Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1760/19.0T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
PROVA POR DECLARAÇÕES DE PARTE
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA DOCUMENTAL
PROVA TESTEMUNHAL
LEI PROCESSUAL
ERRO DE DIREITO
PRINCÍPIO DA ORALIDADE
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O Supremo não pode controlar a prudência ou a imprudência da convicção das instâncias sobre a prova produzida, sempre que se trate de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação, i.e., que assenta na prudente convicção que o tribunal tenha adquirido das provas produzidas, apenas dispondo de competência funcional ou decisória para controlar a actuação da Relação nos casos de prova vinculada ou tarifada, ou seja, quando está em causa um erro de direito.

II - O Supremo dispõe, porém, de competências de controlo sobre o uso – ou uso incorrecto - ou não uso pela Relação dos seus poderes específicos sobre a matéria de facto: o poder de correcção da decisão recorrida, o poder de controlo sobre os meios de prova e o poder de anulação da decisão impugnada.

III - A Relação exerce correctamente os seus poderes de controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância quando aprecia, com a completude exigível, toda a decisão sobre a matéria de facto impugnada, quando reavalia, com a completude exigível, as provas adquiridas para o processo, e quando fundamenta, com a completude exigível, a decisão da matéria de facto impugnada, em termos que permitam, objectivamente, compreender o percurso racional subjacente à reapreciação da prova.

IV - Tendo a revista por único objecto o mau uso ou um uso incorrecto pela Relação dos seus poderes de controlo relativamente à decisão da matéria de facto, concluindo-se pela improcedência do fundamento correspondente, aquele recurso deve, sem mais, ser julgado improcedente.

Decisão Texto Integral:
Proc. 1760/19.0T8PVZ.P1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório.

Por sentença proferida no dia 19 de Outubro de 2023, o Sr. Juiz de Direito do juízo Central Cível da ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, julgou parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, proposta por AA contra A..., Lda., condenou a última a pagar ao primeiro a indemnização global de € 18 000,00, sendo:

- a quantia de € 11 000,00 a título de indemnização por danos patrimoniais, à qual de deverão acrescer juros de mora contados à taxa legal anual desde a citação da Ré até efectivo e integral pagamento;

- e o valor de € 7 000,00 a título de compensação por danos patrimoniais1, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, a partir da presente data, até integral pagamento.

A demandada interpôs desta sentença, para o Tribunal da Relação do Porto, recurso ordinário de apelação, no qual – na alegação corrigida - impugnou por erro na avaliação da prova por declarações de parte do recorrido e dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD, o julgamento dos pontos de facto 6 a 13, 15 e 16 que aquela sentença julgou provados. Porém, aquele Tribunal, por acórdão de 10 de Setembro de 2024, depois de decidir que não se impõe a alteração da matéria de facto, no sentido pretendido pelos Recorrentes, antes pelo contrário, considera-se que a decisão impugnada se encontra fundamentada, destacando-se o raciocínio lógico, alicerçado nas regras de experiência e probatórias, e de observar que a eventual alteração da solução jurídica dependia da modificação da decisão de facto, o que não sucedeu, apenas resta confirmar a sentença, em relação à qual se adere, julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença nele impugnada.

É este acórdão que a demandada, apelante, impugna através do recurso de revista excepcional - no qual pede que seja revogado na parte em que indeferiu a apelação da R. e substituído por outro que conheça do recurso de apelação deduzido, alterando a Decisão e conhecendo das questões sobre a matéria de facto colocadas pela Recorrente, julgando o mesmo procedente, ou ainda julgar-se o mesmo nulo nos termos exarados, ordenando-se a sua Reforma.

Os fundamentos da revista, expostos nas conclusões da alegação, são os seguintes:

1. Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal Recorrido a quo fez incorreta apreciação dos factos e aplicação do Direito aos mesmos.

2. A decisão proferida está ferida de Nulidade por violação do disposto no art violação do disposto no artigo 640°, n.° 1 e n.º 2 do CPC conjugado com o art. 662.º do CPC interpretada no sentido de o Tribunal Recorrido não se ter pronunciado de forma critica sobre os elementos juntos pelo recorrente e explicar o juízo que fez do mesmo e porque razão os mesmos não implicavam decisão diversa da recorrida e alteração da matéria de facto no sentido apontado pela recorrente.

3. a decisão limitou-se a considerar na decisão proferida os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas do Tribunal recorrido ignorando por completo, com essa mera justificação, os concretos meios probatórios indicados pela Recorrente.

4. Nulidade que deve ser declarada com a consequente reforma do acórdão e mandando-se se reformar o mesmo.

Sem conceder,

DO RECURSO NOS TERMOS E AO ABRIGO DO DISPOSTO NA ALINEA D) DO N.º 2 DO ART. 629.º DO CPC E ALINEAS A) e C) DO N.º 1 DO ART 672.º DO CPC:

5. O presente Recurso é interposto de Acórdão que rejeitou o recurso interposto, e em consequência manteve a decisão proferida e recorrida.

6. Como consta do sumario do Acórdão Recorrido a decisão considerou que:

I--A Relação só deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

II—Sem prejuízo da valoração autónoma dos meios de prova produzidos, não se pode nunca olvidar os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.

Decidindo que, “Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida”

7. A questão principal decidida, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto impugnada e, na afirmativa, se procedem os fundamentos jurídicos destinados a demonstrar que não pode ser imputada à Ré a responsabilidade invocada pelo Autor.

8. 8.a Recorrente indicou e juntou, em estrito cumprimento do artigo 640, n.º 1) alias a) a c)os meios de prova constantes do registo e gravação, com a respectiva transcrição que anexou ao Recurso, e que conjugados com os documentos juntos aos autos impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto que indicou.

9. No Acórdão agora recorrido o Tribunal Recorrido não se pronunciou de forma critica sobre os elementos juntos pelo recorrente e nem explicou o juízo que fez dos mesmos e porque razão, fundamentada, os mesmos não implicavam decisão diversa da recorrida e alteração da matéria de facto no sentido apontado pela recorrente.

10. A decisão recorrida limitou-se a considerar que se sobrepunham sempre os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas do Tribunal recorrido ignorando por completo, com essa mera justificação, os concretos meios probatórios indicados pela Recorrente.

11. não fez qualquer análise critica e conjugação dos mesmos com as provas, nem explicou porque razão não alterava a decisão sobra a matéria de facto no sentido pretendido pela recorrente.

12. O Tribunal Recorrido não “revisitou os meios de prova apontados” e avançou desde logo para a tese do principio da imediação, não fundamentando noutro facto ou argumento, porque razão não modifica a matéria provada em primeira instancia.

13. Ignora as transcrições e as contradições apontadas pela Recorrente, não analisa criticamente estas, e adere a uma tese de que “será normal” algum realizar dois levantamentos em dinheiro – cfr acórdão – de cerca de € 10.000,00 para proceder a um pagamento quando logo no tribunal da primeira instancia e nos testemunhos transcritos se demonstra que tal nunca foi solicitado pelos funcionários da Recorrente, sendo uma atuação mo mínimo anómala e pouco plausível à luz dos padrões do homem medio e comportamentos tidos como normais nestes casos. Ignora ainda que se imputa a um funcionário da Ré o recebimento de uma quantia quando a prova pericial realizada à letra e assinatura revelou não ser do referido funcionário a letra e assinatura apostas no documento. E ignora ,como alias transcrito que este o negou ter assinado e recebido qualquer quantia em dinheiro.

14. Ademais, no que importa para o objeto do presente recurso, valora as declarações de parte do Autor, dando-lhes mais credibilidade e força que as prestadas pelas testemunhas e documentos juntos ao processo o que vai, igualmente contra a Jurisprudência do STJ nesta questão e sobre o valor da prova por declarações de parte.

15. cumpre assim reanalisar a decisão proferida sobre os pontos de factos em causa.

16. A Recorrente discorda de ter sido mantidos como provados os factos descritos nos pontos 6), 7), 8), 9), 10), 11), 12), 13), 15) e 16).

17. Na sua opinião ,não foi feita qualquer prova de ter recebido, em numerário, as quantias de € 4.500,00e de€ 4.052,53,nem dos prejuízos alegadamente sofridos pelo Recorrido em consequência do processo executivo de que foi alvo.

18. A reapreciação fazer dependia no essencial do valor que se confira às declarações de parte do autor porquanto nelas se fundamenta também no essencial a decisão impugnada.

19. Estas declarações recaem sobre factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo e são livremente apreciadas pelo tribunal, salvo se as mesmas constituírem confissão (artigo 466.º).

20. A Relação devia ter exigido e tido no acórdão recorrido, seguido um critério mais preciso, partindo de uma escala progressiva que passa pelos seguintes graus: impossível- possível- verosímil- provável – certo.

21. No caso de valoração das declarações de parte impõe-se particular cuidado e não ser ingénuo, demais a mais quando não há confronto entre as duas versões contrapostas, isto é quando não temos para sopesar, como é o caso, as declarações de ambas as partes.

22. No caso sujeito, importa referir que nenhuma testemunha do autor tinha um conhecimento directo dos factos alegados pelo autor.

23. apesar de se reconhecer o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e aceitando-se mesmo que essa imediação está mais presente no Tribunal da 1.ª Instância, daí não se retira, contrariamente ao defendido pelo Acórdão Recorrido, que a convicção formada pelo julgador na 1ª instância deva, sem mais, prevalecer sobre o juízo probatório a ser formado pelo Tribunal da Relação sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência de erro de julgamento

Mais,

24. O julgamento da matéria de facto constitui o principal objetivo do processo civil declaratório, tendo em conta que dele depende o resultado da ação, assim se compreendendo a evolução do sistema, com vista a assegurar um efetivo segundo grau de jurisdição”.

