Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1226/19.9T8CHV-B.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
FUNDAMENTOS
CASOS JULGADOS CONTRADITÓRIOS
OFENSA DO CASO JULGADO
PRAZO DE DEFESA
SENTENÇA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 07/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. A repetição de decisões transitadas, sejam ou não contraditórias, é inútil, uma vez que é a que primeiro transitou que prevalece; esta regra vale, quer para as decisões de mérito, quer para as decisões sobre questões processuais e, quer para decisões proferidas em acções sucessivas, quer para decisões contraditórias proferidas sobre questões de mérito ou processuais, numa mesma acção.

II. É este regime que, com a reforma dos recursos operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, explica a eliminação, de entre os fundamentos do recurso de revisão, da contradição da decisão com “outra que constitua caso julgado entre as partes, formado anteriormente” (al. f) do então artigo 771.º do Código de Processo Civil).

III. Não se procedeu, todavia, a idêntica alteração na lista dos fundamentos de oposição a execução baseada em sentença, embora tenha aplicação o mesmo princípio.

IV. Se uma sentença dada à execução contraria uma sentença anterior, a aplicação do princípio explicitado no n.º 1 do artigo 625.º implica que não possa ser executada essa segunda sentença, que o processo executivo que tenha sido iniciado termine e que se tirem as devidas consequências desse efeito.

V. Não é nova a questão de saber como se harmoniza o regime actualmente constante do artigo 625.º do Código de Processo Civil – que não prevê a existência de qualquer prazo para que a segunda sentença seja desconsiderada, devendo valer a que transitou em primeiro lugar – com a (actual) al. f) do artigo 729.º (embargos de executado com fundamento em contradição com caso julgado anterior) e com o (eliminado) fundamento de revisão de sentença, por contrariar caso julgado anterior (al. g) do artigo 771.º do Código de Processo Civil, na versão anterior à alteração resultante do Decreto-Lei n.º 303/2007.

VI. O decurso do prazo para embargar não tem a virtualidade de prevalecer sobre o n.º 1 do artigo 625.º do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. A 6 de Outubro de 2021, no âmbito da execução que lhe foi movida por AA, BB opôs embargos, com fundamento em caso julgado anterior, invocando o disposto no n.º 2 do artigo 728.º e na al. f) do artigo 729.º do Código de Processo Civil.

Alegou, em síntese, que havia sido absolvida por “sentença proferida presencialmente a 25 de Junho de 2015” pelo Julgado de Paz de ...,  transitada em julgado a 7 de Julho de 2015; mas que foi dada à execução uma sentença condenatória de 29 de Janeiro de 2016, proferida na mesma acção, cujo valor era de € 2 500,00, na sequência da arguição de nulidade e de um pedido de reforma da sentença de 2015, extemporaneamente apresentados; a sentença de 2016 “terá transitado a 10 de Março de 2016”.

Sendo contraditórias, deve ser cumprida a sentença transitada em primeiro lugar (n.º 1 do artigo 625.º do Código de Processo Civil); o que é “causa de extinção dos presentes autos executivos” (al. f) do artigo 849.º do Código de Processo Civil).

Assim declarou, aliás, o despacho do mesmo dia 6 de Outubro de 2021: “Notifique-se o tribunal de execução ..., com carácter de urgência, do presente despacho e da sentença absolutória já transitada em julgado, de forma a que se dê por sem efeito a penhora do veículo da demandada, agendada para o dia 7 de Outubro de 2021 (...)”.

Terminou o requerimento de embargos, dirigido ao Juízo de Execução ..., pedindo que “a) Decrete a suspensão dos autos executivos, com dispensa de prestação de caução, por existir já penhora anterior), b) Decrete a não realização da diligência de remoção do veículo, c) Seja cumprido o caso julgado ora suscitado e já confirmado pelos Julgados de Paz de ... (…), d) Determine a extinção da instância executiva nos termos do art.º 849.º, n.º 1, l. f), artº 729.º, ambos do C.P.C.", e) Determine o cancelamento e consequente levantamento de todas as penhoras efectuadas ao abrigo destes autos (…)”.

