Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2037/23.2T8CBR-A.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
REQUISITOS
ADVOGADO
ENERGIA ELÉTRICA
DIREITO AO TRABALHO
DIREITOS FUNDAMENTAIS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 12/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
Constitui “dano grave e dificilmente reparável” para efeitos do art. 362.º, n.º 1, do CPC, o corte do fornecimento de energia eléctrica, sem aviso prévio, pela empresa fornecedora a uma fracção onde está instalado um escritório de advocacia, demonstrando-se que por causa disso a requerente da acção cautelar, advogada, ficou com dificuldades em trabalhar no seu domicílio profissional, de aceder ao seu correio eletrónico, de imprimir documentos e de atender pessoas no escritório.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.A requerente - AA - instaurou procedimento cautelar comum contra as requeridas - EDP COMERCIAL, Comercialização de Energia S.A e E-Redes, Distribuição de Eletricidade, S.A.

Alegando, em resumo, que as requeridas procederam à interrupção da energia elétrica que serve o seu escritório de advogada, sem comunicação escrita prévia e sem que se encontrasse no local, e que isso impede-a de atender clientes, o que lhe causa prejuízo, pediu que seja ordenado às Requeridas para efetuarem a ligação da energia elétrica no seu local de trabalho, morada do escritório, com urgência.

1.2. As Requeridas deduziram oposição, dizendo, em síntese, que a Requerente foi avisada do corte e que se recusa a permitir o acesso ao contador para permitir a sua substituição.

A 1ª Requerida invocou ainda a exceção da sua ilegitimidade passiva, tendo sido, por este motivo, absolvida da instância.

1.3. Por sentença de 11/5/2023 decidiu-se:

“Em face do exposto, julgo o presente procedimento cautelar procedente, por provado, e determino que a Requerida E-Redes, Distribuição de Eletricidade, S.A. proceda à ligação da energia elétrica no local sito na Rua ..., no prazo de 24 (vinte e quatro) horas a contar da notificação da presente decisão.

Custas pela Requerente, a atender na acção principal, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia – art. 539º n.º 1 do C.P.C.”

1.4. A requerida E-Redes, Distribuição de Eletricidade, S.A. recorreu de apelação e a Relação de Coimbra, por acórdão de 26/9/2023, julgou procedente o recurso e revogou a sentença.

1.5. A Requerente recorreu de revista, ao abrigo do art.629 nº2 d) CPC, invocando contradição com o Ac RC de 13/12/2022 (proc nº 3179/22.7T8VIS.C1), com as seguintes conclusões:

1)O Acórdão sindicado perfilha doutrina oposta à aplicada no aresto da mesma Veneranda Relação quanto à mesma questão fundamental de Direito sobre a verificação do requisito de lesão grave e dificilmente reparável, que considera suficiente o risco da demora na decisão definitiva da causa, e que risco de lesão é grave por respeitar ao direito de usar ou de usar plenamente a fracção.

2)A questão fundamental de Direito julgada nos acórdãos revidendo e fundamento formula-se nos seguintes termos: a verificação do requisito da lesão grave e de difícil reparação.

3)O acórdão recorrido considerou “Certo é que a eletricidade é essencial para uma cabal e plena fruição de um espaço de trabalho, tal como um escritório profissional de advocacia”, considerando também que, “pois, o corte de eletricidade em 14.03.2023 não foi precedido do cumprimento do pré-aviso, pelo modo e tempo, legalmente exigíveis.

4) O Acórdão recorrido sumariou que “A simples prova de que o corte de eletricidade pela fornecedora dificultou a fruição de escritório de advocacia, sem prova dos concretos prejuízos e do impacto que eles estão a causar e causarão na economia da requerente, bem como a clara dificuldade no seu ressarcimento, não é bastante para se concluir pela verificação/presença do requisito da lesão grave e de difícil reparação”, pelo que se mostra em contradição com o Acórdão fundamento que considera preenchido o requisito com a limitação no uso da fracção.

5) No caso sub judice o corte de eletricidade mostra-se ilegítimo, sendo dificilmente reparável por, se não for decretada a providência, impedindo a Requerente de usar e limitando-a no uso do seu local de trabalho, do seu escritório de advocacia, prejudicando-a no seu direito ao trabalho, quer por não poder atender pessoas, não poder imprimir documentos, nem aceder ao correio eletrónico dado o corte ilegítimo.

