Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9736/22.4T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
DEVERES DO EMPREGADOR
BENEFÍCIOS SOCIAIS EMPRESARIAIS
TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
ACORDO DE PRÉ-REFORMA
Data do Acordão: 01/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS.
Sumário :

I- Durante a suspensão do contrato de trabalho mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho.


II- Nesses direitos, incluem-se os benefícios sociais do trabalhador inerentes à vigência do contrato de trabalho, que com a transmissão do estabelecimento se transferem para o cessionário.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 9736/22.4T8LSB.L1.S1


Recurso revista


Relator: Conselheiro Domingos José de Morais


Adjuntos: Conselheiro José Eduardo Sapateiro


Conselheiro Júlio Gomes


Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.Relatório


1. - AA intentou acção com processo declarativo comum, contra


Caixa Geral de Depósitos, S.A., e


Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, pedindo:


a) Condenar a 1ª Ré a praticar os atos necessários à inscrição do Autor nos SSCGD, nomeadamente a promover essa inscrição junto dos referidos Serviços, fornecendo-lhes as informações e os dados indispensáveis sobre o Autor e suportando as contribuições que cabem à empresa;


b) Condenar a 2ª Ré a efetivar a inscrição do Autor como sócio e a cumprir, para com este e os seus familiares/beneficiários, todas as obrigações decorrentes da lei, dos Estatutos e dos regulamentos, respeitando integralmente os direitos que lhes são conferidos por essas normas, nomeadamente nos domínios do apoio social, saúde, segurança social, habitação, cultura, desporto, recreio e atividades afins.”.


2. - As Rés contestaram, concluindo pela sua absolvição em relação ao pedido contra si formulado pela Autora.


3. - Na 1.ª Instância foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


“julga-se a improcedente e, consequentemente, ABSOLVE-SE as rés CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., e SERVIÇOS SOCIAIS DA CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS dos pedidos deduzidos pela autora AA.”.


4. - O Tribunal da Relação acordou, com um voto de vencido:


julgar procedente o recurso. Em consequência:


- condena-se a 1ª Ré a praticar os actos necessários à inscrição da Autora nos SSCGD, nomeadamente a promovê-la junto dos referidos Serviços, fornecendo-lhes as informações e os dados indispensáveis sobre ela e suportando as contribuições que cabem à empresa;


- Condena-se a 2ª Ré a efectivar a inscrição da Autora como sócia e a cumprir, para com ela e os seus familiares/beneficiários, todas as obrigações decorrentes da lei, Estatutos e regulamentos, respeitando integralmente os direitos que lhes são conferidos por essas normas, nomeadamente nos domínios do apoio social, saúde, segurança social, habitação, cultura, desporto, recreio e actividades afins.”


5. - A 1.ª Ré interpôs recurso de revista, concluindo, em síntese:


A Recorrida não reúne, e nunca reuniu, as condições previstas no artigo 14.º, n.º 1, alínea a) dos Estatutos da SSCGD para a sua inscrição nos Serviços Sociais.


Também o artigo 14.º, n.º 2 dos estatutos não tem aplicação à Recorrida, uma vez que determina que a qualidade de sócio se mantém quando passe diretamente à situação de pré-reforma ou de aposentado/reformado. (pontos 17. e 18. das conclusões de recurso).


É de concluir, s.m.o., que não é possível determinar a manutenção de uma qualidade [a de sócio] que não foi - no caso - adquirida pela Recorrida enquanto se encontrava ao serviço da Caixa Leasing e Factoring - última entidade ao serviço da qual se encontrou em efectividade de funções.


Nem, tão pouco, por esta adquirida mais tarde, aquando da integração da CLF na CGD, por falta de verificação dos requisitos definidos nos estatutos.


Ao contrário do que entendeu o douto Acórdão recorrido, a Recorrida não é uma “pré-reformada de segunda”, tendo também beneficiado de um Seguro de Saúde nos termos acordados com a Caixa Leasing e Factoring aquando da celebração do seu acordo de pré-reforma.


Não podendo agora vir a mesma reclamar outro benefício, em detrimento daquele que negociou aquando da sua passagem à pré-reforma, e que não lhe é aplicável por não reunir os requisitos estatutariamente definidos para o efeito.


A interpretação, feita pelo douto Acórdão recorrido, do artigo 14.º dos estatutos dos SSCGD confronta-se com a fatalidade de contrariar a letra daquela disposição, violando, dessa forma, o disposto no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil por não ter o mínimo de correspondência com a letra da norma, pois esta é expressa ao referir-se a “efectividade de funções”.


