Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
47/17.8YGLSB
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUISITOS
SANEAMENTO
DESPACHO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 09/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – FASES PRELIMINARES / INQUÉRITO / ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO / INSTRUÇÃO / DEBATE INSTRUTÓRIO – JULGAMENTO / SANEAMENTO DO PROCESSO.
DIREITO PENAL – INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS POR CRIME / INDEMNIZAÇÃO DO LESADO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 283.º, N.º 3, ALÍNEAS B) E C), 286.º, N.ºS 1, 2 E 3, 287.º, N.ºS 1, ALÍNEA B), 2 E 3, 288.º, N.º 4, 298.º E 311.º, N.ºS 2, ALÍNEA A) E 3, ALÍNEA B).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 130.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/93.
Sumário :
I. -     A instrução constitui, nos termos do art. 286.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, uma fase facultativa do processo penal, através da qual se opera a fiscalização judicial da posição assumida pelo Ministério Público no final do inquérito, ou seja, a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito. No caso de arquivamento do inquérito, que é a situação que aqui importa considerar, o assistente tem a faculdade legal de requerer a abertura da instrução relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, quando se trate de crimes de natureza pública ou semipública, tendo em vista a submissão da causa a julgamento, nos termos do art. 287º, n.º 1, b), do CPP.

II. -  O n.º 2 do art. 287º do CPP determina que o requerimento para abertura da instrução do assistente, além de expor as divergências relativamente ao despacho de não acusação, deve dar cumprimento ao disposto no n.º 3, b) e c), do art. 283º, também do CPP, sendo este último referente à estrutura da acusação. Assim, por força deste preceito, o requerimento para abertura da instrução deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”; e deve conter ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

III. -  A remissão para a disposição legal que regula a estrutura da acusação revela que o requerimento de abertura de instrução do assistente reveste a natureza jurídica de uma autêntica acusação, uma acusação em sentido material, desempenhando uma função idêntica à da acusação formal (a que é deduzida após o inquérito): a de fixação do objeto do processo, definindo vinculativamente o âmbito dos poderes de cognição do tribunal. O requerimento de abertura de instrução fixa, assim, o objeto da instrução, definindo e circunscrevendo o quadro temático em que o juiz de instrução pode agir no âmbito do seu poder de investigação autónoma, conforme resulta expressivamente do n.º 4 do art. 288º do CPP.

IV. -   Nem poderia ser de outra forma, atendendo à estrutura acusatória do processo penal, que impõe que o juiz investigue ou julgue (conforme atue como juiz de instrução ou como juiz de julgamento) dentro dos limites que lhe são propostos por uma acusação deduzida por um órgão diferenciado. Na instrução requerida pelo assistente, é este o sujeito processual encarregado de definir o objeto do processo. Sem uma precisa descrição fáctica da matéria imputada ao arguido no requerimento para abertura da instrução não haveria vinculação temática do juiz de instrução, nem consequentemente estariam asseguradas as garantias de defesa do arguido.

V. -     Nos termos do n.º 3 do art. 287º do CPP, o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz, ou por inadmissibilidade legal da instrução.

VI. -    Se a extemporaneidade ou a incompetência do juiz não suscitam dúvidas de interpretação, já o conceito de “impossibilidade legal” comporta alguma indeterminação. É inquestionável que esse conceito abrange os casos em que a lei, expressa ou tacitamente, veda o recurso à instrução. Expressamente, a lei afasta a instrução nos processos especiais (n.º 3 do art. 286º do CPP). Mas também se deve considerar “legalmente impossível” a instrução quando faltar legitimidade ao requerente, quando for requerida contra desconhecidos ou contra pessoa não investigada no inquérito, ou quando for requerida pelo assistente em crime particular.

VII. -  Já quando se verifique o incumprimento do disposto no n.º 3 do art. 283.º do CPP, imposto pelo n.º 2 do art. 287.º do CPP, ou seja, quando tenha sido omitida a narração dos factos, não parece adequado recorrer-se à figura da “impossibilidade legal”, uma vez que a lei não impede a priori a instrução. Perante a falta de previsão específica para o caso, mostra-se mais correto preencher a lacuna por meio do art. 311.º, n.º 2, a), e n.º 3, b), do CPP, aplicável à acusação (formal), que dispõe que a acusação deve ser rejeitada quando não contenha a narração dos factos.

VIII. -  Na verdade, o paralelismo/similitude funcional entre a acusação formal e o requerimento para abertura da instrução, já acentuado atrás, recomenda a aproximação, se não mesmo coincidência, entre as causas que podem motivar a rejeição de ambos.

IX. -  Se atentarmos no citado n.º 3 do art. 311.º, constatamos que a acusação deve ser rejeitada em quatro situações: quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos (já acima referida); se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; e se os factos não constituírem crime. Donde resulta que a acusação não pode ser rejeitada por falta de indícios dos factos nela descritos. Ou seja, o juiz do julgamento, quando procede ao saneamento do processo, não pode sindicar a suficiência indiciária dos factos; a única fiscalização a que pode proceder é a da relevância criminal dos factos descritos na acusação.

X. -    Esta opção legislativa (que afastou, recorde-se, a jurisprudência fixada no AFJ do STJ n.º 4/93) não tem só, nem principalmente, razões de celeridade processual, radicando antes na própria natureza acusatória do processo penal, ao evitar uma pronúncia do juiz, antes do julgamento, em que se procederá à produção exaustiva da prova, sobre a suficiência da prova indiciária dos factos.

XI. -    Mas se essas razões são válidas para a acusação, não o são menos para o requerimento para abertura da instrução, dado o paralelismo, já assinalado, entre os dois atos processuais. Donde resulta que, por força dos nºs. 2 e 3 do art. 311.º do CPP, aplicável analogicamente, o juiz de instrução, ao analisar o requerimento para abertura da instrução, está impedido de apreciar a suficiência dos indícios dos factos nele narrados, podendo apenas indagar se tais factos constituem crime.

XII. -   Não se acolhe, assim, a tese subscrita e utilizada no despacho recorrido no sentido de o juiz de instrução poder analisar a suficiência das provas constantes do inquérito, e poder decidir pela rejeição liminar do requerimento, se concluir pela insuficiência. Esse entendimento redundaria, afinal, em privar o assistente da defesa da sua posição no debate instrutório, o ato nuclear da instrução, que se destina a habilitar o juiz de instrução, mediante o contraditório oral das partes, a decidir sobre a existência de “indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento” (art. 298.º do CPP). Sem esse debate contraditório perante o juiz, o assistente veria, afinal, desproporcionadamente reduzido o seu direito de acesso ao direito e à justiça.

XIII. -  O requerimento para abertura da instrução formulado pela assistente foi rejeitado com base no art. 130.º do CPC, que dispõe que não é lícito realizar no processo atos inúteis. Essa disposição traduz a consagração genérica do princípio de economia processual, que rege a tramitação de todas as formas de processo e se destina a assegurar a racionalidade e celeridade da tramitação processual. É um princípio estruturante do processo, que tem a ver com o próprio princípio constitucional do acesso à justiça, na vertente da prolação da decisão da causa em prazo razoável (art. 20.º, n.º 4, da CRP).

XIV. -  Contudo, a aplicação da regra depende obviamente da prévia caracterização do ato como inútil. E essa caracterização terá de resultar da interpretação das normas aplicáveis ao caso. É evidente que sempre que se concluir que a prática do ato supostamente “inútil” é imposta pela lei, não se pode recusar a sua realização com fundamento em “inutilidade”.

XV. -   No despacho em análise, partiu-se do pressuposto de que é lícito ao juiz de instrução, ao apreciar o requerimento para abertura da instrução, sindicar o fundamento probatório dos factos imputados ao denunciado, para se concluir que, no caso, não haveria indícios suficientes do mesmo e portanto constituiria atividade processual inútil a realização da instrução. Contudo, esse entendimento, como vimos, não é o melhor. Entendemos, pelo contrário, que o juiz de instrução não pode exercer tal fiscalização, podendo apenas averiguar se os factos narrados constituem crime. Se assim suceder, o juiz terá de declarar aberta a instrução e realizar, pelo menos, o ato central dessa fase: o debate instrutório. Sendo assim imposta por lei a abertura da instrução, não pode esse ato ser em caso algum considerado “inútil”.

Decisão Texto Integral:            

              Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

   AA, com os sinais dos autos, apresentou queixa na GNR, em 11.7.2017, contra BB, Juiz Desembargador do Tribunal da Relação ..., e outros, imputando-lhes a prática de um crime de ameaça e de outro de ofensa à integridade física.

      Essa queixa deu origem ao inquérito nº 2037/17.1JAPRT da Procuradoria do Juízo Local Criminal de ....

  Por despacho de 25.9.2017, a Magistrada do Ministério Público titular do inquérito ordenou a remessa de certidão do processado aos serviços do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no art. 11º, nº 4, a), do Código de Processo Penal (CPP), quanto ao denunciado BB.

       Instaurado o presente inquérito, na sequência do recebimento da certidão, contra o denunciado BB, a sra. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça procedeu, por despacho de 18.1.2018, ao arquivamento do mesmo, ao abrigo do art. 277º, nº 2, do CPP, nestes termos:

1. AA participou criminalmente contra o Senhor Juiz Desembargador do Tribunal da Relação ..., Dr. BB, BB, DD, EE, FF e FF, tendo a participação dado origem ao Inquérito n° 2037/17JJAPRT da Procuradoria do Juízo Local Criminal de ..., Secção Criminal.

Foi ordenada extração de certidão desse Inquérito para investigação dos factos imputados ao denunciado BB, atenta a qualidade funcional do mesmo, Juiz Desembargador no Tribunal da Relação ... e o disposto no artigo 11º, n° 4, alínea a) do Código do processo Penal, certidão que deu origem ao presente Inquérito. Da certidão fazem parte os documentos de fls. 11 a 13 (auto de ocorrência), 14 a 16 (auto de ocorrência) e 21 a 25 (auto de exame médico da denunciante).

2. Segundo a participação, no dia 7 de Julho de 2017, pelas 22h30m, em ..., ..., local onde decorria o velório do pai do primeiro denunciado, BB, os denunciados perseguiram a denunciante desde a aldeia até à residência desta, sita em Rua ..., ..., e, aí chegados, apesar do pedido da denunciante para que a deixassem entrar em casa para tomar medicação para doença oncológica de que padece, impediram-na de entrar com a viatura na garagem da residência, e de sair do carro, apertando-lhe as pernas contra a porta do mesmo, impedindo-a, igualmente, usando força e violência, de utilizar o seu telemóvel, dizendo-lhe os denunciados que transportava notas de elevado valor, pertença do falecido BB, o que, com a chegada da GNR ao local se veio a revelar não suceder.

3. Também segundo a participação, na ocasião o denunciado BB, ameaçou insistentemente a denunciante, dizendo que ele próprio a prendia e que "eu sou a lei", tendo-lhe apontado uma pistola enquanto pedia o dinheiro e obrigado a abrir a carteira para verificar que não existia o dinheiro.

4. Os autos de ocorrência, subscritos por agentes da GNR relatam, o recebimento, pelas 22hl9m, de telefonema do denunciado BB, dizendo que tinha presenciado a denunciante a transportar três sacos da casa de GG, suspeitando que os mesmos contivessem € 150.000,00, provenientes da conta de seu pai e levantados, sem autorização, por GG, contra a qual o denunciado já havia apresentado queixas, por abuso de confiança, dizendo o mesmo que a denunciada seria cúmplice da GG e solicitando uma patrulha no local. Relatam, também, as diligências efectuadas pelo subscritor de um dos autos de ocorrência para enviar uma patrulha para o local, e ulteriores contactos do denunciado a informar das deslocações da denunciante, fazendo, ainda, o segundo auto, o relato da patrulha que tomou conta da ocorrência no local, tendo esta apenas constatado, além da existência de um aglomerado de pessoas no local, a presença dos denunciados, na via pública, e da denunciante dentro do seu carro, tendo uns e outra apresentado a sua versão dos acontecimentos, vindo, depois da denunciante ter autorizado o acesso à sua viatura, a ser revistada a mesma, nada tendo sido encontrado, vindo, finalmente a denunciante a ser transportada pelo INEM para o Hospital de ... por se ter sentido mal.

5. Os factos denunciados são susceptíveis de integrar a previsão dos tipos legais de crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º do Código Penal, e sequestro, p. e p. pelo artigo 158º do mesmo Código.

6. Procedeu-se a inquérito, com a realização das diligências necessárias ao apuramento dos factos denunciados, delegadas na Polícia Judiciária, à qual já havia sido delegada a realização das diligências de inquérito no NUIPC 2037/17.1JAPRT, tendo sido ouvidos em declarações todos os denunciados, à excepção do denunciado BB, as testemunhas indicadas pela denunciante e a denunciante AA.

7. Todos os denunciados negam, no essencial, a versão da denunciante, declarando, de forma unânime e concordante, que nunca a denunciante foi impedida de sair da sua viatura e obrigada a permanecer no exterior da sua casa contra a sua vontade, e bem assim que não foi a mesma ameaçada com qualquer arma pelo denunciado BB, ou impedida de utilizar o telemóvel.

8. As testemunhas inquiridas (HH, II, JJ, LL, MM e NN) não presenciaram, nenhuma delas, os factos na sua integralidade, tendo, na sua maior parte, chegado ao local depois da comparência da GNR, desconhecendo, portanto a factualidade relatada pela denunciante.

9. Assim, e a despeito de a denunciante em declarações ter mantido e reiterado a versão inicial dos factos constante da denúncia apresentada, verifica-se que tal versão não é corroborada pelas declarações das testemunhas ouvidas - que, ou não estavam no local, ou neste nada viram dos factos relevantes narrados pela denunciante, ou chegaram apenas ao local quando já aí se encontrava a GNR, subsistindo afinal a versão da denunciante, sem elementos de prova que a apoiem, contra a versão dos denunciados.

10. Forçoso é, nestas circunstâncias, concluir que não existem indícios suficientes da prática pelo aqui denunciado, Juiz Desembargador BB, dos factos que lhe são imputados pela denunciante e dos correspondentes ilícitos criminais, não se vislumbrando outras diligências de efeito útil a realizar para melhor apuramento dos factos, nem havendo lugar à constituição de arguido do denunciado BB, por a tal obstar o disposto no artigo 272º, n° 1, do Código do Processo Penal, pelo que, nos termos do disposto no artigo 277º, n° 2, do Código de Processo Penal, determino o arquivamento dos autos.

  Reagindo a esse despacho, veio a queixosa requerer, em 5.3.2018, a sua constituição como assistente, arguir a nulidade do inquérito e requerer a abertura da instrução, nos seguintes termos:

1º No dia ... de Julho de 2017, pelas 22hl9, o Exmo. Comandante do Posto Territorial de ..., quando estava na sua residência pessoal, recebeu uma chamada telefónica oriunda do n° ..., pertencente/utilizado por BB, denunciado em inquérito conexo, no telemóvel de serviço interno que lhe é pessoalmente atribuído e que, por razões que se desconhecem, era do conhecimento particular daquele - cfr. Auto de ocorrência de 10/07/2017, 1ª a 3ª linha.

2º No decurso dessa chamada telefónica, o seu protagonista identificou-se como sendo BB, Juiz Desembargador - Cfr. auto de ocorrência de 10/07/2017, 5ª linha;

3º Nesse contacto telefónico, o arguido em processo conexo, BB, informou o seu interlocutor que estava à beira da casa da GG, sua madrasta, em ..., junto da Igreja de ..., pessoa contra quem tem pendentes no Tribunal Judicial de ..., intentados por si ou por interposta pessoa, mais de uma dezena de acções cíveis, criminais e outras, relacionadas com a herança do seu falecido pai e marido daquela - Auto de ocorrência de 10/07/2017, linhas 6ª a 7ª.

4º Ainda nesse contacto telefónico, o arguido em processo conexo, afirmou que tinha presenciado a aqui Assistente a transportar três sacos, que o mesmo suspeitava que continham 150 000,00 Euros, em notas do Banco Central Europeu, da casa da GG para o veículo no qual se fazia transportar, de matrícula ...-LH-..., marca e modelo Ford ..., de cor cinza claro - Auto de ocorrência de 10/07/2017, linhas 7ª a 10ª;

5.° Mais afirmando que a aqui Assistente era cúmplice da GG e que esta lhe iria efectuar o transporte de dinheiro para contas bancárias em Paris/França, por forma a não deixar rastos de transferências bancárias-Auto de ocorrência de 10/07/2017, linhas 10ª a 12ª.

6.° Dinheiro esse que, segundo afirmava nesse mesmo contacto telefónico, era proveniente da conta bancária de seu pai, BB, tendo sido levantado, sem autorização, pela GG, factos que estariam já a ser investigados no NUIPC 404/17.0T9BGC, processo onde a aqui denunciante, que saiba, não é visada - Auto de ocorrência de 10/07/2017, linhas 13ª a 20ª.

7.° E, na sequência da suspeita que partilhou com o seu interlocutor, solicitou uma patrulha no local - Auto de ocorrência de 10/07/2017, linha 1ª.

8.° E, certamente mercê da qualidade do autor da chamada, por este expressamente invocada, o Comandante do Posto Policial de ... providenciou pela deslocação da patrulha do Posto Territorial de ... ao local - Auto de ocorrência de 10/07/2017, linhas 21ª a 24ª.

9.° O telefonema protagonizado pelo arguido, BB, ocorreu em pleno decurso do velório do pai deste, BB, na casa Mortuária de ..., ... - Cfr. depoimento do co-denunciado BB, parágrafo 2º.

10.° Enquanto realizava o telefonema, o co-arguido em processo conexo, BB pediu ao irmão dele, o co-denunciado CC, ao co-denunciado EE (funcionário da empresa de agricultura denominada BB, há cerca de 20 anos, e que recebe ordens directamente do BB) e ao co-denunciado FF (primo dos irmãos ... e afilhado do aqui arguido BB) que jantassem à vez para não perderem o controlo dos movimentos da AA até chegar a GNR, dando ainda instruções para que, se ela saísse com o carro deveriam acompanhá-la - Cfr. Depoimento do co-arguido EE, fls. 122 e ss, linhas 1ª a 3ª e 17ª a 20ª e depoimento de FF, linha 2ª.

11.° Entretanto a Assistente entrou no carro, colocou-o em andamento e tomou a direcção de ... - Cfr. Depoimento do co-arguido EE (fls. 122 e ss, linhas 21ª a 22ª).

12° O co-arguido em processo conexo, BB e o co-arguido EE "arrancaram" no carro deste último e seguiram a Assistente - Cfr. Depoimento do co-arguido EE, a fls. 122 e ss, linhas 22ª a 24ª.

13° A Assistente parou junto ao Café Convívio de ..., assim como a viatura que a perseguia, e ali entrou aquela, tendo permanecido ali durante algum tempo - Cfr. Depoimento do co-arguido EE, fls. 122 e ss, linhas 23ª e 24ª.