25. Com a nova redação do art. 662.º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo da correção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto ( v.g contradição) e também sem prejuízo do ónus da impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art.640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.

26. A Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.

27. Sendo a decisão do tribunal a quo o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, tais como documentos particulares sem valor confessório, relatórios periciais ou declarações da parte a que não corresponda confissão, desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo art. 640.º, a Relação, assumindo-se como verdadeiro tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, expressando, a partir deles, a sua convicção com total autonomia.

28. A Relação deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo.

29. Esta tem sido a jurisprudência reiterada expressa em numerosos acórdãos do Supremo, afirmando (em face da norma anterior, ainda assim, menos incisiva) que o exercício dos poderes da Relação no que respeita à decisão da matéria de facto não pode limitar-se à enunciação de argumentos marginais de pendor abstrato, impondo sempre a reapreciação dos meios de prova oralmente produzidos, desde que o recorrente tenha cumprido o ónus de alegação regulado nos termos do art. 640.º.”

30. Bem como no que defende a jurisprudência, que cremos unânime e pacífica, deste Tribunal Superior, nomeadamente:

I. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2016, processo n.º 907/13.5TBPTG.E1.S1, relatado por Abrantes Geraldes e disponível em www.dgsi.pt :

II- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,de24.09.2013,processon.º1965/04.9TBSTB.E1.S1, relatado por Azevedo Ramos e disponível em www.dgsi.pt:

III-AcórdãodoSupremoTribunaldeJustiça,de05.04.2022,processon.º1916/18.3T8STS.P1.S1, relatado por Luís Espírito Santo, disponível em www.dgsi.pt:

31. O aresto impugnado se limitou a aderir à decisão sobre a matéria de facto proferida em 1.ª instância, sem proceder à indispensável análise crítica e respectiva fundamentação das respostas, de modo a justificar a sua própria e autónoma convicção, foi violado o art. 712.º, n.º 2, do CPC, impondo-se a anulação do acórdão recorrido.

33. A reapreciação das provas não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto (Ac. S.T.J. de 20-9-2007, Col. Ac. S.T.J., XV, 3º, 58).

34. Impõe-se antes que a Relação“ analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada “ (Ac. S.T.J. de 3-11-2009, disponível em www.dgsi.pt).

35. No caso concreto destes autos, já vimos que a Relação, apesar de ter ouvido os registos da prova, não analisou criticamente cada um dos meios de prova indicados como fundamento da impugnação, nem cumpriu o dever de fundamentação sobre cada um dos pontos da matéria de facto impugnada e que as recorrentes consideram terem sido mal julgados.

36. o aresto impugnado limitou-se a meras considerações genéricas e a aderir à decisão sobre a matéria de facto proferida em 1ª instância, sem proceder à indispensável análise crítica e respectiva fundamentação das respostas, de modo a justificar a sua própria e autónoma convicção.

37. foi violado o art. 662, nº2, do C.P.C., impondo-se a anulação do Acórdão recorrido, para que se proceda à reapreciação de cada um dos pontos da matéria de facto impugnada, de acordo com os princípios que se deixaram expostos

38. Nãos subsiste qualquer dúvida de que as questões relacionadas como incorrecto uso dos poderes de facto conferidos por lei ao Tribunal da Relação, com violação do disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil, não se encontram abrangidas pelos efeitos da dupla conforme, impeditiva da interposição da revista normal nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.

39. Constitui dever específico do Tribunal da Relação exercer efectivamente os seus poderes de reavaliação do juízo de facto emitido em 1ª instância, na sequência da impugnação apresentada pela apelante.

40. Foi omitida ou incorrectamente exercida tal actividade processual respeitante à sindicância da matéria de facto impugnada – que constitui pronúncia originária que compete unicamente à 2ª instância - esse incumprimento dos deveres impostos no artigo 662º do Código de Processo Civil comporta naturalmente a interposição de revista normal para o Supremo Tribunal de Justiça.

41. Conforme escreve sobre esta matéria Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2020, 6ª edição, a páginas 415 a 416:

“Uma situação, a carecer de intervenção do elemento racional para determinação da resposta mais correcta, respeita aos casos em que é invocada no recurso de revista a violação de normas de direito adjectivo relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.

Pode acontecer que a Relação rejeite pura e simplesmente a impugnação da decisão da matéria de facto por motivos ligados à falta de identificação dos pontos de facto impugnados, a omissão de indicação dos meios de prova ,ou à falta de enunciação da resposta alternativa. Por exemplo, a Relação não admitiu o recurso de apelação na parte em que foi impugnada a decisão da matéria de facto, com o fundamento no incumprimento de alguns dos ónus previstos no artigo 640º; ou, noutro plano que demanda a aplicação do artigo 662º, recusou a apreciação dos meios de prova, a pretexto de alegadas dificuldades ou impedimentos decorrentes dos princípios da mediação ou da livre apreciação de prova.

Numa determinada perspectiva mais formal, em tais circunstâncias ocorreria uma dupla conformidade: literal e finalisticamente a Relação teria confirmado nesses casos a decisão recorrida sem voto de vencido e sem fundamentação substancialmente diversa. Todavia, tal conclusão não parece a mais ajustada, já que, relativamente à questão adjectiva relacionado com o ónus de alegação ou com o dever de reapreciação dos meios de prova, a interposição do recurso de revista constitui a única possibilidade de fazer reverter a situação a favor do recorrente nos casos em que o acórdão da Relação esteja eivada de erro de aplicação da lei processual a respeito da decisão da matéria de facto.

Nessas situações, e noutras similares, em que seja apontada à Relação erro de aplicação ou de interpretação da lei processual, ainda que seja confirmada a sentença recorrida no segmento referente à apreciação do mérito da apelação, não se verifica, relativamente àqueles aspectos, uma efectiva situação de dupla conforme, já que as questões emergiram ex novo do acórdão da Relação proferido no âmbito do recurso de apelação, sem que tenham sido objecto de apreciação na 1ª instância”.

42. Sobre esta temática, vide, entre outros:

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Setembro de 2013 (relator Azevedo Ramos), proferido no processo nº 1965/04.9TBSTB.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2020 (relator Nuno Pinto de Oliveira), proferido no processo nº 22/17.2T8CLB.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Janeiro de 2020 (relatora Fátima Gomes), proferido no processo nº 12422/16.0T8LSB.L1.S1, publicado in ECLI; STJ;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2020 (relator Ilídio Sacarrão Martins), proferido no processo nº 4794/16.3T8GMR.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2020 (relator José Rainho), proferido no processo nº 1863/16.3T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2020 (relator Rijo Ferreira), proferido no processo nº 277/12.9TBALJ.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2020 (relator Tomé Gomes), proferido no processo nº 4016/13.9TBVNG.P1.S3, publicado in www.dgsi.pt;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de30 de Junho de 2020 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 247/11.1TBMTR.G1-A.S1, publicado in ECLI; STJ;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2021 (relator Fernando Samões), proferido no processo nº 668/18.6T8PVZ.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Maio de 2021 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo nº 3277/12.5TBLLE-F.E2.S1, publicado in www.dgsi.pt).” (destaques nossos).

43. Saliente-se, também, que o recorrente que nas suas alegações de recurso de apelação indicou e invocou (no texto da sua motivação e posteriormente sintetizado nas suas conclusões):Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que entendia deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo (i) indicado alguns dos factos que entendia que deveriam ser aditados à matéria de facto ,(ii) os factos dados como provados que deveriam ser dados como não provados e (iii) os não provados que deveriam ser dados como provados;

44. Os concretos meios probatórios, constantes do processo e de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa sobres esses pontos da matéria de facto (sintetizados nas conclusões) com a indicação exacta das passagens da gravação em que se fundava, em parte, esse recurso (tendo procedido à transcrição, na motivação das alegações de recurso, dos excertos que considerou mais relevantes).

45. no que tange as declarações parte e sua valoração cfr alínea a) do n.º 1 do art 672.º - e a sua definição vão levar a uma melhor aplicação do direito e clarificar obre a aplicação das regras da prova e das regras do ónus.

46. Tal apreciação e definição é necessária à melhor aplicação do direito e segurança das partes bem como às decisões a proferir dotando-as de maior segurança e estabilidade jurídica.

47. Ademais, a decisão recorrida está em contradição com outros – supra citados – já transitados em julgado, proferidos pelo STJ, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito – art. 672.º, n.º 1, alínea c)

Não foi oferecida resposta.

A Relação do Porto, por acórdão da conferência, proferido no dia 14 de Janeiro de 2025, depois de observar que a recorrente apresentou reclamação do acórdão proferido nos autos arguindo uma nulidade e pedindo a sua reforma, deliberou negar provimento à pretensão da reclamante.

A Sra. Juíza Desembargadora Relatora, por despacho de 10 de Fevereiro de 2025, por considerar que a decisão quanto à verificação dos pressupostos de admissibilidade da revista excepcional compete ao Supremo Tribunal de Justiça, ordenou que se lhe remetessem os autos.

2. Correcção da espécie de revista, delimitação do seu âmbito objectivo e individualização da questão concreta controversa que deve ser solucionada.