Decidindo como decidiu, o douto Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 9.º do Código Civil, no artigo 285.º do Código do Trabalho, na Cláusula 111.ª do Acordo de Empresa entre a Caixa Geral de Depósitos e o STEC (publicado no BTE n.º 10, de 15/03/2020) e na Cláusula 14.ª dos Estatutos dos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos. (pontos 23. a 27. e 30. das conclusões de recurso).


6. - A 2.ª Ré interpôs recurso de revista, concluindo, em síntese:


3. O artigo 14 dos Estatutos dos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos é claro quando ao requisito da efetividade de funções como requisito e condição de sócio daquela entidade.


4. O que manifestamente não sucedeu com a Autora que quando sucedeu a integração da sua entidade empregadora na CGD (em 31.12.2021) encontrava-se pré-reformada (desde 01.10.2017) e consequentemente nunca esteve em efetividade de funções na CGD SA.


5. Acresce que como se referiu anteriormente os SSCGD, não obstante a sua autonomia do ponto de vista de governo institucional e jurídica, têm uma posição subordinada relativamente à admissão de sócios, pois estão dependentes dos dados, elementos e comparticipação financeira per capita com que são habilitados pela CGD para a admissão de cada associado


7. - A Autora contra-alegou, concluindo pela improcedência da revista.


8. - O Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos de revista, consignando o Sr. Procurador-Geral Adjunto:


“(A)figura-se que essa parte do texto do artigo 14.º deve ser objeto de interpretação restritiva, dado que na mesma se “diz mais do que aquilo que se pretendia dizer”, conforme refere J. Baptista Machado, “O intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, isto é, com aquele ratio”. - Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Coimbra, Almedina, 1991, p. 186. Ou, até mesmo, de interpretação revogatória, considerando-se que essa formulação do texto do artigo “é tão mal inspirada que nem sequer consegue aludir com uma clareza mínima à hipóteses que pretende abranger” (Baptista Machado, obra e local cit.)”.


9. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.


II. - Fundamentação de facto


1. - Decisão sobre matéria de facto das Instâncias:


“1.a) FACTOS PROVADOS


Discutida a causa, e por acordo das partes, mostram-se provados os seguintes factos:


1. A autora encontrava-se vinculada, por contrato de trabalho sem termo, à CAIXA LEASING E FACTORING – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. [CLF], pessoa coletiva nº .......13, que tinha a sua sede nas instalações da 1ª ré, na Av. ... [artigo 1.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


2. O capital social da referida CLF era detido, integralmente, pela 1ª ré, CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A [artigo 2.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


3. Em 24/03/2017, foi celebrado entre a autora e a sua entidade patronal, a referida CLF, um acordo pelo qual a autora passou à situação de pré-reforma, com efeitos a partir de 01/10/2017, conforme acordo escrito denominado “Acordo de Pré-Reforma” que faz fls. 10 a 11v. [artigo 3.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


4. Nos termos da cláusula 2.ª do referido acordo de passagem à situação de pré-reforma, a passagem da autora a essa situação determinou a suspensão do contrato de trabalho, tendo-se mantido, porém, todos os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efetiva prestação de trabalho [artigo 4.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


5. Na sequência de informação anterior, segundo a qual a CLF, seria integrada na 1ª ré CGD, a autora veio a ser notificada pela dita CLF, por carta com data de 21/12/2020, de que essa integração ocorreria mediante fusão, por incorporação, em 31/12/2020, o que veio a acontecer efetivamente [artigos 5.º e 6.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


6. A autora é associada do STEC – SINDICATO DOS TRABALHADORES DAS EMPRESAS DO GRUPO CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS [STEC] desde 06/08/2004 [artigo 7.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


7. Nessa qualidade, de associada do STEC, a autora encontrava-se abrangida pelo Acordo Coletivo de Trabalho celebrado entre o referido Sindicado, por um lado, e a CLF e outras, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 31, de 22/08/2016, tendo ficado abrangida, a partir de 01/01/2022, pelo Acordo de Empresa celebrado entre a 1ª ré e o referido Sindicato, publicado no BTE n.º 10, de 15/03/2020 [artigo 8.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


8. Na sua carta de 21/12/2020, a CLF informou a autora, para os efeitos do disposto no artigo 285º do Código do Trabalho, de que, em consequência da fusão, a sua posição de entidade patronal seria transferida para a CGD, que assumiria todos os direitos e obrigações de que ela, CLF, era titular no contrato de trabalho da autora [artigo 9.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


