Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
122/13.8TELSB.L1-G.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CELSO MANATA
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
MAGISTRADOS JUDICIAIS
IMPARCIALIDADE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I - O incidente de recusa previsto no artigo 43º do Código de Processo Penal assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de Direito Democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige independência e garantia de imparcialidade dos juízes (ver, entre outros, artigos 2.º, 8.º, 20.º, 202.º e 203.º, da CRP; art. 6 § 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos; art. 10.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; art. 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e art. 47.º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia);
II - O facto de o magistrado ter participado anteriormente em julgamento realizado em processo no qual foram arguidas pessoas diversas e com objeto distinto, ainda que separado dos presentes autos, no qual exerce atualmente funções de relator, não constitui, só por si, fundamento para o deferimento de pedido de recusa;
II - De igual forma, a circunstância de o magistrado ter participado na prolação de acórdão relativo à verificação dos requisitos relativos à aplicação de medida coativa de obrigação de apresentação periódica – no qual já havia sido proferida pronúncia por outro magistrado – em processo anterior e diverso, também não constitui, só por si, motivo de recusa;
IV - Existindo uma “presunção” a favor da imparcialidade dos magistrados, cabe ao requerente alegar e fazer prova da existência de factos donde decorra o risco de a intervenção do recusando nos presentes autos correr o risco de ser considerada suspeita, por existir o mencionado risco sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

A. Relatório


A.1. O Requerimento de recusa


AA, arguido no processo acima identificado, veio, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 43º nºs 1 a 4 do Código de Processo Penal, deduzir incidente de recusa dos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa BB e CC, o que faz com os seguintes fundamentos (transcrição integral):


“1. O Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator interveio em dois julgamentos anteriores de processos que foram separados do processo n. 122/13.8TELSB - processo em cujos autos subiu o presente incidente de recurso:

 No processo n.º 9153/21.3... do Juiz ... do JC..., em que era Arguido o aqui Recorrido DD, como Presidente; e

 No processo n.º 9152/21.5..., em que era Arguido o aqui Recorrido EE, como Adjunto.

2. Ambos os Julgamentos foram concluídos com intervenção do Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator,


3. Em ambos os casos por Acórdãos que condenaram ambos os ali Arguidos e aqui Recorridos a penas de prisão efetiva.


4. E ambas essas condenações se basearam em factos, que julgaram provados, que pressupunham factos objeto da decisão Instrutória recorrida.


5. Ambos os processos, de resto, foram separados deste, apenas e precisamente no final da decisão instrutória recorrida – a decisão instrutória na parte da não pronúncia, aqui sob juízo, foi proferida quando ambos ainda integravam os presentes.


6. E foi determinante da separação desses processos – foi por isso, por não ter pronunciado DD e EE pelos demais crimes que lhes eram imputados na Acusação, que o Juiz de Instrução entendeu declarar cessada a sua conexão com os presentes


7. Os factos descritos significam que para os efeitos deste processo e do artigo 40.º alínea c) do Código de Processo Penal o Senhor Juiz Relator participou em julgamento anterior.


8. São por isso determinantes do impedimento do Senhor Juiz Desembargador Relator para intervir nos presentes autos.


O que requer seja reconhecido pelo Senhor Juiz Desembargador Relator – nos termos do artigo 41.º n.ºs 1 e 2 do mesmo código.


9. A este propósito, suscita nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade do artigo 40.º alínea b) do Código de Processo Penal na interpretação normativa de que a participação de juiz em julgamento anterior de processo que tenha sido separado, não é subsumível na referida norma e não consubstancia, por isso, impedimento a que o mesmo juiz intervenha em decisão relativa a recurso em que sejam Recorridos os arguidos nos processos em cujos julgamentos o juiz visado participou, ainda que esteja em causa apreciar a sua não pronúncia no processo principal, que a mesma tenha sido proferida previamente à separação e que dela tenha sido determinante – por violação do disposto no artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição, por violação do direito, garantia e princípio constitucional fundamental do processo equitativo, por violação do princípio da legalidade e da sujeição dos Juízes à lei, consagrado nos artigos 29.º e 203.º, por violação das garantias de ampla defesa e especialmente do direito, garantia e princípio constitucional fundamental do Juiz natural, consagrado no artigo 32.º, por violação do Princípio da Separação e Interdependência de Poderes, da organização constitucional da República Portuguesa como Estado de Direito Democrático baseado na Soberania Popular e dos artigos 2.º, 108.º, 110.º, 111.º, n.º 1, 112.º, n.º 5, 161.º, alíneas c) e o), 165.º, n.º 1 alíneas b) e p), 199.º, alínea c) e 202.º e 203.º da Constituição, e por violação do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.


Sem embargo, e sem prescindir,


10. Entende o Requerente que tais factos consubstanciam também fundamento de escusa e de recusa, nos termos do artigo 43.º n.ºs 1 a 4, uma vez que, face a tais factos, a sua intervenção neste processo corre o risco de ser considerada suspeita, por existirem motivos sérios e graves adequados a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade:

 O facto de o Senhor Juiz Desembargador Relator ter intervindo nos julgamentos

anteriores antes citados;

 O facto de se tratar em ambos os casos de processos separados deste no final da decisão aqui recorrida;

 O facto de o Senhor Juiz Desembargador Relator ter assinado os Acórdãos finais sem votar vencido, julgando assim como provados factos essenciais ao objeto da decisão aqui recorrida, (ainda que) como pressupostos dos demais factos julgados provados nesses outros processo e dos termos das condenações proferidas, designadamente da escolha e da medida das penas aplicadas.

Acresce que,


11. A Senhora Juíza Desembargadora Dra. CC interveio no Julgamento em Conferência do processo n. 16017/21.9..., como segunda Adjunta.


12. Interveio, assim, em decisão de recurso anterior que apreciou a decisão de sujeitar o Recorrido aqui Requerente a medida de coação de Apresentações Periódicas quinzenais no posto da GNR ....


13. E confirmou tal decisão, ao ter assinado o Acórdão sem votar vencida, não obstante à data dos factos ali em causa o aqui Requerente não ter sequer prestado TIR naquele processo, o que fez apenas após ter sido ouvido pela Senhora Juíza antes e para a prolação da decisão ali recorrida; antes dos factos em causa naquele recurso, nunca havia sido prestado.


14. Confirmou mesmo o período de fuga, que havia sido invocado absurdamente, sem qualquer fundamento, pelo Senhor Procurador - que também assina o requerimento e a motivação do presente recurso - e pela Senhora Juíza a quo, que foi quem decidiu, operou a autonomização e atribuiu a si própria o dito processo.


15. Tais razões bastam para evidenciar a injustiça do Acórdão que a Exma. Senhora Juíza Desembargadora Adjunta aprovou e subscreveu nesse incidente.


16. E consubstanciam também, no modo de ver do Requerente, fundamento da sua escusa e recusa, nos termos do artigo 43 já citado, uma vez que, face a tais factos, a sua intervenção neste processo corre o risco de ser considerada suspeita, por existirem motivos sérios e graves adequados a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


17. Ter votado favoravelmente e subscrito o Acórdão tirado naquele Julgamento, induz fundamentadamente a desconfiar da sua imparcialidade contra o Requerente.”


A.2. A posição dos Magistrados


Em obediência ao disposto no nº 3 do artigo 45º do Código de Processo Penal, os magistrados visados pronunciaram-se nos seguintes termos (transcrições integrais):


A.2.1. Juiz Desembargador (Relator) BB


“Incidente de recusa/escusa de 29/05/2024 (referência ....04):


O recorrente veio suscitar incidente de recusa/escusa do Juiz Desembargador relator e de uma das Excelentíssimas Juízas Desembargadoras Adjunta que integra o Colectivo deste Tribunal da Relação de Lisboa.


E, assenta, a sua motivação na participação do Juiz Desembargador relator em dois processos extraídos deste processo 122/13.8TELSB e na participação da Excelentíssima Juíza Desembargadora Adjunta na prolação de acórdão que apreciou aplicação de medida de coacção de obrigação de apresentações periódicas ao recusante no âmbito do processo 16017/21.9...


A Excelentíssima Juíza Desembargadora adjunta pronunciou-se no sentido de inexistir fundamento legal para o deferimento do pedido de escusa.


De igual forna considero não existir fundamento legal para o deferimento do pedido de recusa/escusa.


Com efeito, os processos em que tive intervenção como juiz relator e como juiz adjunto resultaram de cessação de conexão processual com o remanescente objecto processual do processo 122/13.8TELSB.


Assim, os julgamentos em causa tinham um objecto processual completamente distinto daquele que se discute no actual processo 122/13.8TELSB


Assim, têm-se por concluídos os esclarecimentos tidos por relevantes pelo juiz relator.”


A.2.2. Juíza Desembargadora CC


“Por entender não existir base legal para formular pedido de escusa, deverá seguir então, a pretendida recusa de juiz para o STJ.”

B. Fundamentação


B.1. Os factos


Embora o requerimento apresentado e as informações prestadas permitissem a prolação de decisão nos presentes autos, com vista à sua melhor compreensão far-se-á anteceder a mesma de um pequeno enquadramento1 - o qual resulta da leitura dessas peças processuais e das consultas realizadas através do citius - prosseguindo-se no relato dos demais fatos que importam para a decisão a proferir. Assim:

• A 9 de abril de 2021 foi proferido nos presentes autos (que ficou conhecido como “...”) decisão instrutória que, para o que ora interessa, se pode dividir em três partes:

– Por um lado, foi proferido despacho de pronúncia e determinado que o processo seguisse para a fase de julgamento, relativamente a um conjunto de factos / crimes imputados, designadamente, ao ora requerente AA;

– Por outro lado, foi proferido despacho de não pronúncia relativamente a uma significativa parte dos factos/crimes referidos na acusação do Ministério Público e que eram imputados, designadamente, ao ora requerente AA;

– Finalmente na terceira parte, foram extraídas certidões que, no que ora interessa, deram origem aos seguintes processos:

• Processo n.º 9153/21.3... do Juiz ... do JC..., em que era arguido DD:

• No processo n.º 9152/21.5..., em que era arguido EE.

• Ao fundamentar a extração das certidões, com vista à instauração em separado desses processos, o Juiz de Instrução Criminal, no seu despacho de 9 de abril de 2021 consignou, designadamente, o seguinte (transcrição parcial)2:


“(…) atendendo ao supra exposto e a decisão de não pronuncia, por questões processuais ou por inexistirem indícios relativamente a factualidade que consubstanciava o cometimento dos crimes imputados em co-autoria aos arguidos FF, DD e EE com os demais arguidos, e que determinaram a referida conexão, impõe-se que não se encontrando preenchidos os pressupostos, quer subjectivos, quer objectivos, para a sua conexão, que os factos indiciariamente imputados aos arguidos em causa, com proferimento de decisão de pronúncia, sejam julgados de forma separada dos demais arguidos.


Pelo exposto, determino a separação do processo relativamente aos arguidos FF, DD e EE.


**


Em consequência, deverá ser extraída certidão das seguintes pecas processuais:


(…)


Relativamente ao arguido DD:


Extraia certidão da presente decisão, bem como da decisão instrutória, em particular o segmento relativo ao arguido AA, GG, HH e DD, e de:


Acusação em suporte informático;


Decisão instrutória em suporte informático;


Notificação da acusação ao arguido;


- TIR e Constituição de arguido – fls. 33436/7;


- Procuração – fls. 33438;


- Interrogatório perante MP, no DCIAP – fls. 33439 a 33469;


- Interrogatório perante JIC – fls. 33472 a 33561;


- Despachos medidas de coacção – fls. 33489 a 33559, 44828 a 44831, 51373 e 51374;


- Despachos escutas (extraídas do processo 207/11.5...) – fls. 35830, 35831, 35841 a 35843, 36026 a 36039;


- Interrogatório em fase de Instrução – fls. 54294 a 54299 e respectivo CD;


- Actas do Debate Instrutório de fls. 55921 a 55946, 55963 a 55965, 55976 a 55978, 55984 a 55986, 56002 a 56004, 56170 a 56172, 56176 a 56178, 56196 a 56198, 56203 a 56205, 56287 a 56298 (acompanhado de CD de gravação);


- Apenso Bancário 20-P fls. 41363, 41486;


- Apenso de Busca 150 anexo 4, o qual deve ser desapensado destes autos;


-Auto de busca;


- Apenso Temático CG – 1º volume;


- Inquirição de HH fls. 35405 dos autos principais, e transcrição apenso 1, Vol. 7 e apenso 1-B, Vol. 2;


- Inquirição II – identificado a fls. 83 do Apenso AX e fls. 33274;


- Inquirição testemunha JJ – fls. 33207 e 33649;


- Inquirição testemunha KK – fls. 29525;


- Inquirição testemunha LL - fls. 29550;


- Inquirição testemunha MM – fls. 20450 e 35330;


- Inquirição testemunha NN – fls. 37157;


- Inquirição testemunha OO – fls. 34161.


- Inquirição da testemunha PP, fls. 38987 e ss.


- Inquirição da testemunha, QQ fls. 27940 e ss.


Após, instrua processo autónomo e proceda a desapensação dos Apensos bancários 121, 123, 126, 131-A e 131-B, Apenso de Transcrição escutas 36 e 38, Apenso de Busca 150, bem como do Apenso de Recurso “AU”, e junte a certidão a fim de ser apensado ao processo a que der origem a indicada certidão, remetendo ao Tribunal Competente - Instância Central Criminal ....


***


Relativamente ao arguido EE:


Extraia certidão da presente decisão, bem como da decisão instrutória, em particular o segmento relativo ao arguido EE, e de:


- Notificação da acusação;


- Apenso Bancário 69-A, fls. 18;


- Apenso Bancário 92, fls. 9, 29;


- Apenso Bancário 92-A fls. 1, 6, 7, 8, 10;


- Apenso Bancário 104-C, fls. 356;


- Apenso Bancario137, fls. 2, 3, 22, 23, 25 a 34, 44 e 48;


- Apenso Bancário 137-B;


- Apenso Temático AU, parte VII, fls. 63066 a 63069;


- Apenso Busca 164 – Doc. 3 e 4;


- fls. 37888 a 37897 e 37899 a 37902 e 38425 dos autos principais;


- fls. 37874 a 37883 dos autos principais;


- fls. 35980 a 35984 dos autos principais;


- fls. 38198 a 38201 dos autos principais;


- fls. 55400 e 55401 dos autos principais;


- fls. 55494 e 55495 dos autos principais;


- fls. 55524 e 55525 dos autos principais;


- fls. 55526, 55550, e 55552 dos autos principais;


- Despacho determinar Buscas – fls. 18617 a 18627;


- Despacho Mandado detenção – fls. 18628 a 19631;


- Mandado de busca – fls. 18752 a 18759;


-Auto de Busca;


- Mandado de detenção – fls. 18783 a 18784;


- TIR e constituição de arguido – fls. 18785 e 18786;


- Procuração – fls. 18802;


- Interrogatório Judicial fls. 18803 a 18899 e respectiva transcrição constante do Apenso de Transcrição Apenso 1 – Vol. 4;


- Despachos medidas de coacção: 19030 e 10031; 22011 e 22015, 31895 a 31901;


- Promoção MP apreensão saldo conta ... – fls. 38110 a 38112;


- Despacho determinar apreensão de saldo conta ... e respectivo oficio – fls. 38134 e 38135, 38145;


- Interrogatório perante MP - fls. 40046 a 40056;


- Requerimento Abertura de Instrução – fls. 50447 a 50476;


- Despacho Abertura de Instrução – fls. 51625 a 51664;


- Interrogatório perante JIC (Instrução) – fls. 52929 a 52931 (acompanhado de CD de gravação);


- Requerimento EE pedido levantamento caução hipoteca - Fls. 51608 a 51618, 51665 a 51675;


- Despacho JIC extinção medida coacção de caução de hipoteca - Fls. 51950 a 51965;


- E-mail do IRN levantamento hipoteca - Fls. 52122 a 52128;


- Despacho a notificar o arguido por forca do Acórdão do TRL acerca da Caução - Fls. 55400;


- Actas do Debate Instrutório de fls. 55921 a 55946, 55963 a 55965, 55976 a 55978, 55984 a 55986, 56002 a 56004, 56170 a 56172, 56176 a 56178, 56196 a 56198, 56203 a 56205, 56287 a 56298 (acompanhado de CD de gravação);


- Acusação Publica em formato digital;


- Inquirição da testemunha RR – fls. 38387 a 38407, 38411 a 38425, e 52868 a 52871;


- Inquirição da testemunha MM – fls. 20450 a 20451 e 35330 a 35335;


- Inquirição de SS - fls. 22184 a 22190 e transcrição Apenso 1, vol. 4); 36333 a 36336 e transcrição constante no Apenso 1, vol. 8 e fls. 52817 a 52819;


- Inquirição da testemunha TT, fls. 16341 e 32127, e transcrição apenso 1-C, Vol. 1;


- Inquirição de UU, fls. 17581 e ss., e transcrição apenso 1, vol. 4 e apenso 1- B, Vol. 1;


- Inquirição de VV - fls. 34178 e ss., e transcrição apenso 1, Vols. 7 e 9 (apenso AS – carta rogatória) e apensos 1-B, Vol. 2 e 1-C, Vol. 3;


- Inquirição de WW - fls. 30447 e ss., 15057 e ss. 16204 ss. e 19546 ss. e transcrição apenso 1, Vol. 3 e apenso 1-B, Vol. 1.


Remata a decisão instrutória em suporte informático.


Após, instrua processo autónomo e proceda a desapensação dos Apensos bancários 60, 61, 69-D, 104, 104-B, 104-C, 137, do Apenso temático X e BV, do Apenso de Busca 90, bem como dos Apensos de Recurso “AY e AZ”, e junte a certidão a fim de ser apensado ao processo a que der origem a indicada certidão, remetendo ao Tribunal Competente- Instância Central Criminal ....”

• Em seguida, devido a recurso interposto desse despacho de não pronúncia, o processo seguiu para o Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que foi extraída certidão e constituído um novo processo – ao qual foi atribuído o nº 16017/21.9... –, com vista ao julgamento dos factos relativamente aos quais o despacho de 9 de abril de 2021 tinha proferido despacho de pronúncia, designadamente contra o requerente AA.

• Através de acórdão proferido 25 de janeiro e retificado a 8 de fevereiro de 2024 o Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público do despacho de não pronuncia proferido a 9 de abril de 2021 e acima referido, tendo pronunciado o requerente AA pela prática de vários crimes.

• E, através de acórdão proferido a 2 de maio de 2024 pelo mesmo tribunal, foram indeferidos todos os requerimentos que tinham invocado diversas questões, designadamente nulidades, relativamente ao atrás citado acórdão.

• Finalmente, através de despacho proferido a 22 de maio de 2024 a Juiz Desembargadora relatora considerou finda a sua atividade nestes autos e – porque, à semelhança do que ocorreu com outros elementos desse coletivo, tinha sido entretanto transferida para outro tribunal – determinou que os autos fossem remetidos à distribuição, tendo a mesma determinado que o coletivo atualmente competente para os tramitar seria composto, designadamente, pelo Juiz Desembargador BB (como relator) e pela Juíza Desembargadora CC (como 2ª adjunta).

• Por requerimento apresentado a 29 de maio de 2024 veio o arguido AA suscitar, designadamente, a recusa dos dois Magistrados Judiciais identificados no parágrafo anterior, com os fundamentos já atrás transcritos (e que aqui se dão por reproduzidos), considerando estes não haver fundamento para tal pedido, também nos termos igualmente transcritos (e que, igualmente, aqui se dão por reproduzidos).


B.2. O direito


B.2.1. Considerações gerais


Nos termos do disposto no artigo 202º da Constituição da República Portuguesa, os Tribunais “administram a justiça em novo povo” e, para o poderem fazer adequadamente, são, nos termos do artigo 203º da Lei Fundamental, “independentes e apenas estão sujeitos à lei”.


Por outro lado, e como desde longa data refere o Tribunal Constitucional, “a independência dos tribunais pressupõe e exige a independência dos juízes3


Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros4 “a independência dos juízes – de cada juiz – pressupõe e reclama a sua não submissão às partes em litígio e, designadamente a sua exterioridade em face dos interesses em confronto. Exige, em palavras simples, a respetiva imparcialidade ou tercialidade (…) “independência e imparcialidade são verso e reverso da mesma realidade fundamental e a imparcialidade (…) é uma nota essencial do próprio conceito de tribunal”.


Vários instrumentos jurídicos internacionais a que Portugal está vinculado estabelecem que todo o cidadão tem direito a um processo justo, apreciado por um tribunal independente e imparcial, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 10º) o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14º, corpo), a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 6º, nº 1) e, mais recentemente, a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 47º).


Aliás, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela primeira vez sobre a independência e imparcialidade dos juízes no seu acórdão 114/955, convocando a jurisprudência à luz do art. 6º, nº 1, da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, segundo o qual qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, em prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, com alcance de que, num estado de direito, o juiz que preside ao julgamento o faça com independência, ou seja, à margem de quaisquer pressões, e imparcialidade, numa posição distanciada, acima dos interesses das partes, sendo desejável também que o povo, em nome de quem exerce a justiça, nele tenha confiança, surgindo aos olhos daquele o julgamento como objetivamente justo e imparcial, impondo-se a predefinição de um quadro legal orientado para tal finalidade.


Por outro lado, e como é referido em acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça6:


“Tem sido uma constante da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que a imparcialidade deve apreciar-se segundo critérios subjetivos e objetivos, como resulta, entre outros do acórdão de 13 de novembro de 2012, no caso Hirschhorn c. Roménia, Queixa n.º 29294/02 e do acórdão de 26/07/2007, no caso De Margus c. Croácia, Queixa n.º 4455/10. Jurisprudência também seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente, nos acórdãos de 6 de setembro de 2013 (proc. n.º 3065/06) e de 13 de fevereiro de 2013 (proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1).”


Em sequência e citando, mais uma vez, a jurisprudência deste Alto Tribunal7:


“I - Na sua vertente subjectiva, a imparcialidade do juiz significa uma posição pessoal, do foro íntimo do juiz, caracterizada pela inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou prejudicar qualquer das partes com a sua decisão.


II - Na vertente objectiva, a imparcialidade traduz-se na ausência de quaisquer circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tenha um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afectando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais”.8


Por outro lado, importa ainda recordar que o artigo 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio do “juiz natural”, configurado como uma garantia fundamental do processo criminal e assegurando, também por esta via, todas as garantias de defesa em processo criminal.


No intuito de garantir a imparcialidade da jurisdição e concomitantemente assegurar a confiança da comunidade em relação à administração da justiça o Código de Processo Penal estabeleceu, nos artigos 39º e sgs., o regime de impedimentos e de suspeições, subdividindo-se estas em escusas e recusas.


No que concerne a estas últimas dispõe o artigo 43º do Código de Processo Penal:


“Artigo 43.º


(Recusas e escusas)


“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º


3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.


4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2.


5 - Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.”


Uma última nota para, desde já, sublinhar a circunstância de o legislador ter consignado que a recusa está dependente da existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.


