Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
130/10.0JAFAR.F1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: DOCUMENTO
JUNÇÃO NA FASE DE RECURSO
QUESTÃO NOVA
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
RENOVAÇÃO DA PROVA
DIREITOS DE DEFESA
DIREITO AO RECURSO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
BEM JURÍDICO TUTELADO
DOLO DIRECTO
ILICITUDE
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
SOLICITAÇÃO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA
DESENTENDIMENTOS COM VÍTIMA
Data do Acordão: 03/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROVA/ MEIOS DE PROVA - AUDIÊNCIA - SENTENÇA - RECURSOS
DIREITO PENAL - PENAS/ ESCOLHA E MEDIDA DA PENA
Doutrina: - Maia Gonçalves, in CP P, Anotado, 2005, 376.
- Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, págs. 60, 1035, 1181.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPC): - ARTIGOS 127.º, 165.º, N.º1, 355.º, 356.º, 357.º, 368.º N.º2, 369.º, 374.º, N.º2, 410.º N.º1 E N.º 2, 412.°, N.º 3 AL. A), 427.º, 428.º, 430.º, 431.º, 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 40.º, N.º1, 2, 71.º, 77.º
Legislação Estrangeira:
Referências Internacionais: CEDH - ARTIGO 13.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30.11.94, IN CJ, ACS. DO STJ , ANO II , TIII , 262;
-DE 17.3.2004, P.º N.º 03P2612;
-DE 13.7.2005, P.º N.º 05P2122;
-DE 16.6.2011 E DE 28.9.2011, IN P.º S N.ºS 600/09.JAPRT.P1.S1E 715/07.2PPPRT.P1.S1.
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 1052/96, DE 11/7/96, DR, II SÉRIE, DE 24.12.96;
-N.º 31/87, DE 28.1.87, DR, II SÉRIE, DE 1.4.87;
-N.º 310/94, DE 24.3.94, DR, II SÉRIE, DE 30.8.94.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 10.11.99, DE 10.11.99, CJ, ANO XXIV, T V, 47.
Sumário : I  -   O processo não é um palco onde, sem qualquer limite temporal, se podem praticar quaisquer actos, e a esmo, sem submissão a regras ou limites, sob pena de se afectar o encadeamento lógico em que se traduz, em ordem a atingir-se um objectivo final prédefinido. O art. 165.°, n.º 1, do CPP, estabeleceu como limite temporal à junção de documentos o encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, embora o momento normal seja ao longo do inquérito ou da instrução, mais concretamente o seu encerramento, não faltando quem imponha a alegação e expressa comprovação, no caso de apresentação posterior, mas sempre com aquele limite, de que só nesse momento a junção haja sido possível.
II -  A função do recurso no quadro institucional que nos rege é a de remédio para correcção de erros in judicando ou in procedendo, em que tenha incorrido a instância recorrida, processo de reapreciação pelo tribunal superior de questões já decididas e não de resolução de questões novas, ainda não suscitadas no decurso do processo.
III - Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art. 355.° do CPP, não valem para formação da convicção probatória quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência, com excepção do previsto no n.º 2, atinente às provas contidas em actos processuais cuja leitura seja permitida nos preceitos seguintes, norma que é manifestação do princípio da imediação, um dos estruturantes do nosso processo penal.
IV - O princípio do contraditório postula que toda a prova deve ser produzida na presença do arguido numa audiência pública com vista a uma argumentação contraditória, porém o princípio não é apenas imposto em nome da defesa, mas também uma “garantia da própria sentença, pelo que protege tanto o arguido como o assistente”, como resulta do Ac. do TC n.º 1052/96, de 11/7/96, DR, II Série, de 24-12-96. E aquela limitação continua presente mesmo no caso de renovação da prova, perante a Relação nos termos do art. 430.°, do CPP, em que não podem ser requeridos, nem ordenados oficiosamente novos meios de prova, isto é meios de prova distintos dos já produzidos em anterior julgamento. A renovação de prova não autoriza a apresentação e reexame de novas provas, havendo que mover-se o requerente no âmbito das que já foram produzidas.
V -  A inércia, em tal caso, do sujeito processual no tribunal de 1.ª instância em juntar documentos conhecidos é-lhe, pois, imputável e preclude o direito a juntá-los num momento posterior; mas se, ex adverso, não conhecendo os meios de prova ao tempo da audiência de 1.ª instância e não os podendo juntar, só pode valer-se deles como fundamento de recurso de revisão.
VI - Essa proibição aplicável ao arguido não atinge, de resto, o núcleo essencial do direito de defesa, que não postula, reclama ou sequer legitima a prática de actos processuais em desrespeito à filosofia inspiradora do direito ao recurso e aos princípios sobre a produção da prova, ao arrepio de momentos basilares do processo, que não podem ficar no livre arbítrio do arguido, ficando aqueles direitos inteiramente salvaguardados ainda na aplicação literal do preceito do art. 165.°, do CPP, elemento literal esse que fornece o primeiro e principal critério interpretativo da lei, por força do art. 9.°, do CC.
VII - No que respeita à impugnação da matéria de facto ante a Relação, nos termos dos arts. 427.° e 428.º do CPP, não dispensa o recorrente, além do mais, do ónus de enumeração especificada, ou seja, um a um, dos factos reputados incorrectamente julgados, dentre os elencados como provados ou não provados, quer provenientes da acusação, defesa ou resultantes da discussão da causa, por força do art. 412.°, n.º 3, al. a), do CPP.
VIII - Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada. Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à “decisão proferida”, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjectiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal.
IX - Por força da natureza do recurso da matéria de facto para a Relação, que não é um novo julgamento, um julgamento repetível in totum, mas um julgamento parcial assim estruturado de acordo com a vontade do legislador ordinário, dentro da órbita de poderes de configuração que o constitucional lhe confere.
X -  A garantia de um duplo grau de jurisdição de recurso em sede de matéria de facto não é a repetição por inteiro das audiências, o que se harmoniza inteiramente com o princípio de que não está consagrado no nosso direito um direito ilimitado ao recurso.
XI - A violação do bem jurídico da vida, que o arguido suprimiu, é fortemente repudiada no tecido social; a supressão do direito à vida é um crime muito grave, basta atentar que ocupa o primeiro lugar no descritivo típico-penal da parte especial do CP. A estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação da força e validade do direito reclamam, em nome da prevenção geral, pena elevada capaz de estabelecer a paz jurídica abalada pelo crime, de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito e uma convivência colectiva sem sobressaltos.
XII - Socialmente, deu-se como provado que o arguido é considerado no meio em que reside como paciente, cordato, de fácil relacionamento pessoal, com hábitos de trabalho e que, na sequência dos factos em julgamento, não foi rejeitado pela comunidade envolvente. Objecta-se que muito pouco importa que o meio social não o segregue por tal facto, pois o que importa é o desvalor do homicídio à luz das concepções reinantes em geral, e não no meio local, onde, até à data dos factos, se não manifestou de forma penalmente visível, mercê da natureza geral e abstracta da lei, suscitando o homicídio, comunitariamente, e em geral, vincado sentimento de reprovação social e ética, a que não está imune.
XIII - O arguido matou a vítima depois de uma acesa discussão, consequente a um mau relacionamento de pretérito, entre ambos, com uma arma de fogo, pistola indocumentada, transformada, aliás, de uma forma preordenada e firme, com dolo directo muito intenso, bastando salientar que não obstante após ter disparado um tiro para o ar e ter caído uma bala da câmara ele agarrou-a e remuniciou a arma, puxou a corrediça, armou o cão e, estando aquela (vítima) absolutamente indefesa, disparou à queima roupa, sobre o coração, com total menosprezo pela vida humana, modo de execução que confere um elevado grau de ilicitude, pelo que carece de, pela via da pena, sentir o malefício do seu gesto, tanto mais que não assumiu qualquer sentimento de autocensura não podendo acompanhar-se a tese da Relação de que as necessidades de prevenção especial se mostram “muitíssimo esbatidas”, atenta aquela integração social, e também familiar, de que usufrui e o carácter ocasional do homicídio, antes aquelas se mostrando bem sentidas e visíveis, a reclamar uma intervenção vigorosa do direito penal.
XIV - Se é facto consabido que a integração social afasta o espectro da reincidência e que tudo leva a crer que o homicídio foi um facto acidental na vida do arguido, não pode deixar de perder-se de vista que, pela grandeza do valor atingido, o mais elevado dentre os direitos fundamentais, o arguido carece de reeducação para o direito, de forma a aprender a respeitar a vida humana e não, como o fez, suprimi-la. É verdade que a morte da vítima é despoletada na sequência de um contexto de arrastados conflitos prévios – desde 2007 – entre ambos, com expressões insultuosas e de cariz intimidatório à mistura e de uma troca acesa de palavras, esta a preceder a consumação do crime, mas isso não justifica que não houvesse alternativas para solução do dissídio entre ambos.
XV - Provado ficou que o arguido após o disparo à queima roupa, prestou alguns socorros à vítima e diligenciou pela comparência de assistência médica, denotando reacção de arrependimento, diz o arguido em vista da redução da pena. Mas a morte da vítima ocorre segundos após o disparo à queima roupa precisamente sobre o coração, pelo que é absolutamente irrelevante, por improfícuo à vítima, esse comportamento, bem como o chamamento de meios de assistência médica local, de resto sem qualquer alcance de arrependimento, que é expressão de assunção sincera dos factos e seus efeitos bem como de inadequação do facto à personalidade do agente, acto não querido e que só um condicionalismo especial torna compreensível e não é o caso desse acto posterior ao crime, não revelador desse sentimento e dimensão atenuativa, nos termos do art. 71.º, n.º 2, al. e), do CP.
XVI - A Relação reduziu a pena para o crime de homicídio, e numa moldura de 8 a 16 anos de prisão, fixou-a em 12 anos, mas abaixo desse limite já se não justifica qualquer redução, intolerável e incompreensível comunitariamente, maior benevolência, só passando pela atribuição de um injustificado pendor atenuativo ainda mais ponderoso na vertente da formação concreta da pena, à luz do art. 71.°, do CP, do que o concedido pela Relação, que às razões insertas nas conclusões sobre esta matéria não deixou, e na totalidade, de atender.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

