Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3105
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
Nº do Documento: SJ200406240031052
Data do Acordão: 06/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7809/02
Data: 03/19/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Consoante o entendimento corrente, a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa postula, na tipificação delineada no artigo 473º do Código Civil, a cumulação de três requisitos: o enriquecimento de alguém, sujeito passivo da restituição; sem causa justificativa; à custa de outrem, titular do direito à restituição;
II - O «enriquecimento» consiste na obtenção de uma vantagem, em princípio de carácter patrimonial, qualquer que seja a forma que a mesma apresente: aumento do activo do património; diminuição do passivo; uso ou consumo de coisa alheia ou exercício de direito alheio;
III - Embora constituam campo privilegiado do enriquecimento sem causa as denominadas atribuições patrimoniais, em que a vantagem obtida por uma das partes procede de acto praticado pela outra, a vocação de aplicabilidade do instituto transcende em muito esse domínio para se estender a todos os casos em que a vantagem provém de acto de terceiro, ou do próprio enriquecido - como nas múltiplas situações de intromissão nos direitos ou bens jurídicos de outrem -, falando-se a propósito, não já restritamente de atribuições, mas de deslocações patrimoniais, enquanto actos por virtude dos quais o património de alguém aumenta à custa de outrem, seja qual for a forma por que o aumento se opere;
IV - A expressão deslocação patrimonial não significa, porém, que o enriquecimento se traduza necessariamente numa «deslocação» de valores do património do lesado para o património do enriquecido, e a restituição na simples recuperação material ou mero retorno ao património do credor de valores que dele saíram indevidamente;
V - Conquanto seja essa muitas vezes a fisionomia do enriquecimento - a vantagem patrimonial de um dos sujeitos em correlação de locupletamento deriva de correspondente sacrifício económico suportado pelo outro -, o certo é que o artigo 473º não exige que a deslocação patrimonial tenha causalmente resultado de uma correlativa diminuição do património do «empobrecido», mas que tenha sido auferida à custa deste, tal como, designadamente, nas situações de intervenção ou intromissão nos direitos ou bens jurídicos alheios, em que semelhante correspectividade está ausente;
VI - Na verdade, a locução «à custa de outrem», importada do § 812 do Código Civil alemão, abstraída da sua acepção vulgar e entendida em sentido especificamente jurídico, pressupõe que a posição na qual se verifica a intromissão ou usurpação se apresente portadora de uma determinada «protecção jurídica» - assim, privilegiadamente, a que assiste à propriedade -, implicando ademais a definição, no domínio de protecção sub iudicio, do critério de qualificação das vantagens que podem fundar a respectiva acção de enriquecimento;
VII - Na determinação desse critério predomina na doutrina, e na mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal, a denominada «teoria da afectação ou destinação» - a Zuweisungslehre da dogmática alemã -, radicando na matriz nuclear de justiça conforme a qual, se a ordem jurídica afecta determinado bem e a sua fruição em exclusivo a um sujeito, isso significa que reserva também a este a decisão acerca da utilização e exploração do bem por parte de terceiros, de modo que, se alguém se intromete no uso do bem sem consentimento do titular, deve consequentemente restituir-lhe ou recompensar-lhe o enriquecimento assim obtido;
VIII - À luz dos anteriores pontos I a VII, a construção pelo réu de um bloco de apartamentos em terreno contíguo ao prédio dos autores, cujos 400m2 de superfície aquele incluiu na área de implantação do empreendimento, beneficiando assim de um acréscimo de área de construção licenciada e do correspondente ganho, tal utilização dos 400m2 do prédio dos autores à revelia da vontade destes constitui intromissão ilegítima na afectação exclusiva do imóvel aos demandantes, obrigando à restituição, prevista no artigo 473º, do que o réu adrede indevidamente auferiu;
IX - Com efeito, a área ou superfície de um imóvel é elemento essencial na definição da propriedade através dos seus limites materiais (artigo 1344º do Código Civil), com ressonância elementar, por conseguinte, na determinação do conteúdo jurídico-económico do direito, em suas faculdades plenas e exclusivas de uso, fruição e disposição (artigo 1305º), com realce para o espaço aéreo, de vocacional importância no exercício do ius edificandi;
X - Ainda que os autores não estivessem dispostos ou não pudessem devido aos condicionalismos urbanísticos usar o prédio nos termos em que o réu o fez, nem por isso podia este substituir-se a eles, exponenciando o seu direito de construção e auferindo uma vantagem patrimonial acrescida à custa dos titulares exclusivos da afectação ou destinação do prédio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e esposa, B, residentes no Funchal, intentaram no Tribunal dessa cidade, em 27 de Setembro de 1995, contra C, também aí residente, acção ordinária tendente a obter a condenação deste a pagar-lhes a quantia de 39.984.000$00 por enriquecimento sem causa, acrescida de juros moratórios à taxa legal desde a citação.
Alegam neste sentido, em síntese, que o réu edificou um bloco de apartamentos para venda denominado «Varandas do Funchal», mediante projecto cuja aprovação municipal requereu e obteve, indicando indevidamente na área de implantação do empreendimento 400m2 a mais correspondentes à superfície do prédio contíguo dos autores, o que lhe proporcionou um acréscimo de 476m2 de construção licenciada no valor líquido indicado, e o equivalente enriquecimento à custa dos autores.
Contestada a acção e prosseguindo os trâmites legais - a instância esteve ainda suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial na jurisdição administrativa -, foi proferida sentença final, em 15 de Abril de 2002, que a julgou improcedente pelo facto de o enriquecimento do réu não corresponder a um empobrecimento ou dano dos autores.
Apelaram estes, instruindo a alegação com o Parecer de ilustre jurisconsulto (1), e a Relação de Lisboa veio a conceder parcial provimento ao recurso, condenando o réu a pagar-lhes, por enriquecimento sem causa, a importância que se liquidar em execução.
Do acórdão neste sentido proferido, em 18 de Março de 2003, interpõe o réu a presente revista, cujo objecto, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste estritamente na questão de direito de saber se a restituição do enriquecimento tem como pressuposto um correspondente empobrecimento ou dano do titular da pretensão.