6) O acórdão recorrido sumaria e faz referência a impacto danos futuros, o que não se compreende atenta a natureza da providência cautelar. Já o Acórdão oponente sumaria: A lesão “IV – A lesão que se receia é de difícil reparação quando existir o risco de insatisfação do direito, risco resultante da demora na decisão definitiva da causa.”

7) A Requerente na Petição inicial invocou o risco resultante da demora na decisão da causa definitiva da causa, sendo patente tal consideração na decisão da primeira instância ao decretar a providência cautelar de religação da energia elétrica em 24horas.

8) Segundo o Acórdão fundamento considerou que o risco é grave por desrespeitar ao direito de usar ou de usar plenamente fracções autónomas como a habitação própria, ao direito à saúde e ao repouso.

9)O corte ilegítimo de eletricidade no local de trabalho da requerente, impede o uso e cabal fruição de um espaço de trabalho, no seu escritório de advocacia, domicílio profissional pela Requerente.

10)Na verdade com bem exarou no acórdão fundamento “A lesão que se receia é de difícil reparação quando existir o risco de insatisfação do direito, risco resultante da demora na decisão definitiva da causa”

11) Não faz, pois, qualquer sentido que se exija um impacto ambiental negativo com prova de danos futuros, para que seja determinada a reposição de energia elétrica de uma fração autónoma. Aliás, o acórdão recorrido chega a afirmar, que a eletricidade é necessária para o uso cabal da advocacia.

12) Conforme seguido no Acórdão fundamento a lesão que se receia é de difícil reparação quando se verificar o risco de insatisfação do direito, risco resultante da demora na decisão definitiva da causa, sendo o risco grave por desrespeitar ao direito de usar ou usar plenamente fracções autónomas como a habitação própria que no presente caso sendo o risco grave por desrespeitar ao direito de usar ou usar plenamente o seu espaço de trabalho, o seu escritório de advocacia, e por desrespeitar o exercício do seu direito ao trabalho previsto no Art. 58º da CRP.

13)Mais, sendo a eletricidade um bem essencial para o exercício pleno da advocacia, sem eletricidade encontra-se violado o Direito de exercício pleno da advocacia para a Requerente, pelo que a lesão é de difícil reparação atento o risco de insatisfação desse direito com a demora na decisão definitiva da causa, pelo que se impõe a revogação do acórdão recorrido e seja proferida decisão que considere julgada a verificação da lesão grave e de difícil reparação, e julgue procedente, por provada a providência Cautelar.

14) No caso o risco da lesão é grave por desrespeitar o direito de usar ou de usar plenamente a fracção do escritório de Advocacia e o inerente Direito ao Trabalho consagrado no Art. 58 nº 1 da CRP, pelo que se impõe a revogação do Acórdão recorrido e seja proferida decisão que julgue procedente a providência cautelar.

15)O procedimento cautelar comum consubstancia-se numa verdadeira acção cautelar geral para tutela provisória de quaisquer situações não especialmente previstas e disciplinadas, comportando o seu decretamento a remoção do “periculum in mora” concretamente verificado e visando assegurar a efectividade do Direito ameaçado. O “periculum in mora” traduz-se no prejuízo que poderá advir para a Requerente em consequência da demora na tutela efectiva dos seus direitos.

16) Resulta da factualidade exposta que o corte de eletricidade é ilegítimo por se mostrar sem aviso prévio, e atento o risco de lesão grave para a Recorrente, pelo que a Recorrente não pode continuar sem eletricidade no seu escritório de advocacia o que prejudica a Autora na sua vida profissional no seu espaço de trabalho, escritório de advocacia

17)Os danos que se fazem sentir na esfera da Requerente são contínuos e acumuláveis, impedem o pleno gozo e fruição de todas as utilidades do escritório onde exerce a Advocacia, agravar-se-á de forma efectiva com a demora normal de um processo judicial.

18) Pelo que, a providência cautelar é o único meio de pôr cobro aos danos que se vêm reflectindo na esfera da Autora/Recorrente que não seja manter a decisão de ordenar a religação de eletricidade no escritório onde a Requerente exerce a sua actividade profissional de advocacia.

19) Assim, deve ser concedida a revista, atenta a prova e verificação dos requisitos da lesão grave e difícil reparação.