 O Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum e com intervenção de tribunal colectivo, sob o n.º 130/10.0JAFAR . F1, no Tribunal judicial de Loulé, contra  AA , vindo este , a final , a ser condenado pela prática de um crime de homicídio simples , p e p. pelo artigo 131.º , do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3.º, n.º 2, al. l) e 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio. , nas penas de 14 e 2 anos , de prisão,   respectivamente e , em cúmulo jurídico , na pena de 15 anos de prisão .

Mais foi condenado  a pagar :

em conjunto, a BB, CC e DD a quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros);

 a BB a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros);

a CC a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros); e

a DD a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), tudo a título de indemnização pelos danos morais causados .

I . A Relação , alterando o decidido , condenou o arguido na pena de 12 anos de prisão pela prática do crime de homicídio simples , mantendo a imposta antes  pela detenção ilegal de arma , condenando, em cúmulo ,  na pena única de 12 anos e 8 meses de prisão .

II . Ainda irresignado,  o arguido interpõs recurso para este STJ , apresentando na motivação as seguintes conclusões :  

No recurso para a Relação , o arguido juntou um documento comprovativo de uma situação hospitalar  que lhe diz respeito , o que fez para comprovar uma situação  atinente ao segmento de facto vertido na conclusão C-IV, nos termos enunciados no n.º 16 da motivação de recurso .

A  não admissão do  documento em causa  foi motivada por o art.º 165.º , do CPP , só permitir a junção de documentos até ao encerramento da audiência de julgamento que tem lugar em 1.ª instância .

A norma do art.º 165.º n.º 1 , do CPP , assim interpretada viola as garantias do direito de defesa e o direito ao recurso consagradas no art.º 32.º n.º 1 , da CRP , bem como o direito a um processo equitativo previsto no art.º 20.º n.º 4 , da CRP , tal como o art.º 6.º da CEDH .