2.1. Admissão do recurso como revista normal ou comum.

O primeiro problema de natureza estritamente processual, que importa resolver é o de saber qual é a espécie adequada da revista – se a revista excepcional, interposta pela recorrente, se a revista normal ou comum.

O recurso de revista excepcional só é admissível se a revista, ordinária ou comum, o não for designadamente por força da causa de exclusão da recorribilidade dos acórdãos da Relação, de largo espectro, representada pela chamada dupla conforme, de harmonia com a qual não é admitida revista daqueles acórdãos, sempre que confirmem, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Com este causa de irrecorribilidade visa-se racionalizar o acesso ao Supremo e acentuar a função que é característica dos tribunais supremos: a uniformização de jurisprudência. A restrição pode também justificar-se quer pela suficiência e a adequação da actividade do tribunal, que – numa perspectiva abstracta e formal - parte do princípio de que é suficiente a decisão acorde de dois tribunais e abstrai da importância da decisão para as partes, em especial, para o eventual recorrente, e da relevância dos fundamentos da sua impugnação – diversos daqueles que justificam que o recurso de revista seja sempre admissível – quer pela falta de interesse processual do recorrente: a parte que viu a sua pretensão ser julgada de modo idêntico pelas duas instâncias, não carece mais de interesse processual2. No entanto, em certos casos excepcionais, a revista é admissível (art.ºs 671.º, n.º 3, in fine, e 672.º. n.º 1, do CPC)

Como a conformidade das decisões das instâncias exclui o recurso de revista que, doutro modo, seria admissível, o que importa determinar é se essas decisões são conformes – duae conformes sententiae - não se são desconformes, pelo que se aquelas decisões não forem inteiramente coincidentes, o que interessa determinar é se essa não coincidência equivale a uma não-conformidade. As decisões das instâncias podem ser conformes, mesmo que entre elas se registe alguma desconformidade, o que é confirmado pela regra de que as decisões das instâncias são conformes se as respectivas fundamentações, apesar de distintas, não forem essencialmente diferentes (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Para verificar se o acórdão da Relação é conforme ou desconforme perante a decisão da 1.ª instância há que considerar os elementos das duas decisões. E entre os elementos das duas decisões, interessantes para a avaliação ou aferição daquela conformidade releva, desde logo, a fundamentação: se a fundamentação das decisões das instâncias for homótropa ou não for essencialmente diferente, a revista normal ou comum é inadmissível; se, porém, a motivação do acórdão da Relação for essencialmente distinta, aquele recurso ordinário é admissível, não o sendo a revista excepcional.

Apesar de alguma flutuação de formulações, por fundamentação essencialmente diversa este Tribunal tem entendido, não aquela que seja divergente no tocante a aspectos marginais, subalternos ou secundários - mas a que assente numa ratio decidendi inteiramente distinta, como sucede quando radica em institutos ou normas jurídicas completamente diferenciadas ou quando, movendo-se embora no âmbito do mesmo instituto ou norma jurídica, os interpreta de modo inteiramente divergente, aplicando ao objecto do processo um enquadramento jurídico marcadamente diferenciado que se repercuta, decisivamente, na solução jurídica da controvérsia3.

Por definição, a fundamentação do acórdão da Relação é necessariamente diferente se assentar num fundamento de procedência ou de improcedência do recurso de apelação que deva considerar-se novo, por não ter sido utilizado pela decisão da 1.ª instância. Nesta hipótese, as duas decisões das instâncias são, no plano da motivação, irrecusavelmente diferentes, pelo que a única coisa que resta discutir é se essa diferença de fundamentação é essencial. E será essencialmente diferente se, de harmonia com o critério apontado, se repercutir, de modo decisivo, no sentido da decisão.

Tendo-se isto – como se deve – por certo, a conclusão de que no caso se não verifica o obstáculo à admissibilidade da revista, normal ou comum, representado pela duae conformes sententiae é meramente consequencial.

Pode compreender-se que a lei retire de uma dupla sucumbência da parte, a inadmissibilidade do recurso de revista. Mas já não se compreende que a parte seja considerada duplamente vencida quando pretende alegar, pela primeira vez, na revista, um fundamento de recurso que não podia ter invocado na apelação interposta da decisão da 1.ª instância para a Relação – e que, portanto, não pode considerar-se ter sido atingido pela preclusão - o que sucederá quando o acórdão da Relação, apesar de confirmar, sem voto de vencido, a decisão da 1.ª instância, fornecer um novo fundamento para a interposição do recurso de revista. O caso paradigmático, e frequente, é o da violação, pelo acórdão da Relação, das normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, mais precisamente, com o não uso ou o uso incorrecto pela Relação dos seus poderes específicos sobre a matéria de facto, em que uma jurisprudência reiterada do Supremo descaracteriza a dupla conforme, justamente com o argumento de que a questão emergiu ex-novo do acórdão da Relação4. Orientação que, de resto, pode generalizar-se de harmonia com este pensamento: sempre que um fundamento da revista preencha o requisito da novidade, por só ter surgido com o acórdão da Relação, aquele recurso, por ausência de conformidade de decisões, deve ter-se por admissível.

Julga-se que é, precisamente esse, o caso do recurso.

A recorrente alega, na revista, desde logo – com ou sem razão, por ora e para o caso, não interessa – que a Relação, não se pronunciou de forma crítica sobre os elementos juntos pela recorrente e nem explicitou o juízo que fez dos mesmos e porque razão, fundamentada, os mesmos não implicavam decisão diversa da recorrida e alteração da matéria de facto no sentido apontado pelo recorrente, que a decisão recorrida limitou-se a considerar que se sobrepunham sempre os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas do Tribunal recorrido, ignorando, por completo, os meios probatórios indicados pela Recorrente, não fez qualquer análise crítica e conjugação dos mesmos com as provas, nem explicou porque razão não alterava a decisão sobre a matéria de facto no sentido pretendido pela recorrente e, mesmo, que “não revisitou os meios de prova apontados”. Ora, alegando-se a violação pela Relação, dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto, que aquele Tribunal fez um uso incorrecto ou mau uso – e mesmo um não uso – dos seus poderes de correcção da decisão da quaestio facti, não se verifica o obstáculo de admissibilidade da revista comum ou normal representado pela duae conformes sententiae, pelo que aquela revista é admissível. Aliás, a recorrente sustenta isto mesmo nas conclusões n.ºs 41 e 42.º da sua alegação, mas, incoerentemente, optou pela interposição do recurso de revista excepcional, sendo patente, de resto, que aquela alegação não contém uma motivação, concludente, uma argumentação sólida e convincente das razões objectivas pelas quais se justificaria, apesar da duae conforme sententiae, a intervenção do Supremo5. E a falta de uma alegação concludente ou consistente, de uma invocação séria ou verosímil daquela necessidade da revista, na ausência de uma exposição e demonstração da fundamentação específica de que depende a admissibilidade da revista excepcional, esta logo devia ser julgada inadmissível.

Os casos de irrecorribilidade são excepcionais (art.º 627.º, n.º 1, do CPC). Essa excepcionalidade vincula a uma aplicação cuidadosa do regime, complexo e difícil, da dupla conforme de modo a evitar uma ampliação da causa de irrecorribilidade correspondente.

Tendo-se isto por certo, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que a revista comum ou normal, é admissível e que a revista excepcional o não é e, portanto, que a recorrente errou quanto à qualificação do meio processual, erro q se corrige – dada a plena aproveitabilidade do requerimento de interposição do recurso - determinando que se observem os termos processuais adequados: os da revista normal ou comum (art.º 193.º, n.º 3, do CPC).

2.2. Delimitação do âmbito objectivo da revista e individualização das questões concretas a resolver.

Como o âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação, é uma só a questão colocada à atenção deste Tribunal Supremo: a de saber se o Tribunal da Relação fez um não uso ou um uso incorrecto dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância e, consequentemente, se o processo lhe dever ser devolvido para que actue esses mesmos poderes. A resolução deste problema reclama, naturalmente, o exame dos poderes de correcção da Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1.ª instância (art.º 635.º, nºs 1, 3 a 5, do CPC).

A determinação do exacto âmbito da revista, exige ainda um esclarecimento complementar.

O Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista e, portanto, não controla a decisão da questão de facto e não revoga por erro de facto, controlando apenas a decisão de direito e só revogando por erro de direito, limitação que é justificada pela função de harmonização jurisprudencial sobre a interpretação e aplicação da lei que é característica e própria dos tribunais supremos (art.ºs 46.º da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e 682.º, n.º 1, do CPC). Por isso que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não constitui objecto idóneo do recurso de revista, salvo os casos de ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, i.e., exceptuados os casos de prova necessária, i.e., em que a lei exige certo meio de prova para se poder demonstrar o facto probando, ou de prova legal ou tarifada, quer dizer, em que a lei impõe ao juiz a conclusão que há-de tirar do meio de prova (art.º 674.º, n.º 3, do CPC).

O Supremo Tribunal de Justiça está, pois, vinculado aos factos fixados pelas instâncias e, como consequência dessa vinculação, está adstrito a uma obrigação negativa: a de não poder alterar, salvo em casos excepcionais, essa matéria (art.º 682.º, n.º 2, do CPC). Estas vinculações implicam que não pode controlar a apreciação da prova, porque uma vinculação à matéria de facto averiguada nas instâncias e a proibição de alterar, implicam, necessariamente, a impossibilidade – e mesmo a desnecessidade – de controlar a sua apreciação. Em especial, o Supremo não pode controlar a prudência ou a imprudência da convicção das instâncias sobre a prova produzida, sempre que se trate de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação, i.e., que assenta na prudente convicção que o tribunal tenha adquirido das provas produzidas (art.º 607.º, n.º 5, 1.ª parte, do CPC). Trata-se de jurisprudência absolutamente firme ou acorde6.

