Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
238/21.7GATVD.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DECISÃO QUE PÕE TERMO AO PROCESSO
CONCLUSÕES
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONSTITUCIONALIDADE
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I. O legislador na reforma de 2007 alterou no artigo 400º, nº 1, al. c), do CPP, a expressão “que não ponham termo à causa” por “que não conheçam, a final, do objeto do processo”, ganhando a irrecorribilidade nesse fundamento, a objetividade de apontar para o conhecimento do objeto fixado pela acusação ou pela pronúncia com decisão condenatória ou absolutória.

II. Anteriormente eram suscetíveis de recurso todas as decisões que pusessem termo à causa, sendo que atualmente só serão suscetíveis de recurso as decisões que põem termo à causa desde que se pronunciem e conheçam do seu mérito. Com o que após a reforma de 2007 o preceito em causa deixou de enunciar como critério de insindicabilidade dos acórdãos das relações o que assentava no respetivo efeito (não pôr termo ao processo), substituindo-o por um critério objetivo que assenta no respetivo conteúdo decisório (não conhecer, a final, do objeto do processo).

III. E passou a entender-se que a decisão que conhece, a final, do objeto do processo é a que, apreciando uma acusação ou uma pronúncia, profere uma condenação ou uma absolvição. Ou seja, do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso.

IV. Neste caso o arguido, tendo apresentado recurso na Relação com conclusões, foi convidado pelo Relator a apresentar conclusões concisas, com o que o arguido veio a apresentar conclusões reduzidas a menos artigos. Todavia, por decisão sumária foram ainda consideradas não concisas e rejeitado o recurso. O arguido recorreu para a conferência que manteve a rejeição do recurso. Desse acórdão interpôs o presente recurso para o STJ.

V. Visa que o STJ reverta a rejeição em admissão do recurso e revogue o acórdão recorrido para que, na sequência, a Relação conheça do mérito.

VI. No caso estamos perante um acórdão proferido a final, uma vez que termina o processo. Todavia, com tal decisão o Tribunal da Relação de Lisboa não conheceu do objeto do processo, ou seja, não decidiu do mérito da causa (condenação ou absolvição).

Donde, prima facie, o recurso seria de rejeitar.

VII. Porém, se é certo que a decisão não conhece, a final do objeto do processo, não menos certo é que, sendo processual na sua natureza, materialmente se lhe equivale ao tornar transitada e definitiva a condenação. Com o que tão gravosa para o arguido se configura como a antecedente sentença condenatória.

VIII. Por isso, em interpretação conforme à constituição, nomeadamente à garantia de recurso que do artigo 32º, nº 1, da CRP se extrai, não pode, em terreno de tão grande subjetividade, acabar por se eliminar o grau de recurso do arguido.

IX. Assim, na senda quer da jurisprudência constitucional (ac. do TC 107/2012) quer tendo em conta o acórdão do STJ de 09/12/2021, face à intensidade lesiva/ofensiva da decisão recorrida materializada na operatividade do trânsito em julgado da decisão condenatória proferida em primeira instância, se concluirá que “é tão gravosa a decisão condenatória como aquela que não admite o recurso dela interposto”, acabando por afrontar-se de modo desproporcional o direito de defesa do arguido, eliminando o seu direito a um grau de recurso – artº 32º, nº 1 da CRP.

X. Como o TC assinalou, também aqui de um juízo de falta de concisão das conclusões extraiu-se uma consequência drástica: a rejeição de um recurso de uma decisão condenatória, ou seja, a obstaculização de um direito fundamental em matéria criminal, como é o direito de defesa, na sua dimensão de direito ao recurso, tanto mais drástica quanto se mostra apreensível o efeito pretendido, in minime no que toca à visada diminuição da concreta pena aplicada e o decidido se move em área de enorme subjetividade no que toca ao juízo de concisão.

XI. Assim, se decide conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido revogando o acórdão recorrido e determinando que seja substituído por outro que aprecie o recurso interposto por este arguido no que tange ao objeto extraído da apreensão possível das suas conclusões

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção, criminal, do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

I.1. O arguido AA foi condenado pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ... – Juiz 5 (ref.ª citius .......56, de 17 de janeiro de 2023):

- Pela prática de um crime de violação p. e p. pelo art. 164.º, n.º 2, al. b), do CP, na pena de 7 anos de prisão;

- No pagamento à assistente BB da indemnização de 30.000 €, acrescida de juros contados desde a data do acórdão condenatório;

- No pagamento à demandante SGHL – Sociedade Gestora do Hospital de Loures, S.A., da indemnização de 720,61 €, acrescida de juros contados desde a data da sua notificação para contestar o pedido de indemnização civil.

E, a seguir, recorreu da condenação para o Tribunal da Relação de Lisboa, formulando 108 conclusões que ocupavam 36 das 60 páginas do recurso (ref.ª citius ......18, de 17 de fevereiro de 2023).

O Sr. juiz desembargador relator, depois de constatar que as conclusões do recurso constituíam «uma repetição das alegações», convidou o recorrente para «querendo, no prazo legal e sob pena de rejeição», apresentar conclusões (ref.ª citius ......53 de 4 de maio de 2023).

No seguimento da notificação efetuada para o efeito, o arguido apresentou requerimento com 84 conclusões (ref.ª citius ....01 de 16 de maio de 2023).

Em decisão sumária, o Sr. desembargador relator rejeitou liminarmente o recurso por entender que as novas conclusões eram estruturalmente idênticas às originais, «[t]irando alguns cortes de frases que nem sequer ajudam a sintetizar os mesmos pontos de texto em que se verificam», mantendo o «discurso e exposição idênticos em substância ao da motivação» (ref.ª citius ......69 de 8 de junho de 2023).

O recorrente reclamou da decisão sumária para a conferência (ref.ª citius ....44 de 26 de junho de 2023).

Reunido em conferência, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão a manter a decisão sumária (ref.ª citius ......77 de 5 de setembro).

Inconformado, o arguido recorreu deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça solicitando a sua revogação com a consequente devolução dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para que aprecie o mérito do recurso do acórdão do Juízo Central Criminal de ... (ref.ª citius ....08 de 5 de outubro de 2023).

Depois de um despacho de não admissão (ref.ª citius ......29 de 12 de outubro), que foi objeto de reclamação (ref.ª citius ....80 de 22 de outubro de 2023), o Sr. juiz desembargador relator, reparando a primeira decisão, admitiu o recurso (ref.ª citius ......17 de 27 de outubro de 2023). Assim: “Posto que a decisão visada é apta a colocar termo à causa, deveria ter sido admitido o correspondente recurso. Ressalvando o lapso, considera-se o recurso para o STJ admitido, com o efeito e regime pretendido1.

I.2. Interposição de recurso para o STJ

O recurso para o STJ foi admitido por despacho de 27/10/2023.

Depois de um despacho de não admissão (ref.ª citius ......29 de 12 de outubro), que foi objeto de reclamação (ref.ª citius ....80 de 22 de outubro de 2023), o Sr. juiz desembargador relator, reparando a primeira decisão, admitiu o recurso (ref.ª citius ......17 de 27 de outubro de 2023).

I.3. Recurso e pretensão do recorrente

Apresentou as seguintes conclusões:

I. Recorre o Arguido, para o Supremo Tribunal de Justiça, por estar em causa matéria de direito cujo conhecimento é da competência do Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com o disposto no art. 434º, do CPP,

II. Por estar em causa o Dever de fundamentação e decisão

III. Por estarem em causa a arguição de nulidades do acórdão recorrido que devem ser conhecidas em recurso (art. 379º, n.º 2, do CPP).

IV. Por estar em causa o direito efectivo ao recurso, ao abrigo do artº 13º da Convenção Europeia dos Direitos dos Homem.

V. O Artigo 13 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem estabelece que qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos nesta Convenção tenham sido violados, tem direito à concessão de um recurso efetivo perante um órgão nacional, ainda que a violação tenha sido cometida por pessoas no exercício de suas funções oficiais

VI. A Convenção Europeia é direito positivo português ao abrigo do artº 8º da nossa Lei Fundamental.

VII. O artº 32º da CRP viola o artº 13º da CEDH quando entendido que da reclamação não existe o direito a recurso pelo que é uma interpretação inconstitucional

VIII. Ora, as razões da discordância do Recorrente com o referido Acórdão são, no seu entender, que: o TRL não interpretou, com moderação o ónus de apresentar conclusões sintéticas, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º do CPC; não obstante o Recorrente ter sido convidado a apresentar novas conclusões – o que fez, ocorre no seu entender falta de verificação dos pressupostos de que determine a rejeição do recurso, uma vez que das conclusões resulta claramente perceptível o objecto do recurso; as conclusões das alegações apresentadas pelo Recorrente revelam o cumprimento, pelo menos, razoável do ónus complexo que decorre dos artigos 639.º e 640.º do CPC.

IX. A jurisprudência do STJ tem entendido que a reprodução, nas conclusões da alegação, do que constava na motivação não legitima a rejeição imediata do recurso, com fundamento na falta de conclusões, ao abrigo do artigo 641.º, n.º 2, al. b), do CPC (cfr. Acórdãos do STJ de 05/07/2018, processo n.º 131/16.5T8MAIA. P1.S1, Acórdãos do STJ de 13/07/2017, processo n.º 6322/11, de 6/04/2017, processo n.º 297/13 e 13/10/2016, processo n.º 5048/14).

X. O Recorrente, ainda que, se admita, de forma “imperfeita”, não deixou de estabelecer, em termos formais, uma diferenciação entre a motivação do recurso e as respectivas conclusões.

XI. A alegada falta de cumprimento das exigências de sintetização traduz-se numa situação de apresentação de alegações com o segmento conclusivo complexo ou prolixo, nos termos do disposto no artigo 639.º, n.º 3, do CPC, o qual, em termos formais não é gerador da atribuição da consequência mais grave de falta de segmento conclusivo (artigo 641.º, n.º 2, alínea b)), pelo que a Relação não poderia extrair, o efeito cominatório de rejeição do recurso de apelação com fundamento na falta de conclusões.

