Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO GOMES | ||
Descritores: | SANÇÃO DISCIPLINAR PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE CULPA DO TRABALHADOR INFRAÇÃO DISCIPLINAR | ||
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Data do Acordão: | 12/06/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA. | ||
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Sumário : |
I- A sanção de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade é a mais grave das sanções “conservatórias”. II- Tal sanção é desproporcionada quando o empregador não dispensou a formação necessária na área da proteção dos dados pessoais, o que, em alguma medida, mitiga a culpa da trabalhadora, esta, dadas as suas funções, podia ter de consultar os dados de qualquer utente, por razões diversas, ao que acresce a sua a antiguidade sem sanções disciplinares. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 322/20.4T8BJA.E1.S1 Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, AA intentou ação declarativa comum contra Unidade Local De Saúde Do Baixo Alentejo, EP, formulando os seguintes pedidos: “Nestes termos e nos demais de Direito devem as exceções deduzidas ser julgadas procedentes por provadas, deve a Ré ser condenada a reconhecer que a não ter violou nenhum dos seus deveres enquanto trabalhadora e enfermeira, deve ser decretada, a) A nulidade do procedimento disciplinar, da Nota de Culpa, por desrespeito ainda do direto de defesa da autora, do exercício errado pela Ré do direito da audição da Autora e da sua presunção de inocência e o não ter conferido à Autora o direito ao contraditório; b) A caducidade do direito de proferir a decisão final; c) A Condenação da Ré a remover do histórico da Autora a sanção aplicada e o pagamento da quantia de € 239,00, acrescida dos juros de mora vencidos até efetivo e integral pagamento, liquidando-se até ao presente a quantia de € 2,02, tudo com as legais consequências; d) A condenação da Ré por aplicação de sanção abusiva, no valor de € 2390,00; e) A condenação da ré a pagar à autora uma indemnização por danos não patrimoniais de € 27.368,99”. Citada, a Ré contestou. Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento. Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos formulados pela Autora. A Autora interpôs recurso de apelação. Em 9.06.2022, o Tribunal da Relação proferiu acórdão, por maioria, negando provimento ao recurso e confirmando a sentença. A Autora veio interpor recurso de revista, arguindo, além do mais, a nulidade do acórdão. Além de pedir a nulidade da sanção disciplinar que lhe foi aplicada com a consequente restituição do salário correspondente aos dias de suspensão – que indica ser de € 239,00, quantia acrescida dos juros de mora vencidos até efetivo e integral pagamento – pede, ainda, que a sanção seja declarada abusiva e a Recorrida condenada a pagar € 2390,00, bem como a condenação no pagamento uma compensação por danos não patrimoniais no valor de € 27.368,99. Nas Conclusões do seu recurso invoca que a infração disciplinar já estaria prescrita, ou, em alternativa, o procedimento disciplinar já teria caducado, teria havido violação do direito de defesa da trabalhadora e do contraditório, não se demonstrou qualquer dolo por parte da trabalhadora e, quando muito, teria agido a mesma com simples negligência, apontando, de resto, a existência de lacunas e defeitos do sistema informático e a falta de formação da trabalhadora. A Ré apresentou contra-alegações. O recurso foi admitido por despacho de 12.07.2022. Por requerimento de 25.07.2022, a Autora veio requerer a junção de um documento. Por requerimento de 2.08.2022, a Ré veio opor-se à junção do documento. Por acórdão de 15.09.2022, o Tribunal da Relação pronunciou-se quanto às nulidades arguidas no recurso de revista, indeferindo-as. Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso e confirmação do Acórdão recorrido. A Recorrente AA veio a apresentar o requerimento datado de 02.09.2023, pelo qual veio requerer a aplicação “da “Lei da Amnistia 2023”, publicada no Diário da República, como Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, que entrou em vigor a 1 de Setembro”, por entender que “as infrações disciplinares laborais praticadas até às 00h00 horas do dia 19 de Junho do ano da graça de 2023 (…) punidas com uma sanção conservatória, que manteria o vínculo laboral – como no caso concreto dos autos –, são eliminadas por imposição da Lei da Amnistia.». A Recorrida Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, EPE, entende, por sua vez, que «os factos imputados à recorrente - como pode ler-se na douta sentença do Tribunal do Trabalho de ..., confirmada por douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora – “são suscetíveis de integrar, em abstrato, o crime de acesso ilegítimo previsto no art. 6.º, n.ºs 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime”, pelo que «não é aplicável a amnistia às infrações disciplinares cometidas pela Recorrente», por força da conjugação do disposto no art. 2.º, n.º 2, al. b), art. 6.º e art. 7.º, n.º 1, al. x) da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08”. O Ministério Público pronunciou-se, igualmente, no sentido da inaplicabilidade da referida Lei de Amnistia. Fundamentação De facto Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada nas instâncias: 1. A foi admitida ao serviço da Ré, em 15 de agosto de 2006, para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções inerentes à categoria profissional de Enfermeira, auferindo a retribuição mensal de € 1.407,45, a que acrescem os montantes de € 4,77/dia de subsídio de refeição. 2. Por reunião do Conselho de Administração da Ré, datada de 28.11.2019, foi deliberada a instauração de um processo disciplinar à Autora. 3. Na nota de culpa datada de 10-12-2019 a Ré fez constar: "2o A arguida AA, é enfermeira, titular de lugar no mapa de pessoal da Entidade Empregadora, em funções na Unidade de Saúde Familiar..., em regime de contrato individual de trabalho por tempo indeterminado, regulado pelo Código do Trabalho. 3º A arguida foi casada com BB. 4º Atualmente BB vive maritalmente com CC. 5º A arguida acedeu frequentemente aos dados clínicos registados no portal da saúde relativos a CC. 6º Acedeu igualmente aos dados clínicos registados no portal da saúde relativos à filha menor de CC (DD). 7.º A arguida acedeu, sem qualquer justificação lícita, aos registos das pessoas referidas nos artigos anteriores, nos seguintes dias e horas: 30.10.2018, 02.11.2018, 08.11.2018, 12.11.2018, 14.11.2018, 16.11.2018, 19.11.2018 e 21.11.2018 (nesta última data acedeu, quer aos dados clínicos de CC, como aos dados clínicos da sua filha, menor de idade, DD). 8.º Num total de 8 (oito) acessos entre 30.10.2018 e 21.11.2018, sem qualquer justificação. 9.º O que fez, dentro do período normal de trabalho e no uso de equipamentos da Entidade Empregadora. 10.º Com os comportamentos descritos, a arguida violou de forma grave, as obrigações laborais previstas na parte final da cláusula nona do contrato individual de trabalho de que é titular, e artigo 128 nº 1, al. g), do Código do Trabalho, assim como o previsto n.º 1, do artigo 3.º da Lei 12/2005, de 26 de Janeiro, que dispõe: (....) que a informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e investigação em saúde e outros estabelecidos pela lei". 4. A Autora respondeu à nota de culpa e, no final da sua resposta, requereu: "B-DOCUMENTAL • Requer a V. Ex.ª a junção aos autos do seu registo disciplinar atualizado e sem sanções naturalmente da Autora. • Requer a V. Ex.ª a junção aos autos do regulamento de consulta de dados em vigor na Arguente. - Requer a V. Ex.ª a junção aos autos de comprovativo da formação dada nesta matéria à Autora em matéria de proteção de dados, nos termos do artigo 127.º, n.º a al. d) do CT. • Requer a V. Ex.ª a junção aos autos de instrução escrita da Arguente de como devem ser os procedimentos nesta matéria; • Requer a V. Ex.