Este esclarecimento ou precisão justifica-se em vista das alegações da recorrente nas quais afirma que discorda de ter sido mantidos como provados os factos descritos nos pontos 6), 7), 8), 9), 10), 11), 12), 13), 15) e 16), que na sua opinião, não foi feita qualquer prova de ter recebido, em numerário, as quantias de € 4.500,00e de€ 4.052,53,nem dos prejuízos alegadamente sofridos pelo Recorrido em consequência do processo executivo de que foi alvo, que no caso a valoração das declarações de parte impõe-se particular cuidado e não ser ingénuo, demais a mais quando não há confronto entre as duas versões contrapostas, i.e. quando não temos para sopesar, como é o caso, as declarações de ambas as partes e que no caso sujeito, importa referir que nenhuma das testemunhas do autor tinha conhecimento directo dos facto alegados pelo autor. Qualquer destes factos foi julgado provado, designadamente, com base na prova testemunhal e na prova por declarações de parte - que é uma prova livre, ou seja, que é livre – mas prudentemente – apreciada pelo tribunal (art.ºs 396.º do Código Civil, e 466.º, n.º 3, do CPC). A valoração que a Relação fez daquelas provas – e a convicção autónoma que delas adquiriu – dado que não constitui um erro em matéria de direito probatório, está inteiramente subtraída à competência decisória ou funcional do Supremo. Embora as condições que justificam a alteração ou a confirmação da decisão da 1.ª instância pela Relação sejam matéria de direito e, por isso, susceptíveis de ser apreciadas no recurso de revista, a apreciação da prova é matéria de facto e está excluída da competência do Supremo.

3. Fundamentos.

3.1. Fundamentos de facto.

As instâncias estabilizaram a matéria de facto nos termos seguintes:

3.1.1. Factos provados.

1) No início do mês de Dezembro de 2010, o Autor dirigiu-se ao estabelecimento da Ré, concessionária da Citroen, sito em ..., na ..., com o propósito de adquirir um veículo automóvel;

2) Em 10 de Dezembro de 2010, o Autor adquiriu à Ré um veículo automóvel da marca Citroen, modelo C3, matrícula ..-LB-.., pelo preço de €19.000,00;

3) Como forma de pagamento do veículo foi acordado entre Autor e Ré que aquele entregaria este o veículo de sua propriedade, considerado como retoma, da marca Citroen, modelo C3, com a matrícula ..-JO-.., ao qual as partes atribuíram o valor de € 10.000,00 (dez mil euros);

4) No dia 3 de Dezembro de 2012, por intermédio dos funcionários da Ré que lhe disponibilizaram a proposta respectiva, da Ré, o Autor celebrou com a empresa «Banque PSA Finance» um contrato de financiamento, pelo valor de € 9.000,00 (nove mil euros), com vista ao pagamento do remanescente do preço convencionado;

5) Para pagamento do preço convencionado para a aquisição do veículo, para além do aludido automóvel recebido como “retoma”, a Ré recebeu a quantia de € 9.000,00 proveniente do financiamento contratado pelo Autor;

6) Em data não concretamente determinada, após a encomenda do veículo e antes de o mesmo lhe ter sido entregue, no mesmo stand, o Autor entregou a um funcionário da Ré o valor, em numerário, de € 4.500,00, a título de adiantamento do preço do veículo (sinal);

7) Posteriormente, o Autor comunicou aos funcionários da Ré que pretendia liquidar a totalidade do preço em falta do veículo, no valor de € 4.500,00 e assim cancelar o contrato de financiamento;

8) O Autor estava convencido de que havia celebrado o contrato de financiamento pelo valor de € 4.500,00;

9) Acedendo a este pedido, os mesmos funcionários da Ré, apresentaram-lhe o documento junto como n.º 5 da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, informando-o que, com o pagamento da quantia de € 4.052,53 liquidaria na totalidade o valor do empréstimo;

10) Nessa ocasião, o Autor já havia pago uma prestação do mencionado empréstimo;

11) Em 3 de Fevereiro de 2011, o Autor entregou a um funcionário da Ré, que recebeu, para liquidação do referido empréstimo, a sobredita quantia de € 4.052,53;

12) Após a realização desse pagamento, o funcionário da Ré comunicou a Autor que nada mais devia e que estava tudo liquidado à sociedade financeira;

13) Após o referido no item anterior, o autor não pagou à sociedade financeira qualquer outra prestação do referido empréstimo;

14) Não obstante, após essa data, foram pagas algumas prestações à sociedade financeira em execução do supra mencionado contrato de empréstimo.

15) A quantia entregue pelo Autor e referida no item 11) supra não foi utilizada para liquidar o referido contrato de empréstimo;

16) Após informação do Banc PSA de que as prestações do crédito deixaram de ser pagas e que o iriam acionar judicialmente, o autor deslocou-se ao Stand da Ré e confrontou os funcionários destaque lhe disseram que se tratava de um erro informático e que não necessitava de se preocupar:

17) O Autor recebeu a carta do Banco PSA Finance, datada de 12 de Janeiro de 2.012 – cuja cópia está junta a fls. 20, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – comunicando-lhe a resolução do contrato de financiamento e que o valor total em dívida, que ascendia a €9.629,56, teria de ser pago até ao dia 12 de Fevereiro de 2012;

18) Foi intentada pela sociedade Financeira PSA uma acção executiva contra o aqui Autor para pagamento do valor em dívida decorrente do contrato de financiamento, a qual correu termo no Tribunal Judicial da ..., Juízo de execução, sob o n.º 1853/12.5...;

19) Por causa dessa execução, o Autor foi penhorado ao autor, pelo menos, um conjunto de bens móveis que se encontravam no interior da sua habitação;

20) Tal acção foi extinta, após acordo de pagamento celebrado entre Autor e a dita sociedade financeira, homologado por sentença de 13 de Outubro de 2013:

21) Para o efeito, o Autor vendeu o seu veículo a um Stand que, por sua vez, entregou à sociedade exequente o mencionado o valor de € 11.000,00 que liquidaria o crédito exequendo;

22) O Autor contratou uma Advogada para o defender no referido processo executivo;

23) O autor sofreu e sentiu revolta e preocupação com a situação acima descrita;

24) A sua vida pessoa ficou afectada com a pendência do processo executivo

3.1.2. Factos não provados.

Não se provaram outros factos entre os alegados pelas partes com relevo para a decisão da causa e nomeadamente que:

a) Foram os funcionários da Ré quem propôs ao Autor assinar o contrato de financiamento aludido em 4), no valor de € 9.000,00, informando-o de posteriormente o valor constante do mesmo seria alterado;

b) Após a recepção da carta aludida em 17), o Autor deslocou-se ao concessionário da Ré onde exibiu a mesma, tendo-lhe, nessa ocasião, sido dito por um funcionário da Ré que se tratava de um erro informático e que não necessitava de se preocupar;

c) O Autor pagou a título de honorários à sua advogada no processo executivo acima identificado a quantia de € 1.000,00;

d) No âmbito desse processo, foram penhorados o salário, o veículo automóvel e o imóvel que constituía a casa de morada de família do Autor;

e) O autor deduziu embargos de terceiro na dita acção executiva, tendo de pagar a taxa de justiça no valo de € 250,00;

f) O Autor ficou com o seu nome na lista de devedores do Banco de Portugal e impedido de aceder a qualquer tipo de financiamento ou empréstimo bancário;

g) Por estar impedido de circular no seu veículo, que foi objecto de penhora, o Autor ficou sem qualquer tipo de transporte para o trabalho ou para as deslocações familiares;

h) O Autor, que reside na ..., trabalha na ... e não dispunha de transporte directo para se deslocar;

i) Por causa da situação descrita o Autor entrou num estado de depressão e pânico;

j) O autor nunca deveu nada a ninguém;

k) A situação acima descrita foi uma das causas do divórcio do Autor;

l) O Autor passou noites sem dormir e vergonha perante familiares, colegas e amigos por causa do referido processo executivo e das penhoras ali realizadas;

m) Ainda hoje se sente traumatizado por ter sido objecto de um processo executivo, necessitando de fármacos para se acalmar;

n) Por causa de toda a situação isolou-se e privou-se do contacto com familiares e amigos;

o) A Ré apropriou-se das quantias em dinheiro mencionadas em 6) e 11).

