Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P3703
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
CULPA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
MOTIVO FÚTIL
AUSÊNCIA DE MOTIVO
HOMICÍDIO
Nº do Documento: SJ200812100037033
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - No art. 132.º do CP o legislador utilizou a chamada técnica dos exemplos padrão, estando em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente – cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 27, e Teresa Quintela de Brito, Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191.
II - Assim sendo, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelem a referida especial censurabilidade ou perversidade; e, por outro lado, mesmo quando a descrição dos factos provados aponte para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do art. 132.º do CP, não é só por isso que o crime de homicídio deverá ter-se logo por qualificado. A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu com “efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 126), interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado.
III- É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente, «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil» – al. d) do n.º 2 do art. 132.º do CP, agora vazada na al. e) do mesmo normativo, com a Lei 59/2007, de 04-09.
IV- «“Qualquer motivo torpe ou fútil” significa que o motivo da actuação avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana» – cf. Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, § 13, pág. 32.
V - Motivo fútil é «um motivo sem relevo, sem importância mínima ou manifestamente desproporcionado segundo as concepções da comunidade, incapaz portanto de razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta» – cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado e comentado, 18.ª ed., pág. 515.
VI- Motivo fútil é o móbil da actuação despropositada do agente sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente.
VII- A inexistência de motivo não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo (ainda que fútil) se existir. De outra forma, todo o homicídio envolveria sempre motivo fútil, desde que inexistisse motivo.
VIII - Numa situação em que a matéria fáctica não alude a qualquer motivo de actuação – apenas vindo provado que o arguido, ao constatar a presença da vítima no local, encetou, desde logo, discussão verbal com ela, no que foi correspondido, e que, naqueles instantes, o arguido se apoderou de uma pedra (cujas características não se logrou apurar) que agarrou do chão e, fazendo uso da mesma, segurando-a com ambas as mãos, num movimento de cima para baixo, vibrou uma forte pancada contra a cabeça do ofendido – nem se tendo dado como assente que o arguido «agiu motivado por sentimentos relativamente à pessoa da vítima, consubstanciados unicamente em comportamentos de gozo e provocatórios por parte do último, demonstrando, desse modo, um manifesto desprezo pela vida humana alheia» – dado que se trata de matéria conclusiva –, é de concluir que não se pode reconhecer a existência de motivo fútil na simples falta de razão para o crime.
IX - E o modo de actuação do arguido na execução do crime, pela insistência repetitiva das pancadas dadas – pelo menos três –, fazendo uso de uma pedra, na cabeça e rosto da vítima, sem que a mesma esboçasse qualquer reacção de defesa, pois que com essa pedra já tinha desferido uma pancada na vítima com tamanha violência que a fizera tombar para trás, e querendo o arguido atingir o ofendido em zonas do corpo humano que sabia alojarem órgãos vitais, e desse modo retirar-lhe a vida, desiderato que logrou alcançar, não torna, ipso facto, a sua acção especialmente censurável ou perversa, face à falta de elementos intensificadores da culpa para que proceda a qualificação do crime. Verifica-se, pois, um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.º do CP.
Decisão Texto Integral: