Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CELSO MANATA | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS PRESSUPOSTOS PRISÃO PREVENTIVA PRISÃO ILEGAL REJEIÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 05/08/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO. | ||
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Sumário : | I - A providência de Habeas corpus visa pôr termo à privação ilegal da liberdade, decorrente de abuso de poder, sendo que os motivos fundamento dessa ilegalidade têm de se reconduzir, necessária e exclusivamente, à previsão do disposto nas als. do n.º 2 do art. 222.º do CPP, cuja enumeração é taxativa e cuja indicação tem de ser expressamente indicada e fundamentada no respetivo pedido; II - A concessão de Habeas corpus, com fundamento no disposto na aludida al. c) do nº 2 do aludido artigo, apenas se aplica quando o facto que motivou a prisão não permite, de acordo com o previsto na lei, a aplicação dessa medida. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em Audiência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO 1. O Pedido AA, arguida nos autos principais de que os acima identificados constituem apenso, presa preventivamente à ordem desses mesmos autos, na sequência de despacho proferido a 11 de abril de 2024, veio requerer a providência de Habeas Corpus “nos termos do artigo 31º da Constituição da República Portuguesa e do nº2 da alínea b) do artigo 222º do Código do processo Penal” e com os seguintes fundamentos (transcrição integral): 1. Por despacho proferido no dia 11-04-2024 às 09H30 o MM. Juiz de Direito que presidiu ao auto de interrogatório de arguida detida, decidiu que as suas condutas “figuram pois como actividade preponderante delituosa indiciada: importando, detendo, cedendo e distribuindo o produto estupefaciente em causa MDMB-4en-PINACA, destinado a difusão no EP de ..., assim constituindo a arguida em co-autoria material na forma consumada de um crime de tráfico de estupefaciente agravado, previsto e punido pelos artigos 21º nº1 e 24º alínea h) do Decreto-Lei nº 13/93 de 22/Janeiro, com referência à tabela II, com a pena de prisão de 5 a 15 anos”. Independentemente do, a nosso ver, ostensivo desacerto da decisão, como melhor referiremos infra, pelos factos provados no inquérito, o que ao caso importa é a manifesta desnecessidade de tão gravosa medida e consequente desconsideração da sua natureza excepcional, impondo-se ao Julgador pela sua Constitucional subsidiariedade, “não podendo ser decretada sempre que” – como no caso concreto – “possa ser aplicada medida(s) mais favorável(eis) prevista(s) na Lei”. Ao que acresce que a prisão preventiva sendo uma medida de coação é como todas as outras submetidas aos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade. Impõe-se por isso na escolha das soluções complementarmente aplicáveis, grande maleabilidade, respeitando os ditames da realização efectiva do Princípio Constitucional da subsidiariedade, por cujo respeito extinguiu o Código a categoria dos crimes incaucionáveis. 2. No caso concreto, a prisão preventiva que foi decretada, traduz-se numa efectiva punição antecipada, desconsiderando que se trata de uma medida preventiva para inocentes, ainda que eventualmente presumidos. Trata-se precisamente da mais gravosa das medidas de coação, razão pela qual a determinação de que a sua aplicação se tenha que pautar, no respeito pela subsidiariedade Constitucional. Esta medida só poderá ser aplicada quando as outras medidas se mostrarem efectivamente insuficientes ou inadequadas. Para que não padeça de ilegalidade a sua aplicação, terão que estar verificados os pressupostos que o nº1 do artigo 202º do CPP elenca taxativamente, a saber: “a) Fortes indícios de prática de crime doloso, punível com pena prisão de prisão com máximo de 5 anos; b) Fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta; c) Fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada, punível com pena de prisão com máximo superior a 3 anos; d) Fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática nas comunicações, receptação, falsificação ou contrafação de documentos, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com penas de prisão de máximo superior a 3 anos; e) Fortes indícios de pratica de crime doloso de detenção de arma proibida, de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; f) Tratando-se de pessoa que tiver penetrado ou permaneça de forma permanente em território nacional ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão”. 3. Excluída a categoria dos delitos incalcináveis, estão estabelecidos os pressupostos gerais para aplicação das medidas de coação (excepção da medida prevista no artigo 196º), impedindo a aplicação de qualquer das medidas se em concreto se não verificar no momento da aplicação da medida, a saber: a. “Fuga ou perigo de fuga; b. Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou, c. Perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a vida e a tranquilidade públicas.” 4. Importa não esquecer em primeiro lugar, que dos elementos probatórios carreados para os autos … no confronto e em conjugação com as declarações da arguida prestadas no interrogatório judicial (da arguida detida, artigo 141º do CPP), não resulta um único facto por si praticado por iniciativa própria, sendo apenas referidas situações de resto muito parcas, concretamente o encontro junto ao Restaurante ... com BB, pai do recluso CC (13-12-2023, ponto 6), que contactado directamente pelo seu filho, quer no encontro com o recluso DD (dia 03-01-2024, ponto 9) na Rua .... Em ambos a arguida deu satisfação ou recebeu instruções do recluso EE, com quem se encontra casada, facto que a investigação confirmou, mas que foi desconsiderado no interrogatório e do despacho judicial subsequente. E bem assim que foi também este seu marido, que se encontra detido no EP de ..., que no dia 15-01-2024 “instruiu a arguida AA a utilizar a aplicação Telegram para efectuar uma encomenda de 10 folhas de papel (ponto 12)”. E mais intervenções da arguida não existem referenciadas pela investigação, sendo que até esta última referida coincide com uma saída precária do arguido seu marido, em que segundo ela arguida afirmou, foi por ele utilizado o seu telemóvel. Aliás a investigação não diz que tenha sido feita por ela qualquer encomenda, mas tão só que o seu nome e direcção figuram como de destinatária. E não havendo mais nada referido para além destas três situações, terminado o interrogatório e sendo dada a palavra à defesa, em alegações produzidas, informou o tribunal que a prisão preventiva pedida pelo Ministério Público, além de desproporcionada padecia de ilegalidade por ostensiva desnecessidade. Sendo por isso duvidoso que em futura audiência contraditória, por respeito pela oralidade e imediação, face às provas constantes dos autos e referimo-nos às duas participações, a pedido ou instruções do seu marido, dificilmente preencheriam a moldura penal exigida para aplicação ou manutenção de uma prisão preventiva. Acrescendo a ilegalidade da sua aplicação por inverificação ao momento da aplicação da medida, de qualquer das exigências no nº1 do artigo 204º do CPP. No entendimento da defesa, posto que fosse mantido o TIR já prestado, acompanhado da obrigação de apresentação e da proibição de contactos com o arguido seu marido, que ela própria pretende, ficando desde logo prevenida a continuação da sua pretendida actividade criminosa, que sempre se verificou a pedido ou intenção dele (seu marido), porquanto nem sequer conhecia nenhum dos restantes arguidos, que, ao que a investigação diz, partilham os três a mesma cela na prisão. Estando excluído o perigo de fuga, que o próprio Juiz considera de fraca incidência, uma vez que já se encontra em Portugal o seu irmão FF desde 26-04-2023, trabalhando na W..... ........ e residindo no nº 23 do Lg ... em ..., e tendo juntado dinheiro para a vinda da sua mãe, GG, divorciada, que passará a viver em Portugal a partir do próximo dia 31-07, com viagem já paga de ... nesse dia, que foi adquirida por economias de sua filha arguida AA, passando também a viver no nosso país, passando a reunir toda a família em Portugal. A arguida AA por sua vez já adquiriu residência em Portugal, encontrando.se social e profissionalmente integrada como chefe da recepção de uma unidade hoteleira de 4 estrelas, lugar conseguido com elevado mérito reconhecido pela própria entidade profissional. Tudo foi desconsiderado no despacho do interrogatório, desconhecendo a sua actividade profissional, o seu esforço de reunião familiar e a verdadeira intenção de viver em Portugal e de não ter mais contactos de qualquer natureza com o arguido, ainda seu marido. Esta medida proposta pela defesa é obviamente a medida adequada porque cumpre a subsidiariedade Constitucional da prisão preventiva, satisfazendo na totalidade as finalidades previstas (nº1 do artigo 104º). Medida Constitucionalmente imposta por ilegalidade da prisão, porque os fins das penas, não se esgotam “quia pecatum” ainda que essa fosse a questão, que no não é, a resolver-se aqui. Deve por isso, Colendo Conselheiro Presidente, por apelo ao seu saber, conceder provimento ao Habeas Corpus, ordenando a imediata libertação da arguida, aguardando a sua eventual presença em audiência de julgamento em liberdade, para que possa retomar a sua actividade profissional no hotel, que até se situa ao lado da PJ de ..., com TIR prestado e fixação de obrigações, sobretudo de nenhum contacto com o detido EE, de quem pretende divorciar-se, porque esta situação tornou de facto impossível a vida do casal. Assim se fazendo Justiça.” 