Do referido despacho de 6 de Outubro de 2021 (Processo n.º ...15...) consta o seguinte:

«A demandada veio apresentar um requerimento no sentido de requerer a correção da certidão judicial emitida em 9 de Julho de 2019, com o trânsito em julgado da decisão em 10 de Março de 2016.

Compulsados os autos, constata-se o seguinte:

Foi proferida uma sentença no dia 25 de Junho de 2015, absolvendo a demandada do pedido.

Posteriormente, em 10 de Agosto de 2015, a parte demandante veio apresentar um requerimento pedindo a nulidade e reforma da sentença proferida, tendo sido proferida nova sentença, neste sentido, condenatória.

Contudo, e atendendo ao valor da acção (€ 2 500,00), o processo transitou em julgado no dia 8 de Julho de 2015, nos termos do artigo 149.º do Código de Processo Civil, aplicado por remissão do artigo 63.º da Lei dos Julgados de Paz, data anterior à apresentação do mencionado requerimento pela parte demandante.

Por lapso, os autos não me foram conclusos para despacho de arquivamento, o que originou o decurso da fase seguinte, com alteração da sentença proferida.

Porém, tal requerimento apresentado pela parte demandante já se encontrava extemporâneo, por ter sido apresentado após o trânsito em julgado da decisão proferida, pelo que assiste razão à demandada.

Nestes termos, deverá determinar-se que a sentença que produz os seus efeitos legais é a primeira sentença proferida em 25 de Junho de 2015, transitada em julgado em 8 de Julho de 2015, sentença essa que absolve a demandada do pedido formulado e que ora se junta ao presente despacho.

Notifique-se as partes do presente despacho.

Notifique-se o tribunal de execução ..., com carácter de urgência, do presente despacho e da sentença absolutória já transitada em julgado, de forma a que se dê por sem efeito a penhora do veículo da demandada, agendada para o dia 7 de Outubro de 2021, pelas 18 horas».

Da sentença ali referida consta que “A relação material controvertida circunscreve-se às relações/responsabilidades decorrentes da celebração de um contrato de arrendamento entre demandante e demandada (artigo 1022.º e seguintes do Código Civil).

(…) ficou provado que demandante e demandada resolveram em 2014, por comum acordo, o contrato de arrendamento, ficando ainda provado que a demandada liquidou as rendas dos meses de Abril de 2013 a Junho de 2014, sendo que o último mês, Julho de 2014, respeita a uma renda que foi liquidada inicialmente, aquando da outorga do contrato aqui em causa.

O tribunal considerou, ainda, que a demandante não se encontra na posse das chaves do locado, por razões que não se conseguiu aferir, fossem ou da culpa da demandante ou da culpa da demandada.

Em conclusão, a demandante não logrou fazer prova do alegado no seu requerimento inicial, conforme lhe competia, de acordo com o disposto no artigo 342.º, número 1, do Código Civil, pelo que se absolve a demandada de todo o pedido formulado.»

2. Por despacho de 7 de Outubro de 2021, do Juízo de Execução ..., os embargos foram liminarmente indeferidos, “nos termos do art. 732.º, n.º 1, alínea a) do N.C.P.C.”, por ter sido “largamente ultrapassado o prazo a que alude o art. 728.º, n.º 1 do N.C.P.C.”. O juiz entendeu não ser aplicável o n.º 2 deste artigo 728.º, porque a embargante “teve conhecimento da decisão proferida em 25/06/2015”, foi notificada da sentença posterior, em 29/01/2016, “a qual serve de título executivo nos autos principais de execução e nada fez (…). (…) não pode agora vir alegar um conhecimento superveniente, ocorrido apenas no pretérito dia 29/09/2021, para poder beneficiar do prazo de 20 dias, legalmente previsto para a apresentação de embargos de executado, quando podia e devia, atempadamente, ter deduzido oposição à execução e, quiçá à penhora, por ter sido devidamente citada/notificada para o efeito em 12/07/2020, não  se olvidando que os autos executivos se encontram m fase de venda”.