XII. A lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão. Fundamentos traduzidos na enunciação de verdadeiras questões de direito, cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida. As conclusões - em geral – exercem ainda a importante função de delimitação do objecto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 635º, nº 3, do CPC.

XIII. Todavia, parece unanime, que, com inusitada frequência se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações referidas, tendo sido expressamente adoptada uma solução paliativa que possibilita a sua superação através de despacho de convite ao aperfeiçoamento (art. 639º, nº 3, do CPC).

XIV. Porém, o facto de ter sido assinalado no despacho de convite determinadas irregularidades não implica que deva retirar invariavelmente do incumprimento do despacho a rejeição liminar do recurso (cfr. o já citado Ac. do STJ, de 7-10-14, em www.dgsi.pt).

XV. O despacho de convite não estará coberto pela força do caso julgado, nem se esgotam com a sua prolação os poderes do Juiz na apreciação da situação e dos efeitos que devem ser determinados. Pelo contrário, o Relator deveria reanalisar a situação e verificar se efectivamente a concreta situação suporta as consequências que estão genericamente previstas no nº 3 do art. 639º do CPC.

XVI. Salvo o devido respeito por opinião contrária, no caso concreto, como o revela a análise das concretas conclusões respeitantes à matéria de direito, de modo algum até se justificava a emissão de um despacho de convite ao aperfeiçoamento, pela simples constatação que era mais que perceptível a questão fulcral que levou à apresentação do Recurso por parte do arguido.

XVII. De qualquer modo, in casu, para além de não ser legítima a extracção de efeitos automáticos derivados de conclusões extensas quer nas primeiras conclusões apresentadas, quer apos quando do despacho de convite ao aperfeiçoamento, a rejeição total do recurso de apelação revela-se manifestamente desproporcionada em face do teor das conclusões que foram apresentadas e do contexto processual em que estão integradas.

XVIII. Por conseguinte, além de no nosso modesto entendimento não se justificar o despacho genérico de convite ao aperfeiçoamento, não se verificavam as condições para rejeitar tanto a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto como da matéria de direito.

XIX. Com efeito, o facto de o Recorrente ter reagido contra o despacho de convite ao aperfeiçoamento apresentando novas conclusões, que a o TRL (Decisão Singular) considerou igualmente extensas, não eliminava a possibilidade e a necessidade de a Relação atentar de novo no teor das alegações e das conclusões inicialmente apresentadas;

XX. As conclusões das alegações revelam o cumprimento razoável do ónus complexo que decorre dos arts. 639º e 640º do CPC;

XXI. As conclusões nem sofriam do vício da prolixidade que justificasse a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento, nem implicavam um efeito tão gravoso como aquele que foi extraído pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

XXII. Não será despiciendo dizer que a indicação tem apenas um efeito indicativo, uma vez que é o Tribunal que formula, segundo juízo próprio, qual o sentido da sua interpretação.

XXIII. Como sucedeu na douta decisão proferida no processo n.º 18625/18.6T8PRT.P1.S1, 7.ª Secção, de 18 Fevereiro 2021, cujo relator é o Senhor Juiz Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, de onde se retira o seguinte excerto: “(…) sendo possível a triagem do que verdadeiramente interessa, (…) devendo a Relação colocar os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspectos de natureza formal.”

XXIV. Assim, e ao contrário do decidido na Decisão Singular reclamada, deveria ter sido apreciado o Recurso, já que, pese embora, mesmo após o aperfeiçoamento as conclusões ainda sejam extensas (passaram de CVIII para LXXXIV) e possam continuar a não delimitar de forma sintética, clara, simples e rigorosa o objeto do recurso, consubstanciando, na sua essência, uma narrativa sobre a sua versão dos factos certo é que, por via da rejeição do recurso, foi negado o acesso efetivo ao duplo grau de jurisdição, podendo este Alto Tribunal desconsiderar todas as conclusões que traduzam a sua versão dos factos e considerações opinativas que constituem, parte das Conclusões, e serem decididas pelos Venerandos Conselheiros quais as questões colocadas à apreciação do Tribunal ad quem, pronunciando-se sobre as mesmas.

XXV. Ao invés, a sanção ao Recorrente (rejeição recurso), cortando-lhe liminarmente o seu direito à reapreciação por um Tribunal Superior das questões jurídicas submetidas ao crivo da instância, afigura-se manifestamente desproporcional face à forma eventualmente deficitária com que apresentou as conclusões.

XXVI. Salvo o devido respeito por opinião contrária, das conclusões apresentadas retira-se claramente que o Recorrente pretende ver revogada a Decisão do Tribunal a quo que considerou preenchido o tipo legal do crime violação na forma consumada p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, porquanto entende que estará em causa o tipo legal de crime de violação, mas na forma tentada.

XXVII. Recorre ainda o arguido da medida da pena como aliás, igualmente se extrai das Conclusões.

XXVIII. A rejeição do recurso interposto pelo arguido, compromete, de sobremaneira, o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contende com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada, como direito fundamental no art. 20º da Constituição da República.

XXIX. Nomeadamente o efectivo direito a recurso ao menos uma única vez (art.º 32.º, n.º 1 da CRP), e por violação do princípio do Estado de Direito democrático (arts.º 2º e 3º da CRP), da tutela jurisdicional efectiva (art.º 20º, n.º 1 da CRP), do procedimento justo e equitativo (art.º 20.º, n.º 4 da CRP) e dos princípios da segurança e da confiança jurídicas.

XXX. Negando-se, sem fundamento legal, antes “depreciando a profissional forense, a reapreciar da matéria de facto, de acordo com a prova realmente produzida e concretamente indicada em sede de recurso, ou seja, em termos práticos, negando ao arguido o seu direito ao recurso em 2ª instância

Nestes termos e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências Venerandos Conselheiros se conclui, requerendo a V. Exas. se dignem revogar o acórdão recorrido, determinando-se a remessa dos autos à Relação para que seja apreciado o mérito do Recurso em ambas as vertentes da matéria de facto e da matéria de direito, seguindo-se os demais termos até final, assim fazendo V. Exas. A costumada JUSTIÇA”

I.4. Parecer do MP no Supremo

O Sr PGA junto deste STJ emitiu elaborado parecer no sentido da rejeição do recurso, ao abrigo dos arts. 400.º, n.º 1, al. c), 432.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.ºs 2 e 3, 417.º, n.º 6, al. b), e 420, n.º 1, al. b), todos do Código de Processo Penal.

Fundamentou a rejeição assim:

“O art. 399.º do Código de Processo Penal consagra o princípio geral segundo o qual é permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.

O art. 432.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal preceitua que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º.

O art. 400.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º.

«A decisão que conhece, a final, do objeto do processo é a que, apreciando uma acusação ou uma pronúncia, profere uma condenação ou uma absolvição» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de junho de 2021, relatado pela conselheira CONCEIÇÃO GOMES, processo 184/12.5TELSB-R.L1.S1, www.dgsi.pt).

Dito por outras palavras, conhecer do objeto do processo é «conhecer do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso. (…) as decisões colegiais da relação, em recurso, que, pondo, ou não, fim ao processo, fiquem aquém do conhecimento final do objecto da acusação e ou pronúncia, como acontecerá quando o Processo finda por razões meramente processuais», caem no âmbito da irrecorribilidade (conselheiro PEREIRA MADEIRA, Código de Processo Penal comentado, António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 4.ª edição revista, pág. 1240).

Conforme referido, o acórdão recorrido indeferiu a reclamação da decisão sumária do Sr. juiz desembargador relator que rejeitou o recurso do acórdão condenatório da 1.ª instância em razão da sua falta de conclusões.

Trata-se, inequivocamente, de um acórdão proferido «a final», ou seja, proferido após a realização do julgamento da 1.ª instância.

Todavia, com tal decisão o Tribunal da Relação de Lisboa não conheceu do objeto do processo, ou seja, não decidiu do mérito da causa.

Donde que, à vista dos citados arts. 400.º, n.º 1, al. c), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, o mesmo seja irrecorrível.

E não se diga que essa interpretação viola ou prejudica os direitos ao recurso (art. 32.º, n.º 1, da Constituição) e a um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4, da Constituição) porquanto o arguido-recorrente pôde reagir contra a decisão sumária de rejeição do recurso através da reclamação para a conferência (arts. 417.º, n.º 8, e 419.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal), procedimento que, coordenado com o prévio convite para apresentar as conclusões do recurso (arts. 414.º, n.º 2, e 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), permite salvaguardar plenamente aqueles direitos constitucionais.”

1.5. Foi cumprido o artigo 417, nº 2, do CPP e veio resposta. O Recorrente discordou da rejeição do recurso avançada pelo MP.

I.6. Foi aos vistos e decidiu-se em conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Decisão sumária e subsequente acórdão aqui recorrido

A decisão sumária reclamada tem a seguinte motivação:

“Convidado a apresentar conclusões, porquanto as não tinha o seu recurso, antes uma repetição da motivação no mesmo expressa, o recorrente veio atravessar peça processual que estruturalmente é idêntica à original, particularmente no que ao título “conclusões” diz respeito.

Tirando alguns cortes de frases que sequer ajudam a sintetizar os mesmos pontos de texto em que se verificam, mantém-se discurso e exposição idênticos em substância ao da motivação.

Não estão, de todo, presentes as proposições sintéticas, claras e rigorosas que objectivam o recurso de forma simples e precisa, em relação às quais a motivação representa o desenvolvimento.

A falta de conclusões é motivo de rejeição do recurso, o que inelutavelmente se impõe neste momento.”

Na sequência da reclamação sobreveio o acórdão recorrido, de 05/09/2023, cujas partes pertinentes se transcrevem:

“O recorrente veio reclamar para a conferência da decisão sumária de rejeição do recurso por falta de conclusões, arguindo ainda a nulidade do acórdão (sic.)

(…)

Cumpre apreciar.


*


Nulidade do acórdão.