A norma em causa deve ser interpretada extensivamente ou seja no sentido de que havendo recurso para a Relação da matéria de facto a junção de documentos deve ser permitida até esse momento , enquanto corolário do princípio da descoberta da verdade material e do próprio direito ao recurso .

Na motivação do recurso foi impugnada  a omissão da seguinte factualidade , identificada na conclusão C),  e que consta da motivação :-

O relacionamento conflituoso entre a vítima e o arguido ;

Nesse âmbito chegou mesmo a escrever com um spray , no dia dos factos , e na parede de um prédio , a expressão “ beco dos inimigos “ ;

E demonstra ter medo da vítima e amedrontamento  pelas expressões e atitudes  da vítima .

No próprio dia do acontecimento fatal a vítima agrediu o arguido várias vezes na cabeça , provocando-lhe um ferimento na parte interna do lábio inferior , que levou a ser suturado com três pontos .

O arguido agiu num quadro de grande desorientação emocional , não querendo o resultado dela , de que logo se arrependeu .

O acórdão da Relação não apreciou a impugnação por entender , face aos art.ºs 368 .º n.º 2  e 369.º  , conjugados com o art.º 374.º n.º 2 , do CPP , que aquele Tribunal só pode apreciar a impugnação dos factos dados como provados ou não provados , estando-lhe vedado pronunciar-se sobre factos que não tenham sido apreciados pelo tribunal , vindos da acusação ou da contestação .

No entender do arguido o recurso sobre a matéria de facto abrange qualquer questão de que pudesse conhecer a decisão recorrida , nos termos dos art.ºs 410.º n.º 1 , 428.º e 431 .º , do CPP .

Por outro lado , nos termos do art.º 368.º n.º 2 , do CPP , estabelece-se que são submetidos a votação e deliberação  não só os factos que resultaram da acusação e defesa , como , ainda , os casos resultantes da discussão da causa relevantes para a decisão de direito .

Logo se não aceita a regra de que a norma legal não abrange a discussão e votação de tudo aquilo que resulta da discussão da causa e for relevante para decisão de direito .

E do art.º 412.º n.º 3 , do CPP , ao definir o âmbito da impugnação , devendo identificar-se os factos incorrectamente julgados , então há-de aquela abranger tanto aquilo que se decidiu como a matéria omitida .

Mostram-se violados os preceitos dos art.ºs 410.º , 412.º n.º 3 e 428.º , em conjugação com os art.ºs 368.º e 369 .º , do CPP , em termos de a impugnação abranger factos não provados na sentença , mas que deviam figurar na decisão condenatória , como provados , na óptica do recorrente .

Parte de tal factualidade integra a própria acção criminosa .

Em qualquer caso argui-se a inconstitucionalidade da interpretação normativa dada aos art.ºs 368.ºn.º 2 , 369.º e 374.º n.º 2 , conjugadamente com os art.ºs 410.º n.º 1 , 428.º e 412.º n.º 3 , do CPP , no sentido de que não pode ser objecto do recurso para a Relação da matéria de facto , objecto da prova produzida em 1:ª instância , se o recorrente defender como relevante para a decisão da causa quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados nem conste da acusação e contestação .

Viola-se o direito ao recurso e restringe-se de forma desproporcionada e injustificada  esse mesmo direito em matéria de facto . –art.º 32.º n.º 1 , da CRP e 2.º do Protocolo n.º 7 , da CEDH.

2.Tendo em vista o juízo de menor necessidade de prevenção especial quanto ao arguido , a pena aplicada peca por excesso .

De facto as necessidades de prevenção especial são esbatidas ; o arguido não tem antecedentes criminais , estando social e familiarmente bem inserido .

O seu comportamento é uma actuação isolada , inserta num relacionamento bastante conflituoso, com troca de expressões insultuosas e de carácter intimidatório .

Logo após o evento o arguido prestou alguns cuidados de primeiros socorros à vítima e diligenciou junto das autoridades pela comparência de assistência médica

Tudo a justificar que a pena se situe mais do limite mínimo não excedendo 10 anos , e , em cúmulo , 10 anos e 6 meses de prisão .

III . Foi cumprido o art.º 417.º n.º 2 , emitindo o M.º P.º parecer desfavorável à pretensão do recorrente , negando –se provimento ao recurso .