A embargante recorreu para o Tribunal da Relação ..., que, por acórdão de 13 de Janeiro de 2022, negou provimento à apelação. Para além de também julgar extemporâneos os embargos, por não se verificar superveniência objectiva ou subjectiva do fundamento invocado – “a invocada existência de caso julgado”, e não o despacho de 6 de Outubro de 2021 –, a Relação entendeu existir mesmo “caso julgado no processo relativamente à data em que os embargos, com este fundamento (violação de caso julgado), deveriam ter sido deduzidos”, porque «resulta evidente dos factos provados que, já em 28-5-2021 a apelante, com o mesmo fundamento fáctico, embora diferente configuração jurídica (invocando o artº 286.º do CC – nulidade de negócio jurídico) requereu na execução que se declarasse nula a sentença que serve de título executivo e fosse “consequentemente valorada a sentença absolutória proferida a 25 de Junho de 2015 supra junta com as legais consequências”»  e que no recurso então interposto se decidiu já não ser possível convolar o requerimento em embargos de executado.

3. A embargante recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça.

Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:

«(…) 2.º O título executivo apresentado à execução, uma sentença condenatória com trânsito em julgado a 10 de Março de 2016 foi revogada por despacho datado de 6 de Outubro de 2021 (…).

3.º Esse despacho determina e fixa que a sentença absolutória proferida a 25 de junho de 2015 transitou em 8 de Julho de 2015.

4.º A partir do dia 8 de Julho de 2015 o poder jurisdicional da Meretíssima juiz do julgados de paz esgota-se nos termos do artigo 613.º do C.P.C.

5.º Qualquer acto proferido por magistrado à revelia do artigo 613 n 2 do C.P.C. a contrario é ilícito passível de responsabilidade civil e criminal.

6.º O caso julgado material na vertente positiva por via da autoridade do caso julgado vincula o tribunal e as partes.

7.º O tribunal de execução ... está vinculado por Lei pela decisão absolutória proferida a 25 de junho de 2015. Com trânsito a 8 de julho de 2015.

8.º A vinculação do tribunal não tem que ocorrer mediante embargos de oposição, pode inclusive ocorrer em sede de venda do bem penhorado.

9.º Esta decisão absolve a exequente da totalidade do pedido, pelo que deve ser dado cumprimento à mesma nos termos do artigo 625.º do C.P.C.

10.º Assim a executada nada deve à exequente, logo a execução não tem fundamento legal, pelo que a sua extinção tem de operar.

11.º Os autos executivos são claramente um enriquecimento sem causa da aqui exequente (…)

(…) 15.º Os embargos deduzidos pela executada têm natureza superveniente nos termos do artigo 728 n 2 do C.P.C.

16.º O conhecimento do trânsito em julgado da decisão absolutória proferida a 25 de junho ocorreu aquando da deslocação ao arquivo de ....

17.º O despacho dos Julgados de Paz para rectificação de trânsito em julgado foi proferido a 6 de Outubro de 2021.

18.º Esse despacho foi proferido muito depois da citação para deduzir oposição à execução.

19.º Esse despacho tem natureza superveniente.

(…) 25.º Desta forma, existe uma violação da Constituição da República, nomeadamente, o art. 20 n 1. No que respeita ao direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses.

26.º A continuidade destes autos executivos viola o princípio da legalidade, da igualdade e a realização da justiça, do acesso ao direito, e da certeza e segurança jurídica.»