Nos autos, até à data e por este tribunal, não foi proferido acórdão algum, pelo que liminarmente improcede semelhante invocação (sobre a diferença entre decisões singulares e colegiais, despachos, sentenças e acórdãos será porventura elucidativo o texto do artº 97º do Código de Processo Penal).

Se porventura o recorrente se pretendia referir à decisão sumária da qual reclamou, dir-se-á que por natureza e definição, aquela decisão, mormente a de rejeição do recurso, não se pronuncia sobre o objecto deste.

Nula (e inútil) seria sim a que se pronunciasse sobre tais aspectos e na correspondente medida.

Improcede, pois, a arguição.


*


No que ao mais respeita, é o próprio recorrente quem reconhece que “mesmo após o aperfeiçoamento as conclusões ainda sejam extensas (passaram de CVIII para LXXXIV) e possam continuar a não delimitar de forma sintética, clara, simples e rigorosa o objeto do recurso, consubstanciando, na sua essência, uma narrativa sobre a sua versão dos factos (...)” para de seguida rematar com a sua pretensão: “podendo este (...) Tribunal desconsiderar todas as conclusões que traduzam a sua versão dos factos e considerações opinativas que constituem, parte das Conclusões, e serem decididas pelos Venerandos Juízes quais as questões colocadas à apreciação do Tribunal ad quem (...)”

Ou seja, já nem sequer é suficiente e eficaz o convite ao aperfeiçoamento (para além do mais, figura processual de duvidosa constitucionalidade, posto que se traduz em ajuda do tribunal – por definição imparcial – a um dos sujeitos processuais interessados, quando o mesmo até se encontra obrigatoriamente representado por profissional forense).

A seguir aquela proposição, o tribunal de recurso é que deverá formular as conclusões, dispensando o recorrente desse transtorno.

Conhece-se e respeita-se a jurisprudência que é invocada, mas não se segue, já que a condescendência para com a displicência apenas tem como efeito e como se vê, o aumento desta.

O que de resto já era visível no recurso, quando é o próprio recorrente a confessadamente se dispensar de indicar “as passagens da gravação da prova produzida em audiência que considerou relevantes (...)”

O pretexto, esse, é o usual e de resto também agora invocado “por se tratar de um crime muito grave e uma condenação muito severa” (...) ali “se requer a audição integral da gravação das declarações da Assistente, das testemunhas CC, DD e EE (...) para detecção e sedimentação do erro de julgamento e que no entendimento do arguido é notório.

Traduzindo:

Ali, o tribunal de recurso que procurasse no total das provas produzidas aquelas que servem os interesses do recorrente, pouco importando o que a lei estabelece (artº 412º CPP);

Aqui, mais uma vez “contra legem”, que faça as conclusões.

Tudo sob pena de invocações várias: “contrariamente ao Tribunal ad quem, que escusou-se de conhecer da impugnação da matéria de facto, suscitada pelo ora Arguido/Recorrente” (...) “para além de ser indicada toda a prova testemunhal e documental analisada, a nosso ver, erradamente, pelo Tribunal a quo (...) o ora Reclamante pugna pela apreciação do Recurso, pois só assim será respeitado o princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, e em conjugação com o reforço do princípio do inquisitório (art.º 652º n.º 1 alínea a) e art.º 7.,º ambos do CPC) e dos poderes de agilização, adequação formal (art.º 547.º do CPC) e gestão processual do julgador (art.º 6.º n.º 2 do CPC).”

Mas, como se vê, se alguém errou ou se escusou não foi seguramente nenhum tribunal...

A lei processual, por compreensíveis e justificados motivos de eficácia, celeridade e utilidade, impõe obrigações aos recorrentes, sendo o recurso facultativo, como é sabido.

Não as seguindo quem deve, impõe-se a rejeição a quem tem o dever de zelar pela eficiência da justiça penal, implicando esta (nos 1 e 2 do artº 202º da Constituição da República Portuguesa) “... reprimir a violação da legalidade democrática...” o que não se compadece com assumir ónus alheios em pura perda de tempo e “... administrar a justiça em nome do povo” algo bem diverso dos profissionais forenses, quaisquer que sejam.

Consequentemente, improcede a reclamação


*

* *



Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação”

II.2. Segundas conclusões ainda consideradas não concisas

As conclusões, em segunda versão, apresentadas após o convite e que ainda foram consideradas não concisas pela decisão sumária e pelo subsequente acórdão, aqui recorrido, são as seguintes:

“I. Não colocando, o Arguido, em crise alguns dos elementos considerados provados pela douto Tribunal a quo, entende, no entanto, o recorrente que não deveriam ter sido dados como provados os que constam dos pontos 16, 17, 25, 28, 29, 30, 31, 32, 39 na parte “com o propósito, concretizado, de introduzir partes do seu corpo na vagina e no ânus de BB contra a vontade desta, o que conseguiu, da forma descrita, encostando-lhe uma lâmina de navalha ao pescoço e golpeando-a, colocando-a de forma a nada fazer para que aquele seu intento não se viesse a concretizar” e na parte “por forma a levar a cabo o crime de violação que pretendia cometer, o que conseguiu.”, porquanto imputa factos ao arguido para os quais não foi feita prova bastante, senão vejamos:

II. Para condenar o arguido pela prática em autoria material de um crime de violação, p. e p., pelo artigo 164.º, n.º 2, al. b), do Código Penal - o Tribunal a quo fundamentou a sua convicção com especial destaque para o teor das declarações para memória futura prestadas pela ofendida, que segundo o tribunal a quo nas declarações que prestou para memória futura, terá feito um relato circunstanciado, isento e coerente do modo como ocorreram os factos constantes da acusação e em termos coincidentes com aquela peça processual.

III. Salvo o devido respeito, que é muito, o depoimento da Assistente, a quem o Tribunal a quo atribui toda a credibilidade, não poderia ser bastante para condenar o arguido da forma como o condenou, pelo menos no que diz respeito à consumação da alegada violação imputada ao arguido pela Assistente, mas sim a uma tentativa de violação.

IV. Aliás é próprio tribunal que não confere toda a credibilidade às declarações da Ofendida ao não considerar provado que o arguido se tenha colocado sobre a Ofendida.

V. O Recorrente, pese embora não tenha indicado as passagens da gravação da prova produzida em audiência que considerou relevantes, fará alusão às próprias contradições que se extraem do texto do acórdão no que se refere aos depoimentos de testemunhas, pelo que, por se tratar de um crime muito grave e uma condenação muito severa, se requer a audição integral da gravação das declarações da Assistente, das testemunhas CC, DD e EE, nos termos do disposto no art. 412º, nº. 6, do CPP, para detecção e sedimentação do erro de julgamento e que no entendimento do arguido é notório.

VI. Resulta, da análise crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento que se procedeu a uma errónea análise da respectiva prova.

VII. Salvo o devido respeito, dúvidas subsistem que o crime de violação tenha sido efectivamente consumado, até porque prova pericial alguma foi feita de que o arguido tenha consumado a introdução dos seus dedos na vagina ou no anus da Assistente, podendo antes estar em causa um crime de coacção sexual na forma consumada ou um crime de violação - mas na forma tentada e consequente moldura penal diferente...

VIII. Apela-se para a discrepância de depoimentos das testemunhas EE que referiu que a Ofendida tinha as calças “para baixo mais ou menos ao nível da coxa”, enquanto as testemunhas CC e DD referem que a Ofendida tinha as calças “caídas “abaixo da anca, ao passo que nos factos provados (28 e 29), é dado como provado que o arguido puxou-lhe as calças para baixo, o que fez até à zona das coxas.

IX. Pode parecer um preciosismo mas a verdade é que, em temos práticos, há diferenças entre ter as calças abaixo da anca ou ao nível das coxas, sendo que para que o arguido pudesse colocar os dedos na vagina da Ofendida seria necessário que as calças estivessem ao nível das coxas e não na zona da anca.

X. Não se pretende escamotear toda uma situação traumática para a Ofendida,pois até a tentativa de violação é censurável, e obviamente punível, contudo e salvo melhor entendimento não foi feita prova de que o arguido tivesse efectivamente introduzido os seus dedos na vagina ou anus da Ofendida.

XI. As declarações da Assistente nesta parte não podem merecer toda a credibilidade para condenar o arguido pelo crime de violação na forma consumada.

XII. O arguido não prestou declarações e o Tribunal a quo concluiu então demonstrou “total indiferença perante a conduta assumida e ausência de manifestação de arrependimento revelador de uma intensa falta interiorização do desvalor da respectiva conduta por parte do arguido, de que é reflexo o facto do mesmo nunca ter tentado por qualquer meio reparar o mal praticado,

Mantendo-se durante toda a audiência de julgamento com comportamento distante e indiferente.”

XIII. Ora, é ao Ministério Publico que cumpre fazer prova, cabal, da culpa dos arguidos, não se impondo aos Arguidos que demonstrem a sua inocência, quando a presunção da mesma é uma garantia constitucional (artigo 32º, nº 2 da CRP).

XIV. Por outro lado o Tribunal a quo, atendeu aos depoimentos de outras agentes imobiliárias para fundamentar uma alegada propensão do arguido para actos semelhantes, podendo ler-se “Aliás a testemunha FF referiu que recebeu um telefonema do arguido a pretender ir visitar uma moradia em venda que se situava num local isolado e ao fim do dia. Devido à localização isolada da moradia e a exigência da visita ao final do dia, solicitou a um colega de profissão que a acompanhasse”

XV. Ora com estranheza o Tribunal dá relevância a este aspecto, mas pode ler-se também no douto acórdão que “ No dia 17 de Agosto de 2021, efectuaram a visita. O arguido viu a moradia(…) Achou o comportamento do arguido estranho, tanto mais que não aparentava ter capacidade económica para a aquisição (…).Quando saíram, o arguido estava à espera no exterior da propriedade e depois segui-os até um posto de combustível nas proximidades. “

XVI. Não obstante ser estranho que o arguido ter manifestado vontade em ver o imóvel, não se pode dai inferir que o arguido andasse “à procura de uma oportunidade para concretizar uma violação”, a não ser que ao seguir a testemunha FF e o seu colega de profissão pretendesse violar os dois… já que seguiu a viatura onde ambos seguiam.

