Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1489/23.5T8BRR.L1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
RESIDÊNCIA HABITUAL
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
DOMICÍLIO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
PROTEÇÃO DA CRIANÇA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Tendo sido alegado na petição inicial, apresentada em 1 de Abril de 2024, que a menor, na companhia da sua mãe, com o consentimento do seu pai, aqui recorrente, foi viver para a Alemanha em 01 de Setembro de 2022, onde frequenta a escola, por aplicação do art.º 7.º do Regulamento UE 2019/1111, do Conselho de 25.06.2019, relativo à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças, que reformulou o Regulamento 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, aplicável à situação em apreço nos autos face às regras de hierarquia das leis e ao disposto no art. 59.º do Código de Processo Civil, a competência para conhecimento da presente acção está adstrita aos tribunais alemães, por nesse Estado-Membro ter a menor a sua residência.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1 – relatório

AA apresentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 09 de Novembro de 2023 que julgou improcedente o recurso de apelação e manteve a decisão recorrida proferida em 4 de Julho de 2023 Juízo de Família e Menores ... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que julgou verificada a excepção de incompetência deste Juízo de Família e Menores em razão das regras de competência internacional e em consequência, indeferiu liminarmente o peticionado, ao abrigo do disposto nos artigos 590.º/1 e 577.º/a), do Código de Processo Civil..

O recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. Desde o momento em que o Requerente e a Requerida, progenitores da menor, BB, se separaram, que o Requerente encetou esforços no sentido de proporcionar melhores condições de vida para a sua filha, bem como facilitou e agilizou a vida da menor (por intermédio da comunicação e acordos com a Requerida) da melhor forma no local da nova residência habitual, abstendo-se totalmente de qualquer prática alienatória.

2. Vendo-se, atualmente, reiteradamente perturbado nos contactos à distância, e impedido de estabelecer contactos presencias já há mais de uma ano e dois meses com a filha, devido à dificuldade relacional com Requerida.

3. Desta forma, o Requerente, perante a impossibilidade de chegar a um consenso com a Requerida, recorreu à justiça portuguesa, confiando ser este o meio adequado para exercer os seus direitos e deveres, no âmbito das responsabilidades parentais quanto à menor, bem como para conseguir ter contacto com esta e fazer parte da sua vida.

4. Nunca pode ser tido em conta o consentimento por parte do Requerido na deslocação da menor para fora de território nacional, porquanto o acordo estava condicionado à sua reunião com a filha nesse país, possibilidade esta da qual foi impedido diretamente pela Requerida.

5. Sendo certo e afirmado por ampla jurisprudência que os menores beneficiam da convivência com ambos os progenitores., nomeadamente no que refere à continuidade das relações de afeto de qualidade e significativas, tendo em conta o Princípio do primado da continuidade das relações psicológicas profundas, no sentido do direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência.

6. Mais, sentiu-se o Requerente enganado pela Requerida, pois esta levou consigo todos os documentos identificativos da sua filha, não deixando consigo sequer quaisquer cópias dos mesmos, nem sequer do respetivo cartão de cidadão da, visto que nunca pensou ficar distante dela.

7. Sabe ainda o Requerente que, não foi o único com quem a Requerida agiu desta maneira, pois que esta também procurou cooperação junto do outro progenitor dos restantes filhos menores da Requerida, tendo, de igual forma, no momento em que deixou de necessitar de qualquer formalidade ou burocracia da sua parte, deixado de com ele comunicar, de forma abrupta, vedando-lhe os contactos parentais.

8. Não obstante o contexto supra descrito, o ora Requerente tentou, ainda assim, manter o contato com a menor, pugnando pela cordialidade na relação com a progenitora, humilhando-se, por vezes, de forma a que a sua não degradação lhe permitisse exercer uma parentalidade presente e responsável.

9. Certo é que, o Requerente beneficiou de Apoio Judiciário, o que indica claramente a insuficiência de meios económicos de que dispõe, o que determina claramente uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

10. Nesta sequência, vem novamente o Tribunal a quo declarar-se incompetente, e consequentemente pôr termo ao processo, cujo impulso processual evidencia a intenção por parte do Requerente de não perder o contacto com a sua filha.