9. Nessa mesma carta de 21/12/2020, a CLF informou a autora de que, não obstante esta ficar vinculada, a partir de 01/01/2021, à CGD, o Acordo Coletivo de Trabalho que lhe vinha sendo aplicável continuaria a sê-lo durante 12 meses após a fusão, nos termos do artigo 498º do Código do Trabalho, passando, após esse prazo, a ser-lhe aplicável o Acordo de Empresa em vigor na CGD. [artigo 10.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


10. Assim, a partir de 01/01/2021, a autora ficou vinculada à CGD por contrato de trabalho sem termo, na situação de pré-reforma [artigo 11.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


11. Nessa data (01/01/2021) vigorava no âmbito da CGD o Acordo de Empresa celebrado entre essa empresa e o STEC – em que a autora se encontrava e se mantém filiada – publicado no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 10, de 15/03/2020, que continua em vigor [artigo 12.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


12. A partir de 01/01/2021, o referido Acordo de Empresa publicado no BTE n.º 10, de 15/03/2020, passou a ser aplicável às relações de trabalho entre a autora e a 1.ª ré [artigo 13.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


13. No âmbito da 1.ª ré CGD, foi criada, pelo Decreto-Lei nº 46305, de 27/04/1965, uma instituição denominada SERVIÇOS SOCIAIS DA CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS [SSCGD], ora 2.ª ré, dotada de personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira, que tem por objeto a prestação de serviços nos domínios do apoio social, saúde, segurança social, habitação, cultura, desporto, recreio e atividades afins, tendo como objetivo principal contribuir para a melhoria socioeconómica, dos empregados e aposentados da Caixa Geral de Depósitos e seus familiares [artigo 14.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


14. Essa instituição (SSCGD) encontra-se reconhecida no artigo 54.º do Decreto-Lei n.º 48953, de 05/04/1969, mantido em vigor pelo n.º 2 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20/08 [artigo 15.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


15. Os SSCGD regem-se pelos seus Estatutos, cuja cópia faz fls. 31 a 42v. dos autos [artigo 16.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


16. Em janeiro de 2021, a Direção da 2ª ré SSCGD enviou à autora a carta cuja cópia faz fls. 43 a 44v. dos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido [artigo 20.º da PETIÇÃO INICIA – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


17. Por mensagem de 12/01/2021, cuja cópia faz fls. 45 dos autos, a 1ª ré informou a autora de que “…o mail remetido pelos Serviços Sociais da CGD, que desde já lamentamos, resultou de um erro informático, não devendo assim ser considerado…” [artigo 21.º da PETIÇÃO INICIAL – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].


18. O trabalhador BB, aquando da integração na CGD, encontrava-se em efetividade de funções [artigo 20.º da CONTESTAÇÃO da 1.ª ré].


19. A iniciativa ou o pedido de inscrição de sócio dos SSCGD tem que ser formulado pela CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. [artigo 11.º da CONTESTAÇÃO da 2.ª ré].


20. A inscrição do sócio nos SSCGD só se pode consolidar se a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., assegurar e efetivar o pagamento aos SSCGD da contribuição estatutariamente devida, sem a qual a inscrição fica suspensa [artigos 14.º e 17.º da CONTESTAÇÃO da 2.ª ré].


**


1.b) FACTOS NÃO PROVADOS


Com pertinência, não se provaram os seguintes factos:


Artigo 20.º da PETIÇÃO INICIAL [quanto à circunstância de tal carta pressupor o reconhecimento da qualidade da autora de sócia dos SSCGD].


Artigo 22.º da PETIÇÃO INICIAL [quanto à circunstância de o trabalhador em questão estar nas mesmas circunstâncias que a autora].


Artigo 32.º da PETIÇÃO INICIAL [quanto à circunstância de ter sido facultada aos trabalhadores do antigo Banco Nacional Ultramarino que não se encontrassem no ativo a opção de inscrição nos SSCGD].”.


III - Fundamentação de direito.


1. - Do objeto do recurso de revista:


Está em causa saber se na data em que, por força da incorporação, por fusão, da Caixa Leasing e Factoring - Sociedade Financeira de Crédito, S.A., na 1.ª Ré, Caixa Geral de Depósitos, S.A., a posição de empregadora no contrato de trabalho se transmitiu para a 1.ª Ré, a Autora reunia as condições previstas no artigo 14.º dos Estatutos da 2.ª Ré, Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, para a sua inscrição nos referidos Serviços Sociais.