3.2. Fundamentos de direito.

3.2.1. Poderes de controlo da Relação no tocante à decisão da matéria de facto da 1.ª instância.

No caso do recurso de apelação que tenha por objecto, principal ou concorrente, a impugnação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, por erro em matéria de provas, o Tribunal da Relação deve proceder, no tocante a cada um dos enunciados de facto que o recorrente reputa de mal julgados, à reapreciação das provas que, segundo o impugnante, foram erroneamente valoradas ou apreciadas – reapreciação que pressupõe o conhecimento do seu conteúdo, a determinação da sua relevância e a sua valoração (art.ºs 640.º, n.º 1, a) a c), e 662.º, n.º 1, do CPC). No exercício dos seus poderes de correcção da decisão proferida sobre a matéria de facto, a Relação pode alterar aquela decisão se ela for incompatível com a prova produzida em 1.ª instância: esta incompatibilidade pode decorrer de um novo juízo formulado pela Relação dado que – considerando a remissão realizada pelo art.º 662.º, n.º 3 para o art.º 607.º do CPC, a Relação tem de realizar a análise crítica das provas produzidas na 1.ª instância, extrair, se for caso disso, ilações das presunções judiciais e das presunções legais e ainda formar, nas matérias submetidas à livre apreciação da prova, uma prudente convicção autónoma – e fundamentada - sobre essas provas (art.º 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC). Análise crítica das provas que respeita, por um lado, ás inferências probatórias e, por outro, á solução de uma situação de non liquet: se dos factos assentes ou da decisão sobre a matéria de facto constarem factos indiciários donde se possa concluir outros por presunção – de facto, de direito ou judicial – é lícito à Relação tirar essa conclusão; no caso de prova produzida não permitir resolver uma questão de facto no caso de dúvida insanável ou irredutível, ou questão insanável ou irredutivelmente incerta, o tribunal deve decidir contra parte a quem o facto aproveita (art.ºs 604.º, n.º 4, e 414.º do CPC)7.

Note-se que se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não há razão bastante – legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (art.º 607.º, nº 5, ex-vi art.º 663.º, nº 2, do CPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente.

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1.ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova - salvo casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo. A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou de comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1.ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção.

O uso incorrecto pela Relação dos seus poderes de controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância pode consistir na não apreciação, com completude exigível, de toda a decisão sobre a matéria de facto impugnada, na não apreciação, com completude exigível, das provas adquiridas para o processo, ou na falta de fundamentação, com a completude exigível, da decisão da matéria de facto impugnada8, em termos que permitam, objectivamente, compreender o percurso racional subjacente à reapreciação da prova9. A estes casos há que adicionar o não uso pela Relação tanto dos seus poderes de controlo sobre os meios de prova, como dos seus poderes de anulação da decisão da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, nos casos em que essa anulação seja necessária, por, designadamente, a contradição sobre certos pontos de facto daquela decisão não poder ser ultrapassada pelos elementos disponibilizados pelo processo (art.º 662.º, n.º 1, ex-vi, al. c), do n.º 2 do mesmo artigo).

Verificada um qualquer destas patologias, o acórdão da Relação deve ser cassado – anulado – no segmento afectado, e o processo devolvido àquele Tribunal para, com a completude exigível, fazer uso – ou um uso correcto - dos seus poderes de controlo, designadamente de correcção, relativamente à decisão da matéria de facto da 1.ª instância.

O exame, ainda que leve, da evolução das atribuições da Relação de julgamento da matéria de facto inculca, indubitavelmente, um reforço dos seus poderes, nitidamente ordenado pela criação de um verdadeiro e efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes uma maior e real possibilidade de reacção contra eventuais erros de julgamento na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito. Apesar disso, não parece que seja errado dizer-se que não se visa instituir uma nova instância de julgamento da matéria de facto – mas, limitadamente, criar uma instância de controlo do julgamento daquela matéria feito pelo tribunal de 1ª instância: a Relação não é uma 2.ª 1.ª instância.

Relativamente às provas pessoais produzidas oralmente na audiência, objecto de registo sonoro, a Relação conhece delas e aprecia-as através da audição do registo sonoro ou da leitura, fria e inexpressiva, da transcrição que, eventualmente, delas tenha sido feita pelo recorrente ou pelo recorrido (art.ºs 640.º, n.º 2, a) e b), e 662.º, n.º 1, do CPC).

Sendo exacto que o princípio da oralidade – com o seu corolário da imediação – não vincula à exclusão da documentação dos actos de produção da prova levados a cabo oralmente e, correspondentemente, ao controlo por via de recurso da decisão atingida por essa forma, não deve, contudo, desvalorizar-se a importância de qualquer desses princípios para o julgamento da questão de facto e, consequentemente, as inevitáveis limitações, que para o tribunal ad quem decorrem da circunstância de a actividade de controlo da decisão sobre a matéria de facto ser actuada, por via de regra, sem a intervenção desses princípios.

Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação do tribunal. Essa apreciação baseia-se na prudente convicção do tribunal sobre a prova produzida, quer dizer, em regras de ciência e de raciocínio e em máximas de experiência (art.º 607 n.º 5 do CPC). O controlo da Relação sobre a matéria de facto incide, por isso, sobre um julgamento realizado na instância realizada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada num audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa percepção própria do material que lhe serve de base.

Decerto que se pode responder que as vantagens da reponderação da decisão da matéria de facto pelo tribunal ad quem superam os inconvenientes de o tribunal de 2.º instância não se encontrar em contacto vivo e imediato com as provas, maxime, com a prova testemunhal, e que o modo como ao tribunal de recurso são disponibilizadas as provas produzidas na instância recorrida é suficiente para permitir o exercício dos poderes de controlo sobre o julgamento da questão de facto que a lei lhe atribui.

Esta afirmação contém uma larga parcela de verdade – embora se lhe possa opor que a gravação ou a transcrição da prova produzida oralmente não supre o contacto directo com as provas pessoais, especialmente com as testemunhas, as próprias partes e os peritos e que, obedecendo o recurso a um modelo de reponderação e não de reexame, na dúvida deve prevalecer a valoração do tribunal recorrido, a menos que se torne patente uma falha no raciocínio lógico ou no iter indutivo do juiz da 1.º instância, ou quando estabelece conclusões arbitrárias ou absurdas. Um esclarecimento dos factos sujeitos a julgamento que se queira total e completo só poderá ser alcançado pelo tribunal se, por um lado, ele não estiver ligado ao conteúdo de autos e protocolos ou registos, e se, por outro lado, puder adquirir uma impressão pessoal dos meios de prova. É verdade que, no caso de a documentação dos actos de prova consistir no registo fonográfico, o tribunal ad quem, na revisão do julgamento da matéria de facto, assume e valora a prova de harmonia com o princípio da oralidade – mas não seguramente de harmonia com o princípio da imediação. Todavia, a verdade é que oralidade e imediação não são princípios distintos – antes se apresentam como um conjunto incindível.

Do que decorre que para a boa actuação, pelo tribunal ad quem dos seus poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto possa não ser suficiente a disponibilidade do registo das provas produzidas oralmente no tribunal a quo, antes exija que essas provas sejam produzidas perante em si, de modo a permitir o funcionamento, na sua assunção, do princípio da imediação. E este é um dos principais argumentos invocados para sustentar uma concepção restritiva dos poderes de controlo da Relação relativamente à decisão da questão de facto, que, aliás, se considera definitivamente ultrapassada10: a falta de homogeneidade da assunção da prova pessoal pelo Tribunal da 1.ª instância e pela Relação, dado que esta última exerce a actividade processual de controlo da decisão da questão de facto sem a presença dos participantes processuais e, portanto, sem o contacto vivo e imediato com esses participantes. Mas se é indubitável que a diferença entre as condições em que a 1.ª instância e a Relação apreciam a prova produzida – no último caso sem imediação – não é irrelevante, também é irrecusável que não é impossibilitante da formação pela Relação de uma convicção autónoma – e fundamentada – sobre aquela prova. Crê-se, de resto, que o dever de renovar a prova deixa sem valor o argumento: sempre que a Relação tiver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente – e, portanto, suspeitar da falsidade do seu depoimento, e entenda que só com a presença do depoente lhe será possível, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade, ou do sentido das declarações prestadas, tem na sua mão a possibilidade de obter uma percepção própria daquela prova: a renovação da sua produção (art.º 662.º, n.º 2, a), do CPC).

Por último, cumpre notar que um mau uso ou um uso incorrecto pela Relação dos seus poderes de controlo da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, v.g. por omissão do exame crítico das provas que lhe cumpre apreciar, ao contrário do que alega a recorrente e implicitamente é admitido pelo acórdão da conferência da Relação, é uma decisão contra legem – mas não é uma decisão nula, dado que comprovadamente um tal erro não é subsumível a qualquer das causas típicas de invalidade da decisão (art.º 615.º, n.º 1, do CPC)11.

Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução da – única - questão concreta controversa objecto da revista.

3.2.2. Concretização.

Por razões que se explicam por si, o Supremo só pode avaliar se, e caso afirmativo, como o Tribunal da Relação usou os seus poderes de controlo da correcção da decisão da matéria de facto a partir da fundamentação do acórdão recorrido12.

No caso, a Relação adiantou, para justificar a sua decisão de improcedência da impugnação que a recorrente deduziu contra a decisão da matéria de facto da 1.ª instância, a motivação seguinte: (..) Na reapreciação da prova, o Tribunal da Relação goza de ampla liberdade de movimentos para, em face do suporte magnético, modificar, sendo caso disso, a matéria provada em 1.ª instância, após ter ponderado casuisticamente o relevo do princípio da imediação13. (…).

Procedeu-se à audição das declarações de parte, dos depoimentos das testemunhas bem como à análise dos documentos juntos aos autos e concluiu-se que a decisão não merece qualquer reparo, encontrando-se, aliás, muito bem fundamentada.

Como se sabe, a convicção do julgador sobre a realidade dos factos alegados deve fundamentar-se na avaliação global dos meios de prova produzidos, e nessa complexa operação recorre a diversos critérios entre os quais a razão de ciência de cada testemunha, as relações familiares, de amizade e de inimizade, a serenidade, coerência, segurança e verosimilhança do depoimento.