1. A informação judicial A 26 de abril de 2024, em obediência ao disposto no artigo 223.º, nº 1, do Código de Processo Penal, foi prestada pelo Juiz de Instrução Criminal de ... – Juiz ..., a seguinte informação (transcrição integral): “Em conformidade com o preceituado nos art.ºs 222.º e 223.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal, envia-se, com a petição de habeas corpus, a seguinte informação: a. A requerente foi detida em 09 de Abril de 2024; b. Foi sujeita a primeiro interrogatório judicial de arguido detido em 10 de Abril de 2024, prosseguindo tal acto processual, no dia 11 de Abril de 2024; c. No dia 11 de Abril de 2024, considerando-se indiciada a prática, pela mesma, como co-autora material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos art.ºs 21.º, n.º 1, e 24.º, al. h), do Dec.- Lei 15/93, de 22/01, e a existência dos perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas e de fuga, foi decida a aplicação, à arguida, da medida de coacção de prisão preventiva, situação em que, desde então, se mantém. “ 1.3. Sequência processual Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça e notificado o Ministério Público e o Defensor do requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223º, n.º 3, do Código de Processo Penal). II. QUESTÃO A DECIDIR: Da eventual ilegalidade da privação da liberdade da requerente, por ter sido motivada por facto pelo qual a lei não permite, devendo ordenar-se a sua imediata libertação, caso se entenda estarem reunidos os requisitos da providência de habeas corpus, prevista nos artigos 31º da Constituição da República Portuguesa e 222º do Código de Processo Penal. III - FUNDAMENTAÇÃO 3.1. Os factos Das peças processuais juntas aos autos e do teor da informação prestada nos termos do art.223.º do Código de Processo Penal, emergem apurados os seguintes factos, relevantes para a decisão da providência requerida: • No dia 9 de abril de 2024, na sequência de investigações em curso, a Polícia Judiciária, em execução do respetivo mandado, deteve a ora requerente, AA; • Em sequência, a requerente foi apresentada ao Juiz de Instrução Criminal de ... – Juiz ..., para primeiro interrogatório de detido, no dia 10 de abril o qual se prolongou até ao dia 11 de abril de 2024. • No final dessa diligência, o aludido magistrado judicial proferiu o seguinte despacho: “A factualidade que ora se indicia é susceptível de constituir a arguida coma co-autora material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos O crime de tráfico de estupefacientes reveste particular gravidade, pelas consequências que o consumo dessas substâncias tem na saúde da população e pela criminalidade que em seu torno gravita, como aquela de natureza patrimonial, enquanto meio de os toxicodependentes obterem proventos para o sustento do vício, sendo aliás, integrador do conceito de criminalidade altamente organizada no art. 1º, al. m) do Cód. Proc. Penal. Particularmente, no caso dos autos, a gravidade é acrescida pelo próprio destino das substâncias a reclusos em estabelecimento prisional, população fragilizada e, por outro lado, onde, como é do conhecimento geral, pelas dificuldades que existem na sua difusão nesse meio, os produtos ilícitos são propiciadores de avultados lucros e atingem preços significativamente superiores aos usualmente praticados pelos traficantes em liberdade. No que tange, em concreto aos produtos estupefacientes em causa, não será demais destacar que se trata de um canabinóide sintético, que teve particular difusão no tráfico de estupefacientes europeu a partir do ano de 2017 e cujos efeitos conhecidos incluem alucinações, paranóia, confusão mental e despersonalização, havendo notícia de situações de suicídio associadas ao consumo de tais produtos (Cfr. Artigo científico a respeito desta substância ilícita em www.sciencedirect.com). Acresce que, consoante perpassa dos autos, o estupefaciente é facilmente dissimulável e, assim, transportável, iludindo as entidades policiais. Acresce que as condutas de tráfico de estupefacientes são geradoras, no seio da comunidade, de profundos sentimentos de insegurança e intranquilidade, cumprindo salientar, não apenas a já referida prática dos factos com destino à introdução de estupefacientes no meio prisional, como a facilidade de circulação deste produto, em concreto, sendo, naturalmente, gerador de intranquilidade junto da comunidade, preocupada com a saúde pública dos seus concidadãos e ante o modo fácil e dissimulado da circulação do estupefaciente. Tudo isto consubstancia um sério perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ao qual cumpre atalhar. Por outro lado, da reiteração da actividade delituosa, da sua gravidade, da facilidade da sua execução, da ausência de interiorização do desvalor