II- 1. A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1ª instância, para a qual, não impugnada e devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete na sua globalidade, ao abrigo do nº. 6 do artigo 713º do Código de Processo Civil.
Os factos, todavia, que nuclearmente interessam à problemática colocada a nossa apreciação são em resumo os seguintes.
A construção do questionado bloco de apartamentos do réu, denominado Varandas do Funchal, iniciou-se no ano de 1994, em terreno contíguo ao prédio, com a área de 400m2, pertencente aos autores, identificado nas alíneas A) e B) da especificação (respostas aos quesitos 1º (2) e 2º).
Todavia, no processo de licenciamento do empreendimento o réu apresentara uma área de terreno para a sua implantação, na qual incluiu aqueles 400m2 do prédio dos demandantes (quesito 6º) (3), induzindo a Câmara Municipal em erro (quesito 8º) e beneficiando assim, pela inclusão desta área que não lhe pertencia, de um acréscimo de área de construção de 476m2 (quesito 9º).
Ora, na zona o custo da construção é de 100.000$00/m2, e o valor de venda das casas novas, à data da propositura da acção, de 220.000$00/m2 (quesitos 10º e 11º), de modo que, ao englobar a área do prédio dos autores no projecto, o réu obteve um ganho líquido de 39.984.000$00 (quesito 12º).

2. Com base na factualidade descrita o Tribunal do Funchal julgou a acção improcedente, como se referiu no início, considerando que, a despeito de existir enriquecimento do réu sem causa justificativa, não se verifica outro dos requisitos da obrigação de restituir com esse fundamento, qual seja o empobrecimento de outrem e o nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento (4).
Na verdade, nem o réu construíra sobre o prédio dos demandantes, que se mantém intacto e ileso, nem por outro modo foram os mesmos prejudicados devido ao ilegítimo aumento de construção, permanecendo o seu património inalterado, e reconhecendo eles próprios não terem ficado empobrecidos.
O enriquecimento do réu resultara antes do erro camarário, nada, por conseguinte, havendo a restituir aos autores.