20) O Acórdão recorrido viola os Arts. 154º, 5º, 193º nº 3, 368º nº 1 do CPCivil, 615º nº1 al.d) todos do CPCivil, erro na aplicação da lei e do direito.

21) O Tribunal da Relação de Coimbra ao considerar que o corte de eletricidade se mostra ilegítimo e que a simples prova de que o corte de eletricidade pela fornecedora dificultou a fruição do escritório não integra a lesão grave e de difícil reparação nas condições em que o fez, pelo que deverá ser verificado o risco da lesão é grave por desrespeitar o direito de usar ou de usar plenamente a fracção do escritório de Advocacia e o inerente Direito ao Trabalho consagrado no Art. 58 nº 1 da CRP, o Acórdão Recorrido violou o Art. 58 nº 1 da CRP, e violou o Princípio da Proibição do non liquet e o disposto nos artigos 3º, 68º, 154 nº 5, 193 nº 3, 368º nº 1, 615 nº 1 al.d), 629 nº 2 al.d) todos do CPC, preceitos que foram interpretados em violação grave do disposto nos artigos 1º, 2º, 10º, 20º, 58º nº 1 e 205º da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da confiança, da igualdade e do acesso ao direito e aos Tribunais.

1.6. A Requerida contra-alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade da revista e subsidiariamente a improcedência.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – A questão prévia da (in) admissibilidade do recurso de revista

O art.629 nº2 d) CPC permite o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, como é o caso das providências cautelas, em face do impedimento do art.370 nº2 CPC, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência, o que não sucede.

Para o juízo prévio de admissibilidade do recurso não se impõe apreciar o mérito da decisão recorrida, mas apenas e tão só aferir se há ou não contradição jurisprudencial.

Segundo entendimento jurisprudencial, o critério para apurar a contradição deve socorrer-se dos arts. 672 nº2 c) e 688 nº1 CPC. Por isso, apenas releva a contradição entre o núcleo essencial do acórdão recorrido e outro, em que ambos esteja em causa a mesma questão jurídica, sendo que a contradição pode verificar-se tanto na interpretação de uma norma, como na qualificação jurídica de uma situação de facto.

Exige-se, para tanto, uma relação de identidade, que não tem de ser factual, mas o núcleo da situação de facto, à luz da norma aplicável, deve ser idêntico, abrangendo os casos em que a subsunção desse mesma situação tenha sido feita de modo diverso.

Para a recorrente a contradição radica na mesma questão de direito, na interpretação e aplicação da norma do art.362 nº1 CPC, quanto ao segmento “lesão grave e de difícil reparação”, e tem-se entendido que “a questão de direito fundamental só é a mesma, para este efeito, quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente), mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos sido feita de modo diverso” ( Ac. do STJ de 25/05/2017 ( proc n.º 17/15.0YRLSB.S1) , em www dgsi ).

Ambos os acórdãos têm por objecto procedimentos cautelares comuns. No acórdão anterior da Relação de Coimbra de 13/12/2022 estava em causa em o direito de propriedade dos prédios urbanos (fracções) o direito de habitação e o direito à saúde, afectados pela emissão fumos, cheiros, ruído, e gases, provenientes de um estabelecimento comercial de restauração. No acórdão recorrido está em causa o corte de electricidade com violação do direito ao uso da fracção (escritório de advocacia) e do direito ao trabalho (exercício da advocacia).

Muito embora não exista uma completa identidade factual, a contradição ocorre no tocante às implicações da lesão, pois em ambos o caso se verifica uma limitação ou privação parcial do uso do imóvel (fracção), sendo divergente o critério decisório na subsunção sobre o segmento normativo “lesão grave e dificilmente reparável”, positivado no art.362 nº1 CPC, nomeadamente no que respeita à repercussão negativa ou desvantajosa que a situação determina na esfera jurídica do lesado.

Na verdade, há uma divergente aplicação ao caso concreto, na medida em que o acórdão recorrido adoptou uma concepção restrita do critério decisório quando confrontado com o acórdão da RC de 13/12/2022, sabido que em termos factuais em cada uma das situações a privação do uso não foi total. Por outro lado, há contradição quanto à função da indemnização, pois para o acórdão dito fundamento ela “não tornará efectivo o direito dos requerentes que era o de usarem as fracções, ou usá-las plenamente, num ambiente saudável e isento de ruídos, fumos e cheiros”, e para o acórdão recorrido a tutela pode efectivar-se através da indemnização. Ou seja, para o mesmo facto – a privação parcial de uso do imóvel, do fim a que se destinam (num caso para habitação, no outro para escritório de advocacia) o critério de decisão não parece ser o mesmo.