das condutas, dos proventos que aquela actividade propicia e dos conhecimentos que a arguida revelou no meio da venda/aquisição e da distribuição de estupefacientes, decorre um concreto perigo de continuação da actividade delituosa, o mesmo é dizer, de que a arguida prossiga com a importação, cedência e distribuição de estupefacientes, máxime, pelo modo supra descrito, revelador de alguma organização, com contactos e importação de países estrangeiros e utilização de terceiros como modo de se escudar da introdução do estupefaciente no meio prisional. Embora, dir-se-á, em menor grau, existe algum perigo de que a arguida, confrontada com a possibilidade de aplicação de pena de prisão, se procure eximir à acção da justiça, pois que não é de nacionalidade portuguesa, tendo nacionalidade colombiana e, assim, possibilidade de empreender a fuga para tal país, embora, como se disse, tal perigo se atenue pela ligação familiar que tem em Portugal (não sendo, todavia, de deixar de sopesar que o seu marido se encontra em cumprimento de pena de prisão). Para satisfazer as enunciadas exigências cautelares afigura-se manifestamente insuficiente o simples termo de identidade e residência, pela mobilidade e facilidade de contactos que o mesmo sempre proporciona Por outro lado, tendo em atenção todo o supra exposto, quanto às concretas exigências cautelares que, no caso, se fazem sentir, não se afigura que outra medida que se não traduza em uma privação da liberdade seja suficiente, sobretudo, para obstar ao perigo de continuação da actividade criminosa e, dentro das medidas detentivas, afigura-se inviável a obrigação de permanência na Ademais, a medida de coacção doutamente requerida pela Digníssima Procuradora da República apresenta-se proporcional à gravidade do crime indiciado e às sanções previsivelmente aplicáveis,
• Face a tal decisão a requerente apresentou a presente providência de Habeas Corpus e, em simultâneo, interpôs recurso da mesma para o Tribunal da Relação de Coimbra. 3.2. O Direito. 3.2.1. Introdução O art. 27º da Constituição da República Portuguesa estabelece, designadamente, que: “1 - Todos têm direito à liberdade e à segurança. 2 - Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. 3 – Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos seguintes casos: (…) b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos” Estas normas inspiraram-se, diretamente, nos artigos 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 9º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, garantindo, designadamente, o direito à liberdade física e à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar (assim, por todos, o acórdão de 29.12.2021, Proc. 487/19.8PALSB-A.S1, em www.dgsi.pt). Mais recentemente estes princípios foram reafirmados no artigo 6º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da qual Portugal faz parte. Por outro lado, e com vista a pôr termo à privação da liberdade ilegal, decorrente de abuso de poder, o nº 1 do art. 31º da Lei Fundamental veio consagrar o instituto do habeas corpus, a requerer perante tribunal competente. A origem deste instituto remonta, segundo alguns autores1, ao séc. XIII2, a um momento em que se vivia o tiranismo e o despotismo no seu esplendor, quando o Rei João Sem Terra, assinou a “Magna Charta Libertatum”, em 1215, em forma de acordo com os barões da época. Conforme referem José Canotilho e Vital Moreira3, a “Magna Charta Libertatum” surgiu da seguinte forma: “não se tratava de uma manifestação da ideia de direitos fundamentais inatos, mas da afirmação de direitos corporativos da aristocracia feudal em face do seu suserano. A finalidade da Magna Charta era, pois, o estabelecimento de um modus vivendi entre o rei e os Barões.” Em Portugal e durante a República, o instituto foi consagrado logo no nº 3 do artigo 31º da Constituição de 1911, nos seguintes termos: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso do poder. A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos de estado de sítio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira. Uma lei especial garantirá a extensão desta garantia e o seu processo”. E é curioso verificar que, mesmo durante o Estado Novo (e ainda que com um alcance bem mais reduzido), o instituto manteve-se em vigor, estando então estabelecido no nº 4 do artigo 8º da Constituição de 1933, nos seguintes termos: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excecional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial”. O habeas corpus sempre foi concebido como um mecanismo de utilização simples, sem grandes formalismos, de rápida atuação - dado que o constrangimento de um direito fundamental, como o direito à liberdade, não se compactua com atrasos e demoras - e que deve abarcar todas as situações de privação ilegal de