IV.A- Matéria de facto provada:
1. Desde, pelo menos, o ano de 2007 que o arguido passou a residir em V..., freguesia de S..., Loulé.
2. A poucos metros da sua moradia, na vivenda designada “Casa …”, residia EE.
3. Desde o referido ano de 2007 que o relacionamento de vizinhança entre ambos se tornou conflituoso, com troca frequente de expressões insultuosas e de carácter intimidatório.
4. Em data e em circunstâncias que não foram apuradas o arguido adquiriu uma pistola semi-automática de calibre 6,35 mm Browning, transformada, com os dizeres “ME” e “Germany”, o respectivo carregador e, pelo menos, seis munições, que passou a trazer consigo.
5. No dia 14 de Abril de 2010, cerca das 09:45 horas, o arguido e EE cruzaram-se, iniciando uma acesa troca de palavras.
6. Encontrando-se a uma certa distância de EE o arguido, munido da pistola descrita em 4.º, disparou um tiro para o ar. 
7. Após este disparo, o arguido aproximou-se de EE e continuaram ambos a discutir de forma exaltada.
8. A dado momento, o arguido tirou a pistola do bolso, puxou a corrediça, ocasionando a extracção de uma munição que já se encontrava na câmara, que caiu no chão, tendo-se introduzido uma nova munição na câmara, ficando armado o cão.
9. De imediato, aproximou o cano da arma ao peito de EE, junto do coração, e premiu o gatilho ocasionando um disparo.
10. O projéctil disparado ocasionou em EE um orifício de cerca de 6 mm de diâmetro no tórax anterior à esquerda da zona mediânica torácica, ligeiramente abaixo da linha inferior mamilar, a 8 cms aproximadamente do limite interno do mamilo esquerdo.
11. A chama da explosão ocasionou junto à pele, na zona concêntrica do orifício de entrada do projéctil, uma queimadura com hematoma traumático de configuração em coroa circular.
12. Depois de atravessar a pele entre a 4.ª e 5.ª costelas esquerdas, com impacto ligeiro na 4.ª e com perfuração de tipo laceração perfurante, o projéctil rompeu a parede muscular do ventrículo esquerdo na zona inferior, ocasionando hematoma hemorrágico.
13. A perfuração do tórax originou igualmente hemorragia volumosa de mais de 2.500 cc na cavidade torácica.
14. O projéctil perfurou ainda o diafragma, esfacelo do fígado, depois de mudar de direcção no tórax e abdómen, vindo a imobilizar-se incrustado na bacia.
15. Logo após o disparo, o arguido prestou alguns cuidados de primeiros socorros a EE e diligenciou telefonicamente junto das autoridades pela comparência de assistência médica.  
16. EE veio a falecer poucos segundos após ter sido vítima do disparo efectuado pelo arguido, imobilizando-se em posição de decúbito dorsal no solo, frente à sua residência.
17. A morte de EE adveio, directa e necessariamente, das supra referidas lesões e bem assim do choque hemorrágico causado pelas rupturas produzidas na parede do miocárdio, que originaram hemorragia, com perda volumosa de fluido hemático da circulação, que impediu a acção da função cardíaca de bomba aspirante-premente, circulação essa que passou a escoar-se para a cavidade torácica, sendo certo que também as outras hemorragias, ainda que de menor volume, eram potencialmente idóneas a produzir o resultado morte a breve trecho.
18. A pistola utilizada pelo arguido foi encontrada pelas autoridades policiais numa cisterna de água situada ao lado da residência de EE, estando com a patilha de segurança na posição de disparar e contendo na câmara uma munição.
19. Tanto a pistola como as respectivas munições encontravam-se em bom estado de conservação e de funcionamento.
20. O arguido conhecia a natureza e as características da arma e das munições que detinha, não dispondo de qualquer autorização que lhe permitisse utilizar armas e sabia que não lhe era permitido detê-la naquelas condições.
21. Ao agir da forma descrita o arguido pretendeu e logrou causar a morte a EE.
22. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
23. Através de escritura pública realizada no dia 23 de Abril de 2010, no Cartório Notarial  de FF, em Vilamoura, DD, solteira, BB e CC, na qualidade de suas filhas, foram habilitadas como únicas herdeiras de EE, falecido em 14.04.2010.
24. À data da sua morte EE tinha 55 anos [havia nascido em 18.08.1954].
25. Era uma pessoa robusta, saudável, alegre e bem disposta.
26. Era estimado e acarinhado por amigos e familiares, sobretudo pelas suas filhas.
27. Dedicava-se à actividade de desinfestação e eliminação de insectos.
28. Relativamente ao ano de 2009 e para efeitos fiscais EE, apresentou rendimentos no montante de € 33.800,00.
29. Mesmo após o seu falecimento alguns clientes perguntavam por EE.
30. Até à data da sua morte [14.04.2010] a demandante DD trabalhava com o pai.
31. A notícia da morte de EE, designadamente pelas circunstâncias em que ocorreu, causou nas demandantes dor, tristeza e profundo desgosto.
32. O arguido é proveniente de um agregado familiar numeroso de condição modesta.
33. Até aos 15 anos de idade o seu processo de crescimento foi pautado pelas limitações económicas e austeridade nas relações intra-familiares.
34. Em termos escolares concluiu apenas a 4.ª classe.
35. Aos 16 anos emigrou para França, onde se manteve durante 20 anos.
36. Nesse país desenvolveu actividade na área da construção civil e, na sequência de acidente de trabalho quer deixou algumas limitações físicas, numa clínica privada como maqueiro e ajudante de enfermagem.
37. Em termos afectivos casou com uma cidadã francesa, união que durou 23 anos e da qual resultaram 3 filhos, todos residentes em França, com idade adulta e com os quais mantém contactos regulares.
38. Em 1997 regressou a Portugal, reorganizando a sua vida profissional e afectivamente.
39. Estabeleceu uma união de facto com a actual companheira, onde se exteriorizam laços consistentes de coesão e entreajuda.
40. Estabeleceu-se na área da construção civil, com a aquisição de terrenos e posterior construção de moradias para venda.
41. À data dos factos em julgamento residia na actual morada, mantendo laços de alguma proximidade com alguns vizinhos estrangeiros e também com os dois filhos da companheira residentes nas imediações.
42. É considerado no meio em que reside como paciente, cordato, de fácil relacionamento pessoal e com hábitos de trabalho.
43. O aparecimento de um problema de saúde (no aparelho urinário) há cerca de cinco anos acarretou uma maior fragilidade física, necessidade de vigilância médica regular e cumprimento de certa terapêutica.
44. Apresenta uma situação económica estável, suportada no pecúlio acumulado ao longo dos anos.
45. Recebe uma pensão de invalidez no valor de € 386,00 (pelo acidente de trabalho em França), que evoluirá para uma pensão de reforma correspondente ao período de tempo que trabalhou nesse país.
46. A companheira aufere uma pensão de viuvez no valor de € 140,00.
47. Na sequência dos factos em julgamento, não foi rejeitado pela comunidade envolvente.
48. No cumprimento da medida de coacção imposta [obrigação de permanência na habitação fiscalizada mediante vigilância electrónica] manteve um estrito cumprimento das obrigações decorrentes dessa situação de confinamento.
49. Recebe o apoio da actual companheira e de alguns elementos da família alargada, nomeadamente a visita regular de um filho que reside em França.  
50. Por factos praticados em 13.05.2002 o arguido foi condenado, em 10.07.2006, pela prática de um crime de dano, na pena de 140 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

 V. Matéria de facto não provada:
1. Que tivesse sido o arguido a atirar a pistola para a cisterna referida no ponto 18 dos factos provados.
2. Que o EE fosse sócio e gerente da sociedade “P... & Lda.”, com sede no Pólo Empresarial de Almancil, Loja …, em Almancil.
3. Que EE se dedicasse à actividade de gestão de condomínios.
4. Que após a morte de EE os clientes e fornecedores da sociedade “P… & Lda.” tivessem questionado se a mesma ia encerrar ou se estava à venda.
5. Que em virtude do falecimento de EE a sociedade “P… & Lda.” tivesse diminuído a sua actividade comercial.
6. Que EE auxiliasse economicamente as demandantes, designadamente pagando a renda da habitação de CC e a prestação bancária de DD.