Em suma, improcede a questão prévia

2.2. Delimitação do objecto do recurso

A nulidade do acórdão;

O corte de fornecimento de energia eléctrica e os pressupostos do procedimento cautelar comum.

2.3. – Os factos provados

1- A Requerente é titular do contrato de eletricidade, serviço de eletricidade pela EDP Comercial, S.A. no local sito na Rua..., contrato que teve o seu início em dezembro de 2012 (art. 1º da p.i.).

2- A 2ª Requerida exerce as funções de operadora de rede de distribuição de eletricidade (art. 19º da oposição da 2ª Requerida).

3- A atividade de distribuição de eletricidade é exercida em regime de concessão de serviço público, em exclusivo, mediante a exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) e das redes de distribuição de eletricidade em baixa tensão (art. 20º da oposição da 2ª Requerida).

4- Na qualidade de concessionária, a 2ª Requerida efetua a ligação à rede elétrica de serviço público das instalações de consumo, cujos titulares tenham celebrado um contrato de fornecimento de energia elétrica com um comercializador que opere no mercado regulado ou no mercado livre (art. 21º da oposição da 2ª Requerida).

5- Aquando da ligação das instalações de consumo à rede elétrica, a concessionária instala equipamentos de medição, destinados a registar os consumos efetuados, e procede à selagem dos referidos equipamentos para evitar a sua violação e adulteração dos registos por parte de pessoas não autorizadas (art. 22º da oposição da 2ª Requerida).

6- O equipamento de mediação instalado pela ora 2ª Requerida na instalação vertida nos presentes autos, encontra-se no interior da mesma, sem acesso através da via pública (art.25º da oposição da 2ª Requerida).

7- Tal equipamento - contador nº ...85, marca Bruno Janz, - encontra-se instalado no local desde 30.08.1993 (art. 26º da oposição da 2ª Requerida).

8- No âmbito de projeto de implementação de redes inteligentes, foi promovida ao longo do território nacional a substituição de equipamentos de contagem tradicionais, por contadores inteligentes (art. 27º da oposição da 2ª Requerida).

9- Em 10.12.2015 a 2ª Requerida enviou uma missiva à Requerente informando que iria proceder à substituição do equipamento (art. 28º da oposição da 2ª Requerida).

10- Em 15.10.2018 foi enviada nova missiva informando da pretensão da substituição do contador (art. 30º da oposição da 2ª Requerida).

11- Não foi possível proceder à substituição por ausência da Requerente (art. 31º da oposição da 2ª Requerida).

12- Foram posteriormente realizadas mais duas deslocações ao local nas seguintes datas para efeitos de acesso e substituição do equipamento de medição: 22.01.2021 e 15.03.2022 (art. 32º da oposição da 2ª Requerida).

13- No dia 16.03.2022 foi enviada comunicação à Requerente dando nota que: “No dia 15- 03-2022, pelas 16:49, uma equipa técnica ao serviço da E-REDES deslocou-se à sua instalação para verificar o contador de eletricidade, no entanto, não foi possível o acesso.”

“A intervenção vai ser realizada no próximo dia 05-05-2022, no período das 13:00 às 15:30 horas. A sua presença, ou a de alguém que o represente, é indispensável para nos facultar o acesso ao contador.” “Se a data e hora que lhe propomos não lhe é conveniente ligue-nos pelo 218 100 100 (custo de chamada definido pelas condições do seu tarifário): Esclareça as suas dúvidas; marque a visita do técnico à sua instalação. Evite a interrupção do fornecimento de energia à instalação.Se o acesso à instalação continuar a não ser possível, de acordo com a regulamentação em vigor, iremos interromper o fornecimento de energia à mesma. Evite as despesas associadas ao corte e religação de eletricidade, que podem variar entre 24,24 e 116,32 euros (mais IVA à taxa legal), em função dos meios utilizados para sua realização.” (art. 34º da oposição da 2ª Requerida).

14- Esta comunicação foi enviada por correio postal para a Rua... e por e-mail, entregue no dia 16.03.2022 (art. 35º e 36º da oposição da 2ª Requerida).