liberdade. Estando inserido no Título II, da Parte I, da Constituição da República Portuguesa tem, por força do disposto no artigo 18º da Lei Fundamental, aplicabilidade direta e vincula entidades públicas e privadas. Este “remédio”, de consagração constitucional, visa solucionar situações anormais, em que a pessoa foi restringida de sua liberdade por via de abuso de poder, colocando o Estado à pessoa que sofre dessa restrição, um meio idóneo e célere para que seja apreciada a ilegalidade, ou não, daquela limitação de liberdade. Com efeito, a nossa doutrina4 e jurisprudência5 têm entendido que o habeas corpus constitui uma providência expedita e urgente, de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, “cujo pressuposto constitucional é o abuso de poder”, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», “distinto dos recursos” sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros. Assim, em sintonia e no desenvolvimento destes princípios constitucionais e por forma a permitir a sua adequada aplicação prática, o artigo 222º do Código de Processo Penal estabelece o seguinte: “1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus. 2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.” Ou seja, e como tem repetida e uniformemente decidido o Supremo Tribunal de Justiça, “(A) providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, ou seja, sem lei ou contra a lei que admita a privação da liberdade, referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, e que não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reação tendo por objeto a validade ou o mérito de atos do processo através dos quais é ordenada ou mantida ou que fundamentem a privação da liberdade do arguido ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis (artigos 399.º e segs. do CPP), que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (assim e quanto ao que se segue, por todos, de entre os mais recentes, o acórdão de 22.03.2023, Proc. n.º 631/19.5PBVLG-MC.S1, em www.dgsi.pt). A diversidade do âmbito de proteção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, em que aquela providência permite preencher um espaço de proteção imediata da pessoa privada da liberdade perante a inadmissibilidade legal da prisão. “ Ac. do STJ de 10 de maio de 2023 – Proc. 196/20.5JAAVR-B.S1 in www.dgsi.pt Assim e procurando concluir esta introdução, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessária e exclusivamente, às situações previstas nas alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa. Com efeito, como se tem afirmado em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (assim, de entre os mais recentes, por todos, os acórdãos de 16.11.2022, Proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 06.09.2022, Proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1, de 9.3.2022, proc. 816/13.8PBCLD-A.S1, e de 29.12.2021, proc. 487/19.8PALSB-A.S1, em www.dgsi.pt). 3.3.2. O caso concreto A Requerente não coloca em causa a competência do Juiz de Instrução Criminal de ... para proferir o despacho que determinou a sua prisão preventiva, nem refere que tenham sido ultrapassados os prazos previstos na lei para a aplicação e manutenção dessa medida coativa. Com efeito, o presente requerimento é feito com base no disposto nas alíneas b) do nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal: “Ser (a prisão) motivada por facto pelo qual a lei a não permite.” A requerente parece procurar acolhimento nessa norma, por entender não existirem indícios de ter praticado o crime que lhe é imputado e, sobretudo, por considerar que não existe nenhum dos perigos a que alude o nº 1 do artigo 204º do Código de Processo Penal, considerando a sua privação de liberdade desnecessária e desproporcional. Ora, essas são questões que não podem ser colocadas a este Alto Tribunal, no âmbito da providência de habeas corpus, dado ser evidente a sua falta de enquadramento, quer na letra, quer no sentido e alcance do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 222º do Código Processo Penal Com efeito, o Juiz de Instrução Criminal de ... consignou, com toda a clareza, entender existirem fortes indícios de que a arguida e ora requerente praticou um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punível pelos artigos 21º nº 1 e 24º, al. h) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à tabela II-A, com pena Portanto e face ao disposto no artigo 202º, nº 1, als. a) e b – esta por referência à al. j) do artigo 1º - todos do Código de Processo Penal, não há dúvida de que, prima facie, a lei permite a aplicação de prisão preventiva pelo facto pelo qual a requerente foi fortemente indicada. Saber se estão reunidos os demais requisitos para a aplicação de prisão preventiva (v.g. existência de perigo de fuga ou de grave perturbação do decurso