11. Fundamentando a sua decisão no critério geral atributivo de competência internacional, referente à residência da menor, ignorando, por completo a necessidade de ponderação do critério da proximidade, o qual, tendo em conta o superior interesse da menor, analisa a competência internacional, tendo em conta a proximidade cultural, linguística, os laços familiares, de forma a aferir que jurisdição se encontra melhor posicionada para conhecer do contexto social e familiar da menor, a fim de poder obter uma melhor decisão da causa.

12. Novamente se afirma não ser possível encarar-se com indiferença tal denegação de justiça!

13. Porquanto, perante o impulso processual do Requerente, vem o Tribunal a quo, confirmar a decisão recorrida, a qual, por Despacho, se furta à aplicação do âmbito subjetivo e objetivo do Regulamento da União Europeia.

14. Como plasmado nas motivações deste recurso de revista excecional, não é unânime na jurisprudência portuguesa, nomeadamente no que refere aos Tribunais das Relações, que este tipo de processo de jurisdição voluntária, no âmbito da definição do estado das pessoas, comporte efetivamente a possibilidade de proferimento de um despacho liminar.

15. Isto em razão da violação do direito ao contraditório, plasmado no n.º 3 do art. 3º do C.P.C..

16. Deve, portanto, ser declarada a nulidade da Decisão/Sentença recorrida, por aplicação do art. 615.º, n.º 1, al. c) e d) do C.P.C., mediante a qual o Tribunal a quo se furtou à aplicação da legislação aplicável supra referida, bem como por se ter deixado de pronunciar sobre questões que devesse apreciar, nomeadamente no que refere à obtenção de acordo por parte da Requerida, e assim poder aferir da manifestação de vontade de atribuição de competência internacional à jurisdição portuguesa.

17. Não se contentando, o Tribunal a quo com a densificação do superior interesse da criança, cuja verificação cumulativa de todas as alíneas do n.º 1 doi art. 10º do referido Regulamento da União Europeia, comina na aplicação da competência internacional residual, vem agora o Recorrente apoiar a sua argumentação em jurisprudência vária que derroga o critério da residência habitual como elemento de conexão para o efeito ao qual se alude.

18. Deve o presente Recurso de Revista Excecional merecer provimento e julgado procedente por provado e, em consequência,

19. Ser o Acórdão recorrido reformado, sendo que se requer que V/ Exas. se dignem a declarar em que termos o Acórdão deve ser modificado, por violação do disposto na alínea c) e da 2ª parte da alínea d), do n.º 1 do art. 615º, por aplicação do consagrado no art. 684, n.º 1, todos do C.P.C..

20. E ainda, deve ser declarada a anulação do consentimento prestado pelo Recorrente para efeitos de autorização de saída da menor do território nacional com efeitos retroativos.

21. Deve ainda, a decisão a ser proferida dignar-se a oficiara Requerida ser citada (oficiosamente pela secretaria), e em consequência,

22. Determinar a designação de data, para realização de Conferência de Pais, nos termos do disposto no artigo 35º, n.º 1 do R.G.P.T.C..

23. Subsidiariamente, para o caso em que se verifique a inadmissibilidade do presente Recurso de Revista Excecional, aquando da apreciação liminar sumária, nos termos do n.º 3 do art. 672º, deve o presente recurso ser apresentado ao relator, para o efeito de admissibilidade de revista ordinária (nos termos gerais), por aplicação do n.º 5 do mesmo artigo, do C.P.C..

24. Subsidiariamente, caso às alegações não seja dado o devido provimento, requer-se que o Douto Tribunal cumpra com o disposto no vertido no n.º 4 do art. 34º do R.G.P.T.C., no sentido em que, declarando-se, ainda assim, internacionalmente incompetente para julgar a causa sub iudice, remetendo a presente ação ao tribunal em que considere que a mesma deve ser proposta.

