalhador opta pela indemnização substitutiva da reintegração tem direito nos termos da lei a uma indemnização “entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade” (n.º 1 do artigo 391.º do CT), sendo que “para efeitos do número anterior, o tribunal deve atender ao tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial” (n.º 2 do artigo 391.º do CT).


A sentença neste aspeto decidiu condenar o empregador ao pagamento “[d]a quantia correspondente a 35 dias de retribuição base do Trabalhador por cada ano completo ou fração de antiguidade do Trabalhador, no total de € 50.282,49 (cinquenta mil duzentos e oitenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar do trânsito em julgado desta sentença e até efetivo e integral pagamento”. Interpretando-a fácil é concluir, por um lado que a condenação foi no pagamento de 35 dias de retribuição base do Trabalhador por cada ano completo ou fração de antiguidade do Trabalhador, sendo que o montante indicado de € 50.282,49 se limitava a concretizar o que nesse momento era devido ao trabalhador, mas sem qualquer escopo de limitar a indemnização caso o empregador decidisse, como decidiu, recorrer. E a referência “a contar do trânsito em julgado desta sentença” reporta-se ao pagamento dos juros de mora à taxa legal. Não existe, pois, qualquer nulidade por excesso de pronúncia.


Devendo considerar-se como definitivamente assente a decisão em matéria de facto, há que concluir que existe “dupla conformidade” na decisão das instâncias quanto ao juízo de ilicitude do despedimento, pelo que a questão não pode ser conhecida no âmbito de um recurso intentado ao abrigo do disposto no artigo 671.º n.º 1 do CPC. Tendo o Recorrente interposto um recurso de revista excecional subsidiário cabe à Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 junto desta Secção Social decidir da admissibilidade, ou não, da referida revista excecional.


Quanto à questão do valor da indemnização substitutiva da reintegração, face à decisão tomada da improcedência do recurso em matéria de facto pode agora, igualmente, concluir-se que também quanto a ela existe “dupla conformidade”.


Esta questão tinha sido admitida como objeto do presente recurso porque tendo o Recorrente interposto um recurso em que punha em causa a decisão do Tribunal da Relação em matéria de facto, não era possível aquilatar em que medida é que uma eventual alteração da matéria de facto poderia incidir tanto sobre a existência de ilicitude do despedimento, como sobre o grau dessa ilicitude, caso se concluísse que o despedimento era ilícito. Em suma, a questão do valor da indemnização poderia ser afetada pela eventual alteração da matéria de facto. Mas uma vez que o recurso quanto à decisão da matéria de facto não procedeu é agora possível, como se disse, concluir pela “dupla conformidade” que impede a apreciação desta questão.


As decisões das instâncias não são idênticas, já que a decisão da 1.ª instância condenou o empregador no pagamento de 35 dias de retribuição base por cada ano de antiguidade ou fração, ao passo que o Acórdão recorrido condenou o empregador no pagamento de 30 dias de retribuição base por cada ano de antiguidade ou fração, mas tem sido o entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça que se devem equiparar à “dupla conformidade” as situações em que “a Relação profere uma decisão que, embora não seja rigorosamente coincidente com a da 1.ª instância, se revele mais favorável á parte que recorre”4. Neste sentido cfr., por todos, os Acórdãos deste Tribunal proferidos a 04-06-2020, processo n.º 8641/14.2.RDLSB.C1.S1 (Relatora Conselheira Helena Moniz) e a 06-07-2022, processo n.º 240/19.9T8.FAR.E1.S1 (Relator Conselheiro Pedro Branquinho Dias).


3. Decisão: Negada a revista, devendo remeter-se o recurso à Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto desta Secção Social para conhecer da admissibilidade da revista excecional intentada a título subsidiário.


Custas a decidir a final.


Lisboa, 8 de maio de 2024


Júlio Gomes (Relator)


Domingos José de Morais


Mário Belo Morgado





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1. Redação anterior: “39) Já em março de 2012, o Trabalhador havia prestado trabalho na aludida reparadora J..., Lda., sendo, simultaneamente, trabalhador subordinado da BA Glass, facto que chegou ao conhecimento da Entidade Empregadora nessa ocasião.”.

Nova redação: “39) Já em março de 2012, o Trabalhador havia prestado trabalho na aludida reparadora J..., Lda., sendo, simultaneamente, trabalhador subordinado da BA Glass, facto que chegou ao conhecimento da direção da fábrica nessa ocasião.”.↩︎

2. É invocada a contradição de julgados com o Acórdão de 15.06.2023 proferido pelo Tribunal da Relação de Évora no processo nº 512/22.5T8TMR.↩︎

3. É invocada a contradição de julgados com o Acórdão de 15.06.2023 proferido pelo Tribunal da Relação de Évora no processo nº 512/22.5T8TMR.↩︎

4. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 3.ª ed., 2016, p. 325, citando a posição de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA.↩︎