15- No dia 05.05.2022, houve nova deslocação técnica e não foi possível aceder ao contador, por ninguém se encontrar no local (art. 38º da oposição da 2ª Requerida).

16- No dia 18.05.2022 foi enviada comunicação à Requerente informando o seguinte:

Não conseguimos aceder ao contador da sua instalação.No dia 05-05-2022, pelas 15:23, uma equipa técnica ao serviço da E-REDES deslocou-se à sua instalação para verificar o contador de eletricidade, no entanto não foi possível o acesso.

Lembramos que o acesso ao contador é obrigatório De acordo com as disposições legais e regulamentares do setor elétrico, sempre que a E-REDES o solicite.

A intervenção vai ser realizada no próximo dia 20-06-2022, no período das 10:30 às 13:00 horas. A sua presença, ou a de alguém que o represente, é indispensável para nos facultar o acesso ao contador.

Se a data e hora que lhe propomos não lhe é conveniente ligue-nos pelo 218 100 100 (custo de chamada definido pelas condições do seu tarifário):

. Esclareça as suas dúvidas;

. Marque a visita do técnico à sua instalação.

Evite a interrupção do fornecimento de energia à instalação

Se o acesso à instalação continuar a não ser possível, de acordo com a regulamentação em vigor, iremos interromper o fornecimento de energia à mesma.

Evite as despesas associadas ao corte e religação de eletricidade, que podem variar entre 24,24 e 116,32 euros (mais IVA à taxa legal), em função dos meios utilizados para sua realização. (art. 39º da oposição da 2ª Requerida).

17- Esta comunicação foi enviada por correio postal para a Rua... e por e-mail, entregue no dia 18.05.2022 (art. 40º da oposição da 2ª Requerida).

18- No dia 20.06.2022 foi efetuada nova visita técnica (art. 42º da oposição da 2ª

Requerida).

19- A Requerente impediu a substituição do contador (art. 43º da oposição da 2ª Requerida).

20- Naquela data (20.06.2022) foi interrompido o serviço de fornecimento de energia elétrica à instalação em causa (art. 44º da oposição da 2ª Requerida).

21- No dia 21.06.2022 foi gerada ordem de serviço para efeitos de religação da instalação na sequência de pedido submetido pela utilizadora da instalação (art. 45º da oposição da 2ª Requerida).

22- No dia 23.06.2022 houve mais uma deslocação técnica ao local, tendo havido nova oposição pela Requerente à substituição do contador (art. 51º da oposição da 2ª Requerida).

23- Por insistência da Requerente junto da equipa técnica, esta procedeu à religação da instalação (art.52º da oposição da 2ª Requerida).

24- Seguiram-se novas comunicações enviadas à Requerente e deslocações técnicas (art. 54º da oposição da 2ª Requerida).

25- No dia 02.11.2022 foi efetuado novo corte do serviço de fornecimento de energia elétrica (art. 56º da oposição da 2ª Requerida).

26- Após novo pedido religação submetido por parte da Requerente, no dia 03.11.2022 ocorreu nova deslocação técnica (art. 57º da oposição da 2ª Requerida).

27- Nessa circunstância foi vedado à 2ª Requerida o acesso ao contador (art. 58º da oposição da 2ª Requerida).

28- A equipa técnica procedeu à religação (art. 59º da oposição da 2ª Requerida).

29- No dia 14 de Março de 2023, a E-Redes procedeu à interrupção da energia elétrica no local identificado em 1) (arts. 2º da p.i. e 63º da oposição da 2ª Requerida).

29-A - Neste dia o técnico que se deslocou ao local contactou telefonicamente a Requerente, informando-a acerca do trabalho de interrupção que iria realizar caso o acesso ao contador continuasse a ser negado por aquela.

30- No dia 17 de Março de 2023, a Requerente apercebeu-se que o local de fornecimento se encontrava sem energia elétrica, e contactou via telefónica a linha da E-Redes, a qual lhe transmitiu que a E-Redes pretendia mudar o contador e que devido a tal facto interromperam a eletricidade no dia 14 de Março de 2023 (art. 3º da p.i.).

31- A Requerente é advogada e o local referido em 1) é um escritório de advogados (art. 17º da p.i.).