3. A Relação de Lisboa perfilhou, no entanto, um diverso entendimento, ponderando que há enriquecimento injusto dando lugar a restituição, não apenas quando ao enriquecimento corresponda o empobrecimento de outrem, mas também quando a vantagem em que o enriquecimento se traduz consiste na «utilização de coisa alheia ou no exercício de direito alheio», sem que se verifique muito embora uma correlativa diminuição patrimonial na esfera do respectivo titular.
Assim sucede justamente no caso sub iudicio - observa o acórdão em recurso louvando-se no Parecer de Menezes Cordeiro junto pelos autores apelantes -, uma vez que «a faculdade de construir correspondente à área dos autores estava-lhes reservada por lei». E, ao usar essa área em proveito próprio sem justificação, ainda que os autores não tenham propriamente empobrecido, enriqueceu o réu à custa destes estando por isso obrigado à restituição.
Contudo, acrescenta a Relação de Lisboa, a «medida da restituição» não se afere pelo lucro que o réu conseguiu, mas em função do denominado doutrinariamente «valor objectivo dos bens», ou seja, no caso concreto, o valor do «proveito ou benefício que normalmente» os autores obteriam, por seu lado, como proprietários do prédio cuja área aproveitou ao réu.
E, sendo neste conspecto inviável determinar já esse valor, daí que a 2ª instância relegasse a medida da restituição para liquidação em execução, nos termos do nº. 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil, tomando-se em conta o disposto nos artigos 479º e 480º do Código Civil, e o valor da moeda à data do enriquecimento, com juros de mora à taxa legal a partir da citação.

4. Inconformado com a decisão, dela recorre o réu mediante a presente revista, rematando a alegação em extensas conclusões, que, dispensando-nos de as reproduzir, se reconduzem, numa palavra, à defesa em diferentes níveis de argumentação da tese subjacente à sentença da 1ª instância.
Segundo esta, a restituição por enriquecimento sem causa postula a exigência de que o enriquecimento de um dos sujeitos tenha determinado causalmente o correspectivo empobrecimento do outro, e o requisito não se verifica no presente caso posto que o património dos autores nenhuma diminuição sofreu.
Ademais, mesmo na tónica do «enriquecimento por intervenção», aduz a alegação, não podiam os autores construir um prédio urbano no terreno já ocupado pela casa da sua residência, pelo que o réu recorrente não usurpou um direito que aos recorridos fosse possível exercer.
E isto conforme a doutrina que flui nomeadamente dos dois acórdãos do Supremo evocados ex adverso no Parecer de Menezes Cordeiro, os quais a alegação analisa concluindo, se bem se interpreta, não servirem de apoio à doutrina aí sustentada.

5. Os autores contra-alegam, por sua vez, a favor da tese seguida na Relação, salientam as razões enunciadas no Parecer aludido e a jurisprudência deste Supremo Tribunal aí evocada, pronunciando-se pela confirmação do acórdão sub iudicio.

III- Coligidos de conformidade com o exposto os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.
1. Consistindo estritamente o objecto da revista na questão de saber se o sucesso da pretensão de restituição fundada em enriquecimento sem causa pressupõe que o benefício auferido pelo enriquecido se tenha refractado num correspectivo empobrecimento ou diminuição do património de outrem, interessa desde logo ponderar o tema à luz da tipificação delineada no preceito nuclear do artigo 473º do Código Civil.
«Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou» - dispõe o nº. 1. «A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.» (nº. 2).
A obrigação de restituir estatuída no normativo pressupõe assim, consoante o entendimento corrente, a cumulação de três requisitos: o enriquecimento de alguém, sujeito passivo da restituição; sem causa justificativa; à custa de outrem, titular do direito à restituição.
A questão posta relaciona-se primacialmente com o primeiro e o terceiro requisitos.

