Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
448/21.7T8MAI-A.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
PRESCRIÇÃO DE CRÉDITOS
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
INCUMPRIMENTO
VENCIMENTO ANTECIPADO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
AMORTIZAÇÃO
JUROS
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
De acordo com a recente decisão uniformizadora proferida pelo Pleno das Secções Cíveis do STJ (AUJ n.º 6/2022), no caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do art.º 310.º al. e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação e ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do art.º 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas
Decisão Texto Integral:
                                               *

I - Relatório

A Exequente que originariamente teve a denominação de Naviget, S.A., em 28-01-2021, moveu execução sumária para pagamento de quantia certa, contra os Executados, visando a cobrança coerciva do crédito no montante global de € 268.388,51, sendo € 170.242,82 de capital em dívida resultante de um contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 08.10.2009 entre Banco 1..., S.A. e F..., S.A., acrescido de juros vencidos e vincendos e, ainda, de despesas, no qual os Executados intervieram, assumindo as responsabilidades da mutuária e subscrevendo, como avalistas, uma livrança emitida como garantia do pagamento das quantias mutuadas e juros.

Em 26.04.2021, foi proferido o seguinte despacho no referido processo executivo:

Em coerência com a cominação expressa na notificação dirigida à exequente, ao abrigo das disposições conjugadas dos art.º 713.º e 716.º, n.º 1 e n.º 4, todos do Código de Processo Civil, atenta a confessada impossibilidade de liquidação das despesas cujo pagamento é requerido, indefiro liminar e parcialmente o requerimento executivo e, em consequência, declaro extinta a execução em relação à peticionada quantia de 3 900,21 €, absolvendo os executados do pedido nessa parte.

Os dois primeiros Executados, AA e BB, deduziram oposição, através de embargos de Executado (apenso A), pedindo que a execução fosse declarada extinta, alegando, em síntese o seguinte:

- no âmbito do Processo nº 8455/12...., que correu termos pelo Juízo de Comércio ..., Juiz ..., foram declarados insolventes;

- o crédito da Exequente foi relacionado no processo de insolvência, já declarado encerrado, após liquidação do ativo dos insolventes;

- os Embargantes pediram e foi-lhes concedida a exoneração do passivo restante por decisão final proferida em 07.10.2019 e essa decisão importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados.

Os terceiro e quarto Executados, CC e DD, deduziram oposição, através de embargos de Executado (apenso B), pedindo que a execução fosse declarada extinta quanto a eles, com fundamento no pagamento parcial e na prescrição do direito de crédito exequendo.

Por último, o quinto Executado também deduziu oposição, através de embargos de Executado (apenso C), alegando a prescrição do direito de crédito exequendo.

Foi determinada a apensação dos três embargos de executado, por despacho de 26.05.2021.

A Exequente não apresentou contestação aos embargos.

Entretanto, no processo executivo, a Exequente apresentou requerimento de desistência da instância executiva em relação aos dois primeiros Executados, tendo sido declarada a extinção da execução quanto a eles por despacho de 16.09.2021.

Foi proferida sentença em 06.10.2021, nos termos do artigo 567.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com a seguinte conclusão:

– julgo extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, em relação aos executados AA e BB;

– declaro extinta a execução que corre como processo principal em relação aos executados CC, DD e EE.

A Exequente interpôs recurso daquela sentença para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 08.06.2022, concedeu parcial provimento à apelação interposta pela Exequente e, em consequência, revogou a decisão recorrida, julgando parcialmente procedentes os embargos deduzidos por CC e mulher DD e por EE e determinando o prosseguimento da execução para cobrança coerciva da quantia de € 91 242,82, correspondente ao valor do capital mutuado ainda em dívida, e juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal a contar de 29.01.2016.

A Exequente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça deste acórdão, tendo concluído as suas alegações, pedindo:

- que seja revogada a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto na parte em que julgou procedente parcialmente os embargos deduzidos, e considerou deduzir os montantes referentes às adjudicações aos montantes do crédito do capital mutuado, que fica assim reduzido à quantia de € 91 242,82;

- subsidiariamente requer-se que seja revogada toda a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, bem como a da Primeira instância, e sejam os autos remetidos a julgamento para efeitos de produção de prova testemunhal.

- por último requer-se que seja a decisão proferida relativamente à imputação das adjudicações revogada e substituída por outra que contemple os juros vencidos e vincendos.