2. - Foi dado como provado, além do mais, o que consta dos pontos 3., 4., 8., 9., 10. e 11. dos factos provados.


3. - O artigo 285.º, n.º 1, do Código do Trabalho (CT) prescreve:


1 - Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou ainda de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, (…).”.


Por sua vez, o artigo 3.º, n.º 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001, determina:


Os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário.”.


No contexto de transmissão de estabelecimento/unidade económica, que engloba trabalhadores com contratos de trabalho suspensos, o Acórdão do Tribunal de Justiça (Oitava Secção) de 20 de julho de 2017, (Luís Piscarreta Ricardo), Processo C-416/16, in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX%3A62016CJ0416, consignou:


“n.º 54 (…) uma pessoa, como o autor do processo principal, que, em razão da suspensão do seu contrato de trabalho, não está em efetividade de funções integra o conceito de «trabalhador», na aceção do artigo 2.º, n.°1, alínea d), da Diretiva 2001/23, na medida em que se afigura estar protegida enquanto trabalhador pela legislação nacional em causa, o que, todavia, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. Sem prejuízo desta verificação, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, os direitos e obrigações que decorrem do seu contrato de trabalho devem ser considerados transferidos para o cessionário, em conformidade com o artigo 3.º, n.º 1, desta diretiva”. (negritos nossos)


Como decorre do facto 10.º, a partir de 01.01.2021, a Autora passou a estar vinculada à 1.ª Ré., CGD, por contrato de trabalho sem termo, na situação de pré-reforma.


O regime da pré-reforma está regulado nos artigos 318.º e segts. do CT, estabelecendo o artigo 319.º que “O acordo de pré-reforma está sujeito a forma escrita”.


A Cláusula 2.ª, sob a epígrafe Efeitos da pré-reforma, do Acordo Pré-Reforma, mencionado no ponto 3.º dos factos dados como provados, e junto com a petição inicial, dispõe:


1 - Com a passagem à situação de pré-reforma suspende-se o contrato de trabalho actualmente em vigor entre as partes.


2 - Mantêm-se, contudo, os direitos, os deveres e as garantias das partes que não pressuponham a prestação efectiva de trabalho.


3 - O 2.º Outorgante não tem, assim, direito a quaisquer prestações pecuniárias que pressuponham a efectiva prestação de trabalho, designadamente as seguintes: subsídio de almoço, subsídio de função, subsídio de trabalhador-estudante, abono para falhas e participação nos lucros.


4 - Com a celebração do presente acordo cessam as contribuições estabelecidas no Plano de Pensões financiado pela 1.ª Outorgante.”.


A Cláusula 3.ª estabelece a prestação mensal na pré-reforma, que corresponde a 80% da retribuição a que a Autora teria direito, pagável “entre a data da assinatura do presente acordo e a saída efectiva.”.


A Cláusula 6.º, sob a epígrafe Benefícios Sociais, determina:


Durante o período da vigência da pré-reforma o empregado mantém o direito aos benefícios sociais que vigorarem na 1.ª Outorgante e Empresas do Grupo CGD, nomeadamente, subsídio de apoio ao nascimento, subsídio infantil e subsídios de estudo a filhos.”. (negritos nossos)


Por sua vez, a Cláusula 111.ª do AE celebrado entre a CGD e o STEC dispõe:


A prestação de assistência médica e de cuidados de saúde aos trabalhadores da empresa e respetivos familiares continua a ser assegurada pelos serviços sociais da CGD, nos termos estabelecidos por lei e pelos estatutos desses serviços.” (negrito nosso).


E o artigo 14.º dos Estatutos da 2.ª Ré, Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, estabelece:


1. São obrigatoriamente inscritos como sócios dos Serviços Sociais:


a) Os empregados da Caixa nas situações de efectividade de funções, independentemente da natureza jurídica do seu vínculo laboral;


b) Os administradores da Caixa quando iniciem funções;


2. A qualidade de sócio mantém-se, sem interrupção, quando passe directamente à situação de pré-reforma ou de aposentado/reformado”.


O artigo 295.º - Efeitos da redução ou da suspensão - do CT estatui:


1 - Durante a redução ou suspensão, mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho.”.


[Sobre a vigência de contrato de trabalho suspenso e a manutenção de direitos e deveres das partes, cfr. Júlio Manuel Vieira Gomes, in Direito do Trabalho, Vol. I, págs. 852 a 868].


O artigo 9.º do Código Civil estabelece:


1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.