Aliás, neste tipo de acção em que os meios de prova produzidos são susceptíveis de causar dúvidas no espírito do julgador é que sobressai o grau de ponderação, as regras da experiência e o nível de capacidade de conjugar todos os elementos disponíveis para formar a convicção sobre a realidade num determinado sentido, positivo ou negativo.

E concorda-se, desde logo, com a elevada relevância probatória conferida pelo tribunal a quo às declarações do próprio Autor.

Um dos meios de prova elencados no processo civil consiste nas declarações de parte sobre factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo-cfr. art. 466.º, n.º 1 do CPCivil.

O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão-n.º 3 do citado preceito legal.

Sobre as declarações de parte como meio de prova, Lebre de Freitas esclarece que “A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas”.

A posição reiterada da jurisprudência e doutrina sobre este meio de prova considera, nas palavras consignadas no Acórdão da Relação de Lisboa, de 14/01/2021 , que “(…) o juiz apreciará esse meio de prova de acordo com a sua livre convicção, à luz da experiência normal das coisas e da conjugação com outros meios de prova que existam, de tudo devendo fazer uma análise crítica, que deverá verter na fundamentação da decisão de facto (art.º 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC).

Numa palavra, as declarações de parte constituem um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, e a sua eficácia probatória depende, normalmente, da conjugação com outros meios de prova e com as regras da experiência à luz da matéria factual em discussão e da forma como são prestadas.

E é justamente a forma como foram prestadas as declarações do Autor que nos levaram, num primeiro momento, a considerar que a sua versão corresponde totalmente ao que efectivamente se passou.

Relatou todos os factos que vivenciou, pormenorizadamente, e sobretudo com muita segurança e genuinidade, e até com natural revolta por ter sido, nas suas palavras “burlado” na compra do dito veículo, na qual tiveram intervenção dois funcionários da Ré.

Acompanhamos, por isso, o Mmo. Juiz quando observa que, apesar do cuidado que se deve ter com este meio de prova, “pela forma veemente e sincera como foram prestadas e sobretudo porque corroboradas com outros meios de prova (documental, testemunhal e presunções baseadas nas regras da experiência comum), em grande parte, foi possível considerar provada a factualidade por ele alegada, e repetida em declarações de parte, como fundamento da sua pretensão.”

Assim, devemos prosseguir a nossa análise pela prova documental, objectiva, que foi trazida aos autos.

A Ré impugnou o recebimento das quantias alegadamente entregues pelo Autor em numerário no stand, €4.500,00 a título de sinal, e para liquidação do preço restante no valor de €4.052,53.

Nos autos constam talões de levantamento, datados de 06/12/2010 e de 27/01/2011 no montante de €4.500, cada, comprovativos do levantamento de numerário; e a versão dos factos foi confirmada pelos irmãos do Autor, as testemunhas CC e EE e pelo amigo DD. A testemunha EE confirmou que o pai levantou a segunda quantia para emprestar ao filho, aqui Autor e foram os três ao stand para proceder ao pagamento.

Mesmo que se considerasse pouco normal o pagamento de tais somas elevadas em dinheiro, a prova objectiva (documental), por ordem cronológica, aponta claramente no sentido da versão do Autor.

O documento que titula o financiamento do veículo no valor de 9.000 mil euros apresenta a data de 3 de Dezembro de 2010 e vigoraria até 07/12/2015, o que pressupõe ter ocorrido uma conversa inicial entre o Autor e o vendedor em que terá sido referido o preço do veículo (€19.000,00), o valor da retoma (€10.000,00) e para pagamento do restante, o financiamento de 9.000,00€.

Decorridos apenas três dias, em 06 de Dezembro de 2010, antes da recepção do veículo, no documento intitulado “Informação Cliente Veículo Novo”, na parte referente às observações consta o seguinte: “Retoma 10.000€/ Sinal: 4.500€

No mesmo documento consta como Vendedor-BB e encontra-se carimbado pela empresa e assinado.

A testemunha BB, negou ser sua a assinatura e o manuscrito no mencionado documento mas não conseguiu explicar cabalmente o facto de estar o nome dele como vendedor desse veículo.

É de notar que, apesar de não se lembrar do Autor e de, segundo as suas palavras, ser usual vender diariamente muitos veículos, imputou esta venda ao colega, FF, justificando que ele “usava o seu computador.”

O Autor declarou expressamente que não ficou com cópia do contrato de financiamento e que falou com os vendedores BB e FF, concretizando, no entanto, que tratou do negócio com o BB.

No dia 10 de Dezembro de 2010 o contrato de compra e venda foi formalizado como resulta do documento n.º 1 e da respectiva factura, emitida em 21/12/2010, pelo preço de 19.000,00€ e com a anotação do valor de retoma de € 10.000,00.

Posteriormente, o Autor referiu que se deslocou ao stand porque pretendia liquidar o financiamento que julgava ser apenas de €4.500,00, tendo o vendedor BB o convencido a pagar pelo menos a primeira prestação do financiamento de cerca de 450 euros.

Obteve a informação do stand sobre o valor que devia à financeira e pagou esse dinheiro em numerário, ou seja, a quantia de € 4.052.53 (deduzida a prestação de 447,47€), entregando-a nesse local, o que foi confirmado pela testemunha DD.

A testemunha EE, como se referiu, acompanhou o Autor e o pai de ambos (a quem pertencia o dinheiro que levantou no banco) ao stand onde, segundo o seu depoimento, estava o BB, o qual “fez um documento, assinou e carimbou”. Revelou conhecer bem o interior do stand.

Efectivamente consta dos autos o documento n.º 5, que foi entregue ao Autor nessa altura, no stand, e como bem se observou na sentença “supostamente emitido pelo Banque PSA Finance, com a informação sobre o cálculo da liquidação antecipada do dito crédito (a qual leva em conta que o Autor já tinha, à data, pago uma prestação do dito empréstimo), a verdade é que o grau de detalhe do mesmo, a configuração do texto respectivo e o uso do logotipo da entidade bancária em causa permitem concluir pela fortíssima probabilidade de tal documento ter sido efectivamente apresentado ao Autor pelos funcionários da Ré, nas circunstâncias por ele descritas.”

Como se deu nota na sentença, sobre estes dois funcionários recaíram suspeitas da Ré relativamente a vendas de veículos (de retoma) cujos preços não entraram na contabilidade daquela, o que foi confirmado pela testemunha BB que, no entanto, negou essa imputada actuação ilícita.

E se restasse alguma dúvida perante a conjugação de todos os mencionados meios de prova, o teor da reclamação que o Autor apresentou, em 25/08/2011, logo após ter sido surpreendido com as interpelações da financeira para pagar as prestações em falta do empréstimo e que os funcionários da Ré não resolveram, revela que o Autor declarou em tribunal a verdade dos factos.

Depois de receber as comunicações escritas e telefónicas da financeira destinadas a obter o pagamento em falta, o Autor escreveu no livro das reclamações o seguinte:

“No dia 06-12-2010 comprei um C3 1.4.70 no valor de 19.000 euros.

Fiz um financiamento de 9 mil euros mas resolvi pagar em dinheiro o carro.

Dei em retoma 10.000 pelo antigo carro e um sinal de 4500.

No dia 3/2/2011 paguei o restante que faltava que era de 1.052,53 euros mais a prestação no valor de 447.47 euros.

Vim a saber que o vendedor não entregou o dinheiro e que foi o BB da C....

Tenho recebido cartas e telefonemas da PSA a pedir o dinheiro. Alguém tava a pagar as prestações. Até que deixou de pagar Junho, Julho e Agosto.

Sendo que a PSA me vem informar que vai-me processar judicialmente.

Vim a saber que o meu bom nome está manchado no Banco de Portugal.

A empresa ficou de resolver o problema mas vai demorar. Eu quero o meu problema resolvido.”

Portanto, ficámos seguramente convictos, após a conjugação dos meios de prova referidos, que o Autor entregou as mencionadas quantias de dinheiro, em numerário, no stand da Ré, sendo que, em consequência, não foi alterado nem posteriormente extinto o contrato de financiamento no montante de 9.000,00 €.

Pretende a Recorrente que seja aditado que não lhe foi dado conhecimento da existência do processo executivo. Considera tal matéria de extrema importância “pois não pode o Autor ser ou pretender ser ressarcido de alegados prejuízos e danos por si sofridos em virtude do processo executivo que contra si correu e serem estes imputados à A. como se fez na sentença recorrida, quando esta desconhecia, sem culpa tal processo por dele nunca ter sido informada pelo A., o que consubstancia um abuso de direito deste na forma de venire contra factum proprium e a decisão do tribunal constitui o A. no recebimento de uma quantia que na verdade configura um enriquecimento sem causa para aquele pois inexiste culpa ou actuação da A. que permita imputar a esta as consequências do referido processo executivo.”

Ora, da simples leitura da reclamação que o Autor redigiu no Livro de Reclamações da Ré resulta exactamente o oposto.

Em primeiro lugar, ficou provado, através do depoimento da testemunha DD e das declarações do Autor a factualidade vertida no ponto 16): “Após informação do Banc PSA de que as prestações do crédito deixaram de ser pagas e que o iriam acionar judicialmente, o autor deslocou-se ao Stand da Ré e confrontou os funcionários desta que lhe disseram que se tratava de um erro informático e que não necessitava de se preocupar.”

Ou seja, o Autor informou os funcionários da Ré da situação grave de falta de pagamento do crédito e que iria ser accionado judicialmente, informação que formalizou no livro de reclamações. Em resposta disseram-lhe para não se preocupar porque se tratava de um erro informático.