ª a junção aos autos de documento que comprove se na data dos alegados acessos a utente na plataforma tinha desbloqueado o acesso por profissionais de saúde, médicos e enfermeiros, sendo que autorizou que esse acesso seja feito, estando salvaguardada a proteção de dados. • Requer a V. Ex.ª o histórico das sessões de acesso alegadamente em causa para se demonstrar que esta jamais acedeu aos dados clínicos, ou se possível que não foi feita cópia ou impressão destes. " 5. Com data de 07.01.2020, foi proferido despacho que recaiu sobre o referido requerimento de prova, deferindo uns e indeferindo outros, o qual consta de fls. 152 do PD e se dá por integralmente reproduzido, notificado ao mandatário da autora. 6. A Ré empregadora comunicou à autora a possibilidade de consultar o procedimento disciplinar. 7. Data de 16-01-2020 a última diligência instrutória realizada no procedimento disciplinar. 8. Em 06/02/2020 foi elaborado Relatório Final do qual constam os seguintes factos provados: a. A Entidade Empregadora é uma unidade de prestação de cuidados de saúde, criada pelo Decreto-Lei n.º 183/2008, de 4 de Setembro, cuja missão, nos termos do disposto no artigo 2º dos Estatutos (em anexo ao diploma que a criou), é, designadamente, "(a) prestação de cuidados de saúde primários, diferenciados e continuados à população, designadamente aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, e aos beneficiários dos subsistemas de saúde ou e entidades externas (...)". Para o efeito, é integrada pelo Hospital ..., e pelas UCSP - Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados de ... e respetivas extensões de saúde, dispondo ainda da Unidade de Saúde Pública. b. A arguida AA, é enfermeira, titular de lugar c. A arguida foi casada com BB, doravante d. Atualmente BB mantém um relacionamento com a participante e. A arguida acedeu aos registos de CC, nos seguintes dias e horas, f. Neste dia 21.11.2018, a arguida acedeu, igualmente aos dados de saúde filha, menor de idade, da filha da menor DD. g. Num total de oito acessos, registados, que se consideram ilícitos, por não justificados. h. Os acessos mencionados nas alíneas anteriores foram efetuados no período normal de trabalho e no uso de equipamentos da Entidade Empregadora. 9. Por reunião do Conselho de Administração, datada de 12/02/2020, foi aprovado, por unanimidade, aderir aos fundamentos do relatório final e aplicar à trabalhadora enfermeira AA a pena disciplinar única de 5 dias de suspensão de trabalho, com perda de retribuição e antiguidade. 10. A referida decisão foi inserida no EDOC - sistema de gestão documental da Ré - a 17/02/2020. 11. Com data de 18/02/2020 foi elaborado e assinado um "extrato" da referida ata. 12. O qual, juntamento com o relatório final, foi comunicado à trabalhadora por carta datada de 19-02-2020 e rececionada por esta a 21.02.2020. 13. A Entidade Empregadora é uma unidade de prestação de cuidados de saúde, criada pelo Decreto-Lei n.º 183/2008, de 4 de setembro, cuja missão, nos termos do disposto no artigo 2º dos Estatutos (em anexo ao diploma que a criou), é, designadamente, "(a) prestação de cuidados de saúde primários, diferenciados e continuados à população, designadamente aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, e aos beneficiários dos subsistemas de saúde ou e entidades externas". 14. Para o efeito, é integrada pelo Hospital ..., e pelas UCSP - Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados de ... e respetivas extensões de saúde, dispondo ainda da Unidade de Saúde Pública. 15. A arguida AA, é enfermeira, em exercício de funções no UCSP - Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados ..., sob as ordens, direção e fiscalização da ora ré, em regime de contrato individual de trabalho por tempo indeterminado, regulado pelo Código do Trabalho. 