32- A Requerente ficou com dificuldades em trabalhar no seu domicílio profissional, de aceder ao seu correio eletrónico, de imprimir documentos e de atender pessoas no escritório (art. 20º da p.i.).

2.4. - Os factos não provados

A 2ª Requerida tenha enviado comunicação escrita à Requerente a agendar deslocação ao local referido em 1) no dia 14-3-2023, com a cominação de interrupção da energia eléctrica, caso não fosse facultado o acesso ao contador (arts. 2º e 4º da p.i.).

2.5. – A nulidade do acórdão

A Recorrente arguiu as nulidades do acórdão, previstas no art.615 nº1 b), c) e d) CPC.

Alegou, para tanto, que a Relação conheceu de questões “que não podia ter tomado conhecimento, por se tratarem de suposições, para efectuar a alteração do facto 32. dado como provado pela primeira instância, contradição entre a fundamentação, vício previsto no art. 615º nº 1 al.b) do CPCivil, insuficiência da matéria de facto para a alteração do facto 32., impugnação da matéria de direito sobre o requisito da lesão grave e de difícil reparação que a Autora invocou e ficou demonstrado”.

As nulidades da sentença ou acórdão reconduzem-se a erros de actividade ou de construção e não devem confundir-se com o erro de julgamento (de facto e/ou de direito).

É por demais evidente que o acórdão não contém tais vícios. Na verdade, justificou, com abundante fundamentação, tanto de facto, como de direito, sendo que a decisão final está em consonância com a fundamentação e conheceu apenas das questões que lhe foram colocadas na apelação.

Verifica-se que a Recorrente para a arguição se socorreu de erro de julgamento sobre a decisão de facto do ponto 32, o que tanto basta para a inanidade da pretensão de nulidade.

2.6.- O corte de energia eléctrica e o procedimento cautelar comum

Nos arts. 362 e 368 do CPC postulam-se os requisitos legais do procedimento cautelar comum – quem tiver “fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito”, pode requerer “providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurara a efectividade do direito ameaçado “, desde que “ o prejuízo dela resultante para o requerido não exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” – e que se podem resumir ao fumus ( probabilidade séria do direito ), periculum e a proporcionalidade.

Não se problematiza no recurso a probabilidade séria do direito que a Requerente pretende acautelar, o direito de usufruir a sua fracção destinada a escritório da advocacia e o direito ao trabalho, comprovando-se que o corte da eletricidade em 14.03.2023 não foi precedido do cumprimento do pré-aviso, pelo modo e tempo, legalmente exigíveis

Discute-se se a lesão é grave e dificilmente reparável.

A lei exige um fundado receio de que outrem “cause lesão grave e dificilmente reparável”, enquanto manifestação do periculum in mora. O critério para aferir a gravidade da lesão parte da repercussão negativa ou desvantajosa que a situação determina na esfera jurídica do interessado, avaliada objectivamente.

O fundado receio deve ser actual e pressupõe a ameaça do direito, e já não uma lesão consumada, que lhe retiraria o efeito útil cautelar, a menos que seja o indício ou prelúdio de outras violações futuras, caso em que se verifica o “estado de perigo de ingerência” a justificar a função preventiva da tutela cautelar.

O acórdão recorrido, após enquadramento geral sobre os requisitos do procedimento cautelar comum, concluiu no sentido de que a lesão não é grave e não é de difícil reparação, argumentando o seguinte:

“Ora dos factos apurados não pode concluir-se, com uma margem de plausibilidade ainda exigível nesta sede, pelo fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação.

Desde logo porque estamos, essencial e determinantemente, perante direito de cariz material, cuja tutela pode ser efetivada, a seu tempo, por via indemnizatória pecuniária.

Depois, não se provou que a falta de eletricidade tivesse implicado a total perda da fruição das utilidades do escritório da requerente, mas apenas a maior dificuldade em consecuti-las.

Aliás, este requisito apenas estaria presente se a requerente alegasse e provasse outros factos, como sejam os concretos, ou, ao menos, aproximados, prejuízos dele advenientes e que poderão advir, as consequências que estes prejuízos estão a provocar e provocarão no futuro na esfera jurídico patrimonial da requerente, e, bem assim, a impossibilidade ou grave dificuldade futuras – vg. por falta de cabedal económico do requerido, o que nem sequer é o caso - em atalhar e eliminar os mesmos.