VI. Colhidos os legais vistos , observado o disposto no art.º 417.º n.º 2 , do CPP ,  cumpre decidir :

O arguido fez juntar com a motivação de recurso para a Relação um documento , a fls. 916, onde se relata que deu entrada no serviço de urgência do Hospital de Faro no dia 14.4.2010 , pelas 14h07 e teve alta , nesse dia , pelas 14h36 , porém a Relação , considerando o preceituado no art.º 165.º n.º 1 , do CPP , segundo o qual a junção de documentos deve ser feita até ao encerramento do inquérito ou da instrução , mas não sendo possível até ao encerramento da audiência em 1.ª instância , ordenou a sua restituição ao apresentante .

A primeira questão que o recorrente sustenta em recurso é a da inconstitucionalidade de uma interpretação ao pé da letra daquele preceito quanto à oportunidade da junção de tal documento , sendo que uma interpretação extensiva é a que se impõe , em termos de consentir a incorporação de tal documento até ao julgamento em recurso  da matéria de facto, havendo lugar a ele ,  na Relação , pois entendimento normativo diferenciado implica restrição ao direito ao recurso e a um processo equitativo, em violação de preceitos constitucionais que convoca  .

Mas o processo, diga-se ,  não é um palco onde, sem qualquer  limite temporal , se podem  praticar quaisquer actos, e a esmo , sem submissão a regras ou limites , sob pena de se afectar o encadeamento lógico em que se traduz em ordem a atingir-se um objectivo  final prédefinido .
O art.º 165.º n.º 1 do CPP estabeleceu como limite temporal à junção de documentos o encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância , embora o momento normal seja ao longo do inquérito ou da instrução , mais concretamente o seu encerramento , não faltando quem imponha a alegação e expressa comprovação  , no caso de apresentação posterior , mas sempre com aquele limite , de que só nesse momento  a junção haja sido possível 
Quer a doutrina quer a jurisprudência acordam em fixar o momento limite da junção o encerramento da audiência de discussão e julgamento em 1.ª  instância  , como resultado da natureza do recurso penal  ordinário –cfr. Acs. do STJ , de 30.11.94 , in CJ , Acs. do STJ , ano II , TIII , 262 e de 10.11.99 , do TRC , de 10.11.99 , CJ , Ano XXIV , T V, 47 e Maia Gonçalves , in CP P , Anotado , 2005 , 376 . Os recentes acórdãos de 16.6.2011 e de 28.9.2011 , in P.º s n.ºs 600/09 .JAPRT.P1.S1e 715/07.2PPPRT.P1.S1, respectivamente , enraízam esse entendimento na consideração de que a partir do momento em que o juiz concede a palavra para alegações ao M.º P.º , assistente , demandantes cíveis e defensores,  está configurada a impossibilidade de junção de documentos .

À decisão da questão importa ter presente que a função do recurso no quadro institucional que nos rege  é a de remédio para correcção de erros “ in judicando ou in procedendo “  em que tenha incorrido a instância recorrida ,processo de reapreciação pelo tribunal superior  de questões já decididas e não de resolução de questões novas, ainda não suscitadas no decurso do processo .

Por outro lado , nos termos do n.º 1 , do art.º 355.º , do CPP , não valem para formação da convicção probatória quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência , com excepção do previsto no n.º 2  , atinente às provas contidas em actos processuais cuja leitura seja permitida nos preceitos seguintes , norma que é manifestação do princípio da imediação , um dos estruturantes do nosso processo penal .

Enquanto princípio , comportando as excepções previstas no art.º 356.º e 357.º , do CPP , assume ele   , no dizer de Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código de Processo Penal , pág. 60 , natureza constitucional , pois está ínsito na ideia de um Estado de direito , postulando o direito a um processo justo , com o alcance de os sujeitos processuais não serem surpreendidos , em qualquer momento , com meios de prova novos , que não puderam contraditar no momento e local processual por excelência que é a audiência de julgamento em 1:ª instância  , sendo , ainda , corolário do princípio do contraditório.  
Postula este que toda a prova deve ser produzida na presença do arguido numa audiência pública com vista a uma argumentação contraditória , porém o princípio não é apenas imposto em nome da defesa , mas também uma “ garantia da própria sentença , pelo que protege tanto o arguido como o assistente “ , como resulta do acórdão do TC  n.º 1052/96, de 11/7/96  , DR , II Série , de 24.12.96 .
E aquela limitação continua presente  mesmo no caso de renovação da prova, perante a Relação  nos termos do art.º 430.º , do CPP , em que não podem ser requeridos , nem ordenados oficiosamente novos meios de prova , isto é meios de prova distintos dos já produzidos em anteriores  julgamento 
A renovação de prova não autoriza a apresentação e reexame de novas provas , havendo que mover-se o requerente no âmbito das que já foram  produzidas .

A inércia , em tal caso, do sujeito processual no tribunal de 1.ª instância em juntar documentos conhecidos é –lhe, pois ,  imputável e preclude o direito a juntá-los num momento posterior  ; mas se  , “ ex adverso , não conhecendo os meios de prova ao tempo da audiência de primeira instância  e não os podendo juntar , só pode valer-se deles como fundamento de recurso de revisão , isto porque o legislador português não seguiu a disciplina do art.º 564.º , do CPP italiano , onde se consagra , para fins de  renovação de prova , a solução da “ assunzione di nueve prove “ –cfr. , ainda Paulo Pinto de Albuquerque , op. cit. , pág. 1181.