16. A arguida foi casada com BB. 17. Atualmente BB vive maritalmente com CC. 18. A trabalhadora ora autora, sem justificação clínica, acedeu aos registos no portal da saúde relativos a CC, nos seguintes dias e horas: 30.10.2018, às 14h44m; 02.11.2018, às 11h01m; 08.11.2018, às 10h17m; 12.11.2018, às 10h55m; 14.11.2018, às 11h10m; 16.11.2018, às 14h37m; 19.11.2018, às 09h10m; e 21.11.2018, às 15h07m, e nesta última data acedeu quer aos registos de CC, como aos registos da sua filha, menor de idade, DD. 19. Àquela data CC não havia restringido o acesso aos seus dados clínicos e dados clínicos da sua filha para a consulta e tratamento pelos profissionais de saúde. 20. CC e a sua filha DD, àquela data, encontravam-se inscritas no Centro de Saúde ..., tendo estado inscritas, em data anterior, no Centro de Saúde .... 21. Como enfermeira especialista e enfermeira de família a Autora trabalha com grupos, famílias e comunidades, trabalha com listas de utentes, para planeamento em saúde, utilizando as ferramentas necessárias à sua prestação e presta igualmente cuidados de enfermagem a todos os utentes inscritos no seu centro de saúde, com ou sem médico de família. 22. No exercício de tais funções a Autora pode ter de consultar os dados de qualquer utente, por razões diversas, a saber: no caso de um utente estrangeiro ou que vem de outra Unidade de Saúde; no caso de um utente deslocado, por exemplo um estudante que vem de outra Unidade de Saúde; no caso de uma pesquisa para efeitos de estudo da população; no caso de um utente sem médico de família; no caso de uma pesquisa e ou acesso para efeitos de uma campanha, por exemplo, vacinação, grávidas, idosos ou outros. 23. A Autora é igualmente a enfermeira responsável da qualidade do seu centro de saúde. 24. Para planeamento em saúde a Autora consulta processos, para programar vacinação, por exemplo, e não solicita antecipadamente permissão aos utentes. 25. O processo individual da utente em causa foi igualmente consultado por outros profissionais de saúde, designadamente uma enfermeira EE, sem que contra os mesmos tivesse sido apresentada queixa-crime por CC. 26. A autora não recebeu formação específica na área de proteção de dados. 27. A autora não tinha qualquer sanção registada no processo individual de trabalhadora por conta da Ré. 28. A aplicação da sanção disciplinar foi objeto de conversa entre colegas e amigos, e com a mesma a autora, sentiu-se triste, vexada e deprimida. 29. A autora e o ex-marido desta, BB, têm a correr entre si processos judiciais no Tribunal de Família e Menores e no Juízo Criminal de .... De Direito Nas suas contra-alegações a Recorrida afirma que “[a] fundamentação do voto vencido cinge-se à questão da prescrição da infração disciplinar, defendendo não ser de aplicar o prazo prescricional mais alargado, e sim o previsto no art. 329.º, n.º 1 do Código do Trabalho (CT), porquanto “não podemos concluir que a conduta da trabalhadora integra a prática de crime”, pois há que “concluir pela certeza de que aqueles factos, a serem verdadeiros, constituiriam crime”. Tal asserção não é exata. Em primeiro lugar, havendo um voto de vencido o recurso é possível ao abrigo do artigo 761.º, não se podendo falar em “dupla conformidade”, tanto mais que a lei se refere ao voto de vencido como tendo uma fundamentação sucinta, o que significa que o Juiz que vota vencido não tem que indicar todos os pontos de divergência com a decisão da maioria e muito menos que fornecer um projeto alternativo. Em todo o caso, no caso vertente o voto de vencido no Acórdão do Tribunal da Relação não se limita, de todo, a divergir da maioria relativamente ao prazo prescricional. Nele afirma-se, também expressamente o seguinte: “A expressão, "sem justificação clínica", tem caráter conclusivo. Saber se tinha ou não justificação, no caso concreto, depende da prova de outros factos de onde tal conclusão se possa extrair. Acresce que analisados os demais factos provados transcritos e ouvida a prova testemunhal relativa a esta matéria, não ficamos convencidos quanto a dar como provado que o acesso aos registos clínicos tenha sido sem justificação. Tenha-se em conta as funções da trabalhadora, o modo como o sistema informático está organizado, o seu acesso fácil por outros trabalhadores da ré e a