XVII. Ademais o Tribunal a quo não deu qualquer relevância ao depoimento das testemunhas de defesa, designadamente à companheira do arguido GG, que referiu que o “casal” pretendia adquirir um imóvel.

XVIII. Sendo certo que o pai do arguido no seu depoimento, também referiu que sempre incentivou o filho a comprar casa, porem o Tribunal a quo relevância alguma deu a estes depoimentos.

XIX. O Acórdão Recorrido enferma, entre outros vícios, de Erro de Julgamento da Matéria de Facto.

XX. Com efeito, o Acórdão Recorrido padece da maleita, entenda-se Erro de Julgamento, por ter cometido, salvo melhor opinião, uma manifesta desacertada decisão da matéria de facto que logrou dar como assente, note-se provada.

XXI. A Prova produzida em Julgamento, por ser parca e apenas com base nas declarações da Assistente/Demandante, não podia permitir extrair as ilações acerca da consumação da violação, apenas podendo imputar-se ao arguido a pratica deste ilícito na forma tentada, ou na pior das hipóteses o crime de coacção sexual, porquanto como supra se disse, à excepção das declarações da Assistente prova alguma foi feita no sentido de o arguido ter efectivamente introduzido os dedos no corpo da Ofendida.

XXII. Tanto mais que as declarações das testemunhas DD e CC apontam para que a Assistente tivesse surgido com as calças de forma que não era possível o arguido ter introduzido os dedos.

XXIII. Por outro lado o Tribunal também não deu qualquer relevância ao facto de o arguido nunca ter abandonado o local.

XXIV. Note-se que o arguido nunca tentou sair do local e quando chegaram as autoridades ele mantinha-se ali – horas depois do sucedido, tendo sido o próprio a indicar onde se encontrava o canivete…

XXV. Alem disso os factos dados como provados nos pontos 16, 17 e 25 encontram se em contradição, porquanto se dá como provado que a Ofendida caiu no interior do quarto, já que se pode ler no ponto 16 que ” Após ali se dirigir e quando se preparava para sair estando de costas para o arguido, a ofendida foi agarrada pelos cabelos, o que provocou a sua queda no chão.”, e que depois caíram ao chão “lado a lado” tendo a Ofendido tentado levantar-se;

XXVI. Porem no ponto 25 é dado como provado que “o arguido agarrou a ofendida pelos cabelos e puxou-a para o interior do quarto”

XXVII. Ora, há uma clara discrepância, pois parece que tudo se terá passado no interior do quarto, não se entendendo como é que no ponto 25 é dado como provado que o arguido a puxou para o interior do quarto, quando estavam no interior do quarto em questão, existindo uma clara duplicação dos factos dados como provados para aumentar a carga criminosa do arguido…

XXVIII. Isto é, a apreciação probatória da prova produzida em Tribunal, neste particular, exigia que o Tribunal a quo tivesse dado como Não Provados os factos descritos nos pontos 25, 29, 30 e 31 (dos factos provados) como aliás sucedeu e bem como facto descrito em 1 e 2 dos factos não provados.

XXIX. Salvo o devido respeito, que é muito, pelo entendimento das Meritíssimas Juízes que compõem o colectivo do Tribunal a quo e pelas vitimas de violação, não pode deixar de se dizer que a alegada consumação da violação através dos dedos do arguido, deixa sérias duvidas, que deverão ser valoradas a favor do arguido, sendo que na perícia nada é referido quanto à introdução de partes do corpo do arguido no anus ou vagina da Assistente.

XXX. E como se disse não é o facto de o arguido não ter prestado declarações que demonstra não existir arrependimento por ter sido violento e tentado violar a Assistente, porquanto o arguido pode ter vergonha do que fez e não conseguir falar no sucedido, até por “respeito” à vitima e à sua ainda companheira.

XXXI. A condenação do arguido por violação na forma consumada (pela introdução de dedos no corpo da Assistente) é, salvo o devido respeito, consequência de uma construção, aparentemente, lógica dedutiva desfasada quanto à factualidade apurada, desproporcional e desadequada ao caso concreto assente apenas nas declarações da Assistente e com contradições quer da mesma, quer das testemunhas já supra indicadas.

XXXII. O tribunal a quo decidiu tendo como base factos, que para além de não totalmente provados, pois que resultam apenas com base nas declarações da Assistente, não foram escalpelizados de molde a servir de suporte probatório à Douta decisão.

XXXIII. É, assim, evidente quer o erro de julgamento quer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

XXXIV. Alem de que estamos, sem dúvida, perante a violação do principio "in dúbio pro reo", segundo o qual o juiz deve decidir "sobre toda a matéria que não o seja afectada pela dúvida" de forma que quanto aos factos duvidosos, o principio da livre convicção não fornece, não pode fornecer qualquer critério decisório, Cristina Líbano Monteiro, "perigosidade de inimputáveis …"

XXXV. Decorre do Acórdão Recorrido que o Tribunal a quo, na apreciação da Prova que lhe foi submetida julgar, lançou mão do Principio da Livre Apreciação da Prova plasmado no Artigo 127.º do Código de Processo Penal, como é normal e se encontra legalmente previsto.

XXXVI. Para fundamentar a condenação do arguido e aplicação da pena o Tribunal a quo generaliza os crimes de violação, veja-se primeiro quando menciona “(…)No que se refere à colocação da vítima em estado de inconsciência ou na impossibilidade de resistir, não se vislumbra que este modo de actuação tenha autonomia, em relação à violência, a não ser, para distinguir as situações de coacção sexual e/ou de violação das tipificadas no art. 165º do CP, quanto ao crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, consoante, logo no primeiro acto de execução a intenção do agente é constranger a vítima à prático do acto sexual penalmente relevante, ou se o propósito criminoso de prática abusiva de acto sexual só se forma no espírito do autor do facto, depois de a vítima ter ficado inconsciente ou incapaz de resistir. (…) “

XXXVII. E remete a Sua convicção de forma generalizada para alegados factos que não fazem parte da acusação, como pode ler-se “Aliás se ponderarmos nos comportamentos anteriores do arguido em que tentou outras vezes usar o mesmo tipo de estratagema para atrair as potenciais vitimas, no caso agentes imobiliárias a locais onde pudesse estar a sós com aquelas, elucidam bem já,qual era o escopo e intenção do arguido, o qual veio a concretizar quando as circunstâncias lhe foram favoráveis no encontro que teve com a ofendida, já que esta se encontrava sozinha numa casa não habitada.”

XXXVIII. Ora, na acusação nada consta acerca de quaisquer tentativas do arguido em praticar o ilícito de que vem acusado, mas alem disso a verdade é que de acordo com a prova produzida, nenhuma testemunha relatou qualquer tentativa do arguido sequer se aproximar das mesmas, e estiveram sozinhas com o arguido nas casas que o mesmo visitou.

XXXIX. Pelo que, salvo o devido respeito, que é muito, mal andou o Tribunal a quo ao fundamentar a sua convicção da forma como o fez.

XL. Ademais e como se disse, alem das declarações da vitima, nada existe nos autos que corrobore que efectivamente houve introdução dos dedos do arguido no corpo da Assistente.

XLI. O que, como se disse, não deveria ser valorado em desfavor do arguido, o que significa que duvidas restam se o crime em apreço se subsume ao de violação mas na forma tentada, ou em ultima instancia de coacção sexual.

XLII. Em suma, se os factos dados como provados são insuficientes para levar à decisão de direito que levou, a verdade é que, mesmo quanto aos parcos factos que o Tribunal a quo considerou provados, sem fundamentação bastante, como se demonstrou, existe erro notório na apreciação da prova, pois que do texto da decisão recorrida conjugado com as regras da experiencia comum, resulta com toda a evidencia a conclusão contraria à que se chegou, enfermando a decisão do vício previsto no art.° 410 n° 2 do CPP,

XLIII. O Recorrente considera, pois, que o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos ínsitos nos Pontos 25 da matéria de facto considerada provada, entendendo que não houve prova bastante para dar como provado este facto.

XLIV. Pelo que carece o douto Acórdão de reparo, no sentido de considerar

NÃO PROVADO:

o 25. Nesse momento, o arguido agarrou a ofendida pelos cabelos e puxou-a para o interior do quarto,

XLV. Mais carece o douto Acórdão de reparo, no sentido de se proceder à alteração dos pontos 28, 29, 30 e 31, passando a ter a redacção que se sugere como

PROVADO:

- 28. Aproveitando-se da fragilidade da ofendida, com a mão que tinha livre, o arguido tentou puxar-lhe as calças para baixo,

- 29. O que fez até à zona abaixo das ancas,

- 30. E, tentou colocar-lhe a mão no interior das cuecas e introduzir-lhe os dedos na vagina

- 31. E, no ânus,

- 39. O arguido actuou de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito, de introduzir partes do seu corpo na vagina e no ânus de BB contra a vontade desta.

- 40. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de ao atingir o corpo da ofendida BB e ao golpeá-la nas partes do corpo em que o fez, causar-lhe dores como causou e, dessa forma, conseguir imobiliza-la, por forma a levar a cabo o crime que pretendia cometer.

XLVI. Como se sabe na apreciação da prova, vale a regra geral consagrada no art. 127º do C.P.P., de acordo com a qual a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre (mas não arbitrária, e necessariamente fundamentada) convicção do tribunal, dentro do respeito pelas quais o juiz que em primeira instância julga, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados.

XLVII. Esta regra comporta porem algumas excepções (cfr. arts. 84º, 169º, 163º e 344º do C.P.P.), integradas no princípio da prova legal ou tarifada, e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente ao princípio da legalidade da prova (cfr. arts. 32º nº 8 da C.R.P., 125º e 126º do C.P.P.) e ao princípio "in dubio pro reo".