(…) Termina sustentando que o acórdão do Tribunal da Relação ... deve ser revogado, «pugnando o Supremo Tribunal de Justiça pelo deferimento dos embargos supervenientes deduzidos ao abrigo do art. 728 n 2 do C.P.C., só assim, justiça será feita e assegurada a segurança jurídica porquanto importa cumprir o art. 625 n 1 do C.P.C.».

Não houve contra-alegações.

O recurso foi admitido, por ter como fundamento a ofensa de caso julgado.

4. Além do que se fez constar do relatório, vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

«1.º O título executivo apresentado pela exequente é a sentença, de 29-1-2016, proferida no processo 106/2015-JPVR do Julgado e Paz ....

2.º A executada foi citada nesta execução no dia 8-7-2020.

3.º Apresentou, em 28-5-2021, requerimento onde se lê:

"(…) vem mui respeitosamente, nos termos do art. 286.º do CC, arguir a nulidade nos termos e com os fundamentos seguintes:

O título executivo do presente processo tem como base uma sentença condenatória, proferida a 26 de junho de 2016 pelos Julgados de Paz de ... processo 106/2015-JP, cfr. doc. junto nos autos.

Nesse mesmo processo foi proferida previamente uma sentença absolutória, a 25 de junho de 2015, sobre a mesma pretensão. Cfr. doc. n.º 1 que se junta para os devidos efeitos. No douto requerimento inicial apresentado a 09/04/2015, nos Julgados de Paz de ..., é peticionado a condenação da aqui requerente, no pagamento de 2500 a título de rendas em atraso por incumprimento decorrente das obrigações assumidas no contrato de arrendamento. Cfr. doc. n.º 2 que se junta para os devidos efeitos. Ora, com todo o respeito, inexplicavelmente, sem que nada o fizesse, passado um ano, estes Julgados de Paz proferem, uma segunda douta sentença, a condenar executada/requerente, em indemnização por falta de restituição do locado, quando esta restituição nem sequer foi peticionada no requerimento inicial supra junto.

Assim, a aqui requerente com todo o respeito foi condenada num objeto diverso do pedido.

Posto isto, esta última sentença que serve de título executivo no presente processo é nula por condenação em objeto diverso do pedido, al e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Mais, ao abrigo do art. 44.º da lei 78/2001, lei dos julgados de paz, apenas é admitida cumulação de pedidos no momento da propositura da ação e pese embora se aplique subsidiariamente o CPC, a lei especial derroga a lei geral, lex specialis derrogat legi generali.

A presente nulidade é passível de ser arguida a todo tempo pelo que é temporânea ao abrigo do art. 286.º do CC.

Nestes termos, com o mui douto suprimento de V. Exª deve a sentença que serve de título executivo ser declarada nula e consequentemente valorada a sentença absolutória proferida a 25 de junho de 2015 supra junta com as legais consequências."

4.º No despacho que se debruçou sobre o assim requerido, datado de 25-6-2021, decidiu-se que o mesmo “não é o meio processualmente adequado para suscitar tais questões nos autos e obter o efeito pretendido pela Executada, motivo pelo qual se indefere o requerido”.

5.º Deste despacho a executada interpôs recurso para esta Relação, em que, por

acórdão de 11-11-2021, relatado pelo Venerando Desembargador Beça Pereira, aqui 1º adjunto, se jugou o mesmo improcedente, confirmando-se a decisão recorrida, porquanto “face ao disposto nos artigos 731.º e 729.º n.º 1 a), o meio processual para, com este fundamento, atacar o título executivo é a oposição à execução. Portanto, tem inteira razão a Meritíssima Juiz quando afirma que "um requerimento avulso junto aos autos não é o meio processualmente adequado para suscitar tais questões nos autos e obter o efeito pretendido”. Mais se decidindo, como consta do respectivo sumário, que “No âmbito do disposto no artigo 193.º n.º 3 do Código de Processo Civil não é possível aproveitar o errado meio processual utilizado pela parte quando esta praticou o ato depois de ter terminado o prazo de que dispunha para recorrer ao meio processual adequado”.