O Executado EE e os Executados CC e DD também interpuseram recursos de revista independentes para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando que o crédito exequendo se encontra prescrito, por ter decorrido o prazo previsto no artigo 310.º, d) e e), do Código Civil, pedindo, em consequência, que se declarasse extinta a execução quanto a estes Executados.

                                               *

II – Do objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo do acórdão recorrido cumpre apreciar, em primeiro lugar, se o direito de crédito exequendo se encontra prescrito relativamente aos Executados recorrentes.

                                               *

III – Os factos

Neste processo o acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:

1) Por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal (BdP) de 20 de Dezembro de 2015, foi constituída a sociedade “Naviget, S.A.” (que agora adopta a denominação “Oitante, S.A.”), como veículo de gestão de ativos do “Banco 1..., S.A.”, para a qual foram transferidos os respetivos direitos e obrigações.

2) Em 08.10.2009, o Banco 1..., S.A.” celebrou com “F..., S.A.” um contrato de mútuo pelo qual lhe disponibilizou, através de crédito na conta ...0, de que esta sociedade era titular, a quantia de € 174 000,00, a reembolsar no prazo de 10 anos, em prestações mensais, constantes e sucessivas, integrando capital e juros.

3) A taxa de juro contratada foi a taxa Euribor a 3 meses, acrescida de um spread de 3,5%, e, em caso de mora ou incumprimento, tal taxa seria elevada de 4%.

4) Os Executados avalistas AA, BB, FF, GG, CC, DD e EE, intervieram nesse contrato na qualidade de garantes, aceitando, expressamente, todos os seus termos e condições e assumindo solidariamente o cumprimento integral de todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes.

5) Os Executados movimentaram e utilizaram em proveito próprio o valor creditado.

6) Os Executados AA, BB, FF, GG, CC, DD e EE avalizaram uma livrança, subscrita pela sociedade mutuária, como caução e garantia do bom pagamento das obrigações assumidas no contrato de empréstimo, livrança essa que a Exequente foi autorizada a preencher, designadamente no que se refere à data de vencimento e local de pagamento e pelo valor correspondente aos créditos de que esta fosse titular por força do mencionado contrato, em caso de incumprimento.

7) Ainda para garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações para si emergentes do mesmo contrato, foi constituída a favor banco mutuante hipoteca voluntária sobre as seguintes frações prediais autónomas:

- fração autónoma designada pelas letras “AS”, do prédio sito na Rua ..., a que corresponde o quinto andar, traseiras centro, com uma arrecadação no vão de cobertura, identificada pela letra da arrecadação;

- fração autónoma designada pela letra “N”, na Rua ..., espaço demarcado na cave, destinado exclusivamente a recolha de veículos automóveis.

8) Os Executados interromperam o pagamento das prestações de amortização do empréstimo em 08.08.2010 e, a partir de então, nada mais pagaram.

9) Em virtude desse incumprimento, o Banco resolveu o contrato referido no ponto 2.

10) O Banco mutuante preencheu, então, a livrança referida no ponto 6, nela apondo os seguintes elementos:

- data de emissão: 08/10/2009; - quantia: € 173.897,61;

- data de vencimento: 25/10/2010.

11) A livrança contém ainda o carimbo da subscritora da livrança – a sociedade F..., S.A. – e está assinada pelos seus administradores.

12) No verso da livrança, os executados apuseram as suas assinaturas, cada uma das quais antecedidas da expressão “bom para aval” ou “bom por aval ao subscritor”.

13) No âmbito do processo de insolvência dos executados AA e BB, foram adjudicadas ao credor hipotecário “Banco 1..., S.A.”, as duas frações autónomas sobre as quais foi constituída a hipoteca referida no ponto 7 com a outorga do contrato de mútuo, pelo preço de, respetivamente, € 75.000,00 e € 4.000,00.

14) A mutuante “Banco 1..., S.A.”, já em 17.12.2010, havia instaurado execução contra a mutuária “F..., S.A.” e os avalistas, aqui executados/embargantes, para cobrança da quantia de € 174.107,10 baseada no mesmo contrato de mútuo outorgado em 8 de Outubro de 2009.

15) A referida execução correu termos sob o n.º 8840/10.... pelo Tribunal Judicial ..., tendo os Executados aí sido citados para, querendo, deduzirem oposição, e foi declarada extinta, por deserção da instância, em 04.02.2020, por falta de promoção dos termos da execução por parte da Exequente.