XLVIII. Certo é que se impunha, em vista do exame crítico das Provas a que se refere a última parte do N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal, que se explicitasse de modo concreto e objectivo, designadamente, as razões que levaram o Tribunal a quo a não existir prova pericial bastante que determine que houve introdução dos dedos no corpo da Ofendida e o porquê, de dar mais credito às declarações da Assistente e do Militar da GNR, em detrimento das declarações de DD e CC.

XLIX. O Acórdão Recorrido viola o que se encontra preceituado no N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal razão pela qual, atento o que dispõe a alínea a) do N.º 1 do Artigo 379.º do Código de Processo Penal, o mesmo está ferido de Nulidade que ora se invoca e argui.

L. Tendo em conta tudo quanto se expôs, carecem os autos de reparo e Decisão diversa da ora recorrida, fazendo a analise critica do depoimento da Assistente e das declarações das declarações de CC, DD e EE, sem juízos de prognose desfavorável do arguido.

LI. Não se podendo olvidar que o princípio “in dubio pro reo” é um princípio de prova que significa que perante factos incertos a dúvida favorece o arguido, sendo que o episodio da violação é duvidoso e por se tratar de um crime tão grave carecia de prova contundente e irrefutável.

SEM PRESCINDIR – DA MEDIDA DA PENA

LII. Não sendo o ora Recorrente apenas condenado pelo crime de violação na forma tentada ou em ultima análise no crime de coacção sexual, o que não se concebe, por mera cautela de patrocínio, cumpre salientar desde logo que a decisão recorrida não refere expressamente os fundamentos da medida da pena, designadamente intensidade do dolo na culpa do agente, em violação do art.º 71.º, n.º 3, n. 1 e n.º 2, alíneas a) e b).

LIII. Conforme consta do Douto Acórdão Recorrido, o Recorrente não tem antecedentes criminais;

LIV. Encontra-se socialmente integrado, com trabalho fixo e garante da subsistência do seu agregado família.

LV. Ou seja, impunha-se dar como provado que o arguido se encontra socialmente inserido, não se conhecendo nenhuns factos ilícitos na sua vida.

LVI. Feito este enquadramento fáctico resulta que a Decisão recorrida violou os princípios básicos de determinação da medida da pena - adequação e proporcionalidade – sem atender aos critérios previstos nos artigos 2.º, 27.º, 71.º, 40.º e 41.º do Código Penal.

LVII. Sempre se dirá que, caso se considere que estão reunidos os elementos típicos que integram o crime de que o Recorrente vinha acusado - que não estão – bastante e adequado contudo seria que o Tribunal “a quo” condenasse o ora Recorrente, se não na forma tentada, pelo menos, no limite mais próximo do mínimo previsto para o crime que lhe foi imputado.

LVIII. O arguido recorrente foi condenado pela prática, em autoria material na forma consumada de um crime de violação, pp. pelo artº. 164º, n.º 2, al. b) do Código Penal, da pena de 7 (sete) anos de prisão.

LIX. A medida que veio a ser encontrada de sete anos, pelo Douto Tribunal a quo, ainda que, subsumida ao critério do artigo 70.º - critério da escolha da pena e artigo 71.º - Determinação da medida da pena, ambos do Código Penal, vedou desde logo ao julgador aferir da possibilidade da aplicação do Instituto da suspensão da pena de prisão efectiva na sua execução, o que in casu e pelas razões acima aduzidas ficou excluída, pelo facto do arguido vir a ser condenado por pena de prisão efectiva superior a cinco anos.

LX. Para estabelecer o equilíbrio entre as circunstâncias agravantes e atenuantes, designadamente, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo, as condições do arguido, pessoais, sociais, profissionais e económicas, as exigências de prevenção geral e especial face à moldura penal aplicável, poderia admitir-se no contexto do artigo 50.º do Código Penal a eventual suspensão da sua execução, bastaria para tanto, graduar a pena de prisão em cinco anos de prisão, tendo como moldura penal abstracta pelo crime pelo qual o arguido veio a ser condenado, vir a ser fixada mais próximo no primeiro terço da moldura penal – entre os 4 anos e 6 meses e os 5 anos, tendo em conta que as condições pessoais do arguido, designadamente a idade, e o facto de ser primário, condicionando essa pena a um regime de prova “apertado”.

LXI. Entende o arguido que as suas condições pessoais e socioeconómicas não foram devidamente valoradas pelo Tribunal a quo, na medida da pena, em total violação do disposto no artigo 71.º, n.º 2, alíneas d) e e) do Código Penal;

LXII. Apesar do texto do Acórdão se fazer a menção à inexistência de qualquer condenação do arguido, sendo primário, pela severidade da pena aplicada, resulta claramente que o Tribunal a quo não teve em devida consideração a não existência de antecedentes criminais do ora Recorrente.

LXIII. Nem valorizou o facto de o arguido nunca ter beneficiado de qualquer suspensão, sendo este o primeiro contacto com a justiça a nível penal ou contra-ordenacional.

LXIV. O Tribunal a quo não ponderou a possibilidade de sujeição do Arguido a um regime de prova através de um plano de readaptação delineado pela DGRS.

LXV. Pese embora a natureza e a gravidade do crime cometido, mesmo na forma tentada, atento o fim da pena e as necessidades de prevenção geral e especial, entende-se que no caso sub judice, a prisão efetiva não dará certamente resposta à prevenção de um comportamento futuro e idêntico, por parte do arguido, muito pelo contrário, poderá produzir efeitos perversos, de dimensões imprevisíveis, até pelos efeitos que estes crimes têm dentro dos estabelecimentos prisionais.

LXVI. Pelo que, a pena aplicada de 7 anos de prisão efectiva padece de severidade;

LXVII. Devendo tal pena ser substituída por pena de prisão a fixar-se o máximo em 5 anos, atento todo o supra exposto, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova;

LXVIII. Em conformidade, discorda o arguido que a aplicação da pena de sete anos de prisão efectiva possa exercer uma função de ressocialização;

LXIX. Sendo consabido que a convivência e integração no meio prisional acarreta prejuízos para os condenados, os quais vão muito além da segregação social.

LXX. Entende, assim, o ora Recorrente que, a censura do facto e a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução, mediante a sujeição a regime de prova é suficiente para o afastar da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime.

LXXI. Tendo em conta o que se encontra articuladamente disposto no n.º 2 do Artigo 374.º e na alínea a) do N.º 1 do Artigo 379.º do Código de Processo Penal, o Acórdão Recorrido está ferido de Nulidade que V/Ex.ªs sabiamente decretarão.

LXXII. O Acórdão Recorrido padece de Erro de Julgamento da Matéria de Facto, porquanto, através do Julgamento da matéria que lhe foi dada a apreciar, deu por provados factos que se apresentam manifestamente inconciliáveis quer com a Prova produzida em Audiência de Julgamento,

LXXIII. Em rigor, o que se teve como Provado está em manifesta desconformidade com o que realmente se provou e não provou em Audiência de Julgamento, desde logo, porque as conclusões vertidas no Acórdão Recorrido são inaceitáveis ao considerar-se que a Assistente terá sido violada através da introdução dos dedos do arguido na vagina e no anus, apenas com base no que a mesma relatou.

LXXIV. No que concerne ao Pedido de Indemnização Civil, entende o Recorrente que a condenação a pagar a quantia de 30.000,00€ à Assistente, se mostra desproporcional tendo em conta as condições económicas e financeiras do arguido.

LXXV. Deste modo incumbirá a V/Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, realizar uma reapreciação dos elementos probatórios ora invocados pelo Recorrente e que colocam em crise os factos dados por provados nos referidos pontos do Acórdão Recorrido procedendo-se a uma nova fundamentação dos mesmos que, ante o exposto, será, necessariamente, substitutiva da realizada pelo Tribunal a quo em termos de considerar, no que a si respeita, tal factualidade como Não Provada

LXXVI. A condenação do Recorrente pela prática do Crime de violação, p. e p. pelo artigos 164.°, n.º 2, alínea b), do C.P. , viola o Principio da Presunção da Inocência - consagrado no N.º 2 do Artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa, N.º 2 do Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e N.º 1 do Artigo 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – e o Principio do In Dubio Pro Reo.

LXXVII. Violou o Tribunal a quo o art.º 127º do CPP, o art.º 32º, n.º2 da CRP, impugnação que se faz, nos termos do art.º 412º, n.º3, al a) e b) do CPP

LXXVIII. O Tribunal a quo interpretou as normas jurídicas em causa considerando que se encontravam preenchidos os elementos típicos de cada uma das normas em causa, o que não acontece.

LXXIX. Não se mostrando, pois, preenchido o tipo legal do crime violação na forma consumada p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, o Tribunal “a quo” violou o mencionado artigo, devendo no entender do ora Recorrente o Tribunal a quo ter interpretado e aplicado esta norma no sentido de não se mostrar preenchidos quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo do crime em apreço, estando em causa o crime na forma tentada, ou em ultima analise o crime de Coacção Sexual.

LXXX. Assim, o douto acórdão recorrido encontra-se afectado dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e enferma ainda de erro de julgamento e do vicio de erro notório na apreciação da prova produzida, nos termos do disposto no artº 410º nº 2 als. a) e c) do CPP.

LXXXI. O Tribunal a quo violou os princípios da presunção de inocência, in dúbio pro reo, do contraditório, do direito a um processo equitativo, ou seja foram violados os artigos 18° e 32° nº1 e nº5 da CRP.

LXXXII. Ao não referir expressamente os fundamentos da medida da pena, designadamente a intensidade do Dolo e culpa do agente, o Douto Acórdão violou os artigo 2.º, 27.º, 40.º, 41.º e 71.º, n.º 3, n. 1 e n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal.

LXXXIII. Bem como violou os princípios político-criminais da necessidade e proporcionalidade das penas, que importa nulidade da decisão por força do disposto no n.º 2 do art.º 374º do CPP.