14° O arguido em processo conexo, BB e o aqui co-denunciado ... mantiveram-se no interior da sua viatura, a vigiar a assistente, e viram-na a conversar com várias pessoas dentro do café, inclusivamente com a testemunha NN - Cfr. Depoimento do co-arguido EE, fls. 122 e ss, linhas 25ª a 27ª.

15° Entretanto chegou a esse local outra viatura na qual seguiam os co-arguidos BB e FF, primo dos irmãos ..., que também esteve no velório, os quais, a mando do co-arguido BB e com o objectivo de vigiar os movimentos da Assistente, entraram no café, tendo aí confirmado a presença da Assistente, a tomar café e a comprar tabaco - Cfr. depoimento do co-arguido FF fls. 139 e ss, linhas 1ª, 2ª e 13ª e 14ª, depoimento do co-arguido BB - cfr. fls. 145 e ss, parágrafos 8º e 9º.

16° A referida testemunha NN, que tinha ido de boleia para o velório e aproveitou essa mesma boleia para se deslocar àquele café, esteve à conversa com um amigo que lhe disse que a AA também estava no café, também já ia para casa, sugerindo-lhe que aproveitasse a boleia, já que ela reside junto a uma habitação que este frequenta aos fins-de-semana, sugestão que a testemunha acolheu - Cfr. Depoimento da Testemunha NN, a fls. 142 e ss, linhas 7ª a 16ª.

17° A Testemunha NN entrou no carro da AA e seguiram ambos em direcção a casa, tendo no percurso sido seguidos pela viatura onde seguia o co-arguido em processo conexo BB e o co-arguido EE - Cfr. Depoimento da Testemunha NN - fls. 142 e ss, linhas 19ª e 20ª -, testemunha QQ, fls. 122 e ss, linhas 32ª e 33ª.

18° No decurso dessa perseguição, o arguido em processo conexo, BB, efectuou ainda outros contactos para o Comandante do Posto Territorial de ..., informando que o veículo supra mencionado tinha-se deslocado para o Centro de Convívio de ..., em ...-... e, a partir daí, para a rua onde a Assistente reside, no período em que se encontra de férias em Portugal, vinda de ..., onde está emigrada - Auto de ocorrência de 10/07/2017, linhas 25ª a 28ª.

19.° Mais informou, entretanto que, nesse local, já a tinha abordado, aguardando a chegada da patrulha, na sequência do que foi contactado o atendimento do Posto Territorial de ..., para que a patrulha fosse informada para onde se deveria deslocar - Cfr. auto de ocorrência de 10/07/2017, linhas 29ª a 32ª.

20° E, de facto, quando eram cerca das 22h30, altura em que chegou à sua residência, a viatura na qual seguia o arguido BB parou junto da mesma, este de imediato se dirigiu à Assistente e ainda disse à testemunha NN: " Ó ..., como é óbvio vou ter de chamar a GNR porque ela transporta aqui dinheiro", tendo-lhe ainda dito: "Espero que tu não estejas envolvido no transporte do dinheiro", altura em que a testemunha, por achar que este "já estava a desconversar", foi para casa e nada mais viu ou ouviu - Cfr. Auto de denúncia, depoimento da testemunha NN, fls. 142 e ss, linhas 21ª a 31ª, depoimento da testemunha QQ, fls. 122 e ss, linhas 36ª e 38ª.

21° E, aí mesmo, o co-arguido BB a abordou como, de resto, reconheceu no telefonema acima referido, impedindo-a que entrasse no interior da sua garagem, como era sua intenção, imputando-lhe falsamente a posse de milhões de euros, em notas de elevado valor, na mala e saco que transportava, ao mesmo tempo que lhe dizia, encostando-lhe uma pequena arma de fogo ao peito, de que era portador: "ou dás-me o dinheiro ou estouro-te os miolos, eu fodo-te", obrigando-a a abrir a sua carteira a pretexto de que aí trazia os alegados milhões - Cfr. Auto de denúncia e declarações da ofendida.

22.° Apesar da Assistente sempre negar que estivesse na posse do alegado dinheiro e de protestar por estar a ser acusada sem provas, o arguido BB afirmava, repetidas vezes, à Assistente que ele próprio a prendia, dizendo: "Eu sou a Lei", expressão que foi ouvida pela Exma amiga e advogada da denunciante no contacto que esta acabou por estabelecer com ela - Cfr. Auto de denúncia, declarações da ofendida, registo áudio infra junto e depoimento, cuja inquirição se requer, da testemunha Dra. RR.

23.° A Assistente, que sofre de cancro em fase avançada, ainda pediu aos co-arguidos, que entretanto se aproximaram, para a deixar entrar na sua residência, para tomar a sua medicação, acabando estes por a impedir de sair do carro - Cfr. Auto de denúncia e declarações da ofendida.

24.° Entretanto, chegaram ao local os denunciados BB e OO - Cfr. depoimento da testemunha QQ, fls. 122 e ss, linhas 60ª e 62ª, depoimento da testemunha FF, fls. 139 e 22, linhas 1ª a 3ª.

25.° Momentos depois chegaram ao mesmo local o co-arguido SS, primo "em segundo grau" dos irmãos BB e CC e a testemunha ..., funcionária da mesma empresa agrícola acima referida (e que recebe ordens diretas do CC e indiretas do BB).

26° Os co-arguidos QQ, BB e FF ficaram todos juntos, afastados do carro da Assistente, sem que conseguissem ouvir a conversa que o arguido BB, ao longo de quase duas horas, foi mantendo com a Assistente - Cfr. depoimento da testemunha FF, fls. 139 e ss, linhas 31ª a 33ª.

27.° Tendo o arguido BB, juntamente com o seu irmão BB, que entretanto se aproximou, para impedir que a mesma saísse do carro, empurrado a porta do condutor da viatura que a mesma conduzia, tentando fechá-la, só não conseguindo porque a Assistente tinha já a sua perna esquerda de fora, ao mesmo tempo que os arguidos FF e SS, que também se aproximaram, se colocaram à volta da viatura - Cfr. Auto de denúncia, declarações da ofendida e Relatório de Avaliação do Dano Corporal.

28.° Tendo a perna esquerda da Assistente ficado entalada entre a porta e o chassis da viatura, provocando-lhe "equimose na face anterior da perna" Cfr. Auto de denúncia, declarações da ofendida e Relatório de Avaliação do Dano Corporal.

29.° Quando eram cerca das 23h15, a Assistente tentou usar o seu telemóvel, tendo o arguido BB tentado apoderar-se do mesmo, usando força e violência, no que foi impedido pela Assistente-Cfr. Auto de denúncia, declarações da ofendida.

30.° Assim, pelas 23hl5, a Assistente conseguiu telefonar, a partir do aparelho telefónico com o n° ... para o número de telefone ..., da sua amiga e advogada, Dra. RR, tendo a chamada, entretanto, sido remetida para o voicemail da destinatária - Cfr. Auto de denúncia, declarações da ofendida e registo áudio infra junto.

31° Por estar muitíssimo nervosa, a mesma acabou por não desligar a chamada e, por isso, inadvertidamente, acabou por ficar gravado no voicemail da destinatária um pequeno segmento do teor da discussão havida entre o arguido BB e a Assistente, durante cerca de 5 minutos, com início às 23hl5 - Cfr. registo áudio infra.

32.° Apesar da má condição dessa (inadvertida) gravação, é possível perceber que a Assistente estava ali contrariada, rodeada por vários homens, que o Assistente a acusava de estar na posse de muito dinheiro, aludindo a 400 000 Euros, dinheiro que afirmou que era dele (note-se que, nem sequer afirma que esse dinheiro é da herança), imputação que a Assistente negou, mostrando-se indignada por estar a ser alvo de acusações graves e sem quaisquer provas - Cfr. registo áudio infra junto.

33.° Aos minutos 03:55 a 03:58 ouve-se, nesta parte com clareza, o arguido BB a afirmar "Garanto que se tiver aí o dinheiro, que a prendo! Sou eu que a prendo!" - Cfr. registo áudio infra junto.

34.° Logo de seguida, a Assistente conseguiu efectivamente estabelecer contacto telefónico com a sua amiga e advogada, Dra. RR, enquanto aguardava pela chegada da patrulha da GNR ao local, pedindo a esta ajuda e instruções quanto à forma de atuar, conversa no decurso da qual aquela ouviu o Assistente a afirmar, em resposta à afirmação de que aquela atuação não era conforme à Lei, "Eu sou a lei" - Cfr. Auto de denúncia, declarações da ofendida e depoimento da testemunha, cuja inquirição se requer, Dra. RR.

35.° A Patrulha da GNR de ... acabou por chegar ao local pelas 00h20 do dia 08/07/2017, tendo a Assistente estado privada da sua liberdade de locomoção e impedida de aceder ao interior da sua residência durante cerca de duas horas e de tomar a medicação de que tanto necessitava, face à sua condição de doente oncológica em estado avançado - Cfr. Auto de denúncia, declarações da ofendida.

36.° Quando a patrulha chegou ao local, encontrou na via pública um aglomerado de pessoas, os co-arguidos, entre os quais o arguido BB e a Assistente, no interior da sua viatura, em frente à sua habitação, no exterior desta - Auto de ocorrência de 08/07/2017.

37.° Depois de dispersar os demais co-arguidos, o aqui co-arguido, BB reiterou a tese de que tinha fundadas suspeitas de que a mesma tinha na sua posse elevadas quantias de dinheiro, nomeadamente 150 000,00 Euros, do seu falecido pai, obtido de forma ilícita pela sua madrasta de quem a Assistente, alegadamente, seria cúmplice, ordenando às autoridades policiais que revistassem a denunciante Auto de ocorrência de 08/07/2017.

38.° A assistente informou não ter na sua posse qualquer quantia monetária, mostrando, no entanto, de livre e espontânea vontade àquela patrulha o interior da sua viatura, da sua carteira pessoal e de uma mala de um portátil, demonstrando que, realmente, nada tinha na sua posse - Auto de ocorrência de 08/07/2017.

39.° Mais informou aquela patrulha que havia sido impedida de abandonar o local e de entrar para o interior da sua habitação pelo arguido BB - Auto de ocorrência de 08/07/2017.

40.° Tal lamentável cenário causou muito stress e pânico na Assistente - Auto de ocorrência de 08/07/2017.

41.° Tal estado determinou que a mesma, no final do sequestro, tivesse de ser transportada para o serviço de urgências do Hospital de ..., onde foi observada, submetida a exames imagiológicos, medicada, acabando por ter alta com indicação de analgesia em SOS - Cfr. Relatório de Avaliação do Dano Corporal.

42.° Do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal, elaborado pelo Instituto de Medicina legal, resulta que a examinada apresenta equimose na face anterior da perna, em face de reabsorção, de coloração esverdeada, limites mal definidos, com cerca de 6 por 1 cm, de maiores dimensões - Cfr. Relatório de Avaliação do Dano Corporal.

43.° O Relatório Pericial conclui que as lesões descritas terão resultado de traumatismo de natureza contundente, concluindo ainda pela existência de nexo de causalidade entre o traumatismo relatado pela vítima e o dano, determinando 7 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, fixando a cura das lesões em 14/07/2017 - Cfr. Relatório de Avaliação do Dano Corporal.

44.° No âmbito do NUIPC 27/17.3... foi apreendida uma pistola semiautomática, de calibre 6,35 mm, da marca "Pietro Baretta", com o n° G30273 e com o respectivo carregador com quatro munições do mesmo calibre, propriedade do arguido BB, arma essa que tinha sido dada por desaparecida pelo co-arguido BB, o mais tardar a partir do dia 05/06/2017 - Cfr. Relatório da Polícia Judiciária, pag. 3, parte final, depoimento do co-arguido EE, fls. 122 e ss linhas 55ª e 56ª, depoimento da testemunha FF, fls. 139 e ss, linhas 39ª a 41ª.

45.° A Assistente ignora a existência e objeto do Inquérito com o NUIPC 404/17.0..., no qual não é visada, onde alegadamente se imputa à Exma Madrasta do aqui denunciado, GG, um alegado crime de abuso de confiança, segundo se refere no auto de ocorrência.

46.° Seja como for, embora o arguido em processo conexo, BB, afirme "EU SOU A LEI!", não há, no ordenamento jurídico português, "Lei" que permita ao Assistente, ainda que Juiz Desembargador, promover investigações à margem do processo criminal no qual é interessado, avaliar ele próprio do caráter fundado/infundado das suas suspeitas nos processos onde ele próprio é interessado, realizar ele próprio vigilâncias e perseguições aos pretensos suspeitos (e à margem dos procedimentos legais), proceder a detenções, substituindo-se aos órgãos de polícia criminal (que, por temor reverencial, não deixam de compactuar com ele), arvorar-se em Juiz de Instrução (por sinal, em causa própria), dirigindo e ordenando revistas e buscas aos pretensos suspeitos, ditar ele próprio a sentença e até definir, ele próprio, a pena daqueles a quem persegue: "Garanto que se tiver aí o dinheiro, sou eu quem a prendo, sou eu que a prendo".

47.° Todo este comportamento insólito foi realizado com a chancela dos órgãos de polícia criminal e, indiretamente, do Ministério Público, que "validou" estas intervenções (produzindo este arquivamento).

48° O arguido BB, juntamente com os arguidos BB, EE e FF, em execução de plano previamente acordado entre si, acordaram em partilhar entre si as seguintes tarefas: jantando à vez, por forma a não perder de vista a Assistente;

Seguindo, os co-arguidos BB e EE, na viatura deste último, a viatura conduzida pela Assistente, desde a Casa Mortuária em ..., local onde se realizou o velório, até ao Café Convívio de ..., onde aguardaram por ela e, a partir daqui, até à Rua ..., onde esta tem residência;

Seguindo, os co-arguidos BB e FF numa outra viatura os movimentos da Assistente, tendo entrado no café onde esta entrou, por forma a controlar com quem esta falou, e o que fez, chegando mesmo a apurar que a mesma ali tomou café e comprou tabaco;

Seguindo, a partir dali até à residência da Assistente, onde se juntaram aos co-arguidos BB e PP, por forma a melhor concretizar o objectivo comum de impedir a Assistente de entrar na sua residência, por forma a que pudesse ser revistada aquando da chegada da patrulha da GNR ao local.

49.° Ao atuar do modo descrito nos pontos 3°, 10°, 18°, 21° e 24°, os co-arguidos BB, EE, BB e FF agiram com o propósito, concretizado, de provocar à ofendida medo e limitar os movimentos desta, bem sabendo que desse modo a lesavam na sua liberdade pessoal, como pretenderam e conseguiram.

50° Os co-arguidos BB, BB, FF e SS, em comunhão de esforços, ao praticar os atos ditos em 21°, 23°, 26°, 28°,34° e 38°, quiseram impedir que a Assistente entrasse dentro de casa, obrigando-a a permanecer no exterior da habitação, apesar de saberem, até porque isso foi insistentemente verbalizado pela Assistente, que era doente oncológica em fase avançada e que, por isso, ficaria privada da sua medicação adequada, que tinha de tomar no período durante o qual esteve privada da sua liberdade de locomoção, com o que se conformaram:

51.° O arguido BB exercia, à data dos factos, as funções de Desembargador no Tribunal da Relação ....

52.° Os poderes legalmente conferidos aos Juízes Desembargadores, entre os quais os de reapreciar as decisões dos tribunais de 1ª instância, em sede de recurso - estão funcionalmente vinculados à prossecução das atribuições funcionais do Magistrado, no âmbito dos processos de que seja titular.

53.° Tais poderes, em última análise, são conferidos para exclusiva satisfação do interesse público, não podendo ser instrumentalizados para satisfação dos seus interesses particulares, por mais legítimos que sejam, designadamente os de acautelar a intangibilidade do património pertencente à herança do pai do Magistrado.

54° O arguido invocou a qualidade de Juiz ... e, inclusive, telefonou para um número interno atribuído ao Comandante do Posto, para alocar meios policiais ao serviço do seu interesse particular, promoveu investigações à margem do processo criminal no qual é interessado, avaliou ele próprio do caráter fundado/infundado das suas suspeitas, em processo onde é interessado, realizou ele próprio vigilâncias e perseguições à pretensa suspeita, à margem do processo onde aquela nem sequer é visada, procedendo à "detenção" ilegal desta, substituindo-se aos órgãos de polícia criminal (que, por temor reverencial, consigo compactuaram), arvorou-se em Juiz de Instrução (por sinal, em causa própria), dirigindo e ordenando revistas e buscas à pretensa suspeita, ditou ele próprio a sentença e até definiu, ele próprio, a pena a aplicar a aqui denunciante: "Garanto que se tiver aí o dinheiro, sou eu quem a prendo, sou eu que a prendo".

55.° O arguido usou os poderes que o seu múnus lhe confere em causa própria, o que é inadmissível em qualquer Estado de Direito Democrático.

56.° Dado que os poderes conferidos ao juiz são poderes funcionais, vinculados à sua função de imparcial administração da justiça em nome do Povo.

57.° E porque o contrário seria um exercício de pura tirania em nome próprio, com total predomínio do poder sobre a função.

58.° O arguido BB actuou, no caso concreto, com manifesta e grave Violação dos deveres de isenção e de zelo, entre outros.

59.° O arguido instrumentalizou os seus poderes jurisdicionais para finalidades estranhas aos seus deveres funcionais.

60.° Ao praticar os atos ditos em 1º, 2º, 7º, 8º, 19°, 22°, 32°, 33° e 45°, o arguido BB sabia que estava a violar deveres funcionais e agiu com intenção de obter para si benefício ilegítimo instrumentalizando os seus poderes para satisfazer um interesse pessoal na obtenção mais fácil e eficaz de prova - e de causar prejuízo à assistente - já que essa prova se destinava a sustentar em processo criminal, já existente ou a instaurar, a tese da cumplicidade no alegado levantamento ilícito, protagonizado pela GG.

61.° Ao praticar o facto dito em 21° e 43°, encostando uma pequena arma de fogo de que era portador ao peito da Assistente, ao mesmo tempo que lhe dizia: "Ou dás-me o dinheiro ou estouro-te os miolos, eu fodo-te", obrigando-a a abrir a sua carteira a pretexto de que aí trazia os alegados milhões, o arguido atuou movido pelo propósito de intimidar a ofendida, o que conseguiu e quis.

62.° Ao agir da forma descrita, o arguido agiu com o propósito de causar medo, intimidar e perturbar a ofendida na sua liberdade e tranquilidade, bem sabendo que a sua conduta era apta a provocá-lo, o que efectivamente veio a conseguir.

63.° Com a conduta dita em 26°, 27°, o arguido BB e o co-arguido BB provocaram as lesões descritas no Relatório do Instituto de Medicina Legal, ditas em 41°, 42°.

64° O arguido BB e o denunciado BB atuaram conjuntamente e em comunhão de esforços, com o propósito conseguido de maltratarem fisicamente a ofendida, resultado que previram e quiseram como consequência imediata da sua conduta.