A assim não ter alegado e provado, resta sempre a forte probabilidade e hipótese de que o direito da requerente possa ser atempadamente acautelado na ação principal atinente”.

São dois os argumentos: a tutela pode ser efectivada pela indemnização e não se provou a privação total da utilização do escritório, não tendo alegado factos concretos sobre os prejuízos advenientes da privação parcial.

Com o devido respeito, não parece que estes argumentos se revelem sólidos para postergar a acção cautelar.

O serviço de fornecimento de energia eléctrica é um bem essencial e juridicamente reconhecido como tal, estando sujeito a protecção acrescida, máxime em sede do direito do consumo. Na verdade, a Lei nº23/96 de 26/7 (Lei de protecção dos serviços públicos essenciais) inserida na “ordem pública de protecção” concretizando a tutela geral do consumidor, criou mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais.

Demonstrou-se que a Requerente é advogada e, em Dezembro de 2012, contratou serviço de eletricidade pela EDP Comercial, S.A. no local sito na Rua ..., sendo escritório de advogados.

A Requerente, devido ao corte do fornecimento, ficou com dificuldades em trabalhar no seu domicílio profissional, de aceder ao seu correio eletrónico, de imprimir documentos e de atender pessoas no escritório.

O corte da energia, sem aviso prévio, levado a cabo pela Requerida, põe em causa direitos fundamentais da Requerente, como o direito ao trabalho, que não tem apenas uma dimensão patrimonial, e o direito ao livre desempenho de uma actividade profissional inserido no âmbito do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

Além disso, pode até afirmar-se que o acesso à energia eléctrica faz hoje parte do

direito fundamental ao “mínimo de existência condigna” ou ao “mínimo de sobrevivência”, radicado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art.1º CRP, sabido que este direito fundamental não se consubstancia na mera garantia de sobrevivência física ( “mínimo vital”), abrangendo também uma garantia mínima de acesso a uma inserção na vida social ( “ mínimo sociocultural”).

É certo que a Relação não considerou que Requerente se encontra “impossibilitada de trabalhar” no seu domicílio, mas apenas “ficou com dificuldades em trabalhar”. No entanto, reconhecendo-se, como faz o acórdão, que “a eletricidade é essencial para uma cabal e plena fruição de um espaço de trabalho, tal como um escritório profissional de advocacia”, a dificuldade em aceder ao correio eletrónico, de imprimir documentos, de atender pessoas no escritório tem uma inegável repercussão negativa no direito de uso do escritório e do exercício da advocacia, tal como legalmente regulamentado pela Lei nº 145/2015 de 9/9 ( EOA ) e art.12 da Lei nº 62/2013 de 26/8 ( LOSJ ).

Neste contexto, é de qualificar, para efeitos do art.362 nº1 CPC, a lesão como grave e de difícil reparação.

É grave porque afecta o direito da Requerente a utilizar o escritório para o exercício da advocacia, bem como o direito ao trabalho.

É de difícil reparação porque a indemnização, muito embora possa compensar os prejuízos causados, não efectiva o direito da Requerente a usar plenamente o seu escritório e de exercer o seu trabalho, sem a dificuldade comprovada, como a de atender pessoas, sendo que durante o processo, até a uma decisão final, o corte de energia dificulta a efectividade da tutela que possa ser concedida na acção principal, por não se poder reconstituir a situação de facto ao seu estado inicial.

Impõe-se dar provimento à revista e revogar o acórdão recorrido, mantendo-se a sentença da 1ª instância que decretou o procedimento cautelar.

2.7.- Síntese conclusiva

Constitui “dano grave e dificilmente reparável” para efeitos do art.362 nº1 CPC, o corte do fornecimento de energia eléctrica, sem aviso prévio, pela empresa fornecedora a uma fracção onde está instalado um escritório de advocacia, demonstrando-se que por causa disso a requerente da acção cautelar, advogada, ficou com dificuldades em trabalhar no seu domicílio profissional, de aceder ao seu correio eletrónico, de imprimir documentos e de atender pessoas no escritório.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar procedente a revista e revogar o acórdão recorrido, devendo manter-se a sentença da 1ª instância.

2)


Condenar a Requerida nas custas.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Dezembro de 2023.


Jorge Arcanjo (Relator )

Maria João Vaz Tomé

Manuel Aguiar Pereira