LXXXIV. Em suma, o Douto Acórdão recorrido violou, designadamente, e para além dos princípios gerais de direito processual penal, e dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas, o disposto nos artigos 127º e 410º nº als. a) e c) do CPP, o artigo 164º do C.P., bem como os artigos 18º, nº 2 e 3, 20º nº 1 e 4, 32°, n.°1, 5, 8 e 9 da Constituição da República, e o principio do in dubio pro reo, (art. 32º nº 2 CRP) não tendo o Tribunal feito a mais correta interpretação e aplicação dos mesmos ao caso concreto, devendo tais normativos legais ter sido interpretados e aplicados no sentido do supra exposto.

Nestes termos, e no mais de direito, com que V. Exas. doutamente suprirão as insuficiências do patrocínio, deve ser revogada a douta Decisão recorrida.

FAZENDO-SE A ACOSTUMADA JUSTIÇA!”

II.2. Apreciação

II.2.1. Como anotámos, o Ministério Público levanta a questão prévia de inadmissibilidade do recurso.

Vejamos:

Apesar de ter sido admitido o recurso, a decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior (nº 3 do artº 414º do CPP)

O art. 399.º do Código de Processo Penal consagra o princípio geral segundo o qual é permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.

Somente é admissível recurso para o Supremo Tribunal de justiça, nos casos contemplados no artigo 432º e, sem prejuízo do artº 433º, do CPP.
No que aqui importa, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça, “De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º” (artº 432º nº 1 al. b) do CPP)

O artº 432º nº 1 al. d) do CPP, refere que: Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: “De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores”, que, não sendo decisões interlocutórias, são decisões finais,
Porém, resulta do artº 400º, nº 1, al. c), do CPP, que não é admissível recurso: “De acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo (…),”

A decisão que conhece, a final, do objeto do processo é a que, apreciando uma acusação ou uma pronúncia, profere uma condenação ou uma absolvição. Ou seja, do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso. (cfr ac. do STJ de 2/06/2021, proc. nº 184/12.5TELSB-R.L1.S1, Conceição Gomes).

E como se afirma no ac. do STJ de 10-09-2014, processo nº 223/10.4SMPRT.P1.S1, Sousa Fonte:

«Nos termos do artº 432º, nº 1, alínea b), do CPP, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artº 400º que, por sua vez, na alínea c) do seu nº 1, na versão saída da Reforma de 2007, deixada incólume, neste particular, pelas Reformas e alterações posteriormente introduzidas no mesmo Código pelo DL 34/2008, de 26 de Fevereiro e pelas Leis 52/2008, de 28 de Agosto, 115/2009, de 12 de Outubro, 26/2010, de 30 de Agosto e 20/2013, de 21/2, decreta a irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.

A Lei 48/2007, de 29 de agosto ampliou, é verdade, as situações de irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações. Como, por exemplo, diz o Acórdão de 31.01.2012, Pº nº 171/05.0TADPL.L2.S1, desta Secção, «o traço distintivo entre a redação atual e a anterior à entrada em vigor da Lei 48/07, de 29-08, reside na circunstância de anteriormente serem suscetíveis de recurso todas as decisões que pusessem termo à causa, sendo que atualmente só são suscetíveis de recurso as decisões que põem termo à causa quando se pronunciem e conheçam do seu mérito». Ou, como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional de 06.03.2012, Pº nº 859/2011, DR. 2ª Série, de 11.04.2012, «… após a reforma de 2007 [o preceito em causa] deixou de enunciar como critério de insindicabilidade dos acórdãos das relações o que assentava no respetivo efeito (não pôr termo ao processo), substituindo-o por um critério objetivo que assenta no respetivo conteúdo decisório (não conhecer, a final, do objeto do processo)».

E “III.É irrecorrível, conforme estabelece a al. c) do n.º 1 do art. 400.º, por referência à al. b) do art. 432.º, ambos do CPP, a decisão da relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objecto do processo.

IV - Para efeito da recorribilidade, mostra-se indiferente a forma como o recurso foi processado e julgado pela relação, isto é, se o recurso foi processado autonomamente ou se a decisão se encontrar inserida em impugnação da decisão final. De acordo com o entendimento já expresso por este STJ, quando o acórdão recorrido não é um acórdão condenatório, nem absolutório, nem conheceu, a final, do objecto do processo, nem lhe pôs termo, não admite recurso para o STJ.” (in ac. do STJ de 15/02/2017, 1748/14.8TXLSB-G.L1, Pires da Graça. Também do mesmo relator v. ac. do STJ de 19/06/2019, proc. n.º 881/16.6JAPRT-A.P1.S1).

Como se elucida in “Código de Processo Penal Comentado”, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 4ª edição revista, p. 1240, nota 4., a propósito da mencionada alínea c) do nº 1 do artº 400º.: ”[…] A formulação do preceito da alínea c), do nº 1, foi introduzida pela Lei nº 48/2007, que substituiu a antecedente fórmula –«[decisões] que não ponham termo à causa», e que, por aparente equivocidade, esteve na origem de divergentes decisões judiciais.”

(…)

«Conhecer do objecto do processo”, que, em processo penal, é balizado pela acusação e ou pronúncia e a pertinente defesa, é afinal, conhecer do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso.

Assim, cairão no âmbito da irrecorribilidade, as decisões colegiais da relação, em recurso, que, pondo, ou não, fim ao processo, fiquem aquém do conhecimento final do objecto da acusação e ou pronúncia, como acontecerá quando o processo finda por razões meramente processuais.

A razão de ser do dispositivo prende-se, seguramente, com a necessidade de preservar o tribunal superior da intervenção em questões menores, como serão, em regra, as questões processuais interlocutórias que o legislador quer ver decididas definitivamente, quando forem objecto de recurso intercalar autónomo.”

E ensina Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, II, 5ª edição actualizada, UCE, em nota ao artigo 400º,: “A lei 59/98, de 25/08, introduziu um novo fundamento de irrecorribilidade: os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que não pusessem termo à causa. A Lei 48/2007, de 29/08, ampliou este fundamento. Não admitem recurso os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que não conhecem, a final, do objeto do processo, isto é, que não julgam o mérito da causa (artigos 97, nº 1, al. a), por remissão do artigo 419, nº 3, al. b)). A intenção da Lei nº 48/2007 foi a de alargar a irrecorribilidade a todos os acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que ponham termo à causa mas, não conheçam do objeto do processo, o que o artigo 400º, nº 1, al. c), na redação de 1998, não incluía.”

II.2.2. In casu, conforme referido, o acórdão recorrido indeferiu a reclamação da decisão sumária do Sr. juiz desembargador relator que rejeitou o recurso do acórdão condenatório da 1.ª instância em razão da sua falta de conclusões concisas.

Trata-se, inequivocamente, de um acórdão proferido “a final”, uma vez que termina o processo.

Todavia, com tal decisão o Tribunal da Relação de Lisboa não conheceu do objeto do processo, ou seja, não decidiu do mérito da causa.

Estamos aqui, pois, perante uma decisão de natureza processual e não uma decisão que tenha conhecido do objeto do processo, apesar de ter posto termo ao processo.

Mas não se olvide que o legislador na reforma de 2007 alterou a expressão “que não ponham termo à causa” por “que não conheçam, a final, do objeto do processo”, ganhando a irrecorribilidade nesse fundamento, a objetividade de apontar para o conhecimento do objeto fixado pela acusação ou pela pronúncia com decisão condenatória ou absolutória.

Com o que, logo se concluirá, que quando o acórdão recorrido não é um acórdão condenatório, nem absolutório, nem conheceu, a final, do objecto do processo, não admite recurso para o STJ. Casos, por exemplo, idênticos àquele em que o STJ no seu ac. de 06/07/2022, proc. nº 5897/16.0T9LSB-B.L1.S1, Helena Fazenda, rejeitou recurso por não se apresentar firmado por advogado/a, ou em que o recurso não é admitido por ter sido interposto para além do prazo legal, ou com total falta de conclusões, depois de convite para a sua apresentação, ou com total omissão na motivação das especificações sustentadoras do recurso em matéria de facto (aqui sem convite sob pena de se estar a conceder novo prazo para recorrer).

Assim, prima facie o recurso seria para rejeitar.

II.2.3. Todavia, também aqui, como enunciado no ac. do TC n º 107/2012, a questão essencial que importa, assim, apreciar, à luz dos parâmetro de constitucionalidade invocados, primacialmente o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, é a de saber se o direito ao recurso, na sua expressão garantística máxima, confere ao arguido o direito de ver reapreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não a decisão que o condena, no caso na pena de sete (7) anos de prisão, mas aquela que não admite, por falta de concisão, o recurso dela interposto, fazendo, desse modo, operar o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida em primeira instância.

Acrescenta o citado acórdão que o Tribunal Constitucional “não deixou de julgar inconstitucional a interpretação que, fundada na norma legal ora em apreço, na redação anterior à entrada em vigor da Reforma de 2007, considerou ser irrecorrível decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, pois que aqui, ao contrário do que se entendeu ocorrer nos recursos decididos pelos citados arestos, o direito de defesa do arguido, face à intensidade lesiva de uma tal decisão inovatória, que implicava a ampliação dos prazos de duração máxima da prisão preventiva, impunha, como condição da sua efetivação no processo, a possibilidade de contra ela reagir através de um grau de recurso (Acórdão n.º 686/04).”

E logo a seguir realçava:

“Do mesmo modo, apreciando interpretação normativa do mesmo artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na sua anterior redação, que distinguia, para efeitos de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, as decisões das relações que, por razões de natureza adjetiva, punham termo ao processo daquelas que operavam tal efeito mas pela apreciação do mérito do recurso, considerando apenas estas últimas sindicáveis, considerou o Tribunal Constitucional tratar-se de uma «distinção arbitrária ou injustificada quanto ao exercício do direito ao recurso que o n.º 1 do artigo 32.º abre ao arguido», pois que, «pondo a decisão questionada (…) realmente termo ao processo, é arbitrário ou injustificado, na perspetiva das garantias de defesa do arguido, distinguir entre pôr termo à causa por razões de direito penal substantivo e pôr termo à causa por razões de direito processual penal», para o efeito de sujeitar esta última categoria de decisões ao regime de insindicabilidade consagrado na citada norma legal (Acórdão n.º 597/00).