ausência de formação da trabalhadora em matéria de proteção de dados promovida pela empregadora. Não resulta da prova produzida de forma inequívoca que a trabalhadora, enfermeira de profissão e em face das suas funções, tenha acedido aos registos clínicos sem justificação. Dos factos provados resulta que o acesso só pode ser imputado a título de negligência, donde resulta a falta do elemento subjetivo, na forma de pelo menos dolo genérico. Os factos dados como provados de 21 a 25 opõem-se à prova do dolo genérico e à falta de justificação (aliás, conclusiva no caso concreto, atendendo às funções da trabalhadora, enfermeira). Há outra questão que não está apurada. Se as utentes já estavam inscritas em outro centro de saúde, qual a razão pela qual ainda se encontravam no sistema informático como utentes do centro de saúde onde a autora trabalhava? Tudo questões não apuradas. Ficcionar que foi por causa da relação com o ex-marido, salvo o devido respeito, é meramente especulativo, pois não encontra eco nos factos provados e são estes e apenas estes que podemos considerar”. É, pois, claro que este Tribunal na apreciação do presente recurso de revista não está, de todo, limitado à apreciação da questão do prazo prescricional. Analisaremos, assim, as questões suscitadas no recurso, mormente, a prescrição do direito de exercer o poder disciplinar, a caducidade do procedimento disciplinar e a adequação da sanção ao eventual ilícito disciplinar praticado. Relativamente à prescrição, o artigo 329.º n.º 1 do Código do Trabalho dispõe que “[o] direito de exercer o poder disciplinar prescreve um ano após a prática da infração, ou no prazo de prescrição da lei penal se o facto constituir igualmente crime”. Para a aplicação deste prazo mais longo é suficiente que o facto em abstrato seja suscetível de constituir simultaneamente um ilícito disciplinar e um ilícito criminal, independentemente, pois, de o trabalhador vir ou não a ser efetivamente condenado pela prática de um crime. Aliás, tem sido entendimento deste Tribunal que “o alargamento do prazo de prescrição nos termos referidos não depende do efetivo exercício da ação penal, nem do exercício do direito de queixa-crime, quando o exercício daquela esteja dependente desta” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-01-2010, proferido no processo n.º 1321/06.4TTLSB.L1.S1, Relator Sousa Peixoto). Há, pois que concluir que a eventual infração disciplinar não estava ainda prescrita, independentemente de a Recorrente não ter sido efetivamente condenada pela prática de qualquer crime. É que como destaca o Parecer do Ministério Público, já estavam em vigor à data da prática dos factos tanto o art.º 6.º da Lei do Cibercrime aprovada pela Lei n.º 109/2009 de15/09, como o art.° 44.° da Lei n.° 67/98 de 26/10. Quanto à alegada caducidade do procedimento disciplinar, “[p]ara que se verifique a caducidade do procedimento disciplinar é preciso que resulte da matéria de facto provada que o procedimento disciplinar teve início depois de terem decorrido mais de sessenta dias após o empregador ter tido conhecimento da infração” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-05-2018, processo n.º 1887/14.5T8BRR-A.L1.S1, Relator Chambel Mourisco). Ora, da matéria de facto dada como provada nas instâncias não resulta, desde logo, que o prazo de sessenta dias tivesse já decorrido aquando do início do procedimento disciplinar. Por outro lado, “não se pode extrair da conjugação do disposto no n.º 1, do art.º 357.º, do Código do Trabalho, com o seu n.º 7, que o trabalhador deva ter conhecimento da decisão final sobre o despedimento antes de decorrido o prazo de 30 dias para o empregador proferir a decisão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-03-2017, processo n.