O documento cuja junção se pretende é , aliás , de um total e evidente vazio probatório, por relatar , apenas , que o arguido compareceu no serviço de urgência do Hospital de Faro  no dia dos factos , e foi atendido 27 minutos depois da entrada ,  mas ,por falta de referência,  sequer se descreve a doença de que padecia –se é que padecia –e o tipo de tratamento que lhe foi prescrito , se o foi .


De todo o modo temos como certo que o dito documento , de todo irrelevante à decisão da causa por dele não transparecer que o arguido foi previamente agredido pela vítima e sujeito a tratamento hospitalar no dia dos factos , ainda assim  podia ter sido junto até àquele momento .

Essa proibição aplicável ao arguido não atinge , de resto , o núcleo essencial do direito de defesa , que não postula ,  reclama ou sequer legitima a prática de actos  processuais em desrespeito à filosofia inspiradora do direito ao recurso e aos princípios sobre a produção da prova,  ao arrepio de  momentos basilares do processo, que não podem ficar na livre arbítrio do arguido , ficando aqueles direitos inteiramente salvaguardados ainda  na aplicação  literal do preceito do art.º 165.º , do CPP , elemento literal esse que fornece o primeiro e principal critério interpretativo da lei , por força do art.º 9.º , do CC.

Vale por dizer que tal restrição e em tal caso não representa um excesso de rigor formal , desmesurado, desproporcionado , arbitrário e chocantemente atentatório do direito de defesa do arguido em ofensa ao princípio segundo qual o processo penal assegura todos os direitos de defesa , que não abdica de compreensíveis ónus e limitações.

 

VII  Como se sabe a CRP consagrou o direito ao recurso como um direito fundamental de defesa , na concordância prática com o disposto no art.º 13º da CEDH , mas concedeu ampla liberdade no que toca à sua conformação ao legislador ordinário  .
Assim , no que respeita à impugnação da matéria de facto ante a Relação ,nos termos dos  art.ºs  427.º e 428 .º , do CPP , não dispensa o recorrente, além do mais ,  do ónus de  enumeração especificada, ou seja um a um , dos factos reputados incorrectamente julgados, dentre os elencados  como provados ou não provados , quer provenientes da acusação, defesa ou resultantes da discussão da causa , por força do art.º 412.º n.º 3 a) , do CPP .

Quando, então ,  impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto  tal impugnação  faz-se por referência à matéria de facto efectivamente provada  ou não provada e não àqueloutra  que o recorrente , colocado numa perspectiva interessada , não equidistante , com o devido respeito , em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto , entende que devia ser provada .

Por isso, segundo os termos da lei ,  a impugnação é restrita  à “ decisão proferida “ , e realmente prolatada ,  e não a qualquer realidade virtual , de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal , intimista e subjectiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal .

O arguido impugnou especificadamente  o ponto de facto sob o n.º 21 , em que se inscreve o dolo  directo homicida do arguido,  mas , em sede de impugnação da matéria de facto assente , intenta ver provado, ainda , que ,  no relacionamento que vítima e arguido mantinham,  aquela se lhe referisse apodando –o de  “ cabrão “ ou  “filho da puta “ , escrevendo , a “spray “  , numa parede de um prédio “ beco dos inimigos “ , que o arguido tivesse medo da vítima , vivesse amedrontado com expressões e atitudes dirigidas por ela , e que no dia do crime , a vítima , além de ter trocado palavras acesas com o arguido , também o agrediu,  por diversas vezes,  na cabeça , provocando-lhe mesmo corte na parte interna do lábio inferior , que levou a sutura de três pontos e mais que o arguido agiu num clima de desorientação emocional, levando a que , por não  desejar esse resultado , se tivesse arrependido -( al. C) , das conclusões ) .

Esse complexo fáctico a ter como provado extrapola, à evidência  do capítulo dos  factos julgados  provados e não provados em 1.ª instância, em nenhum deles se inserindo.
Por força da natureza do recurso da matéria de facto para a Relação , que não é um novo julgamento , um julgamento repetível in totum , mas um julgamento parcial assim estruturado de acordo com a vontade do  legislador ordinário , dentro da órbita de poderes de configuração que o constitucional lhe confere .

Propondo-se assegurar o recurso da decisão da matéria de facto para a Relação um grau de jurisdição de recurso , não se impondo outro reexame , particularmente por este STJ , vista a limitação decorrente do art.º 434.º , do CPP , o legislador do Dec.º -Lei n.º 39/95 , de 15/2 , logo acrescentou , que aquele reexame da prova gravada , nunca pode envolver a “ reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência “ , mas , apenas , a correcção de aspectos pontuais ,  “ concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento “ .
Observou-se , ainda , no preâmbulo de tal diploma , que  “ o objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências , perante a Relação “ , mas fundamentados erros de julgamento ; a invocação dos vícios previstos no art.º 410.º n.º 2 , do CPP , a modificabilidade da matéria de facto nos termos do art.º 431.º , do CP P , a renovação da prova , nos termos do art.º 430.º , do CPP  e a impugnação da matéria de facto nos termos do art.º 412.º n.º 3 , do CPP , são mecanismos processuais suficientes à  necessária e efectiva garantia de acerto decisório da matéria de facto, afastando qualquer ideia de (re) julgamento global em termos daquele alargamento,  nos moldes pretendidos,  os art.ºs 368.º n.º2 e 369.º , do CPP .

A garantia de um duplo grau de jurisdição de recurso em sede de matéria de facto não é a repetição por inteiro das audiências, o que se harmoniza inteiramente com o princípio de que não está consagrado  no nosso direito um direito ilimitado ao recurso , ou seja , no comentário de Paulo Pinto de Albuquerque , op.cit. , pág. 1035 , “ um direito irrestrito ao recurso de todos os despachos e sentenças do tribunal “ , na esteira dos Acs. do TC n.º 31/87,  de 28.1.87, DR ; II Série , de 1.4.87 ,  310/94 , este de 24.3.94, DR , II Série , de 30.8.94 .
VIII . E nada mais exige o legislador constitucional , sequer possibilitando o alargamento proposto,  que nem a doutrina nem a jurisprudência sufragam.

