Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1914/23.5T8TMR.E2.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: REFORMA
NULIDADE DA DECISÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 10/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. As nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como este Supremo Tribunal tem reiteradamente declarado.

II. Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas (e apenas) as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, do CPC], questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma).

III. Assim, a nulidade por omissão de pronúncia [art. 615.º, n.º l, d)], sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer questões temáticas centrais, ou seja, atinentes ao thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções; e, reciprocamente, o excesso de pronúncia só se verifica quando o tribunal conheça de matéria diversa desta.

IV. No requerimento subsequente ao despacho proferido pelo juiz conselheiro relator para as partes se pronunciarem sobre a eventual aplicação do artigo 12.º-A do CT, a ré apenas podia pronunciar-se sobre as questões novas suscitadas por tal despacho (como é o caso da violação do caso julgado invocada pela ré), ou seja, por outras palavras, nos termos estritamente necessários para – relativamente às implicações jurídico-processuais de cariz inovatório decorrentes daquele despacho – garantir o contraditório e evitar decisões surpresa, não podendo aproveitar a faculdade que lhe foi proporcionada para se pronunciar sobre questões que podiam e deviam ter sido alegadas na contestação.

Decisão Texto Integral:
Revista n.º 1914/23.5T8TMR.E2.S1

Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.



1. Julgado o recurso de revista, veio a R. UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA., arguir a nulidade do acórdão final, invocando omissão e excesso de pronúncia e.

2. O autor respondeu, pugnando pelo indeferimento do requerido.

Decidindo.


II.


3. Entre as causas de nulidades da sentença, enumeradas taxativamente no artigo 615.º, n.º 1, não se incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, 1985, pág. 686).

Na verdade, como se sabe, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como este Supremo Tribunal tem reiteradamente declarado (v.g. Ac. do STJ de 10.12.2020, proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, 7.ª Secção).

Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, e apenas dessas, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º], questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art. 5.º, n.º 3).

Vale dizer que o tribunal não tem o dever de responder a todos os argumentos, tal como não se encontra inibido de usar argumentação diversa da utilizada pelas partes.

Assim, a nulidade por omissão de pronúncia [art. 615.º, n.º l, d)], sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer questões temáticas centrais1, ou seja, atinentes ao thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções; e, reciprocamente, o excesso de pronúncia só se verifica quando o tribunal conheça de matéria diversa desta.

Especificamente em sede de recurso, o tribunal deve conhecer de todas e apenas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo(s) recorrente(s) – arts. 663.º, n.º 2, e 679º.

4. Em primeiro lugar, invoca a requerente que o “o acórdão proferido nos presentes autos padece de nulidade por excesso de pronúncia, por ter o Tribunal conhecido de matérias anteriormente transitadas em julgado, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC”.

Como bastamente se explanou no acórdão recorrido, não se conheceu de qualquer questão estranha ao projeto do processo, uma vez que as questões a resolver de forma alguma se confundem com os argumentos, razões ou motivos jurídicos invocados pelas partes2, os quais, como é sabido, não vinculam o tribunal (que não está sujeito à alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito, como dispõe o art. 5.º, n.º 3).

O tribunal goza da mais ampla liberdade na seleção da lei aplicável, devendo mesmo o tribunal de recurso aplicar oficiosamente a lei nova que entre em vigor depois do proferimento da decisão impugnada, nos termos definidos nos arts. 12º e 13º, CC, como referem João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL Editora, 2022, II, p. 130.

Em suma, ao selecionar a legislação aplicável ao caso dos autos, não se conheceu de qualquer “questão”, e muito menos de uma “questão nova”, para efeitos de delimitação do objeto do recurso ou thema decidendum, sendo certo que os fundamentos de direito são insuscetíveis, só por si, de produzir caso julgado.3

Não se verifica, pois, o invocado excesso de pronúncia.

5. Alega, por outro lado, a requerente que o Tribunal não se pronunciou sobre as questões de constitucionalidade por si invocadas no seu requerimento subsequente ao despacho proferido pelo juiz conselheiro relator para se pronunciar sobre a eventual aplicação do artigo 12.º-A do CT, matéria que em seu entender deveria ter sido objeto de decisão, nos termos do art. 615, n.º 1, al. d), do CPC.

Sem razão, pelas razões que se passam a expor.

Naquele seu requerimento, a ré invoca dois tipos de inconstitucionalidades.

Por um lado, alegou, que o conhecimento pelo STJ de “questões de direito que não foram objeto de recurso, tal como delimitado pelo Recorrente nas conclusões e alegações, é inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança, da igualdade, do contraditório e do direito a um processo equitativo”, alegação que se encontra na sequência do seu argumento central, segundo o qual “deve considerar-se essa parte do Acórdão [da Relação] como transitada em julgado”, por tal matéria não ter sido suscitada na revista.

Esta problemática foi amplamente tratada no acórdão que conheceu da revista, decidindo-se, em conformidade com o entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, que não estava em causa qualquer “questão nova” e que é sempre legalmente possível ao tribunal selecionar a lei aplicável, o que tem implícito o afastamento da violação dos sobreditos princípios constitucionais.