Os citados exemplos jurisprudenciais demonstram, pese embora a diversidade normativa dos recursos neles apreciados e o diferente sentido do juízo final de constitucionalidade neles formulado, que a razão da conformidade ou desconformidade constitucional das opções normativas então em apreciação, embora emergente da análise do conteúdo decisório do ato judicial de que se pretendia recorrer, assentava fundamentalmente na onerosidade dos efeitos dele decorrentes, na concreta dinâmica processual em que foram praticados, apenas se admitindo como constitucionalmente legítimas soluções de irrecorribilidade que não afetassem o núcleo essencial do direito de defesa do arguido (designadamente, por estarem em causa meras questões incidentais ou interlocutórias cuja decisão por uma única instância não comprometia a possibilidade de reagir, a final, pela via do recurso, contra a decisão de mérito) e postergando, por ilegítimas, todas aquelas que, por inviabilizarem a reapreciação de decisões de expressiva intensidade lesiva, atingiam a essência de um tal direito fundamental de defesa.”

É no conforto de tal jurisprudência que se impõe analisar o caso sub judicio. Rectius, é de acordo com a interpretação da norma conforme a Constituição que se há de concluir pela admissibilidade do recurso, ou não.

Claro que as exigências e pressupostos processuais terão de ser cumpridos e o respetivo incumprimento levará à rejeição dos recursos. Sem dúvida. Mas na onerosidade dos efeitos decorrentes da decisão judicial recorrida, na concreta dinâmica processual em que foram praticados, não é comparável, por um lado, a objetividade da situação de rejeição por falta de constituição de advogado, ou da situação em que o recurso não é admitido por ter sido interposto para além do prazo legal, ou da situação de continuar a ser apresentado com total falta de conclusões, depois de convite para a sua apresentação, ou da situação de vir com total omissão na motivação das especificações sustentadoras do recurso em matéria de facto (aqui sem convite sob pena de se estar a conceder novo prazo para recorrer), com, por outro lado, da subjetividade do julgamento da falta de concisão das declarações (onde aquilo que é sintético e conciso para um pode não o ser para outro).

Destarte, no sustento do constitucional aresto citado, também aqui ponderando as particularidades processualmente relevantes do presente recurso, a concreta dinâmica processual em que os actos foram praticados e a intensidade lesiva/ofensiva da decisão de rejeição do recurso com o fundamento de falta de concisão, intensidade materializada na operatividade do trânsito em julgado da decisão condenatória proferida em primeira instância, se concluirá que “é tão gravosa a decisão condenatória como aquela que não admite o recurso dela interposto.”

E tanto mais é de ponderar quanto, mesmo admitindo não serem exemplo de síntese, de brevidade e de conclusão as proposições apresentadas, se percebe o efeito pretendido, in minime no que toca à redução da pena.

“Ora, o Tribunal Constitucional, no já citado Acórdão n.º 597/00, embora não tenha perspetivado o objeto do recurso nos precisos termos ora equacionados, julgou efetivamente inconstitucional a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na anterior redação, quando interpretada no sentido de serem insuscetíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que versem sobre questões de direito processual penal.

Nesse recurso, tal como no presente, o que se discutia era precisamente interpretação normativa que, tendo por fonte norma que (apenas) não admitia recurso para o Supremo dos acórdãos, em recurso, das relações que não pusessem termo ao processo, considerava serem (também) irrecorríveis os acórdãos das relações que, por razões de natureza processual, põem termo ao processo, sendo praticamente idêntico ao dos presentes autos o contexto processual em que foi acolhida uma tal interpretação da lei.

E para o juízo então formulado quanto ao caráter «arbitrário» e «injustificado» dessa interpretação, na perspetiva das garantias de defesa do arguido, não pôde ter deixado de concorrer a perceção de que o efeito preclusivo de um acórdão da relação que, por razões de natureza processual, põe termo ao processo (aí, como aqui, o acórdão da relação rejeitou, por razões de forma, o recurso interposto da decisão de primeira instância que condenou o arguido por crime punível com pena superior a oito anos) não é equiparável, em termos de gravidade decisória, ao que decorre de um acórdão que não conhece do objeto do processo mas não lhe põe termo.

No primeiro caso, encerra-se a discussão quanto ao mérito da condenação, pois que da decisão da relação que rejeita o recurso inevitavelmente decorre o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida pela primeira instância; no segundo, apenas transita a decisão quanto à questão adjetiva, de natureza interlocutória ou incidental, nela resolvida, mantendo-se aberta a possibilidade de discussão quanto à justiça material da condenação pela primeira instância.

Ora, fazendo apelo à apreciação conciliatória dos valores antinómicos do processo penal, que a Constituição impõe, não pode admitir-se, em nome de um processo penal célere e eficaz, a insindicabilidade da decisão da relação que rejeita, por intempestivo, sem contraditório, o recurso interposto de decisão da primeira instância que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a 8 anos de prisão.

Os efeitos altamente gravosos de uma eventual decisão errada ou ilegal, quanto a tal matéria, devem ser prevenidos pela garantia, nesse caso, de um grau de recurso, sendo certo que é precisamente em razão da gravidade de uma decisão condenatória da relação que aplica ao arguido pena de prisão em medida igual ou superior a 8 anos de prisão que a lei lhe confere o direito de dela recorrer até ao Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo-lhe, em tais casos, um triplo grau de jurisdição (artigo 400.º, n.º 1, alínea f), a contrario, do CPP).

O direito de defesa do arguido impõe, pois, que, pelo menos nos casos em que o Supremo teria competência, a final, para conhecer do mérito do recurso, se reconheça ao arguido o direito de ver por esta instância reapreciada a decisão da relação que, sem prévio contraditório, rejeitou, por intempestivo, o recurso interposto da decisão condenatória da primeira instância que foi por esta última admitido.

É que à gravidade da decisão acresce a circunstância de ao arguido não ter sido previamente facultada a possibilidade de expor as suas razões de defesa perante a instância decisória (a relação).

Assim, retomando a segunda variável de análise acima enunciada, o único modo de garantir ao arguido o efetivo exercício do seu direito fundamental de defesa é permitir que este possa sindicar perante o tribunal superior (o Supremo) a bondade de tão gravosa decisão de forma, expondo no respetivo recurso as razões de defesa que antes não teve a oportunidade de invocar.

Por tais razões, justifica-se a formulação de um juízo de inconstitucionalidade que, embora recaindo sobre a interpretação normativa sindicada, restrinja a sua amplitude, pois que, se não merece censura constitucional a interpretação que vede a reapreciação pela mais alta instância ordinária de recurso de todo e qualquer acórdão da relação que não admita, por intempestivo, recurso para si interposto, é já de admitir a desconformidade com a Lei Fundamental quando a decisão da relação que, com esse fundamento de natureza processual, rejeita o recurso interposto de sentença que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos, operando o respetivo trânsito, sem antes lhe dar a possibilidade de se pronunciar sobre essa questão prévia.

Se é constitucionalmente exigível que os autores de crimes sejam julgados e punidos, com celeridade e eficácia, pela sua prática, não é aceitável, também na perspetiva constitucional, que isso se consiga com um intolerável sacrifício do direito de defesa do arguido.

É o que sucederia, pelas enunciadas razões, com a adoção do entendimento normativo ora em apreço, pelo que cumpre julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º1, da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de Acórdão da Relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido na 1ª instância, de decisão que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos de prisão.”

E decidiu o acórdão do TC “b) julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º1, da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de Acórdão da Relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido na 1ª instância, de decisão que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos de prisão;”2

II.2.4. Claro que a situação sub judicio não é exactamente a mesma. Mas pese embora essa falta de identidade total certo é que na similaridade dos casos os princípios e as regras constitucionais chamadas à colação para o caso do acórdão terão necessariamente de proceder também aqui.

Foi, aliás, em tal inequívoca conformidade constitucional que o acórdão do STJ de 09/12/2021, proc. nº 125/13.2TELSB.L1.S1, Sénio Alves, decidiu pela admissão do recurso num caso apetrechado dos seguintes contornos processuais: após condenação na 1ª instância na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, o arguido recorreu, sem conclusões, para a Relação, onde o relator logo lhe determinou para, “apresentar conclusões (concisas) (…) sob pena de rejeição do recurso nos termos dos art.s 417º, nº 3 e 420º, nº 1, al. c), ambos do CPP”; veio o arguido a apresentá-las que, consideradas não concisas, levaram a prolação de acórdão de rejeição do recurso; o arguido recorreu para o STJ desse acórdão; o STJ admitiu o recurso e julgou-o procedente.

Fundamentou o STJ3:

“Ora, como se vê, a rejeição do recurso do recorrente BB é justificada apenas com o facto de estarem “longe de ser sucintas”, assim entendendo o tribunal recorrido que o recorrente não deu cumprimento ao convite que lhe foi formulado.

Porém, não é inteiramente assim.

É verdade que as conclusões oferecidas pelo recorrente, em cumprimento do convite que lhe foi feito pelo Exmº Juiz Desembargador relator, estão longe de primar pela concisão.

E a verdade é que, nos termos do disposto no artº 412º, nº 1 do CPP, a motivação “termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do arguido”.

Ora, como ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 351, “as conclusões devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de decisão”.

E, bem vistas as coisas, não se pode dizer – ainda que com algum esforço e boa vontade – que as conclusões oferecidas pelo recorrente sejam um exemplo de concisão ou de capacidade de síntese.

Mas também é verdade que, como bem afirma a Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, “o recorrente BB não se terá mostrado totalmente indiferente ao convite que lhe foi dirigido, para ser conciso nas conclusões, tendo em conta, designadamente, o número de páginas das conclusões, num total de 57, e a complexidade da matéria espelhada no número de páginas das alegações que apresentou, num total de 1108 páginas”.