º 240/14.5TTALM-A.L1). Assim, a última medida da instrução teve lugar no dia 16-01-2020 (facto 7), mas a decisão de aplicar a sanção disciplinar teve lugar no dia 12-02-2020 (facto 9) e, por conseguinte, no prazo de 30 dias, ainda que só tenha sido comunicada ao trabalhador depois dessa data (facto 12), pelo que não se verifica a caducidade. Importa, agora, averiguar se a sanção disciplinar é nula por outros motivos. Antes de mais, importa ter presente que o empregador aplicou a sanção da suspensão de trabalho por cinco dias com perda de retribuição de retribuição e antiguidade. Do elenco das sanções disciplinares constante do artigo 328.º n.º 1 do CT resulta que a sanção aplicada é a mais grave das sanções conservatórias, ainda que o n.º 2 do artigo 328.º permita que a suspensão do trabalho como sanção aplicada a uma infração possa atingir os 30 dias. Como é sabido, a sanção disciplinar “deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator” (artigo 330.º, n.º 1 do CT). Acresce que no âmbito da responsabilidade disciplinar a culpa do infrator não se presume e deve ser demonstrada pelo empregador, cabendo a este último o ónus da prova da gravidade da infração e da culpabilidade do infrator. Muito embora a Recorrente, pelas suas funções, pudesse ter de consultar os dados de qualquer utente, por razões diversas, mormente em razão de uma pesquisa para efeitos de estudo da população ou para efeitos de uma campanha de vacinação (factos 21, 22 e 24), acedeu reiteradamente e sem justificação aos dados de CC e pelo menos uma vez aos dados da filha desta, menor de idade (facto 18). Cometeu, por conseguinte, várias infrações disciplinares. No entanto resultam da matéria de facto, dada como provada, factos que mitigam o grau de culpa da Recorrente e que contribuem para tornar a sanção disciplinar que lhe foi aplicada excessiva. Sublinhe-se, desde logo, o mesmo acesso foi praticado por outros profissionais de saúde (facto 25). Acresce que a Recorrente “não recebeu formação específica na área de proteção de dados” (facto 26), o que de alguma forma mitiga a culpa, e que, dadas as suas funções, como já foi referido, podia aceder aos dados de CC, a qual, aliás, “não havia restringido o acesso aos seus dados clínicos e dados clínicos da sua filha para a consulta e tratamento pelos profissionais de saúde” (facto 19). Atendendo, igualmente, ao facto de a trabalhadora não ter qualquer passado disciplinar (facto 27), há que concluir que a sanção que lhe foi aplicada é excessiva e desproporcionada, havendo que declarar a sua nulidade por violação de norma legal imperativa. Tal torna desnecessário apreciar a invocada aplicação da Lei da Amnistia, invocada pela Recorrente. Nas suas Conclusões a Recorrente pede “a condenação da Recorrida a remover do histórico disciplinar da Recorrente a sanção aplicada e o pagamento da quantia de € 239,00, acrescida dos juros de mora vencidos até efetivo e integral pagamento, liquidando-se até ao presente a quantia de € 2,02, tudo com as legais consequências”, o que se concede. Pede, igualmente, a condenação da Recorrida por aplicação de sanção abusiva, no valor de € 2390, 00. Face ao disposto no artigo 331.º n.º 1 não se vê, contudo, em que é que a sanção aplicada tenha sido abusiva, de modo a desencadear a consequência prevista no n.º 5 do referido artigo 331.º do CT. Com efeito, a sanção disciplinar não foi aplicada à Recorrente por qualquer um dos motivos elencados no n.º 1 do artigo 331.º do CT. Quanto ao seu pedido de compensação por danos não patrimoniais no montante de € 27.368,99, deve sublinhar-se que, apesar do facto 28, não há razão para compensação no caso vertente. Não só a declaração de nulidade da sanção expurgando-a do registo disciplinar já tem um efeito reparatório, como há que sublinhar que a situação dos autos poderia ter justificado a aplicação de alguma sanção disciplinar ainda que menos grave, ou seja, a aplicação de uma sanção poderia ter correspondido a um comportamento lícito do empregador. Decisão: Concedida parcialmente a revista, declarando-se a nulidade da sanção disciplinar aplicada. Custas na proporção do decaimento Lisboa, 6 de dezembro de 2023 Júlio Gomes (Relator) Ramalho Pinto Domingos José de Morais
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