1.1. No tocante ao primeiro, precisa-se entre nós (5) que o enriquecimento consiste na «obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial (6)», qualquer que seja a forma que a mesma apresente.
Com efeito, a vantagem ou benefício em que se traduz o enriquecimento tanto pode consistir num aumento do activo patrimonial (por exemplo, a aceitação de uma prestação indevida porque a obrigação nunca existiu ou já tinha sido cumprida), como numa diminuição do passivo (v. g., erróneo cumprimento por terceiro liberando o verdadeiro devedor), ou na poupança de uma despesa (indemnização pelo responsável de atropelamento das despesas de internamento do lesado, durante o qual este economizou o custo da sua habitual alimentação) e, ainda, com especial interesse para o nosso caso, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, tratando-se de actos susceptíveis de avaliação pecuniária (instalação em casa alheia na ausência do dono; afixação de cartazes publicitários de produtos comerciais em prédio de outrem).
Por outro lado, embora constituam campo privilegiado do enriquecimento sem causa as denominadas atribuições patrimoniais (Vermögenszuwendungen), em que a vantagem obtida por uma das partes procede de acto praticado pela outra (7) - tanto importa se em consequência de negócio jurídico, ou de acto não negocial e mesmo de acto puramente material -, o certo é que a vocação de aplicabilidade do instituto transcende em muito esse domínio.
Basta pensar, para além dos casos de enriquecimento resultante de acto de terceiro estranho à relação de locupletamento (8), naqueles em que a vantagem procede de acto praticado pelo próprio enriquecido, tal como sucede nas múltiplas situações de intromissão nos direitos ou bens jurídicos alheios aludidas há instantes.
Precisamente para abranger todas essas situações de obtenção de vantagens patrimoniais por uma pessoa à custa de outra, «independentemente da natureza e da origem do acto de onde elas procedem», falam os autores, não já restritamente em atribuições, mas em deslocações patrimoniais (Vermögensverschiebungen), como base ou pressuposto de todo o enriquecimento sem causa. E a deslocação patrimonial será, por conseguinte, «todo o acto por virtude do qual se aumenta o património de alguém à custa de outrem, seja qual for a forma por que o aumento se opera».
Mas, a expressão não significa neste conspecto «que o enriquecimento se traduza forçosamente numa deslocação de valores do património do lesado para o património do enriquecido», por modo que o direito à restituição consista num simples «direito de recuperação material, ou seja, num mero retorno ao património do credor de valores que de lá saíram indevidamente» - tal como pretende o réu recorrente em abono da sua tese (cfr. as conclusões 8ª e 12ª da alegação).
Conquanto seja essa muitas vezes a fisionomia do enriquecimento sem causa, observa-se, há casos em que tal não se verifica (9).
E reconheça-se efectivamente que o artigo 473º do Código Civil não exige na realidade que a deslocação patrimonial em benefício do enriquecido tenha (causalmente) resultado de uma correspectiva diminuição do património do «empobrecido», passe a expressão, mas que tenha sido auferida à custa deste.
Tudo depende consequentemente do significado deste outro elemento constitutivo do tipo legal, há pouco deixado em suspenso, cujo sentido é por isso oportuno perscrutar.

1.2. Para que os autores possam ver reconhecido o direito à restituição pretendida na presente acção, com fundamento no enriquecimento do réu, torna-se, portanto, mister à face do artigo 473º que este enriquecimento tenha sido obtido à sua custa (10).
Pois bem. Não se duvida de que a correlação de locupletamento entre dois sujeitos predisposta na lei se traduz em regra no facto de «a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro» (11), sendo portanto obtida à custa deste na acepção do artigo 473º.
Todavia, nem sempre a vantagem de alguém à custa de outrem se exprime numa correspondente diminuição do património do lesado, como sucede designadamente nos casos de intervenção ou intromissão nos direitos ou bens jurídicos alheios. Os exemplos de escola referidos há momentos, da instalação em casa alheia e de afixação de cartazes publicitários comerciais em prédio de outrem, mostram não existir correspectividade entre o enriquecimento do intromissor e o empobrecimento do titular dos direitos, no sentido, advogado pelo recorrente, de correspondência entre um valor que saia do património deste para entrar no património daquele.
Ora, parece igualmente indubitável que as vantagens obtidas neste tipo de intromissões foram auferidas à custa dos respectivos titulares dos direitos ou bens jurídicos.
Neste sentido se evoca no plano histórico-comparatístico a substituição da expressão «aus dem Vermögen eines anderen» («com o seu património»; «do património de outrem»), constante do § 748 do primeiro projecto do Código Civil alemão, pela formulação mais ampla «auf dessen Kosten» («à sua custa»), que veio a figurar no texto definitivo do § 812, a qual justamente visou contemplar aquele género de situações, nas quais efectivamente ao enriquecimento de um sujeito não corresponde em verdade a diminuição do património do outro, mas simples privação de um aumento deste.
Por isso deve a idêntica locução do artigo 473º - enriquecer à custa de outrem -, ser interpretada com o mesmo sentido e alcance na lei portuguesa, que a importou da legislação e da doutrina germânica (12).