16) No âmbito da execução referida nos pontos 14 e 15, foi penhorado ao Executado EE 1/3 (uma terça parte, correspondente a € 173,49) do salário por este auferido.

                                               *

IV – O direito aplicável

1. Da resolução do contrato de mútuo

A Exequente instaurou a presente execução contra os Executados na qualidade de devedores da obrigação de reembolso do capital mutuado pela Exequente a F..., S.A., e dos respetivos juros remuneratórios e moratórios e despesas, a qual assumiram no próprio contrato de mútuo celebrado com a F..., S.A., alegando que os Executados deixaram de pagar as prestações acordadas nesse contrato, tendo-se vencido todas as prestações em dívida.

Como não foi deduzida contestação aos embargos, a sentença da 1.ª instância considerou confessados os factos alegados nas petições de embargos, sem os descrever, e utilizando a faculdade prevista no artigo 567.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, limitou-se a dizer que considerava que tinha ocorrido a prescrição do crédito exequendo, nos termos dos artigos 310.º, d) e e), do Código Civil, tendo concluído pela extinção da execução quanto aos Executados Embargantes.

Já o acórdão recorrido, entendeu que, tendo o contrato de mútuo sido resolvido pela Exequente, com fundamento na falta de pagamento das prestações (facto n.º 9), o prazo de prescrição do direito ao reembolso do capital em dívida, não é o prazo de 5 anos previsto no artigo 310.º, alínea e), do Código Civil, mas sim o prazo de prescrição ordinário de 20 anos do artigo 309.º do Código Civil, pelo que determinou o prosseguimento da execução para pagamento da parte do capital em dívida e dos juros moratórios vencidos há menos de 5 anos.

O acórdão recorrido valorizou, pois, de forma decisiva, a existência de um pretenso ato de resolução do contrato de mútuo por parte do Exequente.

A existência desse ato resolutivo retirou-a o acórdão recorrido do articulado de oposição por embargos deduzido pelos Executados CC e DD que, no artigo 18.º alegaram: a Exequente resolveu o contrato por incumprimento e em 25.10.2010 preencheu a referida livrança, conforme melhor resulta da cópia da mesma junta ao requerimento executivo.

Em primeiro lugar, a Exequente no requerimento executivo, em parte alguma, alegou que tenha resolvido o contrato de mútuo, tendo construído a causa de pedir alicerçada no incumprimento do contrato de mútuo e no vencimento antecipado de todas as prestações acordadas em resultado da falta de cumprimento de qualquer uma delas, pelo que, nesta execução exigiu o pagamento não só da parte do capital cuja devolução está em falta, mas também dos respetivos juros remuneratórios e moratórios. Assim, mesmo que se entendesse que a alegação dos Executados CC e DD, no artigo 18.º da sua oposição por embargos, constituía a confissão de um facto que lhes era desfavorável, para que que fosse viável uma alteração da causa de pedir, a Exequente teria que a requerer, nos termos do artigo 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não podendo o acórdão recorrido proceder oficiosamente a essa alteração, como o fez.

Em segundo lugar, o que consta no artigo 18.º da referida oposição por embargos apresentada pelos Executados CC e DD não corresponde à alegação de um facto, mas sim a um juízo conclusivo de cariz jurídico. Na verdade, saber se uma parte de um contrato o resolveu, não corresponde à averiguação de um evento do mundo da vida real, mas sim à qualificação jurídica de um determinado ato material, esse sim integrando o mundo dos factos. Ora, no referido artigo 18.º não é esse ato que nos é relatado, mas sim uma qualificação jurídica abstrata sem qualquer suporte factual, não se descrevendo minimamente o conteúdo e as condições em que terá ocorrido o ato que permite retirar essa conclusão jurídica.

Por esta dupla razão não é possível, como fez o acórdão recorrido, incluir nos factos provados a afirmação que a Exequente resolveu o contrato (facto n.º 9) e dela extrair conclusões com influência no apuramento da exceção perentória da prescrição.

2. Da prescrição do crédito exequendo

Na presente execução, a Exequente pretende o reembolso do capital mutuado em dívida, além dos respetivos juros remuneratórios e moratórios, uma vez que os Executados assumiram no contrato de mútuo outorgado com F..., S.A. em 08-10-2009, a responsabilidade pelo pagamento dessas dívidas.  Nesse contrato, estipulou-se que o capital mutuado (€ 174 000,00) seria devolvido no prazo de 10 anos, em prestações mensais, constantes e sucessivas, integrando capital e juros.