65.° O arguido BB bem sabia que era falsa a imputação à Assistente, perante o Comandante do Posto Territorial de ... e perante a Patrulha de Morais, de que a mesma transportava três sacos que continham 150 000,00 Euros, em notas do Banco Central Europeu, da casa da GG para o veículo no qual se fazia transportar, que a mesma era cúmplice da GG e que esta lhe iria efectuar o transporte de dinheiro para contas bancárias em .../França, por forma a não deixar rasto de transferências bancárias, dinheiro esse que, segundo afirmava, era proveniente da conta bancária de seu pai, BB, tendo sido levantado, sem autorização, pela GG, factos que estariam já a ser investigados no NUIPC 404/17.0..., no qual a aqui denunciante não é visada, como bem sabe o arguido.

66.° Agiu, dessa forma, com o propósito de que fosse instaurado contra ela um processo criminal e, consequentemente, a mesma viesse a responder pela prática, a título de cumplicidade, de um crime de furto qualificado.

67.° Por outro lado, dirigindo à testemunha NN a imputação dita em 20°, e à própria ofendida a descrita imputação dita em 21°, pretendeu o arguido, como efectivamente conseguiu, ofender a assistente na sua honra e consideração.

68.° Agiram os arguidos livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

69.° A assistente, apesar de não ser Desembargadora, é pessoa de bem, de elevada reputação moral, educada e sensível.

70° Sentiu-se, por isso, fortemente apoucada, humilhada, envergonhada e magoada por ter sido tratada pelo arguido, na presença de outras pessoas, incluindo o Comandante do Posto Territorial de ... e membros da patrulha de ..., da forma acima referida, como se de uma criminosa se tratasse.

Assim, os arguidos incorreram na prática dos seguintes crimes:

Os co-arguidos EE, BB e FF, em co-autoria com o co-arguido em processo conexo, BB, um crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154.°-A do CP, na redacção dada pela lei 83/15, de 05/08;

Os co-arguidos BB, FF e SS, em co-autoria com o co-arguido em processo conexo, BB, um crime de sequestro agravado, previsto e punido pelo artigo 158.°, n.°s 1 e 2, e), do Código Penal;

O co-arguido BB, em co-autoria com o co-arguido em processo conexo, BB, um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.s 143°, 1, e 145°, 1, a), por referência ao art. 132º/2 c), ambos do CP;

O co-arguido em processo conexo, BB, em autoria material, um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.° 382.° do Código Penal;

O co-arguido em processo conexo, BB, em autoria material, um crime de ameaça agravada p. e p. pelos art.s 153°, 1, e 155°, 1, b), do CP;

O co-arguido em processo conexo, BB, em autoria material, um crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo art. 365°, 1, do CP;

O co-arguido em processo conexo, BB, em autoria material, um crime de injúria agravada p. e p. pelos arts. 181° e 184°, ambos do CP;

O co-arguido em processo conexo, BB, em autoria material, um crime de difamação agravada p. e p. pelos arts. 180º e 184°, in fine, ambos do CP.

   Este requerimento foi indeferido, exceto quanto à intervenção da denunciante como assistente, por despacho de 4.4.2018 do sr. Juiz-Conselheiro a quem os autos foram distribuídos, com o seguinte teor:

A - RELATÓRIO

No dia ... de Julho de 2017 AA, identificada nos autos, apresentou denúncia no Posto Territorial da GNR de ... - ..., contra BB (Juiz Desembargador na Relação ...), BB, TT, EE, FF e ..., todos igualmente identificados nos autos.

Porquanto, no dia ... .7.2017, pelas 22,30 horas, quando saía do velório do Sr. BB, pai dos dois primeiros denunciados, a perseguiram até à sua residência (sita igualmente em ... - ..., Rua do ..., n° 6) impedindo que a mesma entrasse com o seu carro para a garagem e obrigando a mesma a permanecer na rua, enquanto lhe diziam que tinha consigo milhões de euros na sua mala e saco (os quais teriam sido retirados de uma conta do defunto). Que mesmo depois de pedir aos denunciados para a deixarem entrar na sua residência para tomar a medicação de que necessita para a doença do foro oncológico de que padece, tal não lhe foi permitido. E quando tentou sair do carro, já com a porta entreaberta estes apertaram-lhe a perna contra a mesma impedindo-a de sair do mesmo. Declarou ainda que o BB, insistentemente, a ameaçava de que ele próprio a prendia dizendo "eu sou a lei, vais presa" e que este lhe apontou uma pistola enquanto pedia a devolução do dinheiro obrigando-a a abrir a carteira. Como na carteira não havia o dinheiro pensou que a deixassem ir para a residência mas isso não aconteceu. Tentou ligar para a sua advogada mas eles tentaram tirar-lhe o telemóvel. Que só depois da chegada da GNR, pelas 00,20 horas do dia 8.7.2017 e depois destes, com a sua autorização, terem revistado o seu carro e aberto a carteira sem nada encontrarem é que a deixaram. Como se sentisse desfalecida veio o INEM que a levou ao Hospital de .... Aqui veio, posteriormente, a ser sujeita a perícia médico - legal (fls. 24/5) com as seguintes conclusões: - "equimose na face anterior da perna, em fase de reabsorção, de coloração esverdeada, limites mal definidos, com cerda de 6 por 1 cm de maiores dimensões. No tórax apresenta cicatriz de mastectomia esquerda.

2. Esta denúncia deu origem ao processo de inquérito 2037/17.I... - Ministério Público da Comarca de .... Contudo, porque um dos denunciados era Juiz Desembargador acabaram os autos por ser remetidos ao STJ (arts. 11º, n° 4, al. a) e 27º, ambos do C.P.P.) onde deram origem ao presente processo n° 47/17.8... .

3. A investigação foi delegada na PJ de Vila Real que após a necessária investigação elaborou RELATÓRIO FINAL de onde consta: "Face ao exposto Os presentes autos tiveram início com o Auto de Denúncia de fls. 2 vrs. a 5, no âmbito do qual a AA denuncia BB, BB, TT, EE, FF e ..., de no dia 07/07/2017, pelas 22H80, no exterior da sua residência, sita na Rua do ..., n.º XX — Lugar de ...— ...— ..., a terem impedido de sair da sua viatura automóvel, apertando-lhe as pernas contra a porta, de entrar com o veículo para a garagem da sua habitação, bem como de a terem obrigado a permanecer na rua até por volta das 00H20 do dia 08/07/2017, após a chegada ao local de uma patrulha da G.N.R.. A ... denunciou ainda o BB de este na mesma altura a ter ameaçado, apontando-lhe uma pistola. A ... teve necessidade de ser socorrida pelo INEM, foi conduzida ao serviço de urgência do Hospital de ... e foi posteriormente sujeita a perícia médico-legal (fls. 10 e 11).

Em Auto de Ocorrência de fls. 5 a 6 vrs., a G.N.R. de ... comunica que esteve no local e que identificou o BB e a AA, que o primeiro alegou que suspeitava que a ... tinha na sua posse a quantia de 150.000,00€ (cento e cinquenta mil euros) que pertencia ao pai dele, e que a ... mostrou de livre vontade o interior da sua viatura automóvel e a sua carteira, constatando-se que não transportava qualquer quantia monetária. Foram ainda identificados no local outros três suspeitos, sendo eles BB, EE e FF.

 Em Auto de Ocorrência de fls. 7 a 8, a G.N.R. de ... comunica que na noite de ... de julho de 2017, o BB contactou-os dizendo que a ... acabara de transportar três sacos para a sua viatura automóvel, e que ele suspeitava que continham 150.000,00€ (cento e cinquenta mil euros) provenientes de conta bancária do seu pai, solicitando no local uma patrulha daquele OPC. O BB voltou a contactar mais tarde, informando que havia abordado a ... junto à residência daquela e que aguardavam ali a referida patrulha.

Inquirida, a AA (fls. 49 a 52) confirmou os factos que havia denunciado, nomeadamente que o BB e o BB a impediram de sair da sua viatura, empurrando a porta do condutor da viatura dela e tentando fechá-la, só não o conseguindo porque ela tinha já a sua perna esquerda de fora e esta ficou entalada entre a porta e o chassis da viatura, provocando-lhe vários hematomas nesse membro, ao mesmo tempo que o FF e o ... se colocaram à volta da viatura. A ... referiu ainda que sofre de cancro no peito esquerdo, que já lhe foram amputados ambos os seios e tem também já os pulmões e o braço esquerdo afetados, situação clínica que os autores dos factos relatados tinham pleno conhecimento, tendo inclusive sido alertados na altura para tal e razão pela qual se sentiu mal e necessitou de receber assistência médica.

Disse mais que o BB lhe tentou tirar o telemóvel várias vezes e que lhe encostou uma pequena arma de fogo ao peito, ao mesmo tempo que dizia "Ou dás-me o dinheiro ou estoiro-te os miolos, eu fodo-te".

Acrescentou, por último, que numa das chamadas que efetuou quando estava condicionada pelo BB no interior da sua viatura automóvel, que pensou estar a efetuar para a sua advogada, ficou uma gravação áudio no telemóvel da sua filha, em que se ouve ela a pedir socorro, bem como a voz do BB a ameaçá-la, gravação essa que posteriormente fará chegar aos autos por intermédio da sua defensora.

Da restante prova testemunhal recolhida, através de inquirições de fls. 19 a 52, apurou-se que de facto no dia .../07/2017 pelas 22H80, na via pública, junto à habitação da ..., ocorreu uma discussão entre ela, o BB e o BB, no entanto, não resultou qualquer declaração que confirme que a AA tivesse sido de alguma forma ameaçada, ou obrigada a permanecer no exterior da sua casa contra a sua vontade.

Cumpre-me referir por último, que no âmbito do inquérito com o NUIPC 27/17.3..., cuja investigação esteve a cargo do signatário, se apreendeu uma (1) pistola semiautomática, de calibre 6,35 mm., da marca "Pietro Beretta", com o n.° G3027 3 e com o respetivo carregador com quatro (4) munições do mesmo calibre, propriedade do BB.

Face ao exposto e não se vislumbrando, salvo melhor opinião, a pertinência da realização de outras diligências de investigação, apresentam-se os Autos à douta consideração de V.° Ex.a para que se digne determinar o que tiver por mais conveniente...".

4. No seguimento, veio o inquérito a ser arquivado pela Srª Procuradora - Geral Ajunta neste STJ (fls. 82) com a seguinte fundamentação:

(…)

4. Em consequência, a denunciante AA, requereu a sua constituição como assistente, que foi deferida, e requereu a abertura da instrução. E desde logo invocou a nulidade do inquérito nos termos dos arts. 119, d) e 120°, n° 2 d) do C.P.P.

A Srª. Procuradora-Geral Adjunta respondeu do modo seguinte:

“A denunciante AA, notificada do despacho de arquivamento proferido no presente inquérito, nos termos do artigo 277, n° 2, do Código de Processo Penal, vem requerer a sua constituição como assistente e, subsequentemente, a abertura de instrução, invocando, também, e além do mais, no requerimento para abertura de instrução, a nulidade do inquérito, nos termos dos artigos 119°, alínea d), e 120, n° 2, alínea d), do Código de Processo Penal, por falta de interrogatório e constituição como arguido do denunciado, Juiz Desembargador BB, em relação ao qual segundo afirma, "existem suspeitas fundadas da prática de crime".

Salvo o devido respeito não lhe assiste razão, não se verificando a invocada nulidade.

Vejamos:

 O pressuposto com fundamento no qual a denunciante vem arguir a nulidade, da existência de suspeitas fundadas da prática de crime, não se verifica no presente inquérito em que foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do disposto no artigo 277, n° 2, do Código de Processo Penal, por inexistência de indícios suficientes da prática pelo denunciado dos factos que lhe são imputados pela denunciante e correspondentes ilícitos criminais.

À luz do regime processual vigente a constituição e interrogatório como arguido de determinada pessoa que tenha sido denunciada ou relativamente à qual haja notícia da prática de ilícito criminal, só é obrigatória quando haja fundada suspeita da prática de crime. Assim, dispõe o artigo 58º do Código de Processo Penal que:

Artigo 58°

Constituição de arguido

"1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:

a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;

Por seu turno, o artigo 272, n° 1, do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n° 48/2007, de 29 de Agosto, em consonância com o disposto no artigo 58, n° 1, al. a), do CPP, dispõe que:

Artigo 272°

Primeiro interrogatório e comunicações ao arguido

"1 - Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interroga-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.

Das disposições citadas resulta que, como se disse, a constituição, e interrogatório, de arguido é obrigatória, só é obrigatória, quando, correndo o inquérito contra pessoa determinada, haja fundada suspeita da prática, pela mesma, de crime, de factos susceptíveis de integrar a previsão típica de um ilícito criminal, como tal previsto e tipificado no Código Penal.

No presente inquérito, como supra se referiu, foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do disposto no artigo 277º, n° 2, do Código de Processo Penal, com fundamento na inexistência de indício suficientes da prática pelo denunciado dos factos que lhe são imputados pela denunciante, pelo que não ocorre a situação, contemplada nos artigos 58º, n° 1, al a), e 272º, n° 1, do CPP, da existência de fundadas suspeitas da prática pelo denunciado dos factos e correspondentes crimes que na denúncia lhe são imputados, ou outros, não sendo, portanto, obrigatória a constituição de arguido, e interrogatório nessa qualidade, do denunciado, e daí que no despacho de arquivamento se tenha invocado e consignado que não havia lugar à constituição de arguido do denunciado, não se verificando, portanto, a invocada nulidade, por falta de constituição e interrogatório do denunciado como arguido.

Qualidade que, de resto, tendo sido requerida a abertura de instrução, o mesmo adquire ipso facto, como determina o artigo 57º, n° 1, do Código de Processo Penal.”

B - DA ABERTURA DA INSTRUÇÃO

1. Na verdade, tem toda a razão a Sr. Procuradora-Geral Adjunta. Ao contrário do que constava na anterior redação do art. 272°, n° 1 do C.P.P. hoje só é obrigatório interrogar uma pessoa como arguida desde que no inquérito que contra ela corre haja fundadas suspeitas de que a mesma praticou um crime e desde que seja possível notificá-la. A Lei n° 48/2007 de 29/8 alterou o n° 1 que havia sido introduzido pela Lei n° 59/98 de 25/8 e que de imediato obrigava o interrogatório como arguido de determinada pessoa contra quem corria o inquérito.

Para que uma pessoa seja interrogada no inquérito como arguida é, pois, necessário que contra a mesma se verifiquem indícios consistentes de que cometeu um crime.

De qualquer modo, não se deixa de estranhar que a assistente apenas refira a falta de interrogatório como arguido do Juiz Desembargador BB quando, na verdade, nenhum dos outros denunciados o foram.

Não houve, pois, nulidade do inquérito nos termos dos arts. 119º- d) e 120°, n° 2 do C.P.P.

1.1. E não deixa também de se estranhar o modo como é elaborado o requerimento de abertura de instrução. Durante cerca de 7/8 fls. (93 a 100) são tecidas considerações a propósito do carácter deste denunciado e referências a processos anteriores que nada têm a ver com os factos dos presentes autos. Só depois são referidas considerações sobre a suficiência de indícios para uma eventual pronúncia dos denunciados, mais contra aquele do que, diga-se, contra os outros (fls. 100 a 115). Aqui dá a sua versão dos factos, não deixando de citar alguma doutrina. Só depois vem um requerimento denominado de PRONÚNCIA A PROFERIR sem qualquer identificação completa dos arguidos como, de resto, impõem os arts. 287°, n° 2, em conjugação com o art. 283°, n° 3, alínea a) do C.P.P.. Sendo que a falta de identificação dos arguidos faz com que o dito requerimento possa ser considerado nulo por força do n° 3 do art. 283° deste código. O requerimento em causa é o seguinte:

(…)

1.2. A assistente neste seu requerimento de abertura de instrução faz uma interpretação muito subjetiva da prova carreada para o inquérito de modo a considerar que existem indícios suficientes de que o denunciado BB e outros cometeram os ilícitos ali enunciados.

Bem ao contrário do que foi o entendimento tanto da PJ de Vila Real como do M.P. neste STJ que entenderam não resultar da prova, da mesma prova, quaisquer indícios de que os denunciados cometeram qualquer crime.

Nos termos do art. 283°, n° 2 do C.P.P. - "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".

Ora, não cremos que, no caso, e face à prova produzida resulte qualquer possibilidade de os denunciados virem a ser condenados por qualquer crime e, nomeadamente, por aqueles que a assistente agora lhe imputa.

E importa referir que, como escreve o Conselheiro Maia Costa (C.P.P. comentado dos Srs. Conselheiros do STJ, 2ª ed., a pags. 958 - art. 286°), no caso do despacho de arquivamento por parte do M.P. a instrução não se destina a repetir ou a completar o inquérito, nem a realizar um inquérito complementar, abrangendo novos factos ou novos suspeitos ou arguidos; destina-se apenas a fiscalizar a decisão que pôs temo ao inquérito. Se o assistente considera o inquérito insuficiente em termos de investigação e recolha de prova, deverá reclamar hierarquicamente, nos termos do art. 278°, n° 2, e não requerer a abertura da instrução.

Por outro lado, dizemos nós, o Juiz de instrução não deve investigar mas apenas exercer o controlo do despacho de arquivamento do M.P.

2.2. Dito isto, analisemos, ainda que de forma muito sintética, e um por um, os ilícitos que a assistente imputa aos denunciados:

A - Crime de perseguição do art. 154°-A do CP, na redação da Lei 83/15, de 5/8.

Nos termos do n° 1 comete este crime quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

Ora, não foi feita qualquer prova de que os denunciados andassem a perseguir a assistente de forma reiterada como impõe a previsão deste artigo.

Como se escreveu no Ac. da Relação de Guimarães, Proc. 332/16.6PBVCT.C1 - "Em conformidade com o disposto no art. 154°-A, n°. 1 do CP (aditado pela L. n°. 83/15, de 5-8, com início de vigência a 5-9-15), comete o crime de perseguição: "Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal."

Trata-se de crime novo na nossa ordem jurídica, sendo as condutas susceptíveis de o preencher vulgarmente conhecidas - já antes de tal criminalização específica - como ''stalking".

Na exposição de motivos do projecto de lei n°. 647/XII (sendo que a proposta de redacção no mesmo constante corresponde à do supra cít. art.) escreveu-se que: "A perseguição - ou stalking - é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Estes comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como oferecer presentes, telefonar insistentemente) ou em ações inequivocamente intimidatórias (por exemplo, perseguição, mensagens ameaçadoras).

Pela sua persistência e contexto de ocorrência, este padrão de conduta pode escalar em frequência e severidade o que, muitas vezes, afeta o bem-estar das vítimas, que são sobretudo mulheres e jovens. A perseguição consiste na vitimação de alguém que é alvo, por parte de outrem (o assediante), de um interesse e atenção continuados e indesejados (vigilância, perseguição), os quais são suscetíveis de gerar ansiedade e medo na pessoa-alvo."