do inquérito e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova ou de continuação da atividade criminosa) é algo que excede o âmbito da providência de Habeas Corpus, e que, eventualmente, justificará o recurso já interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra. Ou seja, para concluir e usando as palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, o disposto na aludida alínea al. c) do nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal aplica-se quando a pessoa é presa por um motivo ou causa pelo qual a lei não permite que exista uma privação de liberdade, ou seja, existe um motivo de prisão em que a lei não prevê que a atitude do agente tenha como consequência a sua prisão. Por exemplo, casos em que o arguido comete um crime doloso punível com pena de prisão inferior a cinco anos de prisão ou inferior a 3 anos de prisão no caso crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada ou detenção de arma proibida, detenção de armas ou outros dispositivos, ou por o crime ter sido amnistiado ou praticado negligentemente; casos em que se apura, à posteriori, que o arguido que se encontra preso preventivamente à data dos factos tinha 15 anos de idade; ou casos em que se verifica a revogação da suspensão da execução da pena de prisão com base no pressuposto do cometimento de outro crime doloso durante a suspensão, em que se verifica, mais tarde, que, afinal, teria sido cometido antes da sentença condenatória6 Concluindo, o requerimento tem de ser indeferido, por manifesta falta de fundamento legal. 3.4. Tributação e sanção processual Nos termos do disposto nos artigos 524º do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Judiciais e da sua Tabela III anexa, a requerente deve ser condenada em custas, variando a taxa de justiça entre 1 e 5 unidades de conta (UC). Face à não complexidade do processo fixa-se essa taxa de justiça em 2 (duas) Unidades de Conta Por outro lado, a rejeição do requerimento por manifesta falta de fundamento implica ainda a condenação da requerente no pagamento de uma importância entre 6 e 30 UC (que não são meras custas judiciais, tendo antes natureza sancionatória), por força do disposto no artigo 223º, nº 6, do Código de Processo Penal. Com efeito, são cumulativas a condenação em custas do incidente e em multa, no caso de pedido manifestamente infundado, pois elas visam propósitos diferentes: uma tributa o decaimento num ato processual a que deu causa e a outra censura a apresentação de requerimento sem a prudência ou diligência exigíveis (Salvador da Costa, As custas Processuais, Coimbra: Almedina, 6.ª ed., 2017, p. 86). Atendendo, por um lado, à pouca complexidade do objeto da decisão e, por outro, à manifesta improcedência do requerimento (apresentado, simultaneamente, com a interposição de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra com os mesmos fundamentos …) considera-se ajustado fixar essa importância em 10 (dez) unidades de conta. IV - DECISÃO a. Indeferir, assim, a providência de habeas corpus apresentada pela requerente AA por manifesta falta de fundamento legal, nos termos do disposto no artigo 223º nº 4, al. a) do Código de Processo Penal; b. Condenar a mesma requerente nas custas do processo nos termos do disposto nos artigos 524º do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Judiciais e da sua Tabela III anexa, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) unidades de conta; c. Condenar ainda o requerente na sanção processual prevista no artigo 223º, nº 6 do Código de Processo Penal, fixando-se o seu quantitativo em 10 (dez) unidades de conta. Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada Os Juízes Conselheiros, Celso Manata (Relator) Albertina Pereira (1ª Adjunta) Agostinho Torres (2º Ajunto) Helena Moniz (Presidente da Secção) _____________________________________________
1. Florêncio de Abreu, “Comentários ao Código de Processo Penal”, Vol. V, p. 549.↩︎ 2. Embora nesse tempo a noção e conteúdo da palavra fosse completamente diferente, é curioso notar que já o Direito Romano previa um dispositivo chamado “interdictum de libero homine exhibendo” que tinha como objetivo a apresentação de um homem livre que tivesse sido preso ilegalmente ao juiz.↩︎ 3. José Canotilho e Vital Moreira, “Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª. Ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 382↩︎ 4. José Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508” e Jorge Miranda e Rui Medeiros “Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, pág. 503 e sgs. e Germano Marques da Costa, “Curso de Processo Penal” II, pág. 321↩︎ 5. Por todos Ac. do STJ de 10 de maio de 2023 – Proc. 196/20.5JAAVR-B.S1 in www.dgsi.pt↩︎ 6. “Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem” 5ª edição, vol. II, págs. 962 e sgs..↩︎ |