Provou-se que os Executados interromperam o pagamento das prestações de amortização do empréstimo em 08.08.2010 e, a partir de então, nada mais pagaram.

Está também provado que a mutuante “Banco 1..., S.A.”, em 17.12.2010, instaurou execução contra a mutuária “F..., S.A.” e os aqui também Executados, para cobrança da quantia de € 174.107,10 baseada no mesmo contrato de mútuo outorgado em 8.10.2009, em que considerava vencidas todas as prestações ainda não satisfeitas.

Dispõe o artigo 781.º do Código Civil que, se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.

Este dispositivo aplica-se às prestações fracionadas ou repartidas, isto é, aquelas em que o objeto global está previamente determinado, mas o seu cumprimento se divide no tempo por várias e sucessivas prestações instantâneas, nelas se incluindo a prestação de reembolso do mútuo, quando é dividida em amortizações parcelares que devem ocorrer periodicamente.

Apesar da redação equívoca do referido artigo 781.º do Código Civil [1], a mesma deve ser interpretada no sentido de que o vencimento antecipado das demais prestações, tendo por causa a falta de pagamento de uma delas, não ocorre automaticamente, sendo apenas concedida ao credor a faculdade de exigir, antecipadamente, o cumprimento de todas as prestações, constituindo, com essa interpelação, o devedor em mora, relativamente às prestações vincendas [2].

No entanto, quando as prestações de amortização de uma quantia mutuada estão fundidas com as prestações dos respetivos juros remuneratórios numa prestação única, não sendo estas últimas prestações fracionadas, mas sim, prestações reiteradas periódicas, em que o decurso do tempo influi na determinação do seu valor global, a aplicação do disposto no artigo 781.º do Código Civil, só funciona, relativamente à parte que corresponde à amortização do capital, uma vez que não é possível exigir o pagamento de juros remuneratórios relativos a períodos que não correspondam a uma disponibilidade do capital a que respeitam [3].

Mas, no presente caso, a aplicabilidade do artigo 781.º do Código Civil a estas prestações de natureza mista não é decisiva, uma vez que as partes estipularam no contrato de mútuo qual seria a consequência de falta de pagamento das prestações que se fossem vencendo, sendo certo que a norma inserida naquele preceito legal, tendo natureza supletiva [4], pode ser afastada pela vontade das partes.

Consta da cláusula 6.ª do documento complementar ao contrato de mútuo aqui em causa:

Fica ainda estabelecido que, nos casos de incumprimento pelos devedores e ou garantes de qualquer obrigação emergente deste contrato e/ou empréstimo garantido ... o Banco 1..., S.A. poderá ... considerar automaticamente vencidas e imediatamente exigíveis as dívidas dos devedores resultantes do mesmo contrato, dando o mesmo por resolvido.

O antecessor da Exequente ao propor a anterior ação executiva em 17.12.2010, exigindo o pagamento da totalidade das prestações acordadas e ainda não pagas, alegando o incumprimento da mutuária e dos aqui Executados exerceu a faculdade de exigir, antecipadamente, o cumprimento de todas as prestações, constituindo, com essa interpelação, os devedores em mora, relativamente às prestações vincendas.

As alíneas d) e e) do artigo 310.º, do Código Civil, prevêem um prazo de prescrição de cinco anos para os créditos relativos a juros convencionais ou legais e para as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros, a par de outras prestações de cariz periódico, terminando a alínea g) do mesmo artigo por abranger quaisquer outras prestações renováveis.

Com estas prescrições de médio prazo pretendeu-se evitar que, devido à inércia do credor, se dilate excessivamente o valor de uma dívida que, devido às prestações acumuladas, possa atingir uma dimensão tal que provoque a insolvência do devedor [5], nelas se tendo incluído, expressamente (alínea e) do artigo 310.º), as prestações relativas à amortização periódica de capital quando combinada com os juros que remuneram o adiantamento desse capital, abrangidos pela previsão da alínea anterior.

Como denunciam os trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, da autoria de VAZ SERRA, adotou-se a solução na altura consagrada no B.G.B. [6]: com os juros devem prescrever as quotas de amortização, se deverem ser pagas como adjunção aos juros (Código alemão § 197), pois, se assim não fosse, poderia dar-se uma acumulação de quotas ruinosa para o devedor, apesar de, com a estipulação de quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso do capital e tratá-lo como juros [7].