Como refere também Nuno Miguel Lima da Luz, a fls.6, da sua tese/dissertação de mestrado (disponível in http://repositorio.ucp.pt): "O stalking pode definir-se como uma forma de violência relacional. Segundo a maioria da legislação norte-americana, o crime consiste num padrão intencional de perseguição repetida ou indesejada que uma "pessoa razoável" consideraria ameaçadora ou indutora de medo. Já a legislação australiana define o stalking como "perseguir uma pessoa, permanecer no exterior da sua residência ou em locais por ela frequentados, entrar ou interferir na sua propriedade, oferecer-lhe material ofensivo, mantê-la sob vigilância, ou agir de um modo que se poderia esperar com razoabilidade que fosse susceptível de criar stress ou medo na vítima." Pode-se caracterizar também por uma série de comportamentos padronizados que consistem num assédio permanente, nomeadamente através de tentativas de comunicação com a vítima, vigilância, perseguição, etc. Embora estes comportamentos possam ser considerados corriqueiros se os isolarmos do contexto do stalking, as condutas que integram o seu tipo objectivo podem ser bastante intimidatórios pela persistência com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada."

E escreveu-se no Ac. R.P., de 11-3-15 (in www.dgsi.pt), a propósito de stalking (ainda que antes da criminalização autónoma da conduta), que o mesmo se caracteriza como "(…) uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento (...)"-

Os denunciados apenas se limitaram a seguir a assistente naquele momento e nada mais, já que o BB estava convencido de que ela levava consigo dinheiro pertencente ao seu falecido pai. Não se encontram preenchidos os elementos típicos deste ilícito sendo que, além disto, o procedimento criminal depende de queixa nos termos do n° 5 daquele art. 154°, o qual não foi exercido em tempo.

B - Crime de Sequestro agravado - art. 158° n°s. 1 e 2 e) do CP.

Não foi feita qualquer prova no inquérito de que a assistente tenha sido impedida de sair do seu carro e ir para a sua casa até à chegada da GNR. Ela dá uma versão e os denunciados outra. E a testemunha S..., vizinho daquela, ouvido pela PJ (fls. 42), disse mesmo que durante o tempo em que esteve junto de todos os intervenientes nunca se apercebeu que algum dos denunciados tenha ameaçado ou obrigado a mesma a permanecer naquele local.

C - Crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada - arts. 143, n° 1 e 145, n° 1 a), por referência ao art. 13272 do CP.

Não foi feita, também aqui, qualquer prova de que algum dos denunciados, nomeadamente o BB e o M..., tivessem de algum modo agredido a assistente. E também não se percebe o porquê da agravação do art. 145°, n° 1 por referência ao art. 132°, n° 2 c) do CP. De todo o modo, mais uma vez é a versão da assistente contra a dos denunciados, sendo que o exame médico efectuado, posteriormente, por aquela nada de verdadeiramente acrescenta à prova (cfr. fls. 25).

D - Crime de Abuso de Poder - Art. 382° do CP

Comete este ilícito o funcionário que abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

Ora, o BB, Juiz Desembargador, estava convencido de que a assistente fugia com dinheiro pertencente a seu pai. Daí a ter seguido e interpelado. Não se vê onde está a intenção de obter para si ou terceiro um benefício ilegítimo.

E - Crime de Ameaça Agravado - arts. 153°, n° 1 e 155°, n° 1 b) do CP

A assistente imputa este crime ao denunciado BB porque o mesmo, segundo ela, lhe encostou uma pequena arma de fogo ao peito enquanto dizia "Ou dás-me o dinheiro ou estouro-te os miolos, eu fodo-te".

Porém, mais uma vez, não existe a mais pequena prova de que estes factos tenham ocorrido. Do que foi apurado no inquérito resulta quase uma probabilidade séria de que este denunciado não tenha apontado qualquer arma à assistente. Na verdade, consta a fls. 80 dos autos que, muito antes dos factos deste processo, tinha sido apreendida àquele BB, pela PJ e no âmbito de um outro processo, uma pistola de defesa de calibre 6,35 mm.. De resto, é a versão daquela contra a versão dos demais.

 F - Crime de denúncia caluniosa - art. 365°, n° 1 do CP

Dispõe este art. no seu n° 1 - "Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento é punido com...". O BB terá referido aos agentes da GNR que ela transportava três sacos que continham 150.000 Euros para depositar em bancos de França, dinheiro este que era do seu pai.

Mas, aquele só referiu tais factos porque estava absolutamente convencido de que tal era verdade. No fundo, estava a tentar defender o seu património. Não tinha, por isso, qualquer consciência da falsidade da imputação que fazia àquela.

Logo, não se verifica tal ilícito.

G - Crimes de Difamação e Injúria - arts. 180° e 181° do CP

Aplica-se aqui, quase, o mesmo fundamento anterior. Na verdade, o BB estava deveras convencido de que a assistente levava consigo aquela quantia em dinheiro pertencente a seu pai e, por isso, a imputação que lhe poderia ter feito destinava-se a realizar um interesse legítimo, sendo que igualmente tinha um fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira. E, assim, a sua conduta não é punível nos termos do n° 2, a) e b) do art. 180° do CP.

2. Acresce que a prova apresentada no requerimento de abertura de instrução nada pode acrescentar à que foi carreada para o inquérito. A denunciante e ora assistente ... foi ouvida no inquérito (fls. 72 a 75) e não se justifica a sua nova audição para memória futura já que não está suficiente provado que a mesma esteja em fase terminal. Os documentos juntos não dizem respeito aos factos deste processo e nada têm a ver com o mesmo. Sendo que não se encontra junto o doc. a que foi dado o n° 10. E os guardas da GNR indicados como testemunhas e que tomaram conta da ocorrência, nada de novo poderão acrescentar. Aliás, o guarda E... escreveu tudo o que sabe sobre os factos no auto de fls. 12/13. E o mesmo se diga quanto ao cabo da GNR C... - auto de fls. 14/16. A testemunha E... foi a primeira advogada da denunciante e que veio a substabelecer no seu ilustre colega e actual mandatário desta, Dr. E... (fls. 138). Não se vê, assim, o que de novo possa acrescentar à prova. A não ser aquilo que a denunciada antes lhe terá dito. Por último, a testemunha A..., irmão desavindo com o denunciado BB, que não presenciou os factos e que apenas falou sobre os mesmos com a Drª. RR.

 3. Nos termos do art. 287°, n° 3 do C.P.P. o requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

É por demais manifesto que aquelas duas primeiras razões não se colocam aqui. Por isso apenas interessa indagar se, neste caso, a instrução é admissível.

Sobre esta questão e num caso semelhante, já se debruçou o Conselheiro Souto de Moura no Proc. n° 3/09.0YGLSB.S1. Permitimo-nos transcrever uma parte - "Aquando da entrada em vigor do actual CPP, há mais de vinte anos, assinalava-se ao preceito uma função garantística, em consonância com a própria razão de ser da fase processual em foco, a comprovação judicial da opção do M° P°, em termos de se preencher o conceito "inadmissibilidade legal da instrução", em termos muito restritos. Assim, à pergunta que cumpria fazer, de se saber quando é que o legislador não quis que houvesse instrução, a resposta dada reportava-se a casos de requerimento de instrução em processo especial, ou, tendo em conta o disposto, hoje, no art° 287° n° 1 do CPP, aos casos em que o arguido requeresse instrução por factos que o M° P° não incluíra na acusação, ou o assistente requeresse a instrução por factos já contemplados em acusação do M° P°.

A doutrina e a jurisprudência viriam a dotar o conceito de "inadmissibilidade legal de instrução" de uma maior flexibilidade. Germano Marques da Silva diz-nos que "O requerimento do assistente tem que conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta ou inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto e de arguido. Faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente. Se, porém, em lugar de inexistência ocorrer apenas a nulidade da acusação, nos termos do art. 283°, já não será caso de inadmissibilidade legal da instrução, tanto que a nulidade da acusação não é de conhecimento oficioso tendo que ser arguida." (in "Curso de Processo Penal", III, pag. 138 e 139).

Segundo Maia Gonçalves, "A rejeição por inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v. g. ilegitimidade do requerente (caso do M. P.) ou inadmissibilidade legal da instrução (v. g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais)." (Vide "Código de Processo Penal Anotado", ed. 2009, pag. 691).

Paulo Pinto de Albuquerque refere, por sua vez, entre os casos de inadmissibilidade legal de instrução "Requerimento do assistente que contém factos que não constituem crime [art. 311°, n° 3, al. d) por identidade de razão" (in "Comentário do Código de Processo Penal", pag. 750).

Em última instância, emerge a ideia de que equivaleriam aos casos de inadmissibilidade legal, assentes em razões de ordem formal, aqueles em que já seriam razões materiais, ou de mérito, a ditar a dita inadmissibilidade. E ficariam pois incluídos, no conceito, os casos em que, no fundo, a abertura de instrução se revelasse, com segurança, um acto inútil, acto que estaria vedado por força dos art°s 137° do CPC e 4º do CPP.

 A utilidade da instrução cifra-se num apelo a uma entidade, que é diversa daquela que produziu uma decisão que não agrada (no caso o M° P°), e que é uma entidade judicial, para que altere o sentido dessa decisão do M° P°. Existe algum paralelismo entre o controle facultado através do requerimento da instrução, e o que se proporciona com o direito ao recurso.

E não é por acaso, que o art. 420° n° 1 al. a) do CPP manda rejeitar o recurso, rejeição essa que é liminar, quando ele se mostrar manifestamente improcedente. Ora, se o juiz de instrução rejeitar a instrução por inadmissibilidade legal, e esta se fundar na inexistência, no caso, de crime, não deixa até de ter que se debruçar sobre o arquivamento do M° P°, exercendo, a este nível, um controle sobre ele. Sem dúvida, não passando pelo contraditório, mas limitado aos casos em que, à partida, se possa antever a clara inutilidade desse contraditório.

Aliás, não constituindo a instrução, na arquitectura do nosso processo penal, uma segunda fase preliminar essencialmente investigatória, e mantendo-se a ideia de que, quando desencadeada por requerimento do assistente, deve equivaler a uma autêntica acusação, então pouco sentido faria que se dotasse o juiz do julgamento, em face da acusação, de poderes que não assistiriam ao juiz de instrução perante o requerimento do assistente.

Porque, na verdade, à luz do art. 311º n° 2 al. a) do CPP, a acusação pode ser rejeitada se for considerada manifestamente infundada, o que por sua vez pode assentar na inexistência de factos, na acusação, que constituam crime. Ou seja, "diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante" (cf. Paulo Pinto de Albuquerque in loc. cit. supra).

Assim, nesta linha, a instrução seria inadmissível, desde logo, por não se incluir no requerimento para a sua realização a solicitação de produção de prova que alterasse a matéria de facto, tal como estabelecida aquando do encerramento do inquérito, e a factualidade desse modo fixada, e retomada no requerimento para abertura da instrução, não constituir crime.

Ainda se poderiam acrescentar os casos de ocorrência de uma causa de extinção de procedimento criminal, ou falta de preenchimento de uma condição de procedibilidade.

Como se disse no acórdão de 7/12/2005 (P° 1008/05 desta 5ª Secção), "Se o requerimento para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308° do CPP). A instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137° do CPC e 4º do CPP)."

A jurisprudência deste Supremo Tribunal enveredou sem sobressaltos por tal caminho, como se pode ver do acórdão proferido no P° 2299/03 da 3ª Secção a 24/9/2003, no P° 2608/03 da 3ª Secção a 22/10/2003, no P° 1008/05 da 5ª Secção já referido, a 7/12/2005, no P° 357/05 da 3ª Secção a 22/3/2006, no P° 3847/06 da 5ª Secção a 24/10/2006, no P° 3526/06 da 3ª Secção a 25/10/2006, no P° 4551/07 da 3ª Secção a 7/5/2008, ou no P° 3168/08 desta 5ª Secção de 12/3/2009.

Em consonância com estas tomadas de posição jurisprudenciais (e doutrinais), não pode perder-se de vista a própria tensão em que a instrução, arvorada em fase processual facultativa, muito cedo passou a viver. Por um lado, pretendeu-se que a instrução não excedesse a função de fase comprobatória (ou não), da opção do M° P° no fim do inquérito, se reduzisse sempre a um "puro instrumento de controlo", e nunca se assumisse como um "suplemento investigatório" (são expressões de Nuno Brandão in "A Nova Face da Instrução", Rev. Port. de Ciência Criminal, Abril-Setembro 2008, pag.228 e 229).

Porém, ao arrepio da posição do próprio Figueiredo Dias (apud loc. cit pag. 232), nunca se enveredou por confinar aquela comprovação a um momento, ou a uma diligência simplificada, prévia ao julgamento, nos casos de ter havido instrução, antes se enveredou pela criação de uma verdadeira fase.

Ora, aquilo a que se assistiu, foi como que ao "lastro" da velha "instrução contraditória", responsável por que a fase em questão passasse a ser indevidamente usada, e, tantas vezes, evidenciando uma instrução sacrificada a ritos processuais inúteis, a expedientes processuais dilatórios e abusivos e que não raras vezes foi na prática transformada num simulacro de julgamento" (ibidem pag. 233).

Não só o pensamento do legislador histórico, como o papel que a instrução deve continuar a ter no nosso processo penal, reclamam que a mesma não equivalha a uma antecipação de um julgamento, não signifique uma ofensa totalmente injustificada à paz jurídica do requerido, transformado necessariamente em arguido, nem se traduza em atentado claro à economia processual, quando se revele, sem margem para dúvidas, inútil.

Aliás, a propósito da segunda precaução enunciada, pode lembrar-se que depois da última revisão do CPP, enquanto que no art. 58° n° 1 se dizia que era obrigatória a constituição de arguido, se simplesmente corresse inquérito contra pessoa determinada, e esta prestasse declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal, passou a exigir-se, ainda, que em relação a essa pessoa "[houvesse] suspeita fundada da prática de crime".

Chegados a este ponto, cumpre perguntar se o requerimento de abertura da instrução pode ser rejeitado, só por aplicação das disposições conjugadas do art. 4º do CPP e 137° do CPC, concretamente, em casos que não sejam rigorosamente de inadmissibilidade legal da mesma, já que, apesar de completamente infundada, a factualidade imputada no requerimento de abertura da instrução configura crime.

Porque, na verdade, uma coisa é a descrição fáctica apresentada pelo assistente não constituir crime, e outra ela constituir crime, pese embora não ter, objectivamente, qualquer apoio nos factos apurados, "apenas expressando conjecturas subjectivas sem qualquer elemento de suporte objectivo", para retomarmos a expressão usada no P° 4688/06 da 3ª Secção, deste Supremo Tribunal, e acórdão de 7/3/2007.

 Cremos que nada impõe a exclusão, à partida, da apontada possibilidade. Como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal de 12/3/2009, a que já nos referimos, "Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 137° do Código de Processo Civil. Trata-se como acentua o Prof. José Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, I, pag. 240) duma norma que se impõe a todos, juiz, secretaria e partes, visando proibir os actos que apenas tenham o efeito de complicar o processo, impedindo-o de rapidamente chegar a seu termo.

É certo que o Código de Processo Penal não contém norma equivalente, mas tal não impede a aplicação nos termos do art. 4° do Código de Processo Penal, em virtude de o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal."

Claro que a afirmação antecipada de que a abertura da instrução e o debate instrutório (a que, no mínimo, se reduzirá), se revelarão inúteis, há-de revestir-se das necessárias cautelas, e só pode ter lugar caso por caso, depois da sua análise.

Nesta condições, nada impedirá a aludida rejeição, numa situação em que a instrução se destine a convencer o juiz de instrução da subsunção de certos factos a determinado tipo legal e os factos necessários ao preenchimento do tipo não tiverem qualquer suporte probatório, e não for minimamente previsível que, ao encerrar-se a instrução, se tenha passado a dispor da prova necessária à imputação fundada, da factualidade que interessa ao dito preenchimento do tipo.

Certo que a eventualidade de se apurarem os tais novos factos implicaria, de qualquer modo, "alteração substancial dos factos", com as consequências dos nºs 3 e 4 do art. 303° do CPP, o que reforçaria, assim, a inutilidade da instrução.

O art. 137° do CPC diz-nos que "Não é lícito realizar no processo actos inúteis, incorrendo em responsabilidade disciplinar os funcionários que os pratiquem."

Entendemos que o recorte da presente situação, em que somos chamados a pronunciarmo-nos, está nestas condições.

E no mesmo sentido é o Ac. deste STJ de 13.1.2011, Proc. 3/10.0YGLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Sottomayor - "O requerimento para abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento do MP, deve observar o disposto no art. 283.°, n.° 3, als. b) e c), do CPP, quer dizer, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis. II - Não tendo sido formulada acusação pelo MP, o requerimento para a abertura da instrução funciona como equivalente dessa acusação, do qual decorre a vinculação factual que o juiz tem de respeitar, pautando a sua conduta no processo, por força do princípio do acusatório, dentro dos parâmetros fornecidos por aquela delimitação factual, uma vez que o juiz não actua oficiosamente e não investiga por conta própria, embora dirija e conduza a instrução de forma autónoma. III -Nestes casos, o requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, resultando da falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática de um crime ao agente a inutilidade da fase processual de instrução. IV -Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida como a proibição da prática de actos inúteis (art. 137.° do CPC). O CPP não contém norma equivalente, mas tal não impede a aplicação deste preceito nos termos do art.4.° do CPP, por se harmonizar em absoluto com o processo penal, havendo afloramentos do referido princípio no art. 311.°, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada e no art. 420.° ao prever a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência. V - Se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente, concluir que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que narra jamais constituirão crime, deve rejeitar tal requerimento, por o debate instrutório nenhuma utilidade ter, porque "não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, ... quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido" (acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/2005). VI -A instrução é de considerar legalmente inadmissível quando, pela simples análise do requerimento para a abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se concluir que os factos narrados pelo assistente jamais podem levar à aplicação duma pena ao arguido. VII - Nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. VIII - O assistente indicou, com minúcia, a conduta do denunciado que, na sua óptica, era integradora dos tipos de crime que entende preenchidos; porém, claudicou quanto ao elemento subjectivo, ficando-se pelo mero uso de expressões conclusivas, sem alegar qualquer facto capaz de pôr em evidência o motivo por que o denunciado voluntariamente assim agiu. IX - Como os poderes de indagação do juiz de instrução se encontram limitados pelos factos alegados, vedado lhe fica indagar das razões por que aquele teria agido contra direito com a finalidade de prejudicar o assistente e de beneficiar a contraparte, o que constitui verdadeiramente um dos pressupostos do requerimento de abertura de instrução. X - Tendo o denunciado a qualidade de magistrado, goza, no exercício da sua função, da garantia da irresponsabilidade quanto às suas decisões (art. 216.°, n.° 2, da CRP), que, embora não sendo absoluta, faz com que o juiz deva beneficiar da presunção hominis de integridade funcional. XI - O princípio da irresponsabilidade dos juízes não isenta os magistrados de responsabilidade criminal. Mas o apuramento desta torna-se mais exigente, sendo necessário que os indícios da prática do crime estejam bem consolidados, especialmente quanto ao elemento subjectivo, que, de modo algum, pode estar fundamentado em meras afirmações conclusivas, sendo de exigir que se adiante um hipotético móbil para o pretenso crime. XII - Por o requerimento de abertura de instrução primar pelo silêncio quanto aos motivos que teriam levado o denunciado a agir ilicitamente, não merece censura o despacho recorrido na parte em que conclui peia inutilidade da realização da fase instrutória, por não existir qualquer probabilidade, ainda que remota, de o denunciado vir a ser pronunciado por qualquer dos crimes cuja autoria o assistente lhe imputa, conclusões a que sempre se poderia chegar pela simples análise do requerimento de abertura de instrução, totalmente omisso na caracterização factual do elemento subjectivo.