Pelas declarações do legal representante da Ré também se ficou a saber que gere várias empresas e que não tem disponibilidade para ler reclamações de clientes ou o correio, delegando essas tarefas num funcionário.

Por conseguinte, o Autor informou a Ré sobre o que se estava a passar e que ia ser processado pela financeira por falta de pagamento do crédito e a Ré nada fez nem se importou em resolver ou averiguar o que estava a suceder.

Assim sendo, face às circunstâncias vivenciadas pelo Autor e ausência de resposta da Ré não era exigível ao Autor que a informasse da existência do processo executivo, por um lado, e por outro, mesmo que esse facto ficasse demonstrado, não a eximia da responsabilidade de indemnizar os danos causados ao cliente, por não constituir um facto modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do Autor (342.º, n.º 2 do CC). Na mesma ordem de ideias, face ao disposto no art. 334.º do C.Civil, tal omissão não seria enquadrável na figura do abuso do direito pois ninguém pode ser censurado por não ter dado conhecimento da acção executiva de que foi alvo após todas as démarches que empreendeu, sem sucesso, para resolver o seu problema, inclusivamente apresentando denúncia criminal.

Assim sendo, não se impõe a alteração da matéria de facto, no sentido pretendido pelos Recorrentes, antes pelo contrário, considera-se que a decisão impugnada se encontra fundamentada, destacando-se o raciocínio lógico, alicerçado nas regras da experiência e probatórias.

Em face destes fundamentos, julga-se claro, por um lado, que, ao contrário do que sustenta a recorrente, o acórdão recorrido não se limitou a considerações genéricas e a aderir à decisão sobre a matéria de facto da 1.º instância, nem se limitou, também ao contrário do que advoga a impugnante, a considerar que se sobrepunham os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas daquele Tribunal e, por outro, que aquele acórdão cumpriu tanto o seu dever de fundamentar a sua convicção, como o de apreciar criticamente as provas cuja apreciação se lhe impunha.

Decerto que o acórdão impugnado – como resulta abertamente do seu sumário – chamou a atenção para a importância, na decisão da quaestio facti dos princípios da oralidade e da imediação e para a circunstância de o Tribunal da Relação reapreciar a prova, com actuação do primeiro princípio mas não com a intervenção do segundo. Mas também é certo que não retirou da falta de homogeneidade, entre o Tribunal da 1.ª instância e da Relação, da assunção, por ausência de imediação, das provadas pessoais produzidas oralmente na audiência final e objecto do registo fonético, qualquer consequência no plano da reponderação das provas pessoais que a recorrente reputa de avaliadas em erro a que procedeu. Patentemente, a falta de homogeneidade na assunção das apontadas provas não foi do utilizado como critério de decisão ou interferiu, mesmo que de modo não decisivo, na reapreciação das provas pessoais que, no ver da recorrente, foram erroneamente avaliadas, e no resultado dessa reponderação, ao contrário do que sucederia, por exemplo, se tendo reservas sobre o valor persuasivo das provas, a Relação concedesse à decisão da 1.º instância – em atenção á assunção por esta das provas sob o signo da imediação – o benefício da dúvida e, com tal argumento, a confirmasse. Mas não foi o caso. Como decorre dos fundamentos do acórdão impugnado, o motivo conspícuo da improcedência da impugnação deduzida pela recorrente contra a decisão da matéria de facto, radica, antes, no facto de a Relação ter extraído das provas que reapreciou uma convicção coincidente com aquela que o decisor da 1.ª instância formou com base nessas mesmas provas, de ter atribuído a estas o mesmo valor persuasivo que o Sr. Juiz de Direito lhe conferiu. A menção ao princípio da imediação e à ausência da sua actuação naquela reapreciação surge, na economia do acórdão, como uma generalidade, simples e inconsequente.

Do mesmo modo, julga-se que a Relaçáo se não restringiu, na reapreciação das provas que, segundo a recorrente a 1.ª instância tinha apreciado incorrectamente, a meras considerações genéricas ou a aderir, acriticamente, à fundamentação da decisão da matéria de facto exposta pelo Sr. Juiz de Direito para justificar a sua decisão da matéria de facto. Diferentemente, em face da motivação exposta no acórdão, é irrecusável a conclusão de que a Relação, além de ter contactado com as provas produzidas oralmente na audiência, através, evidentemente, da audição do respectivo registo sonoro, e, portanto, de ter conhecido do conteúdo daquelas provas, determinou a sua relevância e procedeu à sua valoração, v.g. através da indicação da credibilidade que as declarações de parte ou das testemunhas lhe mereceram. Isto é patente, por exemplo, no tocante a uma das provas que, na reapreciação da correcção da decisão da matéria de facto, exerceu no ânimo da Relação – como já tinha exercido no espírito do Sr. Juiz de Direito - uma influência considerável: a prova por declarações de parte do autor. No tocante a esta prova, o acórdão foi terminante e claro em sublinhar, de um aspecto, que o autor, declarante, relatou todos os factos que vivenciou, pormenorizadamente, e sobretudo com muita segurança e genuinidade, e até com natural revolta por ter sido, nas suas palavras “burlado” na compra do dito veículo, na qual tiveram intervenção dois funcionários da Ré – o que inculca que conheceu do conteúdo das declarações – e de outro que é justamente a forma como foram prestadas as declarações do Autor que nos levaram, num primeiro momento, a considerar que a sua versão corresponde totalmente ao que efectivamente se passou – o que convence que, para além de determinar a sua relevância, procedeu à sua valoração. O mesmo pode ser dito no tocante à prova testemunhal e, mutatis mutandis, à prova documental, prova relativamente à qual não se coloca, evidentemente, o problema da valoração segundo o princípio da imediação, dada a evidente homogeneidade da sua assunção por qualquer das instâncias.

A Relação extraiu, pois, das provas que reapreciou um convicção igual à que o Sr. Juiz de Direito formou com base na apreciação nessas mesmas provas. Em face da coincidência dessa convicção, a Relação, coerentemente, desamparou a impugnação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, o que, ao contrário do alega a recorrente, não é sinónimo de adesão, simples ou mecânica, àquela decisão, mas antes o resultado da coincidência de convencimento das duas instâncias. Como a Relação se não deparou, nem com factos probatórios nem com uma qualquer situação de non liquet relativamente a qualquer situação de facto, não há razão para, também por esse motivo, imputar ao acórdão recorrido qualquer omissão indevida de análise crítica das provas cuja força persuasiva reponderou.

Resultado desta reponderação que justificou ou motivou de modo adequado. A leitura dos fundamentos expostos a este propósito no acórdão, mostra que aquele resultado foi obtido no exercício de uma liberdade para a objectividade e não aquela que permite uma intime conviction, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objectividade, uma verdade sobre a realidade dos factos que transcendeu a pura subjectividade e com a virtualidade de se comunicar e impor aos outros - pois tal só pode ser a verdade do direito e para o direito - que a convicção argumentativa exposta pela Relação é uma fundamentação da objectividade – e não uma mera exteriorização das razões psicológicas da convicção dos juízes: a motivação contida no acórdão impugnado não é constituída por meros esclarecimentos psicológicos ou por uma mera subjectividade da convicção que extraiu das provas, antes encerra uma resposta suficiente do porquê suscitado pela questão probatória, oferecendo os fundamentos que a justificam como solução racional perante destinatários também racionais.

Uma das provas a que as instâncias ligaram uma especial força persuasiva foi a prova por declarações de parte do autor. Razão pela qual a recorrente salienta, na sua alegação, que a reapreciação fazer dependia no essencial do valor que se confira às declarações de parte do autor porquanto nelas se fundamenta também no essencial a decisão impugnada, que a Relação devia ter exigido e tido no acórdão recorrido, seguido um critério mais preciso, partindo de uma escala progressiva que passa pelos seguintes graus: impossível- possível- verosímil- provável – certo, que no caso de valoração das declarações de parte impõe-se particular cuidado e não ser ingénuo, demais a mais quando não há confronto entre as duas versões contrapostas, isto é quando não temos para sopesar, como é o caso, as declarações de ambas as partes e que, no caso sujeito, importa referir que nenhuma testemunha do autor tinha um conhecimento directo dos factos alegados pelo autor.