1.3. Neste sentido exclui desde logo a doutrina alemã que o critério das vantagens obtidas à custa de outrem, susceptíveis de fundar uma acção de enriquecimento, possa emergir do sentido linguístico corrente da expressão (v. g., se a leitura de certo livro suscita a alguém uma ideia que lhe permite ganhar muito dinheiro, nem por isso o lucro auferido obriga a inteirar o escritor a pretexto de intromissão nos direitos deste) (13).
A fórmula em apreço deve, pois, ser abstraída da sua acepção vulgar para ser entendida num sentido especificamente jurídico. E uma pretensão de enriquecimento por intromissão ou usurpação (Eingriffskondition) considera-se neste plano fundada quando a posição em que se verificou a intervenção se apresenta portadora de uma determinada «protecção jurídica».
Interessa, por conseguinte, saber que posições jurídicas são neste sentido protegidas e, nesse domínio de protecção, qual o critério de qualificação das vantagens à custa de outrem que podem fundamentar a respectiva acção de enriquecimento.
Privilegiado sector de protecção relevante, pode sem divergência afirmar-se, constitui, justamente, a propriedade (14).
No tocante, por seu lado, à aferição das vantagens que devem considerar-se auferidas à custa de outrem na perspectiva da restituição, prevalece entre os autores, em contraponto à tese da ilicitude da intromissão, o critério da denominada teoria da afectação ou destinação (Zuweisungslehre), radicando no seguinte pensamento fundamental.
Quando a ordem jurídica afecta determinado bem e sua fruição em exclusivo a um sujeito, isso significa que reserva também a este a decisão acerca da utilização e exploração do bem por parte de terceiros. De forma que, se um terceiro se intromete no uso do bem sem o consentimento do titular, deve em lógico corolário restituir ou recompensar a este o enriquecimento assim obtido (15).

Em face do exposto, duas notas importaria em remate deixar registadas.
Por um lado, a doutrina que acaba topicamente de se ilustrar, e a matriz de justiça que lhe está subjacente, mereceram acolhimento entre nós, quer na doutrina, constituindo inclusivamente directriz nuclear na construção do Parecer de Menezes Cordeiro junto ao processo, para que se remete com a devida vénia, quer na mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal como dentro em pouco se verá.
Por outro lado, cremos efectivamente não poder duvidar-se da sua pertinência no caso sujeito à nossa apreciação, quando se cogite da essencialidade da área ou superfície de um imóvel na definição da propriedade através dos seus limites materiais (artigo 1344º do Código Civil), e da sua ressonância elementar, por conseguinte, na determinação do conteúdo jurídico-económico do direito, em suas faculdades plenas e exclusivas de uso, fruição e disposição (artigo 1305º) (16) - com realce, se se quiser, para o espaço aéreo, de vocacional importância no exercício do ius edificandi.
À luz da teorização desenhada se afigura, pois, irrecusável que a utilização pelo réu dos 400m2 do prédio dos autores à revelia da vontade destes, ainda que de boa fé, nas condições que fluem da factualidade provada, constitui a intromissão ilegítima na afectação exclusiva do imóvel aos demandantes de que há pouco se falava, obrigando à restituição, prevista no artigo 473º, do que adrede indevidamente auferiu.