O recorrente BB, é bom recordá-lo, foi condenado pela prática de um crime de branqueamento de capitais p. e p. pelo art. 368.º-A do Cod. Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. No recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de ..., pretende ver reapreciados os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, enunciando as provas que, do seu ponto de vista, imporiam uma decisão diversa da recorrida, questionando a medida da pena que lhe foi aplicada, e pugnando pela sua absolvição.

E, como bem salienta a Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, “no caso, o juízo de falta de concisão determinou a rejeição de um recurso, de uma decisão condenatória, em pena de prisão de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, obstando-se à efectivação de um direito fundamental em matéria criminal, que é o direito de defesa, na sua dimensão de direito ao recurso”.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, inicialmente mais rígida na determinação das consequências de falta de concisão nas conclusões oferecidas, tem evoluído – mercê de alguma intervenção do Tribunal Constitucional, há que o reconhecer – nesta matéria.

E é assim que no Ac. STJ de 15/1/2004, Proc. nº 03P3472, relatado pelo Exmº Conselheiro Rodrigues da Costa [13], se pode ler:

«(…) é muito difícil a tradução para a prática do conceito de concisão, relevando de uma considerável margem de subjectividade. Por outro lado, a concisão enquanto objecto da praxis é muito relativa, dependendo das concretas circunstâncias do caso e dos objectivos que se pretende alcançar. A isto acresce o facto de a concisão ser tida, normalmente, como uma qualidade de determinada pessoa, o que põe em destaque aquele aspecto subjectivo que acentuámos. Há pessoas que são por natureza concisas e outras, prolixas, sem prejuízo de a concisão ser algo que se aprende e que se exercita. Isto significa também que é preciso ter uma certa margem de tolerância no julgamento do que é conciso ou do que o não é. Sobretudo quando desse julgamento possam derivar consequências que contendem com a esfera dos direitos da pessoa, nomeadamente dos direitos fundamentais.

É o caso dos autos. De um juízo de falta de concisão extraiu-se uma consequência drástica: a rejeição de um recurso de uma decisão condenatória, ou seja, a obstaculização de um direito fundamental em matéria criminal, como é o direito de defesa, na sua dimensão de direito ao recurso».

E nesse aresto se conclui que “a falta de concisão das conclusões não pode ser equiparada pura e simplesmente à falta de conclusões e, muito menos, à total falta de motivação, conduzindo eventualmente à rejeição do recurso, ainda que o recorrente (arguido) tenha sido convidado a sintetizar as referidas conclusões”, algo que, aliás, nem sequer sucedeu no caso em apreço, porquanto o recurso foi rejeitado sem que, previamente, o recorrente tenha sido convidado a aperfeiçoar as suas conclusões, tidas pelo tribunal recorrido como não “concisas” e “sucintas”.

E contra isto não vale dizer que o recorrente foi – perante a ausência de conclusões – convidado a apresentar conclusões concisas, sob pena de rejeição do recurso.

Que as conclusões, em abstracto, devem ser concisas, resulta do disposto na parte final do nº 1 do artº 412º do CPP. De onde resulta que notificar o recorrente com a expressa advertência de que as conclusões devem ser concisas, é algo irrelevante, porque redundante. Que o tribunal tenha feito, em concreto, um juízo de falta de concisão das conclusões oferecidas é algo que nunca foi transmitido ao recorrente, com o inerente convite a aperfeiçoá-las.

Ora, o Tribunal Constitucional declarou já, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência – Ac. TC nº 337/2000, de 27/6/2000, DR n.º 167/2000, Série I-A de 21/7/2000.

Consta de tal acórdão:

«O processo penal deve ser um processo eficaz, capaz de permitir ao Estado a punição dos criminosos. Mas deve ser também um processo justo, por forma a oferecer aos cidadãos garantias efectivas de defesa contra eventuais acusações injustas.

É, na verdade, preferível deixar de punir um criminoso do que correr o risco de punir um inocente.

Por isso, dispõe o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição que «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso».

Pois bem, como prescreve o artigo 412.º, n.º 1, transcrito atrás, o recorrente, na motivação do recurso, deve expor os fundamentos do mesmo, e, a terminar, deve formular conclusões, nas quais resuma as razões do seu pedido. É dizer que, ao formular as conclusões, deve fazê-lo com concisão.

Simplesmente - sublinhou-se no Acórdão n.º 193/97 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 36.º, p. 395), observação que o citado Acórdão n.º 43/99 repetiu -, «a concisão das conclusões, enquanto valor, não pode deixar de ser compreendida como uma forma de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso, e não como um entrave burocrático à realização da justiça. Assim, há que compreender o entendimento das conclusões, seguindo a definição de Alberto dos Reis, como 'as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação' (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra, 1981, p. 359)».

Por isso - observou-se no citado Acórdão n.º 417/99 -, «uma interpretação normativa dos preceitos respeitantes à motivação do recurso em processo penal e às respectivas conclusões (artigos 412.º e 420.º do Código de Processo Penal) que faça derivar da prolixidade ou da falta de concisão das conclusões um efeito cominatório, irremediavelmente preclusivo do recurso, sem dar ao recorrente a oportunidade de suprir a deficiência detectada, constitui uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça» (cf., identicamente, o mencionado Acórdão n.º 43/99).

Vale isto por dizer que tais normativos - ou seja: os normativos atinentes à motivação do recurso em processo penal e às respectivas conclusões (artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, citados) -, quando interpretados em termos de a falta de concisão das conclusões da motivação de recurso implicar a rejeição deste, sem mais (isto é, sem que o recorrente seja, previamente, convidado a suprir a deficiência detectada), limitam intoleravelmente o direito ao recurso e, nessa medida, impõem um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido.

Esses normativos, com essa interpretação, são, pois, inconstitucionais, por violarem o princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

Ex adverso, objectar-se-á que o convite ao aperfeiçoamento implica um alongamento do processo, e que isso se não compadece com as exigências de celeridade processual.

Sem razão, porém.

É certo que a justiça deve ser célere, pois, quando tardia, pode equivaler a falta de justiça. Simplesmente, a celeridade não significa que o processo se deva desenrolar a um ritmo trepidante. Tal sucedendo, corre-se mesmo o risco de se perder a serenidade - e, com ela, a ponderação -, essenciais a uma boa administração da justiça.

No processo penal, até por exigência constitucional, a celeridade tem sempre de compatibilizar-se com as garantias de defesa, pois - dispõe o n.º 2 do citado artigo 32.º - o arguido deve «ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».

Sendo isto assim, as exigências de celeridade processual não podem obstar a que o recorrente seja convidado a aperfeiçoar as conclusões da motivação de recurso que, acaso, sejam prolixas, padecendo de falta de concisão. Esse convite ao aperfeiçoamento impõem-no as exigências feitas pelo direito de defesa, com as quais - repete-se - a celeridade processual tem sempre de compatibilizar-se».

E não há motivo algum para, face à actual redacção dos preceitos em causa, entender de forma diversa.

Perante as conclusões oferecidas pelo recorrente BB, em resposta a convite que, para o efeito, lhe foi feito, o tribunal recorrido, uma de duas:

- ou entendia que, face à extensão e confusão das mesmas não lhe era possível identificar as questões a decidir, caso em que se impunha um convite ao recorrente, no sentido de as aperfeiçoar;

- ou considerava que, apesar da extensão das conclusões, se mostrava possível identificar as questões a decidir, as “razões do pedido”, na expressão utilizada no nº 1 do artº 412º do CPP e, nesse caso, restava-lhe apreciar o recurso interposto pelo mesmo arguido.

A rejeição, pura e simples, do recurso, com o fundamento único de não serem sucintas as conclusões apresentadas, fere de um modo desproporcional o direito de defesa do arguido, eliminando o seu direito a um recurso – artº 32º, nº 1 da CRP.

E, por essa razão, não pode manter-se o acórdão recorrido, que deve ser revogado.”

E, assim, o STJ, decidiu “b) Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido BB, revogando o acórdão recorrido e determinando que seja substituído por outro que aprecie o recurso interposto por este arguido, se necessário com prévio convite ao mesmo para aperfeiçoar as suas conclusões.”

II.2.5. São fundamentações do TC e do STJ que aqui acolhemos e levam ao provimento do recurso, no que toca ao objeto apreensível das conclusões. Porque, como sublinhámos, na senda quer da jurisprudência constitucional quer tendo em conta o citado acórdão do STJ, face à intensidade lesiva/ofensiva da decisão recorrida materializada na operatividade do trânsito em julgado da decisão condenatória proferida em primeira instância, se concluirá que “é tão gravosa a decisão condenatória como aquela que não admite o recurso dela interposto”, acabando por afrontar-se de modo desproporcional o direito de defesa do arguido, eliminando o seu direito a um grau de recurso – artº 32º, nº 1 da CRP. Como o TC assinalou, também aqui de um juízo de falta de concisão extraiu-se uma consequência drástica: a rejeição de um recurso de uma decisão condenatória, ou seja, a obstaculização de um direito fundamental em matéria criminal, como é o direito de defesa, na sua dimensão de direito ao recurso, tanto mais drástica quanto se mostra apreensível o efeito pretendido, in minime no que toca à visada diminuição da concreta pena aplicada. Porque se é certo que a decisão não conhece, a final do objeto do processo, não menos certo é que, sendo processual na sua natureza, materialmente se lhe equivale ao tornar transitada e definitiva a condenação.

III. DECISÃO

Assim, se decide conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA revogando o acórdão recorrido e determinando que seja substituído por outro que aprecie o recurso interposto por este arguido no que tange ao objeto extraído da apreensão possível das suas conclusões.

Sem custas.

STJ, 28 de fevereiro de 2024

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Maria do Carmo Silva Dias (Juíza Conselheira Adjunta)

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1. Apropriámo-nos neste ponto I.1. da sumária e correta descrição do iter processual apresentada pelo Sr PGA no seu parecer.

2. Tem um voto de vencido.

3. Transcrição efetuada do sítio da dgsi, com a anonimização aí imposta.