C - DECISÃO

1. Não tem o mínimo fundamento probatório a imputação feita pela Assistente aos denunciados no requerimento de abertura de instrução e por todos crimes que do mesmo constam.

2. Não existe qualquer probabilidade, ainda que remota, de, na sequência da requerida instrução, os denunciados virem a ser pronunciados e virem a ser condenados em julgamento por qualquer daqueles crimes.

3. Os dados em apreço, neste específico caso, permitem afirmar que a requerida abertura da instrução, e a realização da mesma, se revelarão completamente inúteis.

4. Como assim, vai rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente, ao abrigo do art. 4° do CPP e 137° do CPC.

Desse despacho recorreu a assistente, alegando:

  I. Pelo douto despacho proferido nestes autos em 4 de Abril de 2018 foi decidido que

      “1. Não tem mínimo fundamento probatório a imputação feita pela Assistente aos denunciados no requerimento de abertura de instrução e por todos os crimes que do mesmo constam.

    2. Não existe qualquer probabilidade, ainda que remota, de, na sequência da requerida instrução, os denunciados virem a ser pronunciados e virem a ser condenados em julgamento por qualquer daqueles crimes.

    3. Os dados em apreço, neste específico caso, permitem afirmar que a requerida abertura da instrução, e a realização da mesma, se revelarão completamente inúteis.

     4. Como assim, vai rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente, ao abrigo do art. 4º do C P P e 137º do C P C”.

  II. Estabelece o art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.    

III. Entendeu-se, no despacho recorrido, que “nada impedirá a aludida rejeição, numa situação em que a instrução se destine a convencer o juiz de instrução da subsunção de certos factos a determinado tipo legal e os factos necessários ao preenchimento do tipo não tiverem qualquer suporte probatório, e não for minimamente previsível que, ao encerrar-se a instrução, se tenha passado a dispor de prova necessária à imputação fundada, da factualidade que interessa ao dito preenchimento do tipo”.

IV. O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve ser rejeitado não só quando não contenha os factos pelos quais se pretende que o arguido seja pronunciado, mas também quando os factos nele relatados não constituam crime.

V. A apreciação sobre se os factos descritos no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constituem ou não crime deve ter por base o requerimento de abertura de instrução, por si só, sem recurso a qualquer elemento a ele exterior.

VI. Deste modo, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente só deve ser rejeitado quando os factos nele relatados, ainda que se provassem na sua totalidade, jamais poderiam conduzir à aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, por ausência de tipicidade ou por deles resultar o preenchimento de qualquer causa de exclusão da responsabilidade criminal.

VII. Através da instrução, em caso de abstenção de acusação ou de prolação de uma acusação que fique aquém do que considera devido, o ofendido constituído assistente poderá ver tutelado o seu interesse legítimo na submissão a julgamento e condenação daquele que praticou um crime que visa a protecção de um bem jurídico de que é o concreto portador, dando-se assim expressão à garantia constitucional da tutela jurisdicional efectiva.

VIII. O acesso ao direito e aos tribunais é, entre o mais, concretizado através da via judiciária, dispondo o n.º 4 do art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.

IX. Ora, a possibilidade conferida ao assistente de requerer a abertura de instrução visa, justamente, garantir o direito a que uma causa de natureza criminal em que seja ofendido seja decidida mediante um processo equitativo, ou seja, decidida por um tribunal independente e imparcial, com observância do princípio do contraditório.

X. Enquanto concretização do direito à tutela jurisdicional efectiva, a instrução, quando requerida pelo assistente, tem como conteúdo essencial a discussão da decisão de arquivamento no que respeita ao juízo de inexistência de indícios suficientes formulado pelo Ministério Público.  

XI. Processualmente, esse conteúdo essencial concretiza-se, como mínimo, na existência de uma fase dotada de uma rápida e informal audiência oral e contraditória que visa a comprovação da decisão do Ministério Público de acusar ou de não acusar.

XII. É por isso que, nos termos do art.º 289.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a instrução é formada, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado.

XIII. Por isso, o juiz de instrução não pode apreciar o mérito da pretensão no despacho que admite ou rejeita o requerimento de abertura de instrução.

XIV. Haver ou não indícios suficientes, para além de dizer respeito ao mérito da pretensão, é o diferendo que se quer ver resolvido pelo juiz, na sequência dum mínimo de contraditoriedade, que se assegurará pelo debate instrutório.

XV. Para além do debate instrutório, o art.º 292.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção resultante da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, impõe que seja ouvida a vítima, sempre que esta o solicite, o que foi ostensivamente ignorado no despacho em crise.

XVI. Parte significativa da jurisprudência que admite a rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente com fundamento na falta de narração de factos ou na inexistência de crime, recorre ao disposto no art.º 311.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código de Processo Penal, adoptando uma de duas vias metodologias: ou interpreta o conceito indeterminado “inadmissibilidade legal” em sentido coincidente com o de “acusação manifestamente infundada”; ou considera existir uma lacuna, que preenche mediante a aplicação analógica do art.º 311.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código de Processo Penal.

XVIII. Qualquer que seja a via metodológica adoptada, o recurso ao disposto no art.º 311.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código de Processo Penal, aponta em sentido diametralmente oposto ao decidido no despacho objecto do presente recurso, na medida em que, à luz daquele preceito não é permitido ao juiz sindicar a suficiência ou insuficiência da prova indiciária nem a suposta inutilidade da prova requerida.

XIX. Os casos integrantes da figura da acusação manifestamente infundada devem ser claros e evidentes; daí o uso, pelo legislador, do advérbio de modo manifestamente.

XX. Assim, se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz, no despacho a que alude o art.º 311.º, do Código de Processo Penal, não pode considerar a mesma manifestamente improcedente, assim como não pode rejeitar a acusação se a questão for discutível e quando opte por determinado entendimento jurisprudencial sobre os elementos do crime: só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime.

XXI. O douto despacho, muito embora sem o dizer, encontra uma nova lacuna - ou, o que é o mesmo, pressupõe que a aplicação do art.º 311.º do Código de Processo Penal não permite colmatar na íntegra a lacuna que considera existir no regime do recebimento do requerimento de abertura de instrução.

XXII. Simplesmente, não explica minimamente em que medida é que a não previsão da possibilidade de rejeitar o requerimento de abertura de instrução por falta ou insuficiência dos indícios ou por inutilidade das diligências de prova requeridas constitui uma lacuna, ou seja, uma incompletude contrária ao plano do Direito vigente.

XXIII. Ao contrário do que é pressuposto pelo despacho recorrido, o “plano” do Direito vigente e as opções expressamente assumidas pelo legislador democraticamente eleito - como ficou definitivamente esclarecido a partir do Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto - opõem-se à possibilidade de rejeição da acusação ou do requerimento de abertura de instrução com fundamento na falta ou insuficiência dos indícios ou na suposta inutilidade da prova requerida.

XXIV. Opõe-se por razões que decorrem da estruturação do processo penal de acordo com o princípio da acusação, que garante a todos os sujeitos processuais a possibilidade de participar constitutivamente na definição do direito do caso concreto e que, nesse caso, seria frustrada no seu conteúdo essencial, mormente no que concerne ao assistente.

XXV. Além de contrariar o “plano” normativo do Código de Processo Penal, o douto despacho contraria o método de integração de lacunas imposto pelo art.º 4.º do referido código, avançando para a aplicação analógica de normas do processo civil quando existe norma processual penal aplicável aos casos análogos - ou seja, o art.º 311.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código de Processo Penal.

XXVI. O douto despacho não identifica o caso concreto regulado pelo art.º 130.º do Código de Processo Civil, que é semelhante, nos aspectos decisivos para a valoração legal, ao caso que, no mesmo, se pressupõe omisso, ou seja, a situação concreta consubstanciada na apresentação de requerimento de abertura de instrução supostamente não sustentado na prova indiciária constante dos autos, em moldes supostamente não superáveis pela prova nele requerida.

XXVII. Em parte alguma a douta decisão diz qual é a situação concreta, regulada pelo art.º 130.º do Código de Processo Civil, análoga àquela que se pretende solucionar, no âmbito do processo penal, mediante o recurso àquela disposição legal.

XXVIII. Assim, a aplicação desse normativo ao caso dos autos consubstancia uma analogia com coisa nenhuma, uma analogia no vazio, um rótulo meramente formal para justificar uma decisão a que não é possível chegar por um procedimento metodologicamente correcto e controlável.

XXIX. Tampouco se poderá ver, no procedimento metodológico adoptado na decisão objecto do presente recurso, um recurso válido à analogia juris, a qual pressupõe que de várias disposições legais que ligam idêntica consequência jurídica a hipóteses legais diferentes, infere-se um «princípio jurídico geral» que se ajusta tanto à hipótese não regulada na lei como às hipóteses reguladas.

XXX. Do disposto no art.º 311.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código de Processo Penal, nenhum princípio se infere no sentido de permitir a rejeição do requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente com fundamento na suposta falta ou insuficiência da prova indiciária já constante dos autos ou na suposta inutilidade das diligências requeridas, pois o princípio que se infere de tal normativo é exactamente o contrário.

XXXI. Também nada se infere do art.º 130.º, do Código de Processo Civil, pois que este, para além da genérica proibição da prática de actos inúteis, nada mais estabelece, não estatuindo, designadamente, qualquer concreta consequência jurídica.

XXXII. Da matéria relatada no RAI resulta que os arguidos BB, EE, BB e FF vigiaram os movimentos da Assistente em vários momentos e locais e a seguiram, de carro, também em vários momentos, de e para distintos locais.

XXXIII. A conduta descrita não preenche a tipicidade objectiva e subjectiva do crime p. e p. 154.º-A, n.º 1, do Código Penal.

XXXIV. Ainda que assim se entendesse, sendo a questão focada no requerimento de abertura de instrução juridicamente controversa - dado estar em causa uma incriminação recentemente introduzida no ordenamento jurídico -, o juiz de instrução, no despacho a que alude o art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não pode rejeitar o requerimento de abertura de instrução, uma vez que só o poderá fazer se for inequívocoe incontroverso que os factos não constituem crime.

XXXV. A matéria relatada pela Assistente no RAI preenche integralmente a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158.º, nºs 1 e 2, al. e), do Código Penal, imputado aos Arguidos BB, BB e FF e ....

XXXVI. A Assistente relatou que estes, em conjugação de esforços e de intentos, a impediram de sair do seu veículo e do espaço exterior à sua residência, a fim de nesta entrar, durante cerca de duas horas.

XXXVII. Mais relatou que padece de doença oncológica em estado terminal e que necessitava de tomar a sua medicação, o que fez saber aos arguidos e, como qualquer pessoa de normal entendimento compreenderá, diminuía consideravelmente a sua capacidade de autodefesa.

XXXVIII. O douto despacho, ao invés de apreciar, em face do RAI e sem recurso a qualquer elemento a ele alheio, se os factos aí relatados, caso se viessem a demonstrar, constituíam crime, antecipou a apreciação dos indícios recolhidos nos autos, apreciando o mérito da pretensão sem sequer realizar debate instrutório, o que lhe estava vedado;

XXXIX. O douto despacho, ao referir que “Não foi feita qualquer prova no inquérito” ignora que as declarações da Assistente são um meio de prova;

XL. O douto despacho sustenta que, perante as versões contraditórias da Assistente e dos Arguidos, tem necessariamente que se concluir pela ausência de prova, sem ponderar da coerência do relato da Assistente com os demais meios de prova juntos aos autos e com as regras da experiência comum;

XLI. Desprezou, por completo, o teor do relatório pericial de avaliação do dano corporal, no qual se refere a existência de lesões - “Membro inferior esquerdo: equimose na face anterior da perna, em fase de reabsorção, de coloração esverdeada, limites mal definidos, com cerca de 6 por 1cm de maiores dimensões” -, que as mesmas “terão resultado de traumatismo de natureza contundente, o que é compatível com a informação” e que, deste modo, confirmam a versão da Assistente, tanto mais que para a existência de tais lesões nenhuma outra explicação é dada nos autos;

XLII. Desprezou a circunstância de, nesse mesmo relatório pericial, se referir que a Assistente refere “cancro da mama, submetida a mastectomia esquerda há 2 anos” e que apresenta, no tórax, “Cicatriz de mastectomia esquerda. Cateter de QT na região infra-clavicular direita”, o que também confirma o que aquela relatou;

XLIII. Desprezou aquilo que resulta dos autos de ocorrência relativos aos diversos contactos havidos entre o Arguido BB a as entidades policiais, designadamente o lapso de tempo decorrido entre o momento em que aquele comunica que já havia chegado à residência da Assistente e o momento em que a G.N.R. chegou ao local, de onde resulta que entre esses dois momentos decorreram cerca de duas horas, período de tempo incompatível, segundo as regras da experiência comum, com a permanência voluntária da Assistente no exterior da sua residência, atento o seu estado de saúde e a necessidade de toma de medicação;

XLIV. Desprezou o teor do auto n.º 29/2017, onde o militar da G.N.R, consignou que a Assistente, logo no local e em diálogo com o referido militar, “Acrescentou ainda que havia sido impedida de abandonar o local e de entrar para o interior da sua habitação por ...., provocando-lhe um stress e uma indisposição, tendo posteriormente sido transportada para o serviço de Urgências de ...”, não se vislumbrando em que medida é que a necessidade de transporte ao Serviço de Urgências, após os factos, poderá ser compatível, num quadro de normalidade, com a permanência voluntária no local;  

XLV. Esqueceu o douto despacho que mesmo o Arguido EE refere que a Assistente “mostrou-se nervosa e disse que não esperava e que se ia embora porque estava cansada” e que “entretanto chegou o ... e o .., a quem o ... pediu que ficassem ali ao pé da ... porque iam ver se conseguiam contactar a GNR, já que ali não tinham rede”; ora, mal se compreende, à luz das regras da experiência comum, que o Arguido BB necessitasse de pedir aos Arguidos ... e ... que “ficassem ali ao pé da ...”, se esta tivesse permanecido voluntariamente no local;

XLVI. Lançou mão do depoimento da testemunha HH para infirmar a versão da Assistente, esquecendo que esta testemunha refere que apenas esteve “cerca de três minutos” no exterior da sua habitação - 24.ª linha do auto de inquirição -, mais referindo que: “encontrava-se em sua casa a dormir, quando foi acordado pelas seguintes palavras. «Devolve-me os seiscentos mil euros que me roubaste». Não sabe quem proferiu essa frase, que foi dita em voz alta, razão pela qual acordou”, mais referindo ter dito ao Arguido BB “(…) que andavam sempre em confusões, e que deviam era parar com o barulho porque queria descansar”; decorre deste depoimento que o barulho, designadamente gritos do Arguido BB, era de tal forma grande que acordou a testemunha, que dormia no interior da sua residência; o que, mais uma vez, é pouco compatível com o relato dos Arguidos, quando afirmam que aquele Arguido se limitou a perguntar à Assistente se a mesma se importava de esperar e que esta acedeu de sua livre vontade.

 XLVII. Desprezou a circunstância de, no relatório pericial, constar que a Assistente, “Na sequência do evento foi assistida no serviço de urgência do Hospital de ..., onde foi observada, foi submetida a exames imagiológicos, foi medicada. Teve alta com indicação de analgesia em SOS”, o que é inteiramente compatível com o seu relato e não é explicável à luz da versão dos Arguidos.

XLVII. A matéria relatada pela Assistente no RAI preenche integralmente a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, al. a), por referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. c), todos do Código Penal, imputado aos Arguidos BB e BB.

XLIX. O douto despacho, ao invés de apreciar, em face do RAI e sem recurso a qualquer elemento a ele alheio, se os factos aí relatados, caso se viessem a demonstrar, constituíam crime, antecipou a apreciação dos indícios recolhidos nos autos, apreciando o mérito da pretensão sem sequer realizar debate instrutório, o que lhe estava vedado.

L. O douto despacho, ao referir que “Não foi feita, também aqui, qualquer prova” ignora que as declarações da Assistente são um meio de prova.

LI. O douto despacho sustenta que, perante as versões contraditórias da Assistente e dos Arguidos, tem necessariamente que se concluir pela ausência de prova, sem ponderar da coerência do relato da Assistente com os demais meios de prova juntos aos autos e com as regras da experiência comum.

LII. O douto despacho não oferece qualquer explicação racional para a existência das lesões e para a desvalorização do relatório pericial. Sendo certo que, se dúvidas subsistissem, podia e devia ter requisitado a documentação clínica relativa ao episódio de urgência, onde poderia comprovar que as lesões são contemporâneas dos factos.

LIII. A matéria relatada pela Assistente no RAI preenche integralmente a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º, do Código Penal, imputado ao Arguido BB.

LIV. O douto despacho, para afirmar que o Arguido “estava convencido de que a assistente fugia com dinheiro pertencente a seu pai” não se ateve ao RAI, sem recorrer a qualquer elemento a ele alheio, antecipando a apreciação dos indícios recolhidos nos autos, apreciando o mérito da pretensão sem sequer realizar debate instrutório.

LV. Em parte alguma do RAI se afirma que o Arguido BB “estava convencido de que a assistente fugia com dinheiro pertencente a seu pai”.

LVI. Nem se compreende como é que este poderia ter formado tal convencimento, quando é certo que a Assistente se dirigiu a um estabelecimento de café, onde permaneceu vários minutos, e, depois disso, se dirigiu a casa, comportamento em nada compatível com uma suposta “fuga” com dinheiro cuja proveniência o douto despacho nem sequer concretiza e que, na verdade e como resulta do auto de ocorrência, não foi encontrado.

LVII. Nos termos do art.º 27.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “Todos têm direito à liberdade e à segurança”, pelo que as situações legalmente previstas de privação da liberdade são excepcionais, constituindo a detenção uma medida cautelar e precária de privação da liberdade estritamente vinculada às finalidades referidas na lei.

  LVIII. A Assistente não estava cometendo ou tinha acabado de cometer qualquer crime - crime que, de resto, o douto despacho nem sequer identifica.

   LIX. Nada nesse sentido se pode retirar do RAI, sendo certo que, face ao que consta do auto de ocorrência, nomeadamente da revista que foi efectuada, nada foi encontrado na posse da Assistente.

   LX. Estacionar um veículo entrar e sair da residência de alguém, na posse de um saco, conduzir até a um estabelecimento público de café, aí permanecer alguns minutos e, depois, conduzir em direcção à própria residência não são sinais reveladores de coisa alguma, muito menos claramente reveladores.

   LXI. Não podem, assim, constituir flagrante delito, sob pena de se permitirem detenções indiscriminadas com uma frequência intolerável numa sociedade democrática.