2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.


3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”


Interpretar a lei consiste em fixar, de entre os sentidos possíveis, o seu sentido e alcance decisivos.


[cfr. Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das leis, págs. 21 e 26].


Para alcançar tal desiderato, o ponto de partida consiste na sua interpretação literal, isto é, na apreensão do sentido gramatical ou textual da lei (“letra da lei”).


Este elemento tem, desde logo, uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.


O elemento gramatical ou textual tem sempre que ser utilizado em conjunto com o elemento lógico (que por sua vez se subdivide em três: o elemento racional ou teleológico, o elemento sistemático e o elemento histórico). Não pode haver uma interpretação gramatical e outra lógica.


O elemento sistemático (“a unidade do sistema jurídico”) compreende a consideração das outras disposições legais que formam o quadro legislativo em que se insere a norma em causa, bem como as disposições que regulam situações paralelas.


O elemento racional ou teleológico (“o pensamento legislativo”), consiste na “ratio legis”, no fim prosseguido pelo legislador ao elaborar a norma, a sua razão de ser.


Por último, o elemento histórico (“as circunstâncias em que a lei foi elaborada”) compreende o contexto em que foi elaborada, a evolução histórica do preceito, as suas fontes.


[cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, págs. 175 e ss.].


É neste contexto normativo-jurídico que se impõe a apreciação do objecto do recurso.


4. - Atenta a matéria de facto provada, a Autora, desde 01.01.2021, passou a estar vinculada à 1.ª Ré, CGD, por contrato de trabalho sem termo, na situação de pré-reforma, mantendo, no entanto, todos os direitos e garantias que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho.


E a 1.ª Ré assumiu todos os deveres decorrentes da vigência do contrato de trabalho da Autora e do Acordo Pré-Reforma celebrado entre a Caixa Leasing e Factoring - Sociedade Financeira de Crédito, S.A., e a Autora, em 24.03.2017.


Nos direitos da Autora está abrangido o direito aos benefícios sociais que vigoravam nas Empresas do Grupo CGD, em 24.03.2017, no qual está incluída a 2.ª Ré, Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos.


É o que resulta, com toda a clareza, do teor da Cláusula 6.º do Acordo Pré-Reforma, acima transcrita.


Assim, com a transmissão do contrato de trabalho da Autora, a 1.ª Ré assumiu todos os deveres inerentes e correspondentes direitos da Autora, excepto os directamente relacionados com a suspensão do contrato de trabalho.


Nesta excepção, não está incluído, porém, nenhum dos benefícios sociais a que os trabalhadores da 1.ª Ré tinham direito à data da referida transmissão, em particular o direito à inscrição nos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos.


A Cláusula 6.º do Acordo Pré-Reforma, ao não excluir, expressamente, o direito da Autora à inscrição nos Serviços Sociais da CGD está a admiti-lo como a todos os outros benefícios sociais, “nomeadamente, subsídio de apoio ao nascimento, subsídio infantil e subsídios de estudo a filhos.”.


Aliás, não faria qualquer sentido, no contexto normativo-jurídico e jurisprudencial descritos, que, por exemplo, a Autora tivesse regressado ao pleno exercício de funções, possibilidade prevista no artigo 322.º, n.º 1, alínea b) do CT, para a sua inscrição nos Serviços Sociais da CGD, e, logo depois, tivesse celebrado novo acordo de pré-reforma, para efeitos do n.º 2 do artigo 14.º dos Estatutos da 2.ª Ré.


Constituiria um expediente juridicamente ininteligível.


Em síntese: em 01.01.2021, data da incorporação, por fusão, da Caixa Leasing e Factoring - Sociedade Financeira de Crédito, S.A., na 1.ª Ré, Caixa Geral de Depósitos, S.A., a Autora reunia as condições para a sua inscrição ao abrigo do artigo 14.º dos Estatutos dos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, dado que, mantendo-se em vigor o contrato de trabalho, a Autora mantinha o direito aos benefícios sociais que vigoravam nas Empresas do Grupo CGD, em 24.03.2017, incluindo o direito à inscrição nos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos.


Improcedem, assim, os recursos de revista das Rés, embora por fundamentação não totalmente coincidente com a do Acórdão recorrido.


IV. - Decisão


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social julgar improcedentes os recursos de revista das Rés.


Custas a cargo das Rés.


Lisboa, 24 de janeiro de 2024


Domingos José de Morais (Relator)


José Eduardo Sapateiro


Júlio Gomes