6. Por outro lado, sustentou que:

i) A interpretação normativa do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, conjugado com o artigo 35.º da mesma Lei, no sentido de admitir a aplicação retroativa da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital às relações jurídicas iniciadas antes da sua entrada em vigor e com efeitos que se reportem a data anterior à sua vigência, é manifestamente inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança, da igualdade, da autonomia privada e da livre iniciativa económica, ínsitos nos artigos 2.º, 13.º, 81.º, alínea b), e 86.º, n.ºs 1 e 2, da CRP);

ii) A interpretação normativa do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, conjugado com o artigo 35.º da mesma Lei, no sentido de admitir a aplicação retrospetiva da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital — ou seja, a situações jurídicas constituídas anteriormente, mas apenas relativamente aos factos e situações que se mantenham a 1 de maio de 2023, e com efeitos a partir dessa data — às relações jurídicas iniciadas antes da sua entrada em vigor e com efeitos que se reportem a data anterior à sua vigência, é manifestamente inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança, da igualdade, da autonomia privada e da livre iniciativa económica, ínsitos nos artigos 2.º, 13.º, 81.º, alínea b), e 86.º, n.ºs 1 e 2, da CRP;

iii) A interpretação normativa da alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho segundo a qual a mera existência de uma cláusula de resolução unilateral nos Termos e Condições aplicáveis consubstancia, por si só, o exercício de poder disciplinar é inconstitucional por violação dos princípios do Estado de Direito, da igualdade, da proporcionalidade, da proteção da confiança e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva;

iv) A interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho segundo a qual a aplicação informática é um instrumento de trabalho é inconstitucional por violação dos princípios do Estado de Direito, da igualdade, da proporcionalidade, da proteção da confiança e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

Relembra-se que, no requerimento inicial da presente ação, o Ministério Público invocou expressamente a aplicação do art. 12.º-A do CT ao caso dos autos.

E que a ré, na sua contestação, não suscitou qualquer inconstitucionalidade associada à aplicação deste artigo, tendo-se limitado a sustentar a inverificação dos requisitos aí contemplados.

Com efeito, começando por reconhecer na contestação que “a pretensão do Ministério Público com a presente ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho baseia-se na presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho (artigo 13º da contestação), a ré sustentou de seguida que “o Ministério Público não logra provar o preenchimento de, pelo menos, dois dos indícios previstos no artigo 12.º-A do Código do Trabalho” (artigo 14º da contestação), e rematou dizendo “ainda que se venha a considerar que o faz, a presunção deve considerar-se ilidida, nos termos do artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, visto que a Ré prova o caráter autónomo da atividade prestada pelo Prestador de Atividade” (artigo 14º da contestação).

Ora, no requerimento subsequente ao despacho proferido pelo juiz conselheiro relator para as partes se pronunciarem sobre a eventual aplicação do artigo 12.º-A do CT, a ré apenas podia pronunciar-se sobre as questões novas suscitadas por tal despacho (como é o caso da violação do caso julgado invocada pela ré), ou seja, por outras palavras, nos termos estritamente necessários para – relativamente às implicações jurídico-processuais de cariz inovatório decorrentes daquele despacho – garantir o contraditório e evitar decisões surpresa.

Mas a requerente já não podia aproveitar a faculdade que lhe foi proporcionada para se pronunciar sobre questões que podiam e deviam ter sido alegadas na contestação, como é o caso do apontado conjunto de inconstitucionalidades, por se encontrar precludida tal possibilidade, como decorre, desde logo, do art. 573ª, do CPC: “1. Toda a defesa deve ser deduzida na contestação (…). 2. Depois da contestação só podem ser deduzidas exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes (…)”.

Acresce que os recursos não se destinam a invocar questões novas que não foram oportunamente trazidas pelas partes ao processo, em especial em fase subsequente à das alegações.

Sem deixar de se notar que, na parte em que no acórdão proferido na revista se sustenta que à relação jurídica em causa é aplicável a nova presunção de laboralidade, se afirma que não se vislumbram quaisquer razões de segurança/estabilidade jurídica – e muito menos de salvaguarda de eventuais direitos adquiridos ou de proteção da confiança – que determinantemente imponham diversa solução, também não se verifica, pois, a alegada omissão de pronúncia.


III.


7. Em face do exposto, acorda-se em julgar totalmente improcedente o requerido pela ré.

Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 15.10.2025

Mário Belo Morgado, relator

Domingos Morais

Julio Manuel Vieira Gomes

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1. Nas palavras de Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, 2015, p. 371.↩︎

2. Neste sentido, por exemplo:

- Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 480 – 481: “Não pode a Relação, nem o Supremo, tomar conhecimento de questões não compreendidas no objeto do recurso; mas pode, e deve, julgar procedente essas questões com base em razões jurídicas diversas das invocadas pelas partes, se entender que o provimento do recurso se justifica, não pelos fundamentos jurídicos alegados pelo recorrente, mas por outros.

- Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra Editora, 4.ª edição, p. 56, também enfatizando a diferença entre questões e argumentos: “O juiz não é obrigado a esgotar a análise de argumentos mas, apenas, a explicar e considerar todas as questões que devam ser conhecidas (…), ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (…)”.↩︎

3. Cfr. Acs. deste Supremo Tribunal de 19.09.2024, Proc. nº 3042/21.9T8PRT.S2 (2.ª Secção), de 26.03.2015, Proc. nº 1847/08.5TVLSB.L1.S1 (2ª Secção), de 08.09.2011, Proc. nº 407/04.4TBCDR.P2.S1 (7ª Secção), e de 20.10.2011, Proc. nº 994/2003.4TMBRG.S1.l1 (1ª Secção).↩︎