Como refere Rui Patrício:9


“A imparcialidade é sempre aferida no caso concreto e de acordo com o circunstancialismo do mesmo (cfr. por exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de abril de 20142), sendo que a “presunção” a favor da imparcialidade — na sua vertente objetiva ou na sua vertente subjetiva, ou em ambas — fica posta em causa, não só quando existe interesse pessoal do juiz ou quando intervenções processuais concretas do mesmo mostram falta de isenção, mas também quando uma intervenção anterior com alguma intensidade a pode comprometer “


Ou seja, para elidir a “presunção” a favor da imparcialidade – e afastar o princípio do juiz natural - não servem quaisquer razões, devendo o respetivo incidente estar fundado em motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.


Por outro lado, a aludida qualificação do motivo tem de ser objetivamente considerada, não bastando o simples convencimento do requerente para que se defira a recusa, devendo antes a mesma ser aferida em função do juízo do cidadão médio representativo da comunidade. Com efeito, neste domínio impõe-se uma especial exigência quanto à prova da objetiva gravidade da invocada causa de suspeição pois, de outro modo, estava facilmente encontrado o meio de contornar o princípio do “juiz natural” (neste sentido Ac. do STJ proferido no Incidente de recusa nº 1022/22.6T9VIS-A.S1 de 07 de março de 2024).


Concluindo, para terminar este excurso e como referido no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 07 de março de 2024 atrás referenciado:


“Em suma, para sustentar a escusa ou recusa do juiz é necessário verificar:

- se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;

- e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, para o que deverão ser indicados factos objetivos suscetíveis de preencher tais requisitos, a analisar e ponderar segundo as circunstâncias de cada caso concreto, de acordo com as regras da experiência comum e com “bom senso” (acórdão de 13.04.2023, Proc. 16/23.9YFLSB-A).”

B.2.2. Apreciação


B.2.2.1. – A recusa do Juiz Desembargador BB


Antes de mais e embora isso nos pareça evidente, importa consignar que o requerimento de recusa apresentado deve ser - e será – exclusivamente apreciado do ponto de vista dos interesses do seu requerente, que é o arguido AA.


Feito esta chamada de atenção constata-se que, no caso em apreço e no tocante ao magistrado acima identificado, o requerente pretende o seu afastamento do presente processo em virtude de o mesmo ter participado no coletivo que proferiu os acórdãos condenatórios nos Processos 9153/21.3... e 9152/21.5..., dos Juízos Centrais Criminais ...10.


Contudo e como o mesmo reconhece, tais processos foram instaurados contra, respetivamente, DD e EE, sendo o objeto processual diverso do dos presentes autos e não estando o requerente envolvido nem nos factos neles apreciados pois, caso contrário, também teria sido visado nesses processos.


Aliás, no despacho que estabelece quais as peças processuais que devem integrar a certidão que esteve na génese desses nossos processos – e nas quais constam os autos de inquirição de diversas pessoas – não figura o nome do requerente.


Por outro lado, a mera circunstância de os factos apreciados nesses processos terem sido incluídos na acusação deduzida pelo Ministério Público nos presentes autos não é suficiente para fundamentar o pedido de recusa pois a mesma terá decorrido da conexão subjetiva então existente. Ou seja, aqueles dois arguidos estavam envolvidos noutros factos praticados subsumíveis em ilícitos criminais relativamente aos quais o ora requerente também era arguido.


Assim, a conclusão que se retira é que os factos julgados nos processos 9153/21.3... e 9152/21.5... não estão relacionados com os se reportam nos presentes autos e, desde logo por isso, não constituem motivo de recusa. E escrevemos “desde logo” porque, como atrás referimos, outros requisitos teriam de se verificar para se poder deferir o pedido ora em apreciação.


Com efeito e ainda a propósito desta matéria, cabia ao requerente alegar e demonstrar FACTOS que confirmassem essa relação e, ainda, que evidenciassem que a mesma consubstanciava motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do magistrado visado.


Na verdade, e como atrás se deixou consignado, existindo uma “presunção” a favor da imparcialidade dos magistrados, cabia ao requerente alegar e fazer prova da existência do risco de a intervenção do Juiz Desembargador BB nos presentes autos poder ser considerada suspeita, por existir o mencionado risco sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


Ora, colocando-nos na posição de um cidadão médio, não nos parece que se possa entender que, do ponto de vista dos interesses do requerente AA, se possa conceber o risco ou a aparência do não reconhecimento público da imparcialidade e isenção do Sr. Juiz Desembargador em questão. Para esse cidadão médio, o aludido magistrado interveio em (mais) dois julgamentos, relativos a outras pessoas - que não o requerente - e sobre factos diversos dos que constituem o objeto dos presentes autos.