Outra não podia ser a solução, uma vez que seria, no mínimo, estranho, o concurso de duas prescrições com prazos distintos sobre as mesmas prestações compósitas (uma quanto aos juros e outra quanto à amortização do capital).

Anteriormente, no domínio do Código de Seabra, apesar de se prever um prazo de prescrição de cinco anos para as prestações vencidas que se costumam pagar em certos e determinados tempos (artigo 543.º), defendia-se que tal previsão, por ser excecional, deveria ser interpretada de forma restritiva, não abrangendo as anuidades de capital e juros convencionadas para a lenta amortização duma dívida [8].

As prescrições de curto prazo das alíneas d) e e), do art.º 310º, do Código Civil, abrangem, assim, inequivocamente, as hipóteses de obrigações periódicas, pagáveis em prestações sucessivas, englobando o pagamento de juros convencionais e a amortização de capital mutuado, com origem na celebração de um contrato de mútuo [9], como sucede com o crédito exequendo.

Com a citação para a execução instaurada em 17.12.2010, foi, por um lado, interrompido aquele prazo de prescrição relativamente às prestações não pagas que já se haviam vencido (artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil), assim como se venceram as prestações até aí vincendas, pelas razões acima expostas, o que ocorreu, pelo menos, 5 dias depois da propositura da execução (artigo 323.º, n.º 2, do Código Civil).

Tendo esta execução sido declarada extinta, por deserção da instância, em 04.02.2020, por falta de promoção dos termos da execução por parte do Exequente, o novo prazo de prescrição, em resultado da interrupção verificada, relativamente às prestações vencidas, assim como o prazo de prescrição das prestações que se venceram com a citação, interrompido à nascença, iniciaram a sua contagem com a citação dos Executados para aquela execução, atento o disposto no artigo 327.º, n.º 2, do Código Civil, ou seja no mesmo dia em que ocorreu a interrupção do prazo original.

Conforme se decidiu no AUJ n.º 6/2022, de 30.06.2022 [10], no caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do art.º 310.º al. e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação e ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do art.º 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas, pelo que a duração dos prazos de prescrição quer das prestações vencidas, quer das vincendas, no presente caso, é de 5 anos, nos termos do artigo 310.º, e), do Código Civil,

A contagem deste prazo, como vimos, iniciou-se com o ato de citação dos Executados Recorrentes na execução instaurada em 17.12.2010, devendo, por isso, considerar-se que esse momento ocorreu, o mais tardar, cinco dias depois da propositura da ação, ou seja em 22.10.2010, o que significa que, quando a Exequente propôs a presente execução em 28.01.20121 e os Executados Recorrentes foram para ela citados, já há muito se encontrava prescrito todo o direito de crédito exequendo relativamente a eles.

Verificando-se a prescrição do crédito exequendo deve ser concedido provimento aos recursos interpostos pelos Executados EE e os Executados CC e DD, ficando prejudicada a apreciação do recurso interposto pela Exequente, uma vez que o mesmo pressupunha a não prescrição do crédito exequendo. E, em consequência, deve o acórdão recorrido ser revogado repondo-se a sentença proferida na 1.ª instância.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento aos recursos interpostos pelos Executados CC e DD e pelo Executado EE, julgando-se prejudicada a apreciação do recurso interposto pela Exequente, e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, repondo-se integralmente a sentença proferida na 1.ª instância.

                                               *

As custas dos embargos deduzidos pelos Recorrentes e dos recursos são da responsabilidade da Exequente.

                                               *

Notifique

                                               *

Lisboa, 30 de novembro de 2022

João Cura Mariano (Relator)

Fernando Baptista

Ana Paula Lobo

______

[1] O artigo 742.º do Código de Seabra, nas dívidas a pagar em prestações, conferia o direito ao credor de exigir o pagamento de todas, caso faltasse o pagamento de alguma, regra que, com algumas atenuantes, foi mantida por VAZ SERRA, no Anteprojeto do Código Civil de 1966. Na 1.ª Revisão Ministerial, essas atenuantes desapareceram, optando-se por uma redação muito próxima do anterior artigo 742.º do Código de Seabra. Foi na 2.ª Revisão Ministerial que se adotou a expressão vencimento de todas, a qual deve ser “traduzida” por exigibilidade de todas.
[2] PESSOA JORGE, Direito das Obrigações, AAFDL, 1975-1976, pág. 316-318,  VASCO LOBO XAVIER, Venda a prestações: algumas notas sobre os artigos 934.º e 935.º do Código Civil, R.D.E.S., Ano XXI, n.º 1-2-3-4, pág. 201, nota 4, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, 2013, pág. 53-54, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2009, pág. 1017-1018, RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, 1990, pág. 325, nota 1, BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 85, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. IX,  3ª ed., Almedina, 2019, pág. 96-97, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, 12.ª ed., vol. II, Almedina, 2019, pág. 166, NUNO PINTO OLIVEIRA, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, pág. 391-392, ANA AFONSO, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 1071, PEDRO ROMANO MARTINEZ, Código Civil Comentado, vol. II, Almedina, 2021, pág. 986, JANUÁRIO GOMES, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, 2000, pág. 955, BRUNO FERREIRA, Contratos de Crédito Bancário e Exigibilidade Antecipada, Almedina, 2011, pág. 187-188, MIGUEL BRITO BASTOS, O Mútuo Bancário. Ensaio Sobre a Estrutura Sinalagmática do Contrato de Mútuo, Coimbra Editora, 2015, pág. 206-210, nota 432,  e, a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.05.2005, Proc. 282/05 (Rel. Moitinho de Almeida); de 17.01.2006, Proc. n.º 3869/05 (Rel. Azevedo Ramos); de 25.05.2017, Proc. n.º 1244/15 (Rel. Olindo Geraldes); de 12.07.2018, Proc. n.º 10180/15 (Rel. Hélder Almeida), de 11.07.2019, Proc. n.º 6496/16 (Rel. Ilídio Sacarrão Martins); de 14.01.2021, Proc. n.º 6238/16 (Rel. Tibério Gomes).
  INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7.ª ed. Coimbra Editora, 1997, pág. 270 e seg., entende, contudo, que esta interpretação não é possível, face à atual redação da lei.
[3] Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2009, de 25 de março de 2009, publicado no Diário da República n.º 86, Série I, de 05.05.2009.
  MARIA DE LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS, Sobre o Conceito e a Extensão do Sinalagma, “Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão”, Almedina, 2008, pág. 388, e MIGUEL BRITO BASTOS, ob. cit., pág. 210-212, defendem, no entanto, que o disposto no artigo 781.º do Código Civil não é aplicável a estas situação em que as prestações são compósitas, estando misturadas prestações fracionadas com prestações reiteradas, apenas sendo possível interromper o vencimento periódico das prestações, face a um incumprimento, através da resolução do contrato de mútuo prevista no artigo 1150.º do Código Civil.
[4] ALMEIDA COSTA, ob. cit., pág. 1018, nota 1, PEDRO ROMANO MARTINEZ, ob. cit., pág. 986, ANA AFONSO, ob. cit., pág. 1071, e ANA PRATA, Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2017, pág. 980.
[5] VAZ SERRA, Prescrição Extintiva e Caducidade, B.M.J. n.º 106, pág. 119, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, pág. 280, FILIPA MORAIS ANTUNES, Prescrição e Caducidade, Anotação aos artigos 296.º a 333.º do Código Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2014, pág. 124-125, JÚLIO GOMES, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 755, e RITA CANAS DA SILVA, Código Civil Anotado, Almedina, 2017, pág. 382.
[6] Dispunha, na altura, o § 197 do B.G.B. que os créditos relativos a estas prestações compósitas prescreviam em quatro anos. Todas as prescrições de médio prazo vieram, contudo, a desaparecer, com a reformulação do regime da prescrição operada pela Reforma do B.G.B., ocorrida em 2001/2002.
[7] Est. cit., pág. 113-114.
[8] CUNHA GONÇALVES, Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil Português, vol. III, Coimbra Editora, 1930, pág. 749.
[9] FILIPA MORAIS ANTUNES, ob. cit., pág. 128-129, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. V, 3.ª ed., Almedina, 2018, pág. 214, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.03.2014, Proc. n.º 189/12 (Rel. Silva Gonçalves); de 29.09.2016, Proc. n.º 201/13 (Rel. Lopes do Rego); de 06.06.2019, Proc. n.º 902/14 (Rel. Abrantes Geraldes); de 12.11.2020, Proc. n.º 7214/18 (Rel. Maria do Rosário Morgado); e de 14.01.2021, Proc. n.º 6238/16 (Rel. Tibério Nunes da Silva). 
[10] Publicado no Diário da República n.º 184/2022, 1.ª Série, de 22.09.2022