5. O presente recurso, tal como foi admitido no Tribunal da Relação ..., apenas é admissível por ter como fundamento a violação de caso julgado (al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil); a questão a tratar é, portanto, a de saber se deve ou não prevalecer a sentença de 25 de Junho de 2015 sobre a sentença que constitui o título executivo, de 29 de Janeiro de 2016.

Com efeito, sendo proferidas “duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar” (n.º 1 do artigo 625.º do Código de Processo Civil).

Como sabemos, a repetição de decisões transitadas, sejam ou não contraditórias, é inútil, uma vez que é a que primeiro transitou que prevalece. Esta regra vale, quer para o caso julgado material, quer para o caso julgado formal (n.ºs 1 e 2 do artigo 625.º), ou, sendo mais precisa, para as decisões de mérito e para as decisões sobre questões processuais e, quer para decisões proferidas em acções sucessivas, quer para decisões contraditórias proferidas sobre questões de mérito ou processuais, numa mesma acção; no casso, trata-se de duas decisões sobre o mérito, proferidas numa mesma acção. Não é pois só o prestígio dos tribunais – afectado se duas decisões forem contraditórias na sua execução – ou a certeza e segurança das relações jurídicas que estão em causa.

É, aliás, este regime que, com a reforma dos recursos operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, explica a eliminação, de entre os fundamentos do recurso de revisão, da contradição da decisão com “outra que constitua caso julgado entre as partes, formado anteriormente” (al. f) do então artigo 771.º do Código de Processo Civil), como observa Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra, 2009, pág. 196, nota (206): “Foi considerado desnecessário manter este fundamento, atento o disposto no art. 675, n.º 1” (equivalente ao actual artigo 625.º).

Não se procedeu, todavia, a idêntica alteração na lista dos fundamentos de oposição a execução baseada em sentença, embora tenha aplicação o mesmo princípio: a autoridade de caso julgado de uma decisão impede que os tribunais voltem a apreciar a  questão, quer da mesma forma, quer de modo contraditório. Sendo proferida decisão concretamente contraditória, em desrespeito da autoridade de caso julgado, a excepção de caso julgado tem como função a respectiva defesa; falhando esta defesa, sempre a regra que hoje consta do artigo 625.º impede que produza efeitos a decisão tomada em segundo lugar, que, em qualquer caso, repete-se, é inútil. “Este acatamento”, escreve Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 305, referindo-se ao acatamento do caso julgado material, ou seja, da “definição dada à relação controvertida”, “é-lhe devido de modo absoluto. Constitui dever oficioso do tribunal, não dependendo da invocação da parte interessada (…). Mesmo que chegue a ser proferida nova decisão contraditória com aquela, esta é a que prevalece (artigo 675º, [actual 625.º]).”

Assim, concluindo-se que uma sentença dada à execução contraria uma sentença anterior, a aplicação do princípio explicitado no n.º 1 do artigo 625.º implica que não possa ser executada essa segunda sentença, que o processo executivo que tenha sido iniciado termine e que se tirem as devidas consequências desse efeito – em concreto, dependendo do momento em que a questão seja detectada. Em último caso, se já tiver havido venda dos bens penhorados, a venda ficará sem efeito, sendo aplicável o disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 839.º do Código de Processo Civil: se a existência de caso julgado anterior tiver sido invocada como fundamento dos embargos de executado, da procedência dos embargos decorre que a venda ficará sem efeito. O mesmo sucederá se o caso julgado anterior for conhecido oficiosamente.