Uma prova cuja determinação da exacta força persuasiva levanta algumas dificuldades é as declarações de parte (artº 466.º, nº 3, do CPC). Prova que, por declaração expressa da lei, está submetida à livre convicção do juiz, salvo, naturalmente se o depoimento conduzir à confissão (art.º 466.º, n.º 3, do CPC). As declarações de parte podem, na verdade, redundar na obtenção de meio de prova de natureza distinta e com diferente valor probatório: confissão; reconhecimento de factos desfavoráveis que não possam valer como confissão; demonstração de factos favoráveis - caso em que as declarações de parte são livremente valoráveis pelo juiz (art.ºs 352.º e 381.º do Código Civil e 466.º n.º 3, do CPC). As declarações da própria parte – pela natureza das coisas, dado o perigo de parcialidade – devem ser avaliadas com particular prudência. O que bem se compreende: por força da qualidade de parte é natural a tendência do depoente para exprimir pontos de vista que o favoreçam e mesmo a inexigibilidade de dizer a verdade que conhece. Nalguns casos, o depoente reiterará as alegações que produziu nos articulados porque está sinceramente convencido de que a sua versão é a verdadeira. É o caso de boa fé; outras vezes, apesar de reconhecer que essa versão não é verdadeira, confirma-a por fraqueza de ânimo. Pode, finalmente, suceder, que nos articulados a parte tenha atraiçoado a verdade, tenha produzido alegações cientemente falsas: neste caso o mesmo impudor que o levou a faltar à verdade levá-lo-á a reiterar no seu depoimento essas alegações. Tudo, portanto, a aconselhar vivamente a prudência na avaliação das declarações da própria parte. Mas não falta quem vá mais longe e sustente mesmo que as declarações de parte se reconduzem à figura do início de prova e não à de um meio probatório em sentido próprio. Como o princípio de prova é o menor grau de prova - dado que só vale apenas como factor corroborante da prova de um facto - as declarações de parte não são suficientes para estabelecer por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova do facto: a sua função seria, assim, eminentemente integrativa e subsidiária ou supletiva14. Parece ser este, de resto, o ponto de vista, da recorrente mas não é essa, decerto, a posição do acórdão recorrido nem é essa a orientação do Supremo que tem salientado, por um lado, que a lei não impõe ou exige a corroboração das declarações de parte por qualquer meio de prova15 e, por outro, que uma tal exigência não é mais que um critério de avaliação da prova que o juiz poderá seguir, o que exclui a possibilidade de formulação, pelo Supremo, de quaisquer juízos de valor acerca da livre convicção formada sobre os factos correspondentes16. Se se julga evidente que a prova por declarações de parte merece uma especial ponderação, dado que incide sobre factos que, em princípio, favorecem o declarante, também se julga claro que nada justifica a desqualificação apriorística do seu valor persuasivo ou probatório, como mero meio de prova complementar ou como prova meramente clarificadora de outras provas: este valor será o que, em cada caso concreto, em resultado de uma avaliação prudente, se justifique que lhe deva ser atribuído

Como quer que seja, a – eventual – imprudência das instâncias na avaliação deste meio de prova, a valoração que a Relação fez desta prova e das demais provas pessoais – e a convicção autónoma que, designadamente, delas adquiriu sobre a realidade – ou a falta dela - os factos que teve por objecto – dado que não constitui um erro em matéria de direito probatório, está subtraída, por inteiro, à competência decisória ou funcional do Supremo.

Desde que a fundamentação do acórdão recorrido é adequada e suficiente para que se possa concluir que a Relação reavaliou os meios de prova, reponderou todas as questões de facto suscitadas, para formar uma convicção própria, e respondeu a todas aquelas questões, fundamentando a sua resposta, não há razão fundada para imputar àquele Tribunal um mau uso ou um uso incorrecto dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância17.

Todas as contas feitas, a conclusão a tirar é uma só: que não há fundamento para concluir que a Relação ao julgar o recurso de apelação, tenha usado ou tenha utilizado de modo incorrecto o poder de correcção que a lei adjectiva lhe reconhece no tocante à decisão da matéria de facto da 1.ª instância e que a recorrente pediu, naquele recuso ordinário, que actuasse. Uso incorrecto que – pelas razões apontadas – nunca constituiria causa de nulidade do acórdão. E sendo aquele – como oportunamente se fez notar - o objecto ou fundamento exclusivo da revista, outra coisa não resta que negar-lhe provimento.

Expostos todos os argumentos, conclui-se, em síntese estreita:

- O Supremo não pode controlar a prudência ou a imprudência da convicção das instâncias sobre a prova produzida, sempre que se trate de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação, i.e., que assenta na prudente convicção que o tribunal tenha adquirido das provas produzidas, apenas dispondo de competência funcional ou decisória para controlar a actuação da Relação nos casos de prova vinculada ou tarifada, ou seja, quando está em causa um erro de direito;

- O Supremo dispõe, porém, de competências de controlo sobre o uso – ou uso incorrecto - ou não uso pela Relação dos seus poderes específicos sobre a matéria de facto: o poder de correcção da decisão recorrida, o poder de controlo sobre os meios de prova e o poder de anulação da decisão impugnada;

- A Relação exerce correctamente os seus poderes de controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância quando aprecia, com a completude exigível, toda a decisão sobre a matéria de facto impugnada, quando reavalia, com a completude exigível, as provas adquiridas para o processo, e quando fundamenta, com a completude exigível, a decisão da matéria de facto impugnada, em termos que permitam, objectivamente, compreender o percurso racional subjacente à reapreciação da prova;

- Tendo a revista por único objecto o mau uso ou um uso incorrecto pela Relação dos seus poderes de controlo relativamente à decisão da matéria de facto, concluindo-se pela improcedência do fundamento correspondente, aquele recurso deve, sem mais, ser julgado improcedente.

A recorrente sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

A recorrente sucumbe no recurso. Esta sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos:

a) Admite-se a revista, como revista comum ou normal;

b) Julga-se a revista improcedente.

Custas pela recorrente.

2025.03.25

Henrique Antunes (Relator)

António Magalhães

António Domingos Pires Robalo

_____________________________________________

1. Trata-se de lapso material de escrita ostensivo ou manifesto, verificável a partir do contexto da decisão, dado que patentemente o dano compensável, referido nesta alínea, é o dano não patrimonial. Um tal erro apenas dá lugar a correção ou rectificação (art.º 249.º do Código Civil).↩︎

2. Rui Pinto, Repensando os requisitos da dupla conforme (art.º 671.º, n.º 3, do CPC), Julgar, Online, Novembro de 2019, pág. 4.↩︎

3. Acs. do STJ de 12.10.2023 (1901/21), 30.11.2023 (1120/20), 29.09.2022 (19864/15), 19.02.2015 (302915/11) e de 30.04.2015 (1583/08); Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 425.↩︎

4. V.g. Acs. do STJ de 26.11.2020 (11/13), 16.12.2020 (4016/13), 08.12.18 (2639/13) e 11.10.2018 (617/14), Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, Almedina, 2022, págs. 427 e 428, Miguel Teixeira de Sousa, Dupla Conforme e vícios na formação do acórdão da Relação, disponível em blogippc.blogspot.com, entrada de 01/04/2015,↩︎

5. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., págs. 449 e 450; a jurisprudência do Supremo é terminante quanto à necessidade de ser cumprido pelo recorrente o ónus de identificação e de indicação dos motivos pelos quais, no seu ver, lhe deve ser facultado um terceiro grau de jurisdição: cfr. www.stj.pt/index.php/jurisprudencia-42213/revistaexcecional.↩︎

6. V.g., Acs. do STJ de 14.07.2023 (19645/18), 03.11.2021 (4096/18), 14.12.2016 (2604/13), 12.07.2018 (701/14) e 12.02.2019 (882/14).↩︎

7. João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL, 2022, Vol. II, pág. 111. O dever de examinar criticamente as provas não importa, porém, o dever de expor, na fundamentação da decisão da matéria de facto, o exame crítico de todas as provas produzidas; o que é indispensável é que o juiz indique a sua convicção sobre cada facto e especifique os fundamentos que foram decisivos para tal convicção: Ac. do STJ de 18.04.2024 (7963/21).↩︎

8. O Supremo tem extraído da diferença entre os poderes da Relação e os seus poderes, que a falta de fundamentação da decisão que tenha por objecto a impugnação da matéria de facto é, afinal, uma questão de não uso, ou de mau uso, pela Relaçáo das suas competência de controlo da decisão da matéria de facto: Acs. do STJ de 16.11.2023 (10979/19), 21.06.2022 (558/15) e 07.07.2022 (13589/11).↩︎

9. Ac. do STJ de 05.04.2022 (1916/18).↩︎

10. Acs. do STJ de 11.02.2016 (907/13), 07.09.2017 (959/09), 21.09.2017 (526/14), 16.12.2020 (4016/13) e 07.06.2022 (61387/18).↩︎

11. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, Coimbra 1984, págs. 140 e 141,↩︎

12. Acs. do STJ de 19.09.2024 (2849/21) e 16.11.2023 (10979/19).↩︎

13. cfr. Acórdão do STJ de 29/01/2014 in www.dgsi.pt.↩︎

14. Carolina Braga da Costa Henriques, Declarações de Parte, pág. 48, disponível em wwwestudogeral.sib.uc.pt, Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum á Luz do Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 278, José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 2.º, Almedina, 4.ª edição, pág. 309, e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 357, e Acs. da RP de 15.09.2014, 20.11.2014, 17.12.2014, 26.06.2014 e 30.06.2014; criticamente, Miguel Teixeira de Sousa, entrada de 20.01.2017, acessível em https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudência-536.html#links; diferentemente, contra a degradação antecipada do valor probatório das declarações, por não ter fundamento legal, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos da prova legal, Luís Pires de Sousa, As Malquistas Declarações de Parte ("Não acredito na parte porque é parte")», disponível no sítio do STJ http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquios_STJ/CPC2015/painel_1_articulados_audiencialuissousa.pdf; Catarina Gomes Pedro, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil/Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito do Minho, 2014, pág. 145, Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, pág. 80, Elisabete Fernandes “Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa?” Sobre a (in)coerência do Sistema Processual a este Propósito, Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, pág. 36.↩︎

15. Ac. do STJ de 05.12.2019 (13951). Não está, por isso, vedado às instâncias, no julgamento da matéria de facto, dar como provado um facto, apenas com base nas declarações de parte, que são livremente apreciadas e valoradas pelo Tribunal: Ac. do STJ de 11.07.2019 (6518/16).↩︎

16. Ac. do STJ de 17.02.2019 (2200/08).↩︎

17. Ac. do STJ de 27.02.2025 (1104/23).↩︎