2. Objecta-se na alegação que os autores não podiam utilizar a pequena área do seu prédio para aí construírem, pelo que o réu recorrente não usurpou um direito que aos recorridos fosse possível exercer (cfr., nomeadamente, as conclusões 18ª a 28ª).
2.1. Trata-se, por todo o exposto, de extrapolação em patente antinomia, salvo o devido respeito, com o pensamento nuclear da afectação dos bens e a ideia de justiça que lhe vai implicada.
Ainda que os autores não estivessem dispostos ou não pudessem urbanisticamente usar o prédio nos termos em que o fez o réu, nem por isso estava este autorizado a substituir-se a eles, exponenciando o seu direito de construção e auferindo consequentemente uma vantagem patrimonial acrescida à custa dos titulares exclusivos da destinação do prédio.
De modo que, observa a doutrina (17), a reversão segundo a lei em semelhantes hipóteses para o titular do direito ou o dono da coisa, do lucro proveniente de actos que eles não realizariam, compreende-se precisamente em sintonia com a doutrina da afectação ou destinação dos direitos absolutos.
Os direitos reais, bem como a propriedade intelectual e industrial, «não constituem simples direitos de exclusão, assentes sobre o dever geral de não ingerência (de terceiros) na ligação do titular com a res, a obra, patente, invento, etc.». Reservam, mais do que isso, ao respectivo titular «o aproveitamento económico dos bens correspondentes, expresso nas vantagens provenientes do seu uso, fruição, consumo ou alienação», tudo quanto os mesmos sejam capazes de render ou produzir pertencendo em princípio ao sujeito da destinação ou afectação.
E a pessoa que neste condicionalismo se intromete nos bens jurídicos alheios, auferindo um enriquecimento patrimonial, obtém-no «à custa do titular do respectivo direito, mesmo que este não estivesse disposto a realizar os actos» de onde o benefício procede.
O enriquecimento resultante da intromissão carece de causa «segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito», que justamente o reservava ao titular em conformidade com o conteúdo da destinação (Zuweisungsgehalt).

2.2. Na mesma linha da Zuweisugslehre se vem de resto orientando, como ficou referido e não virá a despropósito precisar, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, representada nos recentes acórdãos - evocados por Menezes Cordeiro no seu Parecer, a que a alegação da revista também se refere -, de 23 de Março de 1999, na revista nº. 147/99, 1ª Secção (18), e de 22 de Abril do mesmo ano, na revista nº. 234/99, 7ª Secção (19).
Transcreva-se apenas um elucidativo excerto deste último:
«Mas, fica, de qualquer modo, o facto de que a ré retirou ilicitamente vantagens económicas da utilização de uma invenção cuja patente sabia pertencer ao autor, tendo praticado uma ingerência ilícita e injustificada na propriedade industrial daquele, e de que tirou vantagens que só ao mesmo autor estavam destinadas, segundo a ordenação jurídica dos bens.
«A ausência de danos patrimoniais é óbvia, mas também o é o injustificado enriquecimento da recorrida à custa do recorrente; e este enriquecimento é, também, fonte de obrigação de indemnização, nos termos dos artigos 473º ss. CC.»

No primeiro dos citados arestos oferecera-se, aliás, o ensejo de ir mais longe, escrevendo-se:
«Sempre, porém, que o interventor tenha retirado da coisa objecto do direito real certas vantagens, pode dizer-se que obteve um enriquecimento à custa do titular desse direito, na medida em que se apropriou de utilidades que 'a ordem jurídica, segundo o direito de ordenação dos bens', reservava exclusivamente a este último.
(...)
«De facto, a pessoa que, intrometendo-se na utilização de bens alheios, consegue uma vantagem patrimonial, obtém-na à custa do titular desse direito, ainda que este não estivesse disposto a realizar os actos de onde procede tal vantagem.
«E isto porque se trata de 'uma vantagem que estava reservada ao titular do direito, segundo o conteúdo da destinação, afectação ou ordenação dos bens que constituem o respectivo objecto'.
«Mesmo que o proprietário, se acaso não tivesse ocorrido tal intromissão ou interferência, nenhum proveito tirasse dos bens, sempre o intrometido estará obrigado a indemnizá-lo do valor dos frutos que obteve à custa desses bens ou do valor do uso que deles fez, restituindo-lhe, pois, o 'valor da exploração'.»