6. Não é nova, naturalmente, a questão de saber como se harmoniza o regime actualmente constante do artigo 625.º do Código de Processo Civil – que não prevê a existência de qualquer prazo para que a segunda sentença seja desconsiderada, devendo cumprir-se ou, em termos mais abrangentes, devendo valer a que transitou em primeiro lugar – com a (actual) al. f) do artigo 729.º (embargos de executado com fundamento em contradição com caso julgado anterior) e com o (eliminado) fundamento de revisão de sentença, por contrariar caso julgado anterior (al. g) do artigo 771.º do Código de Processo Civil, na versão anterior à alteração resultante do Decreto-Lei n.º 303/2007), como se pode ler, por exemplo, em Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1994, pág. 305, nota (1), ou  José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. VI, Coimbra, 1953, pág. 365. No vol. V, Coimbra, 1952, pág. 105, José Alberto dos Reis, aliás, observa expressamente que, sendo promovida a execução de sentença contraditória com anterior sentença transitada, o executado pode invocar caso julgado anterior na oposição, mas, se já não estiver em prazo e não conseguir provar a superveniência do conhecimento, “basta que o executado dê conhecimento da existência do caso julgado, juntando ao processo, em qualquer momento, certidão da sentença anterior transitada, para que o juiz tenha de dar sem efeito o processo de execução. O processo cai, porque desaparece a sua base: o título executivo”.

7. Concluindo que a sentença dada à execução contraria a sentença absolutória transitada em julgado, cumpre verificar se a circunstância de os embargos apresentados com esse fundamento terem sido apresentados depois de decorrido o prazo de 20 dias, previsto no n.º 1 do artigo 728.º do Código de Processo Civil, impede a consideração deste fundamento, como entenderam as instâncias, ou não – nomeadamente, por se entender que a matéria da oposição é superveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 728.º, como sustenta a recorrente.

Ambas as instâncias entenderam que não se pode considerar a deslocação de 29 de Setembro ou o despacho de 6 de Outubro de 2021como referência para a contagem do prazo de 20 dias previsto no n.º 1 do artigo 728.º, entendendo-o como justificativo da superveniência  relevante para efeitos de início desse prazo, ao abrigo do disposto no n.º 2; conclusão à qual nada há a apontar, tendo em conta que a embargante foi notificada da primeira sentença e “posteriormente (…) notificada para os termos do processo que se lhe seguiram (reforma) e da prolação da segunda sentença, aqui dada à execução” (acórdão recorrido).

Com efeito, o que relevaria como facto supervenientemente conhecido seria o trânsito em julgado da primeira sentença; mas não pode entender-se que esse conhecimento resulte do despacho de 6 de Outubro de 2021, como se observou nas instâncias. Não pode escolher-se outro momento que não seja o do trânsito em julgado da primeira sentença: tendo sido notificada à embargante, dispunha esta de todos os elementos para determinar que transitara em 8 de Julho de 2015. O despacho de 6 de Outubro apenas o declara, não tendo qualquer relevância para fundamentar a alegação de superveniência subjectiva.

8. No entanto, o decurso do prazo para embargar não tem a virtualidade de prevalecer sobre o n.º 1 do artigo 625.º do Código de Processo Civil; ou, dito por outras palavras, de apagar a contradição entre a sentença dada à execução e a sentença de 25 de Junho de 2015, ou de a tornar irrelevante.

É certo que, se tiver havido decisão anterior no sentido da inexistência de contradição entre duas sentenças, formou-se caso julgado e já não é possível voltar a colocar essa questão; não é todavia a essa eventualidade que se refere o acórdão recorrido, mas sim à formação de caso julgado relativamente à extemporaneidade dos embargos de executado, por desrespeito do prazo de 20 dias, previsto no n.º 1 do artigo 728.º do Código de Processo Civil “(…) já há caso julgado no processo relativamente à data em que os embargos, com este fundamento (violação de caso julgado), deveriam ter sido deduzidos”.

9. Aqui chegados, fica prejudicada a apreciação das questões de constitucionalidade suscitadas pela recorrente.


10. Nestes termos, concede-se provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido e julgando extinta a execução.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 07 de julho de 2022

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora)

Fátima Gomes

Oliveira Abreu