   LXII. Nos termos do art.º 1.º, alínea b), do Código de Processo Penal, são autoridades judiciárias o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência.

   LXIII. O Arguido BB não estava a intervir em qualquer acto processual que coubesse na sua competência - nem poderia intervir, tratando-se de assunto do seu interesse pessoal, pois sempre estaria para tal impedido - pelo que não tinha o poder-dever de detenção ao abrigo do disposto no art.º 255.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.

   LXIV. O direito de detenção contemplado na alínea b) do n.º 1 do art.º 255.º, do Código de Processo Penal, pressupõe que a autoridade judiciária ou a entidade policial não estejam presentes e nem possam ser chamadas em tempo útil.

   LXV. Ora, se a Assistente se dirigia para a sua residência, não se vê em que medida é que se poderá considerar preenchida a exigência contida na parte final do normativo citado, já que nenhum obstáculo existia a que, em tempo útil, fosse requerida, promovida, ordenada e efectuada uma busca à residência da Assistente.

    LXVI. O Arguido BB, contornando os pressupostos legais de tal diligência, rodeou-se de comparsas de ocasião e realizou, sponte sua, vigilâncias, seguimentos, abordagens e detenções, como se de um OPC se tratasse.

     LXVII. Invocando a sua qualidade de Juiz Desembargador junto dos OPC, para obter a presença de patrulhas a pretexto de um seu palpite e, pior, para deter a Assistente, dizendo que “sou eu que te prendo” e “eu sou a lei”.

   LXVIII. A matéria relatada pela Assistente no RAI preenche integralmente a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, imputado ao Arguido BB.

   LXIX. Mais uma vez, o douto despacho, ao invés de apreciar, em face do RAI e sem recurso a qualquer elemento a ele alheio, se os factos aí relatados, caso se viessem a demonstrar, constituíam crime, antecipou a apreciação dos indícios recolhidos nos autos, apreciando o mérito da pretensão sem sequer realizar debate instrutório, o que lhe estava vedado.

   LXX. O douto despacho, ao referir que “não existe a mais pequena prova” ignora que as declarações da Assistente são um meio de prova.

   LXXI. O douto despacho sustenta que, perante as versões contraditórias da Assistente e dos Arguidos, tem necessariamente que se concluir pela ausência de prova.

    LXXII. Refere a apreensão de uma arma de defesa ao Arguido BB, no âmbito de outro inquérito, mas não refere e nem consta dos autos em que data é que tal apreensão ocorreu.

    LXXIII. Ao referir que de tal apreensão “resulta quase uma probabilidade séria de que este denunciado não tenha apontado qualquer arma à assistente” pressupõe que apenas exista uma arma com as aludidas características ou, pelo menos, que o Arguido apenas disponha de uma única arma, o que não resulta de qualquer meio de prova.

    LXXIV. A matéria relatada pela Assistente no RAI preenche integralmente a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º, n.º 1, do Código Penal, imputado ao Arguido BB.

   LXXV. O douto despacho, para afirmar que o Arguido “estava absolutamente convencido de que tal era verdade” não se ateve ao RAI, sem recorrer a qualquer elemento a ele alheio, antecipando a apreciação dos indícios recolhidos nos autos, apreciando o mérito da pretensão sem sequer realizar debate instrutório.

   LXXVI. Em parte alguma do RAI se afirma que o Arguido BB “estava absolutamente convencido de que tal era verdade”, sendo certo que este Arguido BB nem sequer foi ouvido no inquérito.

    LXXVII. A matéria relatada pela Assistente no RAI preenche integralmente a tipicidade objectiva e subjectiva dos crimes de injúria agravada e de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 181.º e 184.º, todos do Código Penal, imputados ao Arguido BB.

   LXXVIII. O douto despacho, para afirmar que o Arguido “estava deveras convencido de que a assistente levava consigo aquela quantia em dinheiro” e que “tinha um fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”, não se ateve ao RAI, sem recorrer a qualquer elemento a ele alheio, antecipando a apreciação dos indícios recolhidos nos autos, apreciando o mérito da pretensão sem sequer realizar debate instrutório.

    LXXIX. Pois em parte alguma do RAI se afirma que o Arguido BB “estava deveras convencido de que a assistente levava consigo aquela quantia em dinheiro” e, muito menos, que este “tinha um fundamento sério para, em boa-fé, (…) reputar verdadeira” a imputação desonrosa que fez, Arguido que nem sequer foi ouvido no inquérito.

   LXXX. Nos termos do art.º 181.º, n.º 2, do Código Penal, “A conduta não é punível quando (…) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e (…) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira”.

   LXXXI. A boa-fé não pode significar uma pura convicção subjectiva na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva.

   LXXXII. Ora, não resultam do RAI ou dos autos circunstâncias nas quais o Arguido BB pudesse ter fundado objectivamente e em boa-fé a convicção que se lhe atribuiu no douto despacho recorrido.

    LXXXIII. Estacionar um veículo, entrar e sair da residência de alguém na posse de um saco, conduzir até a um estabelecimento público de café, aí permanecer alguns minutos e, depois, conduzir em direcção à própria residência são actividades quotidianas da vida de tantos milhões de cidadãos, pelo que não se pode, com base nelas e sem mais, fundar a suspeita de que escondem algo de ilícito.

    LXXXIV. Ao decidir como decidiu, o douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 20.º, nºs 1 e 4, 27.º, n.º 1, e 32.º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa, nos artigos 132.º, n.º 2, al. c), 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, al. b), 155.º-A, n.º 1, 158.º, nºs 1 e 2, al. e), 180.º, nºs 1 e 2, 181.º, 184.º, 365.º, n.º 1, e 382.º, do Código Penal, os artigos 1.º, al. b), 4.º, 255.º, n.º 1, 256.º, nºs 1 e 2, 286.º, n.º 1, 287.º, n.º 3, 292.º, n.º 2, 289.º, n.º 1, e 311.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código de Processo Penal, e o art.º 130.º, do Código de Processo Civil.

           Respondeu o sr. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça desta forma:

I - Introdução

AA, assistente nos autos acima identificados, vem interpor recurso do despacho de 4 de abril de 2018, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução que a mesma havia formulado na sequência de despacho de arquivamento do processo de inquérito, aberto na sequência de queixa apresentada contra o senhor Juiz Desembargador Dr. BB, BB, DD, EE, FF e ....

A decisão recorrida é a seguinte:

1 - Não tem o mínimo fundamento probatório a imputação feita pela Assistente aos denunciados no requerimento de abertura da instrução e por todos os crimes que do mesmo constam;

2 - Não existe qualquer probabilidade, ainda que remota, de, na sequência da requerida instrução, os denunciados virem a ser pronunciados e virem a ser condenados em julgamento por qualquer daqueles crimes;

3 - Os dados em apreço, neste específico caso, permitem afirmar que a requerida abertura da instrução, e a realização da mesma, se revelarão completamente inúteis.

A assistente sustenta o recurso em longa motivação, com vastas citações jurisprudenciais e doutrinais tendentes a fazer valer os seus argumentos que se reconduzem ao seguinte:

- Nos termos do art.° 287.°, n.° 3 do C. P. Penal o requerimento de abertura de instrução (RAI) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução;

- O RAI apresentado pela assistente descreve factos que integram o elemento objectivo e subjectivo dos crimes de 154.º-A, n.° 1 (perseguição), 158.°, n.°s 1 e 2, alínea e), (sequestro), 143.°, n.° 1, 145.°, n.° 1, alínea a), todos por referência ao art° 132.º, n.° 2, alínea c) (ofensa à integridade física qualificada) e 382.° (abuso de poder), todos do Código Penal.

- Verificados que estejam tais pressupostos não é permitido ao juiz sindicar a suficiência ou insuficiência da prova indiciária nem a suposta inutilidade da prova requerida;

- Haver ou não indícios suficientes é o quod decidendum a apreciar pelo juiz após um mínimo de contraditório assegurado pelo debate instrutório;

- O despacho recorrido ignorou todos os elementos probatórios existentes no inquérito e deu por inexistente o elemento subjectivo dos crimes imputados ao denunciado, sendo que este nem foi ouvido no inquérito.

II - Do recurso

A questão que neste recurso tem que ser apreciada é a de determinar o alcance da parte final do número 3 do artigo 287.° do C. P. Penal, ou seja, saber em que circunstâncias se pode considerar legalmente inadmissível a instrução e designadamente se o juiz, perante um requerimento de abertura de instrução que preenche os requisitos exigidos pelo n.° 2 do mesmo artigo e os dois primeiros segmentos do n.° 3, pode ainda assim a rejeitar, por manifesta falta de fundamento probatório, que conduziria a que a instrução redundasse na prática de um ato inútil.

É aqui, com efeito, que reside o cerne da controvérsia em que assenta o recurso dado que na douta decisão recorrida se entendeu que a imputação feita pela Assistente ao denunciado não tem fundamento probatório, não havendo qualquer probabilidade de, na sequência da requerida instrução, o denunciado vir a ser pronunciado e condenado em julgamento por qualquer dos crimes.

Sobre o requerimento de abertura de instrução já o Ministério Público se pronunciou nos termos seguintes:

"...Remeta os autos à distribuição como Instância Única para apreciação do pedido de constituição de assistente, e abertura de instrução, formulado por AA, consignando-se desde já que o Ministério Público nada tem a opor, porquanto a requerente está em tempo, tem legitimidade, está devidamente representada por advogado e procedeu ao pagamento da taxa de justiça".

Há um reconhecido paralelismo entre a acusação e o requerimento para a abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, como é salientado, entre outros, nos acórdãos do STJ de 07-05-2008 (P. 4551/07) e de 12-03-2009 (P. 3168/08), pelo que, na definição do alcance do disposto na parte final do n.° 3 do art.° 287.° do CPP (inadmissibilidade legal da instrução) se nos afigura inevitável ter em conta o disposto no n.° 3 do art° 311.° do mesmo diploma. Pensamos aliás que a disciplina prevista para a rejeição da acusação deve valer por maioria de razão para a rejeição da instrução, até porque os efeitos de uma acusação que se venha a revelar inviável são muito mais gravosos, quer em termos processuais, quer para o próprio arguido.

Tal não significa que não seja de ter em conta o disposto no art.° 137.° do CPC (ex vi art.° 4.° do CPP), independentemente do facto de não haver norma equivalente no CPP, dado que a citada disposição traduz um princípio geral de direito adjetivo, que é o princípio da economia processual. Pode no entanto considerar-se que o n.° 3 do art.° 311.° do CPP corporiza no âmbito da respectiva incidência o compromisso entre tal princípio e o da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art° 20.° da Constituição da República Portuguesa, à luz da estrutura acusatória do nosso processo penal. Ora, não se vê que o princípio da economia processual deva ter uma abrangência mais lata no caso de requerimento de instrução do que no caso de um requerimento (acusação) para que alguém seja sujeito a julgamento.

Pensamos também que a doutrina e jurisprudência apontam no mesmo sentido. Não havendo unanimidade quanto aos motivos que podem legitimar a inadmissibilidade legal da instrução, o âmbito em que as diferentes posições se têm manifestado não revelam grande amplitude. Pode dizer-se que a posição mais restritiva é a de Simas Santos e Leal Henriques, segundo os quais a rejeição é devida quando formulada no âmbito de um processo especial, por quem não tenha legitimidade ou pelo assistente no caso de crimes particulares, mas não quando do próprio requerimento de abertura da instrução resultar falta de tipicidade da conduta, ausência de queixa, prescrição do procedimento, inimputabilidade do  arguido, etc. (Código de Processo  Penal  Anotado, 2.ª edição, 2004, pag. 163). Já sobre estas mesmas questões o Prof. Germano Marques da Silva se pronuncia em sentido inverso (Curso de Processo penal, III, 2.ª edição, pag. 134).

A jurisprudência tem-se pronunciado essencialmente sobre questões atinentes à formulação do requerimento, quando os mesmos não preencham os requisitos previstos no n.° 2 do art.° 287.° (V. entre outros os acórdãos do STJ de 7-12-2005 - proc. 1008/05-5.ª; de 22-03-2006 - proc. 357/05 5.3ª; de 24-10-2006 - proc. 06P3847; de 25-10-2006 - proc. 06P3526; de 07-03-2007 - proc. 06P4688).

A nosso ver a solução que melhor se compagina com a lei é aquela segundo a qual "...quando pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, então estaremos face a uma fase instrutória inútil" (acórdão do STJ de 12-03-2009 -proc. 08P3168).

Cremos ser este o entendimento que melhor se coaduna com o disposto no art.° 311.°, n.° 3 do CPP sendo que, é importante lembrá-lo, esta redacção resulta da Lei n.° 59/98, de 25 de agosto, que pôs em crise o entendimento do acórdão de fixação da jurisprudência n.° 4/93, nos termos do qual era possível a rejeição da acusação por manifesta insuficiência da prova indiciária.

O requerimento de abertura de instrução, não obstante as considerações avulsas com que o mesmo é introduzido, preenche os requisitos exigidos pelo art.° 287.°, n.° 2 do CPP.

O douto despacho recorrido rejeitou o requerimento com base também numa análise crítica da prova produzida em inquérito o que, pelas razões acima apontadas, é questão que deve ser apreciada já em sede de instrução.

Pelo exposto entendemos que deve ser dado provimento ao recurso.

III - Em conclusão

1 - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.° 286.°, n.° l, do CPP);

2 - O requerimento de abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução;

3 - Para além dos casos em que nos termos da lei a instrução não é possível (extemporaneidade, incompetência do juiz, requerida pelo Ministério Público, requerida em formas de processo especial, relativamente a factos que não foram objecto de inquérito, requerida por quem se não tenha constituído assistente, etc.) deverá ser tido em conta o critério estabelecido no art° 311.° nº 3 do CPP, não só pela afinidade existente entre a acusação e o requerimento para a abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, mas também por poder considerar-se que o n.° 3 do art.° 311.° do CPP traduz no âmbito da respectiva incidência o compromisso entre o princípio da economia processual e o da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art.° 20.° da Constituição da República Portuguesa, à luz da estrutura acusatória do nosso processo penal.

4 - Ora, não se vê que o princípio da economia processual deva ter uma abrangência mais lata no caso de requerimento de instrução do que no caso de um requerimento (acusação) para que alguém seja sujeito a julgamento.

5 - A nosso ver a solução que melhor se compagina com a lei é aquela segundo a qual "...quando pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, então estaremos face a uma fase instrutória inútil" (acórdão do STJ de 12-03-2009 - proc. 08P3168).

6 - O requerimento de abertura de instrução, não obstante as considerações avulsas com que o mesmo é introduzido, preenche os requisitos exigidos pelo art.° 287.°, n.° 2 do CPP.

7 - O douto despacho recorrido rejeitou o requerimento com base também numa análise crítica da prova produzida em inquérito o que, pelas razões acima apontadas, é questão que deve ser apreciada já em sede de instrução.

Pelo exposto entendemos que deve ser dado provimento ao recurso.

Respondeu também o denunciado BB, concluindo:

1. Interpôs recurso a Assistente ... do douto despacho que rejeitou o RAI porque manifestamente infundado.

2. Também o recurso deve ser rejeitado porque é manifestamente improcedente.

3. Manifestamente improcedente porque, alegando-se violação de cerca de uma dezena de disposições legais, não se diz em que sentido devem as mesmas ser interpretadas ou aplicadas, desprezando-se por completo o comando da alínea b) do n.º 2 do art.º 412º do CPP.

4. Manifestamente improcedente porque no RAI se omitiu uma condição de procedibilidade, e no recurso não se supriu essa lacuna, se é que o podia fazer já: a referência ao tipo de processo, seja, comum singular ou colectivo, sumário ou abreviado, ignorando-se, pois, de que forma os Recorridos seriam submetidos a julgamento.

5. Manifestamente improcedente porque, ainda que o recurso procedesse na parte impugnada, sempre o despacho teria de ser de não pronúncia atendendo a que o douto despacho recorrido considerou nulo o RAI e, nesta parte não foi objecto de recurso, estando a coberto do caso julgado. Porque assim, o recurso é absolutamente inútil porque, mesmo que procedesse na parte restante, sempre o despacho teria de ser de não pronúncia.

6. Manifestamente improcedente porque não se demonstra que os Recorridos são, na realidade, as pessoas que devem ser submetidas a julgamento, sendo certo que no RAI apenas se faz referência ao nome (que não aos elementos de identificação) e apenas na parte em que se lhes imputa a prática de ilícitos. O que vale por dizer que o RAI é nulo por falta de identificação completa das pessoas a levar a julgamento, como o impõe o art.º 283º do CPP, para o qual remete o n.º 2 do art.º 287º do mesmo Diploma Legal.

7. Manifestamente improcedente na medida em que assenta em tese jurídica absurda, contra legem, como se demonstra pelo exemplo supra indicado, qual seja a de que o JIC não pode, no despacho que recebe ou rejeita o RAI, apreciar os indícios recolhidos no inquérito, quando é certo que, nos termos do n.º 1 do art.º 286º do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, sendo uma “instância de controlo e não de investigação”. Por isso que, se a Assistente entende que os factos denunciados nos autos não estão suficientemente indiciados, como não estão, “deve requerer ao MP a realização das diligências de prova que reputa úteis ou necessárias na fase de inquérito, ainda que pela via da intervenção hierárquica nos termos do art.º 278.º do C.P.P.”, pelo que “A instrução não se destina a suprir a falta de inquérito, nem serve para o desenvolvimento de uma atividade policial ou de averiguações”.

8. Unanimemente vem sendo entendido que, no despacho de pronúncia ou não pronúncia, o JIC tem de consignar os factos indiciados.

9. Porque a instrução não visa complementar a prova carreada aos autos no inquérito, então é óbvio que o JIC tem de apreciar os indícios carreados aos autos, que são apenas os recolhidos no inquérito

10. Daí que o M.º JIC deve rejeitar o RAI quando não há indícios, mínimos que sejam, da prática de um qualquer ilícito penal. Como aconteceu no caso em apreço, para evitar a prática de actos inúteis, proibidos pelo art.º 137º do CPC, aplicável ex vi do art.º 4º do CPP.

11. Sendo absurda a tese da Recorrente, tem de ser rejeitado o recurso porque é manifestamente improcedente.

12. O Recurso é manifestamente improcedente porque, estando a prova toda escrita, tendo o MP concluído pela inexistência de indícios da prática de um qualquer crime, a Recorrente, ao apresentar o RAI, exerceu o contraditório, razão pela qual é desnecessária a realização do debate instrutório, ao contrário do que defende a Recorrente.

13. Mas é também manifestamente improcedente porque, relativamente ao elevado número de crimes que a Recorrente imputa a quem pediu a intervenção da GNR apenas para tentar reaver os 250.000€ que abusivamente foram levantados da conta bancária de seu pai pela GG, a pessoa que se serviu da Recorrente (mandando-a vir de Paris e pagando-lhe principescamente em notas “grandes” levantadas ao balcão do BCP) para testemunhar no processo de casamento e de feitura de testamento, não há indícios, mínimos que seja, da prática de qualquer desses crimes.