IX.A invocação do art.º 368.n.º 2 , do CPP , nem sequer colhe pertinência , dispondo sobre a questão da culpabilidade, que se a apreciação do mérito não tiver sido prejudicada , o presidente do tribunal  enumera discriminada e especificadamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação , defesa e bem assim os que resultarem da discussão da causa , relevantes para a questão a decidir , suposta, como é óbvio , aquela alegação , que não teve lugar pela defesa,  a quem aproveitariam , e nem o tribunal os teve por comprovados em seu favor .

E o art.º 369.º , do CPP , atinente à questão imediata da determinação da pena , também não impõe aquele reexame , prejudicado como está pela inaplicabilidade do precedente 368.º n.º 2 , do CPP .
Por seu turno o art.º 410.º n.º 1 , do CPP , ao estipular que sempre que a lei nada dispuser em contrário , os poderes de cognição do tribunal superior em recurso podem ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida estão sempre limitados objectivamente aos poderes do tribunal recorrido, que não viu esse quadro factual alegado pela defesa , sequer se mostrando relevante a convicção pessoal formada pelo arguido quando divergente da que o tribunal forme sobre os factos , no respeito pelo princípio da livre convicção probatória , ao abrigo do art.º 127 .º , do CPP ( cfr., neste sentido os Acs. deste STJ , de 17.3.2004 , P.º 03P2612 , 13.7.2005 , P:º n.º 05P2122, ambos da 3.ª Sec. ) , logo não se podendo considerar infringido aquele preceito e , menos , a CRP .

Podemos concluir que a interpretação seguida pela Relação restringindo a impugnação da matéria de facto ao horizonte contextual vertido na sua fundamentação factual , tal como o art.º 374.º n.º 2 , do CPP , a conforma ,  em termos de ela só poder incidir no esquema antinómico-facto provado-facto não provado -, não é atentatória do direito ao recurso e nem da Constituição


X. Outra questão :
O arguido contesta a medida da pena que deve situar-se abaixo da fixada , particularmente a de 12 anos de prisão, invocando , fundamentalmente , em primeiro lugar,  o facto de as necessidades de prevenção especial, se mostrarem muito esbatidas , porque o arguido não tem antecedentes criminais relevantes –mas já foi condenado por crime de dano, diremos  nós - estando social e familiarmente bem inserido .

Apreciando :
O nosso legislador penal adoptou uma concepção pragmática das penas , pois visam a protecção dos bens jurídicos e a reinserção( reintegração social) do agente –art.º 40.º , n.º1 , do CP .

A primeira finalidade tem a ver com o fim público da pena de protecção de bens jurídicos , que  vão ditar a necessidade de aplicação de uma pena , partindo-se do suposto , segundo Feuerbach, o grande impulsionador da doutrina da prevenção geral , de que as infracções que as pessoas praticam têm um impulso psicológico ; a função da pena é , assim , combater o impulso psicológico geral e imanente socialmente , é a chamada teoria psicológica da coacção, antes preconizada por Beccaria e Fillangieri.

Não vale a pena praticar delitos porque a espada da lei se abaterá sobre quem o fizer,  isto porque o delito fere o tecido social , causa um verdadeiro risco social , marcando a passagem do Estado de guardião a intervencionista .

Esta a chamada prevenção geral negativa , a que se contrapõe uma formulação positiva ou de integração em que a função da pena já não é tanto aquele efeito dissuasor sobre a sociedade pela magnitude penal aplicada , forma de autocontrole das suas tendências criminosas, mas a forma de reforçar , por via dela , a eficácia da lei e de o Estado manter a confiança da sociedade nos seus órgão aplicadores , de quem esperam intervenção sempre actual e revigorante do sistema , levando os cidadãos a crer na vantagem tanto individual como colectiva da observância da lei .

Mas a prevenção ainda pode assumir outra função agora com uma feição particular , de prevenção especial , de corrigir o delinquente , neutralizando os seus impulsos criminosos afastando-o da reincidência , a fim de recuperar o equilíbrio perdido , pondo a tónica na correcção , na lógica de que não vale a pena cometer crimes . É a chamada prevenção especial positiva , em contraponto com uma concepção negativista em que a pena de prisão se reduz apenas à custódia , sem preocupação de intervenção junto do delinquente ; é a eliminação do marginal e incorrigível , com a sua máxima expressão nos EUA e no aforismo “ Three  stricker and you are out “ , o que equivale a que alguém que pratica um terceiro delito , mesmo que de pouca gravidade , arrisca uma pena de prisão perpétua ou de 25 anos de prisão .

Não reina uniformidade nas legislações quanto à finalidade das penas , mas maioritariamente se seguem concepções que incorporam a um tempo as doutrinas retributivas e preventivas , se bem que o ideário preventivo –especial seja aquisição muito recente , com origem em Iakobs , porém entre nós , no art.º 40.º n.º 1 , do CP , é seguida uma concepção puramente pragmática da pena , visando a protecção dos bens jurídicos e a reinserção social do agente , com vista a evitar que ostracize , de futuro , o tecido social , sendo a culpa elemento constituinte do tipo e  um limite . da pena , quaisquer que sejam as considerações de prevenção reclamadas no caso concreto –n.º 2 .
 
XI . A violação do bem jurídico da vida, que o arguido suprimiu ,  é fortemente repudiada no tecido social ; a supressão do direito à vida é um crime muito grave , basta atentar que ocupa o primeiro lugar no descritivo típico-penal  da parte especial do CP .
A estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação da força e validade do direito reclamam , em nome da prevenção geral , pena elevada capaz de estabelecer a paz jurídica abalada pelo crime , de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito e uma convivência colectiva sem sobressaltos .

Socialmente , deu-se como provado que o arguido é considerado no meio em que reside como paciente, cordato, de fácil relacionamento pessoal , com hábitos de trabalho  e na sequência dos factos em julgamento, não foi rejeitado pela comunidade envolvente.

Objecta-se que muito  pouco importa que o meio social não o segregue por tal  facto , pois o que importa é o desvalor do homicídio à luz das concepções reinantes em geral , e não no meio local , onde , até à data dos factos,  se não manifestou de forma penalmente visível ,  mercê da natureza geral e abstracta da lei, suscitando o homicídio, comunitariamente , e em geral,  vincado sentimento de reprovação social  e ética, a que não está imune .

O arguido matou a vítima depois de uma acesa discussão , consequente a um mau relacionamento de pretérito , entre ambos , com uma arma de fogo , pistola indocumentada, transformada , aliás , de uma forma preordenada e firme , com dolo directo muito intenso , bastando salientar que não obstante após ter disparado um tiro para o ar e ter caído uma bala da câmara ele agarrou-a e remuniciou a arma, puxou a corrediça , armou o cão e , estando aquela ( vítima ) absolutamente  indefesa, disparou à queima roupa, sobre o coração , com total menosprezo pela vida humana, modo de execução que confere um elevado grau de ilicitude ,  pelo que carece de , pela via da pena , sentir o malefício do seu gesto , tanto mais que não assumiu qualquer sentimento de autocensura  não podendo acompanhar-se a tese da Relação de que as necessidades de prevenção especial se mostram “ muitíssimo esbatidas “ ( fls . 1108)  atenta aquela integração social , e também familiar de que usufrui e o carácter ocasional do homicídio,  antes aquelas se mostrando bem  sentidas e visíveis , a reclamar uma intervenção vigorosa do direito penal .

XII . Se é facto consabido que a integração social afasta o espectro da reincidência e que  tudo leva a crer que o homicídio foi um facto acidental na vida do arguido não pode deixar de perder-se de vista que , pela grandeza do valor atingido , o mais elevado dentre os direitos fundamentais ,  o arguido carece de reeducação para o direito , de forma a aprender a respeitar a vida humana e não , como o fez , suprimi-la .

É verdade que a morte da vítima  é despoletada na sequência de um contexto de arrastados conflitos prévios -desde  2007 -entre ambos com expressões insultuosas e de cariz intimidatório à mistura e de uma troca acesa de palavras esta a preceder a consumação do crime, mas isso não o justifica , que não houvesse alternativas para solução do dissídio entre ambos .

Provado ficou que o arguido após o disparo à queima roupa , prestou alguns socorros à vítima e diligenciou pela comparência de assistência médica, denotando reacção de arrependimento , diz o arguido em vista da redução da pena .


Mas a morte da vítima ocorre segundos após o disparo á queima roupa precisamente sobre o coração , pelo  que  é absolutamente irrelevante , por improfícuo à vítima ,  esse comportamento , bem  como o chamamento  de meios de assistência  médica local,  de resto  sem qualquer alcance de arrependimento , que é expressão  de  assunção sincera dos factos e seus efeitos bem como  de inadequação do facto  à personalidade  do agente , acto não querido e que só um condicionalismo especial torna compreensível e não é o caso desse acto posterior ao crime, não revelador desse sentimento e  dimensão atenuativa , nos termos do art.º 71.º n.º 2 al . e) , do CP.

Como o M.º P.º neste STJ  faz questão de sublinhar a este propósito o arguido não confessou os factos , não revelou sentimentos de autocensura , sendo desajustado “ falar em arrependimento “ .
A Relação qualificou , até,  esse gesto de chamamento  de socorros – nenhuns havia a prestar, de resto –e de  meios de assistência,  inúteis , como tentativa vã de “ tapar o sol com uma peneira “ ,  tudo  desvalorizando , de tão anódino  se revelando .


XIII . A Relação , como a 1.ª   instância , procederam ao cúmulo da pena de homicídio com a de detenção  e uso de arma indocumentada , mais uma vez se confirmando quanto essa detenção fora de controle das autoridades é geradora de perigo à ordem e tranquilidade  públicas , sendo que quando se procede a cúmulo jurídico , o julgador , nos termos do art.º 77.º , do CP , há-de descer da ficção , da visão compartimentada e atomística que está na base  e ponto de partida da elaboração da nova moldura , para se concentrar na  unicidade do julgamento e se lançar noutra postura .
O julgador constrói , pois ,  uma nova moldura penal , devidamente fundamentada , fazendo acrescer uma justificação diferenciada , construída sobre uma nova filosofia inspiradora .
Essa nova postura não apaga a pluralidade de ilícitos , mas converte –se numa nova moldura reelaborada que tem  em apreço a globalidade dos factos e a personalidade do agente , em ordem a permitir a ilação sobre se eles expressam uma mera acidente,  um  acto isolado , no “ iter “ vital ou repercutem uma “ carreira “ criminosa , caso em que a pena de conjunto é exacerbada , outrossim devendo atentar-se na susceptibilidade do agente ser influenciado pela via da pena .

Esse juízo do julgador, essa nova fundamentação , tem o mérito de evitar que a pena de concurso seja pura tautologia , surja como fruto da intuição do juiz ,da sua “ arte  de julgar”  , simples operação mecânica e , portanto , menos reflectida .

 
XIV. A Relação  reduziu a pena para o crime de homicídio e numa moldura de 8 a 16 anos de prisão , fixou-a em 12 anos ,mas  abaixo desse limite já se não justifica qualquer redução, intolerável e incompreensível comunitariamente , maior benevolência ,  só passando pela atribuição de  um injustificado  pendor atenuativo ainda mais ponderoso  na vertente da formação concreta da pena , à luz do art.º 71.º , do CP , do que o concedido pela Relação,  que às razões insertas nas conclusões sobre esta matéria  não deixou,  e na totalidade ,  de atender .


XV . Nega-se provimento ao recurso .

Taxa de justiça : 10 Uc,s .

Lisboa, 21 de Março de 2012

Armindo Monteiro (Relator)
Santos Cabral