Não deixará, aliás, de se notar que os próprios acórdãos deste Supremo invocados na sentença da 1ª instância (cfr. supra, nota 4) não deixam de se integrar na orientação que vem de se esboçar, muito embora paradoxalmente tenham sido citados em abono da tese, que conduziu à improcedência da acção, da exigência de um nexo causal entre o enriquecimento de um dos sujeitos em correlação de locupletamento e o empobrecimento do outro.
Desde logo, pelo menos a situação sobre que versou o acórdão de 21 de Maio de 2001 caracterizava-se nitidamente, a nosso ver, como enriquecimento por intromissão. O que, porém, mais interessa salientar é que em nenhum dos casos apreciados nos dois arestos se verificava verdadeiramente uma diminuição do património dos credores da restituição por enriquecimento sem causa na acepção da sentença - e propugnada pelo réu ora recorrente -, vindo o Supremo, não obstante, a reconhecer as pretensões ajuizadas.

3. Queixa-se ademais o recorrente na sua alegação de que atentaria contra «os mais elementares princípios de justiça aferir a 'restituição' aos recorridos pelo lucro do recorrente, vantagem patrimonial que, em caso algum, podia pertencer àqueles».
Contudo, no tocante a este aspecto da medida ou valor da restituição a que o réu está obrigado, já este obteve reflexamente justiça, na medida em que a Relação de Lisboa, por considerar então inviável a aferição desse valor, remeteu a sua determinação para liquidação em execução.
Trata-se em todo o caso de aspecto do acórdão em revista não impugnado perante este Supremo Tribunal, do qual, por conseguinte, não cumpre conhecer.

4. Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo réu recorrente (artigo 446º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 24 de Junho de 2004
Lucas Coelho
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
_____________
(1) António Menezes Cordeiro, datado de 11 de Junho de 2002.
(2) Desta resposta porventura se podendo concluir que a área do prédio dos autores era apenas de 390m2, diferença, se bem vemos, relativamente despicienda no âmbito da presente acção, e antes pertinente à liquidação em execução, como se constatará.
(3) Por erro seu, alega o réu, não se provando, com efeito, que assim tenha procedido maliciosamente.
(4) Cita-se neste sentido o acórdão deste Supremo, de 22 de Maio de 2001, «Colectânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça», Ano IX (2001), Tomo 2, pág. 95, e também o acórdão, de 20 de Março do mesmo ano, «Colectânea», Tomo 1, pág. 179.
(5) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, revista e actualizada (Reimpressão), Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2003, pág. 481, cuja lição em particular vamos acompanhar, beneficiando do manacial bibliográfico a propósito recenseado nos quadrantes mais significativos do cosmos romano-germânico em que se integra o nosso sistema juscivilístico, e tanto mais que o recorrente não deixa de se louvar no mestre de Coimbra em apoio da sua posição.
(6) Neste sentido a jurisprudência do BGH alemão, ao que parece hoje doutrinariamente superada. Cfr. Karl Larenz/Claus-Wilhelm Canaris, Leherbuch des Schuldrechts, B. II, Besonderer Teil, 2. Halbb., 13. völl. neuverf. Auf., C. H. Beck, München, 1994, pág. 255 e nota 2, preconizando não interessar que o objecto da restituição por enriquecimento sem causa tenha valor material ou patrimonial, uma vez que o mesmo repousa na falta de fundamento jurídico do benefício e não num «enriquecimento» no sentido de incremento patrimonial susceptível de avaliação pecuniária; cfr. também Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, Outubro de 2001, págs. 451/452, que aceita em certos termos a possibilidade de o enriquecimento «consistir tão-só em vantagens não patrimoniais, destituídas de valor económico». Trata-se em todo o caso de ponto despiciendo no domínio da revista.
(7) Antunes Varela, op. cit., págs. 477 e segs., citando Manuel de Andrade, Teoria Geral, que justamente definia as atribuições patrimoniais como «actos mediante os quais uma pessoa (atribuinte) aumenta o património de outra (atribuído) à sua custa - enriquecendo-a portanto com sacrifício próprio - qualquer que seja a forma por que este resultado se produz.»
(8) V. g., o devedor, desconhecendo a cessão do crédito por falta da notificação, paga ao antigo credor e não ao cessionário, ficando o primeiro enriquecido à custa do segundo não por acto do empobrecido mas do solvens; o mesmo se verifica no caso do fiador que paga a dívida sem avisar o devedor, dando aso a que este efectue por erro um segundo pagamento ao credor.
(9) Antunes Varela, op. cit., págs. 479/480.
(10) Isto é, a expensas deles, como diz Antunes Varela, op. cit., págs. 488 e segs., que de novo se segue muito de perto, recenseando outras fórmulas análogas no direito comparado: as do artigo 62º do Código suíço, «aux dépens d'autrui»; do artigo 904º do Código grego, «a expensas do património ou em detrimento de outrem»; e ainda a formulação do artigo 2041º do Código italiano, «a danno di un'altra persona», que, aliás, na alegação do recorrente logo se faz equivaler à questionada exigência de diminuição do património dos autores. A expressão «auf dessen Kosten» do § 812 do BGB assume, por seu turno, em face da idêntica locução do nosso artigo 473º um particular significado hermenêutico a que seguidamente se alude no texto.
(11) Efectivamente, nos exemplos figurados supra, nota 8 - explicita o autor que vimos a acompanhar -, à vantagem obtida pelo cedente mediante a prestação efectuada pelo devedor corresponde a perda do crédito do cessionário sobre este (artigo 583º, nº. 2 do Código Civil, em protecção da boa fé do devedor); e a vantagem alcançada pelo credor com a prestação do devedor, após o pagamento do fiador, tem como efeito a perda do correspondente direito de crédito adquirido por sub-rogação pelo fiador. Em qualquer dos casos, o valor que entra no património do enriquecido é, pois, o mesmo que sai do património do empobrecido.
(12) Elucidação particularmente qualificada de Antunes Varela, op. cit., pág. 490, um dos principais promotores e obreiros, como se sabe, do Código Civil de 1967. No sentido exposto, cfr. também Almeida Costa, op. cit., pág. 453, escrevendo: «Na verdade, o instituto abrange situações em que a vantagem adquirida por uma pessoa não resulta de um correspondente sacrifício económico sofrido por outra - diminuição patrimonial ou simples privação de um aumento -, embora se haja produzido a expensas desta, à sua custa. Recordem-se, por exemplo, certos casos de uso de coisa alheia sem prejuízo algum para o proprietário. Decorre do exposto que só numa visão restrita se torna possível aludir a empobrecimento ou sacrifício económico.»
(13) Larenz/Canaris, op. cit., págs. 134/135, que ora seguimos por momentos.
(14) Larenz/Canaris, op. cit., págs. 172 e segs., desenvolvendo análise em detalhe de outras classes de direitos, de interesse secundário no âmbito da presente revista (v. g., os direitos de autor e da propriedade industrial, os direitos gerais de personalidade, etc.).
(15) Larenz/Canaris, op. cit., págs. 167/170.
(16) Numa densificação mais desenvolvida do conteúdo do direito de propriedade, e de formas que pode revestir a sua violação, conquanto em sede de responsabilidade civil extracontratual, cfr. o acórdão deste Supremo, de 15 de Maio de 2003, na revista nº. 535/03, 2ª Secção, pontos III, 4., em especial.
(17) Antunes Varela, op. cit., págs. 491/493 e 487.
(18) «Boletim do Ministério da Justiça», nº. 485 (1999), págs. 396 e segs., e «Colectânea» citada, Ano VII (1999), Tomo 1, págs. 172 e seguintes.
(19) «Colectânea», Ano VII (1999), Tomo 2, págs. 58 e seguintes.