14. Como nem sequer estão reunidos os elementos típicos.

15. Relativamente ao invocado crime de perseguição, diz a Recorrente que “Da matéria relatada no RAI resulta que (...) A conduta descrita não preenche a tipicidade objectiva e subjectiva do crime p. e p. 154º-A n.º 1, do Código Penal.

16. E assim é, na realidade, como a Recorrente reconhece pois que nem a Recorrente foi perseguida, e muito menos de forma reiterada, e nem a conduta dos Respondentes lhe podia provocar medo ou inquietação (nem se apercebeu que os Recorridos vinham atrás de si, a grande distância, com o único e exclusivo propósito de fornecer a sua localização à GNR).

17. Pretende a Recorrente que os Recorridos terão cometido um crime de sequestro agravado sem que estejam reunidos os elementos do tipo (art.º 158º do C. Penal) pois que a Recorrente parou o seu veículo e nele ficou em conformidade com a sua vontade livre e consciente. Se não se ausentou do local foi apenas porque o não quis fazer.

18. Tendo sido informada que a GNR estava a caminho para se apurar se tinha consigo o dinheiro que a sua amadrinhada GG levantou abusivamente da conta bancária do Sr. BB, acabou por dizer que esperava sim, como esperou.

19. Ninguém lhe retirou as chaves do veículo que estariam na ignição, nem ninguém se colocou à frente do veículo. De resto, nem ela se atreveu a afirmar tal. Daí que, se não se afastou do local foi apenas porque não quis.

20. A versão da Recorrente é inverosímil e não está ancorada - antes está contraditada - pelos restantes elementos de prova, sejam pessoais ou reais, sendo que as declarações dos Recorridos são coerentes e estão ancorados nos restantes meios de prova, maxime no registo de chamadas telefónicas feitas para a GNR. A Assistente não é pessoa credível como é notório em Parada, Paredes e freguesias vizinhas. De resto basta confrontar a queixa com as suas declarações no inquérito para de imediato se concluir pelas contradições existentes.

21. O relatório pericial a que Recorrente faz alusão nada pode demonstrar, por si só, especialmente no que tange ao nexo de causalidade entre o putativo sequestro e as lesões da Recorrente, sendo certo que, aquando do exame, as lesões estavam já em fase de reabsorção, o que significa que não eram recentes, isto é, não foram feitas pelos Recorridos na noite de 7 para 8 de Julho de 2018.

22. Não há indícios, mínimos que seja, de que alguém tenha apertado a perna da Recorrente contra a porta do condutor, até porque a Recorrente nunca esboçou um qualquer gesto de sair do veículo e, por isso, não podia ser entalada, como alega.

23. Não estão reunidos os elementos do tipo de crime de abuso de poder p. e p. pelo art.º 382º do C. Penal, seja porque o Recorrido Francisco agiu na sua qualidade de particular, de pessoa civil, que não de Magistrado Judicial, seja porque apenas quis recuperar o dinheiro de que a GG se apoderou, sendo a Recorrente sua amiga íntima, a ponto de ter conta bancária em conjunto.

24. Igualmente não se verificam os elementos do tipo legal de ameaça p. e p. pelo art.º 153º do C. Penal porque é inteiramente falso que o Recorrido .... tenha dito à Recorrente: “dás-me o dinheiro ou estouro-te os miolos, eu fodo-te”, sendo realidade que a expressão “estouro-te os miolos”, que não consta da participação - e não é por acaso -, tem autor bem conhecido, a testemunha Amílcar.

25. Igualmente não se verificam os elementos do tipo de denúncia caluniosa pois que o Recorrido Francisco sabia que a GG, abusando de poderes de representação de seu pai, que estava já incapaz de entender e querer, tinha levantado da conta bancária do BCP 100.000€, suspeitando - hoje tem a certeza - de que se teria apropriado de mais 150.000€. Pendem no MP as competentes participações criminais. Foi ainda o Recorrido informado de que a Recorrente e a Rita têm conta bancária conjunta. Sabe o Recorrido que a Recorrente vive em França, de onde veio, de propósito, para testemunhar no casamento e no testamento de seu pai, pendendo já a acção de interdição, devidamente publicitada, vindo a reconhecer-se que estavam reunidos os pressupostos para interdição. Foi ainda o Recorrido informado de que a Recorrente trouxera de casa da ... uma caixa do tipo das caixas de sapatos (que não apareceu na revista feita pela GNR ao veículo da Recorrente…).

26. O Recorrido ... estava e está convencido de que a Recorrente, no mínimo, ajudou a ... a dissipar o dinheiro. Por isso, não só o Recorrido não tinha consciência da falsidade da suspeita transmitida à GNR, como está convencido do contrário, razão pela qual jamais podia ter cometido o crime em causa, como bem se salienta no douto despacho recorrido.

27. Não estão reunidos os elementos dos tipos legais de injúria e difamação.

28. Na verdade, como não se referem quaisquer frases ou gestos ofensivos, supõe-se que os ilícitos serão resultado da chamada da GNR por se suspeitar que a Recorrente tinha consigo dinheiros do pai do Recorrido ... .

29. Ora, a Jurisprudência do STJ é uniforme no sentido de que não comete este tipo de ilícito quem denuncia a prática de factos ilícitos porque o “direito de denúncia prevalece sobre o direito à honra, visto que como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos”.

30. Em todo o caso sempre faltaria o elemento subjetivo do tipo legal pois que o Recorrido ... apenas quis denunciar uma situação ilícita-típica que, face às circunstâncias supra relatadas, estava, na realidade, em curso.

Termos em que deve ser rejeitado o recurso porque é manifesta a sua improcedência.

Ou, caso assim não seja entendido, deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se o douto despacho recorrido.

O sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer, nos termos do art. 416º, nº 1, do CPP:


A. Do recurso.
1. Recorre a Assistente AA do douto despacho de 4.4.2018 do Exmo. Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal de Justiça com funções de juiz de instrução proferido nos Autos de Instrução n.º 47/17.8YGLSB, que rejeitou requerimento de abertura de instrução que moveu a despacho de arquivamento proferido ao abrigo do art.º 277º n.º 2 do CPP em inquérito que correu contra o arguido Dr. BB, juiz desembargador no Tribunal da Relação ....
Requerimento em que pedia a produção de vários meios de prova e a pronúncia, a final, do mencionado Juiz Desembargador pela prática de crimes de perseguição, p. e p. pelos art.os 154º-A do CP, de sequestro agravado, p. e p. pelos art.os 158º n.os 1 e 2 al.ª e) do CP e de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.os 143º n.º 1, 145º al.ª a) e 132º n.º 2 al.ª c) do CP – todos em co-autoria material com outros –, e de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382º do CP, de ameaça agravada, p. e p. pelos art.os153º n.º 1 e 155º n.º 1 al.ª b) do CP, de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365º n.º 1 do CP, de injúria agravada, p. e p. pelos art.os 181º e 184º do CP e de difamação agravada, p. e p. pelos art.os 180º e 184º do CP – estes em autoria material singular.
Conforme as respectivas conclusões – art.º 412º n.º 1 do CPP –, pretende discutir, no mais importante, o alcance do conceito da inadmissibilidade legal da instrução constante do art.º 287º n.º 3 do CPP e, concretamente, se, fundamentando os factos narrados no requerimento respectivo a aplicação de uma pena ao arguido, a manifesta falta de sustentação probatória deles previsivelmente obstaculizante de uma decisão de pronúncia, constitui, sim ou não, causa da referida inadmissibilidade, isso na consideração de, assim, a instrução sempre redundar na prática de um conjunto de actos inúteis, por isso que proibidos por lei nos termos dos art.os 130º do CPC e 4º do CPP.
Questão a que o douto despacho recorrido respondeu pela positiva – por isso que não vendo, nem retrospectiva nem prospectivamente, sustentabilidade probatória dos factos imputados, decretou a rejeição do requerimento –, mas a que quer este Supremo Tribunal responda negativamente – pedindo, em conformidade, a revogação do douto despacho recorrido e a sua substituição por outro que defira a abertura da instrução.
Indica violação das normas dos art.os 20.º n.os 1 e 4, 27.º n.º 1 e 32.º n.º 7, da CRP; dos art.os 132.º n.º 2 al.ª c), 143.º n.º 1 e 145.º n.º 1 al.ª a), 153.º n.º 1, 155.º n.º 1 al.ª b), 155.º-A n.º 1, 158.º n.os 1 e 2 al.ª e), 180.º n.os 1 e 2, 181.º, 184.º, 365.º n.º 1 e 382.º, do CP; dos art.os 1.º al.ª b), 4.º, 255.º n.º 1, 256.º n.os 1 e 2, 286.º n.º 1, 287.º n.º 3, 292.º n.º 2, 289.º n.º 1 e 311.º n.os 2 al.ª a) e 3, do CPP; e do art.º 130.º do CPC.
2. Contramotivando, advogou doutamente o Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça a procedência do recurso, por entender que o requerimento de abertura de instrução preenche os requisitos formais e substanciais do art.º 287º n.os 1 al.ª b), 2 e 3 do CPP, e, concretamente, por considerar que a falta de fundamento probatório dos factos narrados, ainda que manifesta, não constitui causa de inadmissibilidade legal da instrução, antes questão que releva já da apreciação do mérito dela.
3. Ao recurso respondeu, igualmente, o arguido Dr. BB, acompanhado pelos três, alegados, co-autores dos crimes de perseguição, de sequestro agravado e de ofensa à integridade física qualificada imputados no requerimento de instrução.
Apontaram nulidades várias ao requerimento, mormente, a falta de identificação completa das pessoas a levar a julgamento, a falta de referência à forma processual e a falta de indicação do sentido em que normas violadas deviam ter sido interpretadas; sustentaram que a manifesta falta de fundamento probatório é causa de inadmissibilidade legal de instrução; asseveraram que, de qualquer modo, os factos narrados no requerimento não preenchem a tipicidade objectiva e subjectiva de nenhum dos ilícitos aí enumerados, nem a de quaisquer outros.
Por tudo o que pedem a improcedência do recurso e a confirmação do douto despacho sob censura.  
B. Do parecer do Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça.
4. Ainda antes de se passar ao mérito do recurso, talvez que se imponha uma precisão relativa ao âmbito objectivo e subjectivo do recurso.
Assim:
O procedimento onde se insere o presente recurso iniciou-se como inquérito criminal nos Serviços do Ministério Público deste Supremo Tribunal de Justiça com base em certidão extraída do Inq. n.º 2037/17.1... da Procuradoria do Juízo Local Criminal de ..., este instaurado sob queixa da, também aqui, Assistente AA que imputava aos denunciados Dr. BB, BB, TT, EE, FF e ... a prática de diversos ilícitos criminais, uns, em autoria singular, outros, conjunta.
E destinou-se à averiguação dos factos de que pudesse ter sido autor o mencionado Dr. BB, juiz desembargador, correndo (separadamente) neste Supremo Tribunal em razão do respectivo foro especial – art.º 11º n.º 4 a) do CPP.
A final do inquérito separado, concluiu a Exma. Procuradora-Geral Adjunta titular pela inexistência de indícios suficientes da prática pelo Dr. BB dos crimes em causa – concretamente, dos de ameaça do art.º 153º do CP e de sequestro do art.º 158º do CP –, por isso que determinando em 18.1.2018 o arquivamento do procedimento nos termos do art.º 277º n.º 2 do CPP.
A par do deste STJ, o inquérito de ... seguiu os seus normais trâmites, nele se cuidando dos factos participados na perspectiva da sua autoria, ou co-autoria, por parte dos co-denunciados BB, TT, EE, FF e SS, conforme resulta dos Autos de Instrução n.º 2037/17.1... ora apensados aos presentes.
Nele vindo a ser proferido em 31.1.2018 despacho de arquivamento nos termos do art.º 277º n.º 2 do CPP fundado em insuficiência indiciária.
Despacho contra o qual a Assistente igualmente reagiu mediante pedido de abertura de instrução, ali apresentado em 22.2.2018.
Pedido que, submetido a despacho judicial de 28.2.2018 no Juízo Local Criminal de ..., deu lugar à remessa, após trânsito, do procedimento a este Supremo Tribunal de Justiça para apensação aos presentes autos de instrução, por se entender existir entre os factos-objecto de um e outro, conexão processualmente relevante nos termos do art.º 24º n.º 1 c) do CPP e ser este o foro competente para o conhecimento de tudo nos termos dos art.os 27º e 29º n.º 2 do CPP.
Acontecendo que a apensação em causa (só) veio a ter lugar em 6.4.2018, ou seja, em momento ulterior ao douto despacho ora sob recurso que, como referido, foi prolatado em 4.4.2018.
É que neste Supremo Tribunal não foi proferida qualquer decisão, expressa ou tácita, quanto à competência por conexão, muito menos quanto ao pedido de abertura de instrução, tendo-se o Exmo. Juiz Conselheiro titular limitado a, sobre conclusão de 6.4.2018, apor em 12.4.2018 o despacho de «Visto. Nada a ordenar»    
Ora, serve tudo o que precede para dizer que se dá aqui por adquirido que o douto despacho sob recurso só se pronunciou sobre o requerimento de abertura de instrução movido ao despacho de arquivamento de 18.1.2018 proferido no Inq. n.º 47/17.8YGLSB que correu a cargo da Exma. Procuradora-Geral Adjunta deste STJ e que cuidou – e apenas cuidou – dos factos denunciados na perspectiva de deles poder ter sido protagonista o Juiz-Desembargador Dr. BB.
Estando, por isso, fora do respectivo âmbito objectivo e subjectivo o que quer que seja que se relacione com o Inquérito/Instrução n.º 2037/17.1..., mais que não seja por impossibilidade material, que só foi ele apensado aos presentes autos e levado ao conhecimento do Exmo. Juiz Conselheiro titular em data ulterior – em 6.4.2018, recorde-se – à da prolação – em 4.4.2018, recorde-se também – do douto despacho recorrido.
O que se quer deixar aqui consignado por, aqui e ali, alguns dos actos processuais produzidos poderem lançar algum dúvida sobre o ponto.
Sendo que, entendendo-se diferentemente, então, o douto despacho sob recurso sempre enfermará de nulidade por excesso de pronúncia nos termos do art.º 379º n.º 1 c) do CPP, isso pois que, nada tendo sido requerido a este STJ até ao dia 4.4.2018 relativamente ao arquivamento de ..., não se vê como quanto a ele se pudesse ter pronunciado, ainda que, apenas, para rejeitar o pedido de instrução, até porque a fase instrutória do procedimento não é oficiosa.   
5. Já quanto ao mérito do recurso, praticamente nada se tem a acrescentar à douta contramotivação produzida pelo, ao tempo, Exmo. Procurador-Geral Adjunto – hoje Ilmo. Juiz Conselheiro – neste Supremo Tribunal.
Concordando, ponto por ponto, com a argumentação desenvolvida, apenas se dirá que (também) se entende que no conceito da inadmissibilidade legal da instrução constante do art.º 287º n.º 3 do CPP não cabe a ideia da manifesta inviabilidade probatória dos factos submetidos a comprovação e, portanto, a da instrução, por tal motivo, como acto inútil e proibido em si mesmo.
E que, salvo o muito devido respeito, e se bem se se alcança o seu sentido, nem se vê que os arestos deste Supremo Tribunal de Justiça que o douto despacho recorrido convoca abonem a sua tese, mormente, o Ac STJ de 13.1.2011 - Proc. n.º 3/09.0YGLSB.S1, que, admitindo que a inutilidade possa constituir causa de rejeição da instrução, reclama que ela resulte da «simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo» e que afasta a relevância, a esse nível, da falta de «um mínimo de fundamento probatório», que tem por mais «própria dum despacho de não pronúncia após realização de um debate instrutório». 
6. Razões por que, sem necessidade de mais alongadas considerações, o Ministério Público é pela procedência do recurso.   

Notificado nos termos do art. 417º, nº 2, do CPP, o denunciado respondeu o seguinte:

I. RELATIVAMENTE À QUESTÃO PRÉVIA

Afirma o Exmo. PGA:

“Estando, por isso, fora do respectivo âmbito objectivo e subjectivo o que quer que seja que se relacione com o Inquérito/Instrução n.º 2037/17.1..., mais que não seja por impossibilidade material, que só foi ele apensado aos presentes autos e levado ao conhecimento do Exmo. Juiz Conselheiro titular em data ulterior – em 6.4.2018, recorde-se – à da prolação – em 4.4.2018, recorde-se também – do douto despacho recorrido.

O que se quer deixar aqui consignado por, aqui e ali, alguns dos actos processuais produzidos poderem lançar algum dúvida sobre o ponto.

Sendo que, entendendo-se diferentemente, então, o douto despacho sob recurso sempre enfermará de nulidade por excesso de pronúncia nos termos do art.º 379º n.º 1 c) do CPP, isso pois que, nada tendo sido requerido a este STJ até ao dia 4.4.2018 relativamente ao arquivamento de ..., não se vê como quanto a ele se pudesse ter pronunciado, ainda que, apenas, para rejeitar o pedido de instrução, até porque a fase instrutória do procedimento não é oficiosa”.

Subscreve-se, sem reserva, a indiscutível constatação do Exmo. PGA, que se assume para todos os efeitos legais.

Consequentemente, deverá considerar-se, sem mais formalidades, que o processo não abrange os arguidos EE, FF e SS, estando já findo o procedimento criminal, o que se requer.

II. QUANTO AO MÉRITO

Limitou-se, neste particular, a escrever o Exmo. PGA:

“Concordando, ponto por ponto, com a argumentação desenvolvida, apenas se dirá que (também) se entende que no conceito da inadmissibilidade legal da instrução constante do art.º 287º n.º 3 do CPP não cabe a ideia da manifesta inviabilidade probatória dos factos submetidos a comprovação e, portanto, a da instrução, por tal motivo, como acto inútil e proibido em si mesmo.

E que, salvo o muito devido respeito, e se bem se se alcança o seu sentido, nem se vê que os arestos deste Supremo Tribunal de Justiça que o douto despacho recorrido convoca abonem a sua tese, mormente, o AcSTJ de 13.1.2011 - Proc. n.º 3/09.0YGLSB.S1, que, admitindo que a inutilidade possa constituir causa de rejeição da instrução, reclama que ela resulte da “simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer”.

Em síntese:

Ainda que, como sucede in casu, seja “manifesta inviabilidade probatória dos factos submetidos a comprovação”, sempre haverá lugar à fase da Instrução.

Assim o afirma o Exmo. PGA sem recurso a qualquer norma legal e ainda sem referência a qualquer posição doutrinária ou jurisprudencial.

O que, não se aceita.

Porque não pode aceitar-se tal tese sob pena de se cometer ilegalidade nos autos: a prática de actos inúteis – art.º 137º do CPC aplicável ex vi do art.º 4º do CPP.

Dispensou-se o Exmo. PGA de tecer qualquer consideração sobre as finalidades da instrução (que não são, seguramente, as de recolher novos elementos de prova), sobre a possibilidade de o JIC poder ou não apreciar os indícios recolhidos no inquérito (que pode e deve pois que não está em causa a autonomia do MP).