Face ao exposto e quanto este magistrado, o pedido de recusa será indeferido


B.2.2.2. – A recusa da Juíza Desembargadora CC


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Relativamente a esta magistrada o requerente pede o seu afastamento porquanto a mesma participou no coletivo que julgou o recurso por si apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa e que confirmou a decisão da primeira instância que – no âmbito do processo 16017/21.9...11 - lhe aplicou a medida coativa de obrigação de apresentação periódica.


A este propósito e regressando às notas de enquadramento atrás consignadas, importa sublinhar que, aquando dessa decisão, o arguido AA já tinha sido acusado e pronunciado no aludido processo.


Ou seja, o objeto desse recurso consubstanciava-se, apenas, na verificação dos requisitos gerais das medidas coativas e, mais concretamente – como o próprio requerente refere -, na existência, ou não, de factos que permitissem considerar existir o perigo de fuga do requerente invocado pelo Ministério Público.


Com efeito, tendo já sido proferida pronúncia, não havia que avaliar da existência de indícios, nem de apurar se os mesmos eram ou não subsumíveis “à prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos”.


Portanto, dado que nada mais foi alegado – e muito menos provado… -, não se vê como é que a participação no aludido coletivo pode afetar a imparcialidade da aludida magistrada no desempenho das funções nos presentes autos.


Pelo que também quanto a esta magistrado, o pedido de recusa será indeferido.


B.2.2.2. Conclusão


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Em suma, não existem elementos no processo que permitam considerar que a intervenção dos referidos Juízes Desembargadores no processo possa ser considerada suspeita nem – muito menos – que o requerente tenha indicado e provado factos objetivos que constituem motivo, sério e grave, para gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

C. Decisão


Pelo exposto, nos termos do artigo 45.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, acorda-se em indeferir o requerimento de recusa apresentado pelo requerente AA


Custas pelo requerente fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC, nos termos do artigo 7.º, n.º 4, e da Tabela II do Regulamento das Custas Processuais ex vi artigo 524.º do Código de Processo Penal.


Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada


(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)


Celso Manata (Relator)


Agostinho Torres (1º Adjunto)


Vasques Osório (2º Adjunto)


___________________________________________

1. Que se limitará, exclusivamente, aos pontos que nos parecem úteis ou relevantes para o aludido objetivo, já que o processo em questão é dos mais volumosos e complexos que alguma vez existiu em Portugal, parecendo-nos desnecessário ir mais além, tendo em vista a decisão a proferir nos presente processo.↩︎

2. Fls. 6699 e sgs. do aludido despacho.↩︎

3. Ac. do Tribunal Constitucional nº 135/88↩︎

4. “Constituição da República Anotada”, Tomo III, pág. 39↩︎

5. Diário da República II Série de 22 de abril de 1995↩︎

6. Ac. de 22 de abril de 2022 - Proc. 44/19.9YGLSB-A.S1 in www.dgsi.pt↩︎

7. Ac de 22 de janeiro de 2013 – Proc. 673/02.0TAVIS.C1-A.S1 in www.dgsi.pt↩︎

8. Ac. do STJ de 13 de setembro de 2006 – Proc. 0GP3065 in www.dgsi.pt↩︎

9. “Imparcialidade e Processo Penal Três Realidades Distintas”, revista “Julgar”, nº 30, pág. 43 e sgs.↩︎

10. Os processos que foram originados com base nas certidões cuja extração foi determinada no que supra apelidámos de terceira parte do despacho de 9 de abril de 2021.↩︎

11. Este processo reporta-se aos factos pelos quais o requerente foi pronunciado e que supra apelidámos de primeira parte do despacho de 9 de abril de 2021↩︎