Como se escusou de rebater a fundamentação de que, inexistindo elementos probatórios nos autos, como inexistem, que indiciem os crimes imputados, ao declarar aberta a instrução, está-se a praticar actos inúteis, que a lei proíbe.

Recorde-se que o MP é o defensor da legalidade democrática e, por isso, tem de pugnar no sentido de se evitar a prática de actos inúteis (o MP, enquanto Instituição, seguramente não se revê na posição, que não é teórica, de uma Exma. Magistrada do MP recusar a aplicação de uma norma por alegada inconstitucionalidade, sendo certo que o Exmo. Superior Hierárquico não quis corrigir tal ilegalidade...).

O Exmo. PGA igualmente se dispensou de se debruçar sobre os argumentos aduzidos pelos ora Respondentes na sua resposta ao recurso, designadamente sobre:

- A omissão, no RAI, do sentido em que devem ser interpretadas ou aplicadas as normas legais que se dizem violadas;

- A inutilidade do recurso na medida em que, tendo o despacho recorrido considerado nulo o RAI, não foi, nesta parte objecto do recurso.

- A falta de identificação, no RAI, das pessoas a levar a julgamento;

- A não referência ao tipo de processo, seja, comum singular ou colectivo, sumário ou abreviado, faltando, por isso, uma condição objectiva de procedibilidade;

- Ao facto de o recurso assentar em tese jurídica absurda, como se demonstrou.
Em todo o caso, basta remeter para os argumentos aduzidos pelo Exmo. Juiz-Conselheiro no douto despacho recorrido para se afirmar que, em absoluto, carece de razão o Exmo. PGA.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. Objeto do recurso

Antes de mais, há precisar qual é o objeto do recurso.
Na verdade, e como foi referido no relatório, o presente processo resultou da autonomização do mesmo relativamente ao inquérito nº 2037/17.1..., separação essa realizada pelo facto de o denunciado BB ser Juiz-Desembargador, sendo pois competente para apreciar a sua conduta o Supremo Tribunal de Justiça, por força do art. 11º, nº 4, a), do CPP, correndo a partir de então separadamente o presente inquérito neste Supremo, e o citado inquérito nº 2037/17.1... no Juízo Local Criminal de ..., este contra os restantes denunciados.
O presente inquérito, como vimos, foi arquivado pelo Ministério Público, tendo a assistente requerido a abertura da instrução, requerimento que foi indeferido por despacho de 4.4.2018, despacho esse que é objeto do presente recurso.
Acontece que, a 6.4.2018, já depois de proferido o despacho ora recorrido, foi apensado aos autos o inquérito nº 2037/17.1... (fls. 317), remetido pelo Juízo Local Criminal de ..., por se entender existir conexão entre os factos dos dois processos, sendo o Supremo Tribunal de Justiça o foro competente, por força do art. 27º do CPP. Nesse inquérito foi também proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público e igualmente requerida a abertura da instrução por parte da assistente AA.
Esse requerimento não foi obviamente apreciado pelo despacho recorrido, por a apensação ser posterior ao mesmo.
Aliás, nem sequer foi ainda proferido despacho expresso sobre a existência de conexão processual (ver fls. 317-318).
Consequentemente, o objeto deste recurso restringe-se, como não pode deixar de ser, ao despacho impugnado, o despacho de 4.4.2018, que versa sobre o requerimento para abertura da instrução formulado pela assistente AA sobre o despacho de arquivamento do Ministério Público de 18.1.2018, que se reporta exclusivamente ao inquérito movido ao denunciado BB.

2. Matéria do recurso

A decisão recorrida foi fundamentada conclusivamente nos seguintes termos:

1. Não tem o mínimo fundamento probatório a imputação feita pela Assistente aos denunciados no requerimento de abertura de instrução e por todos crimes que do mesmo constam.

2. Não existe qualquer probabilidade, ainda que remota, de, na sequência da requerida instrução, os denunciados virem a ser pronunciados e virem a ser condenados em julgamento por qualquer daqueles crimes.

3. Os dados em apreço, neste específico caso, permitem afirmar que a requerida abertura da instrução, e a realização da mesma, se revelarão completamente inúteis.

4. Como assim, vai rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente, ao abrigo do art. 4° do CPP e 137° do CPC.

Ou seja: entendeu-se não haver indícios suficientes dos factos descritos no requerimento para a abertura da instrução e daí concluiu-se que seria completamente inútil desenvolver a atividade processual requerida (a instrução), o que incorreria em violação do princípio plasmado no art. 130º do Código de Processo Civil (CPC)[1].
Em oposição, a assistente defende que o requerimento para a abertura da instrução só pode ser rejeitado, para além das situações de extemporaneidade ou de incompetência do juiz, quando os factos nele relatados não são puníveis, por falta de tipicidade ou por deles resultar o preenchimento de qualquer causa de exclusão da responsabilidade criminal. Rejeita portanto a possibilidade da apreciação dos indícios, frisando que a apreciação dos factos deve ter por base unicamente o próprio requerimento, sem recurso a qualquer elemento exterior, não podendo o juiz de instrução, no despacho que admite ou rejeita o requerimento, apreciar o mérito da pretensão. Essa apreciação, a seu ver, impõe, por respeito ao direito da tutela jurisdicional efetiva, uma discussão prévia oral e contraditória, precisamente o debate instrutório previsto no art. 289º, nº 1, do CPP.
Invoca a assistente expressamente o art. 311º, nºs 2, a), e 3, do CPP, que versa sobre a possibilidade de rejeição da acusação manifestamente infundada, excluindo a fiscalização dos indícios, para fundamentar a sua posição.
Em suma, a questão nuclear do recurso é esta: pode o juiz de instrução, quando se pronuncia sobre o requerimento para a abertura da instrução, analisar a suficiência dos indícios probatórios dos factos descritos no mesmo requerimento, podendo rejeitá-‑lo caso os considere insuficientes?

3. A natureza da instrução

A instrução constitui, nos termos do art. 286º, nºs 1 e 2, do CPP, uma fase facultativa do processo penal, através da qual se opera a fiscalização judicial da posição assumida pelo Ministério Público no final do inquérito, ou seja, a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito.

No caso de arquivamento do inquérito, que é a situação que aqui importa considerar, o assistente tem a faculdade legal de requerer a abertura da instrução relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, quando se trate de crimes de natureza pública ou semipública, tendo em vista a submissão da causa a julgamento, nos termos do art. 287º, nº 1, b), do CPP.[2]

O nº 2 do art. 287º do CPP determina que o requerimento para abertura da instrução do assistente, além de expor as divergências relativamente ao despacho de não acusação, deve dar cumprimento ao disposto no nº 3, b) e c), do art. 283º, também do CPP, sendo este último referente à estrutura da acusação. Assim, por força deste preceito, o requerimento para abertura da instrução deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”; e deve conter ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

A remissão para a disposição legal que regula a estrutura da acusação revela que o requerimento de abertura de instrução do assistente reveste a natureza jurídica de uma autêntica acusação, uma acusação em sentido material, desempenhando uma função idêntica à da acusação formal (a que é deduzida após o inquérito): a de fixação do objeto do processo, definindo vinculativamente o âmbito dos poderes de cognição do tribunal. O requerimento de abertura de instrução fixa, assim, o objeto da instrução, definindo e circunscrevendo o quadro temático em que o juiz de instrução pode agir no âmbito do seu poder de investigação autónoma, conforme resulta expressivamente do nº 4 do art. 288º do CPP.

Nem poderia ser de outra forma, atendendo à estrutura acusatória do processo penal, que impõe que o juiz investigue ou julgue (conforme atue como juiz de instrução ou como juiz de julgamento) dentro dos limites que lhe são propostos por uma acusação deduzida por um órgão diferenciado. Na instrução requerida pelo assistente, é este o sujeito processual encarregado de definir o objeto do processo. Sem uma precisa descrição fáctica da matéria imputada ao arguido no requerimento para abertura da instrução não haveria vinculação temática do juiz de instrução, nem consequentemente estariam asseguradas as garantias de defesa do arguido.

4. A rejeição do requerimento para abertura da instrução

Nos termos do nº 3 do art. 287º do CPP, o requerimento para abertura da instrução pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz, ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Se a extemporaneidade ou a incompetência do juiz não suscitam dúvidas de interpretação, já o conceito de “impossibilidade legal” comporta alguma indeterminação.

É inquestionável que esse conceito abrange os casos em que a lei, expressa ou tacitamente, veda o recurso à instrução. Expressamente, a lei afasta a instrução nos processos especiais (nº 3 do art. 286º do CPP). Mas também se deve considerar “legalmente impossível” a instrução quando faltar legitimidade ao requerente, quando for requerida contra desconhecidos ou contra pessoa não investigada no inquérito, ou quando for requerida pelo assistente em crime particular.

Já quando se verifique o incumprimento do disposto no nº 3 do art. 283º do CPP, imposto pelo nº 2 do art. 287º do CPP, ou seja, quando tenha sido omitida a narração dos factos, não parece adequado recorrer-se à figura da “impossibilidade legal”, uma vez que a lei não impede a priori a instrução. Perante a falta de previsão específica para o caso, mostra-se mais correto preencher a lacuna por meio do art. 311º, nº 2, a), e nº 3, b), do CPP, aplicável à acusação (formal), que dispõe que a acusação deve ser rejeitada quando não contenha a narração dos factos.

Na verdade, o paralelismo/similitude funcional entre a acusação formal e o requerimento para abertura da instrução, já acentuado atrás, recomenda a aproximação, se não mesmo coincidência, entre as causas que podem motivar a rejeição de ambos.

Se atentarmos no citado nº 3 do art. 311º, constatamos que a acusação deve ser rejeitada em quatro situações: quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos (já acima referida); se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; e se os factos não constituírem crime.

Donde resulta que a acusação não pode ser rejeitada por falta de indícios dos factos nela descritos. Ou seja, o juiz do julgamento, quando procede ao saneamento do processo, não pode sindicar a suficiência indiciária dos factos; a única fiscalização a que pode proceder é a da relevância criminal dos factos descritos na acusação.

Esta opção legislativa (que afastou, recorde-se, a jurisprudência fixada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/93) não tem só, nem principalmente, razões de celeridade processual, radicando antes na própria natureza acusatória do processo penal, ao evitar uma pronúncia do juiz, antes do julgamento, em que se procederá à produção exaustiva da prova, sobre a suficiência da prova indiciária dos factos.

Mas se essas razões são válidas para a acusação, não o são menos para o requerimento para abertura da instrução, dado o paralelismo, já assinalado, entre os dois atos processuais.

Donde resulta que, por força dos nºs 2 e 3 do art. 311º do CPP, aplicável analogicamente, o juiz de instrução, ao analisar o requerimento para abertura da instrução, está impedido de apreciar a suficiência dos indícios dos factos nele narrados, podendo apenas indagar se tais factos constituem crime.

Não se acolhe, assim, a tese subscrita e utilizada no despacho recorrido no sentido de o juiz de instrução poder analisar a suficiência das provas constantes do inquérito, e poder decidir pela rejeição liminar do requerimento, se concluir pela insuficiência.

Esse entendimento redundaria, afinal, em privar o assistente da defesa da sua posição no debate instrutório, o ato nuclear da instrução, que se destina a habilitar o juiz de instrução, mediante o contraditório oral das partes, a decidir sobre a existência de “indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento” (art. 298º do CPP). Sem esse debate contraditório perante o juiz, o assistente veria, afinal, desproporcionadamente reduzido o seu direito de acesso ao direito e à justiça.

5. O princípio da proibição da prática de atos inúteis

O requerimento para abertura da instrução formulado pela assistente foi rejeitado com base no art. 130º do CPC, que dispõe que não é lícito realizar no processo atos inúteis.

Essa disposição traduz a consagração genérica do princípio de economia processual, que rege a tramitação de todas as formas de processo e se destina a assegurar a racionalidade e celeridade da tramitação processual. É um princípio estruturante do processo, que tem a ver com o próprio princípio constitucional do acesso à justiça, na vertente da prolação da decisão da causa em prazo razoável (art. 20º, nº 4, da Constituição).

Contudo, a aplicação da regra depende obviamente da prévia caracterização do ato como inútil. E essa caracterização terá de resultar da interpretação das normas aplicáveis ao caso. É evidente que sempre que se concluir que a prática do ato supostamente “inútil” é imposta pela lei, não se pode recusar a sua realização com fundamento em “inutilidade”.

No despacho em análise, partiu-se do pressuposto de que é lícito ao juiz de instrução, ao apreciar o requerimento para abertura da instrução, sindicar o fundamento probatório dos factos imputados ao denunciado, para se concluir que, no caso, não haveria indícios suficientes dos mesmo e portanto constituiria atividade processual inútil a realização da instrução.

Contudo, esse entendimento, como vimos, não é o melhor. Entendemos, pelo contrário, que o juiz de instrução não pode exercer tal fiscalização, podendo apenas averiguar se os factos narrados constituem crime.

Se assim suceder, o juiz terá de declarar aberta a instrução e realizar, pelo menos, o ato central dessa fase: o debate instrutório.

Sendo assim imposta por lei a abertura da instrução, não pode esse ato ser em caso algum considerado “inútil”.

6. Análise do requerimento para abertura da instrução

Importa agora analisar o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, em ordem a determinar, sem recorrer a quaisquer outros elementos, se os factos nele descritos integram matéria criminal, e se suportam portanto a imputação jurídica feita pela assistente.

Diga-se desde já que é de todo insustentável a imputação do crime de perseguição, do art. 154º-A do CP, como aliás a própria assistente reconhece nas alegações de recurso (conclusão nº XXXIV). Na verdade, o crime de perseguição pressupõe um comportamento reiterado por parte do agente de perseguição ou assédio sobre o ofendido, não o coagindo fisicamente ou limitando os seus movimentos, mas infundindo-lhe medo ou inquietação, através da insistência nessa conduta.

Os factos imputados ao denunciado referem uma única conduta, consistente na vigilância e depois perseguição em automóvel da assistente por parte do denunciado até ela imobilizar o carro, altura em que se iniciou uma altercação entre ambos. Tratou-se de um comportamento pontual e destinado a confrontar fisicamente a assistente, o que afasta claramente a previsão típica do art. 154º-A do Código Penal (CP).

Também é de afastar a qualificação dos crimes de sequestro, ofensa à integridade física e ameaça. Com efeito, essa qualificação é sempre fundada pela assistente na circunstância de a vítima ser “pessoa particularmente indefesa”. Essa circunstância consistiria no facto de a assistente, alegadamente, sofrer de cancro “em fase avançada”. Contudo, não resulta dos factos descritos que limitações ou debilidades físicas essa doença envolveria para a assistente, de forma a poder ser considerada “pessoa particularmente indefesa”. Esse desconhecimento não pode deixar de afastar a circunstância qualificativa, devendo portanto aqueles crimes ser imputados no seu tipo simples.

Quanto ao crime de abuso de poder (art. 382º do CP), os factos não permitem a sua imputação ao denunciado. Com efeito, para a sua consumação exige-se que o funcionário utilize abusivamente os poderes que legalmente detém, para obter benefício ou causar prejuízo a outra pessoa. Sem um uso efetivo dos poderes atribuídos não há crime.

Analisando os factos descritos no requerimento para abertura da instrução, constata-se que em momento algum o denunciado invocou a sua qualidade de magistrado, e muito menos quaisquer poderes que lhe estejam associados, nomeadamente os de detenção. O que lhe é imputado é ter dito repetidamente à assistente “Eu sou a lei”, o que se afigura uma afirmação “retórica”, se não uma mera “fanfarronice”, não traduzindo qualquer intenção de exercer poderes inerentes à condição de magistrado. Aliás, o denunciado solicitou antecipadamente a comparência da GNR, para ser esta entidade policial a proceder à revista da assistente e do automóvel a fim de confirmar se ela transportava a quantia de dinheiro que o denunciado suspeitava ser de seu pai, e ele esperou pela chegada da GNR, que foi a entidade que efetivamente realizou a revista. Afinal, o comportamento do arguido cingiu-se a impedir que a assistente abandonasse o local antes da chegada da autoridade policial. Não houve qualquer ordem formal de detenção, nem nenhuma “atividade investigatória” por parte do denunciado; apenas uma “ação direta” contra a “suspeita”, levada a cabo com excesso de meios (sequestro, ofensa à integridade física, ameaça), é certo, mas sem abuso de poderes, nunca por ele invocados sequer.

Refira-se ainda que o pedido de comparecimento da GNR não envolve nenhum abuso de poderes. Na verdade, o pedido de auxílio a uma entidade policial para averiguar se uma determinada pessoa está cometendo um crime, concretamente se transporta ilicitamente dinheiro alheio, como foi o que ocorreu na situação em análise (embora não se tenha confirmado a suspeita), traduz um procedimento legítimo e normal por parte de qualquer cidadão.

Relativamente ao crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º do CP, também não existe factualidade que o sustente. Na verdade, a imputação à assistente, feita perante o comandante do posto da GNR, de que ela transportava consigo 150 000,00 € que pertenceriam ao pai do denunciado, não constituiu uma “denúncia” em sentido formal, pois não envolvia a intenção de contra ela ser instaurado procedimento criminal, mas apenas a manifestação de uma suspeita que era, para o aqui denunciado, urgente confirmar naquela ocasião. Aliás, que se saiba, nenhum procedimento criminal foi aberto na sequência daquela alegada “denúncia”.

Por último, e quanto aos crimes de injúria e de difamação (arts. 181º e 180º do CP, respetivamente), e uma vez afastado o crime de abuso de poder, há que concluir que eles constituem crimes particulares.

O meio de reagir contra o arquivamento do Ministério Público seria a dedução de acusação particular (art. 285º do CPP). Não tendo sido deduzida acusação pela assistente, essa matéria tornou-se inimpugnável, sendo por isso insuscetível de inclusão na instrução.

Conclui-se, pois, que o requerimento para abertura da instrução, na parte referente ao denunciado BB, deverá ser parcialmente deferido, abrangendo a instrução a totalidade dos factos narrados nesse requerimento, considerando-se que tais factos são subsumíveis tão-somente aos crimes de sequestro, ofensa à integridade física, e ameaça, nos seus tipos fundamentais, devendo ainda ser apreciado o demais requerido pela assistente na parte final do seu requerimento (fls. 272).

III. Decisão

Com base no exposto, e no provimento parcial do recurso, decide-se revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita parcialmente o requerimento para abertura da instrução, abrangendo a totalidade dos factos nele narrados, factos esses que integram os seguintes crimes:

- um crime de sequestro, p. e p. pelo art. 158º, nº 1, do CP;

- um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP;

- um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, nº 1, do CP.

Sem custas.

 Lisboa, 11 de setembro de 2019

Maia Costa (Relator)

Pires da Graça

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[1] Note-se que no despacho se refere sempre, por evidente lapso, o art. 137º do CPC anterior, revogado em 2013, que tem idêntico teor.
[2] Relativamente aos crimes particulares, deverá o assistente deduzir acusação particular (art. 285º do CPP).