25. Conclui-se, referindo que foram violadas as disposições constantes:

- do R.G.P.T.C., os artigos 4º, n.º 1, a) e c), art. 9º, n.º 7, 25º, n.º 1 e 3, art. 34º, n.º 4, art. 35º, n.º 1;

- da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, o art. 4º, a), c), e), f), g), h), i) e j);

- do C.P.C., os arts. 3º, n.º 3, art. 6º, art. 59º, art. 62º, a) e c), art. 96º, a), art. 590º, n.º 1 e n.º 5, art. 615º, n.º 1, c) e d);

- da Constituição da República Portuguesa, os artigos 8º, art. 36º, n.º 4, 5 e 6, art. 202º, n.º 2;

- do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o art. 288º;

- do Regulamento da União Europeia 2019/1111, Do Conselho de 25/06/2019, os artigos art. 7º, n.º 2, art. 10º, n.º 1, alínea a) e c), subalínea i) da alínea b), e n.º 2, 2ª Parte, art. 12º, n.º 1, b), n.º 3 e n.º 5, art. 14º.

Termos em que,

Deve o presente Recurso merecer provimento

Por ser de elementar Justiça!

A Magistrada do Ministério Público apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:

1. O Acórdão impugnado não deu provimento ao recurso do Recorrente, pai da menor, e manteve na íntegra o decidido no despacho proferido na 1.ª instância.

2. O recurso de revista interposto não deverá ser admitido, porquanto, o processo em causa reveste a natureza de jurisdição voluntária e, nessa medida, não comporta recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 988.º, n.º 1 do CPC.

3. “Só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em processos de Jurisdição Voluntária (artº 988º, nº 2 do CPC) nos casos em que as decisões proferidas não tenham sido tomadas com base em critérios de mera conveniência ou oportunidade, antes se tenham baseado exclusivamente em critérios de estrita legalidade, não bastando, assim, que o acórdão impugnado tenha interpretado normas jurídicas.

4. Sem conceder,

5. O thema decidendum consiste, essencialmente, em determinar se o Juízo de Família e Menores ... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa dispõe de competência internacional para a apreciação desta acção.

6. O Acórdão recorrido confirmou integralmente, a sentença da 1ª instância no que tange à matéria de facto e de direito, reforçando que a melhor forma de respeitar o superior interesse da criança é atentar à residência habitual da menor, que reside com a mãe na Alemanha há mais de 1 ano, pelo que decidiu que o Juízo de Família e Menores ... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa não dispõe de competência internacional para a apreciação desta acção.

7. Fê-lo, ancorado no Regulamento EU 2019/1111do Conselho de 25/6/2019 (artigos 7º, nº 1, 8º a 10º, als. a) a c) do nº 1).

8. O caso patenteado nos autos configura uma das situações em que é admissível a prolação de despacho liminar, contrariamente ao preconizado pelo recorrente, a coberto do artigo 590º, nº 1 do CPC ex vi artigo 33º do RGPTC.

9. Tal despacho é permitido por determinação do juiz, antes da citação, não se enquadrando no nº 3 do citado artigo 25º do RGPTC, que visa garantir o contraditório relativo às provas obtidas pelos meios previstos no nº 1do mesmo dispositivo legal.

10. Ou seja, perante a verificação evidente da referida excepção dilatória, insuprível e de conhecimento oficioso, qualquer instrução ou discussão posterior redundaria em actividade inútil, proibida por lei.

11. Verificada a incompetência absoluta do tribunal de 1ª instância, o conhecimento das demais questões suscitadas ficou prejudicado.

12. Assim sendo, o acórdão recorrido não padece de nenhum dos vícios ou nulidades que lhe é imputado, dado que não violou qualquer disposição legal substantiva ou adjectiva, quer a nível de erro de interpretação, aplicação ou determinação da norma aplicável, designadamente as enunciadas pelo recorrente.

13. Ademais,

14. O recorrente convoca, sem qualquer razão, as várias alíneas do nº 2 do sobredito artigo 672º do CPC, sendo que não se verificam os pressupostos da admissibilidade do recurso de revista excepcional.

15. A questão cuja apreciação o recorrente requer, circunscreve-se à defesa do interesse do requerente (parte), não envolvendo a protecção do interesse geral na boa aplicação do direito.

16. Acresce que as razões da clara necessidade de apreciação da questão devem ser referidas à aplicação do direito em geral e não à consideração de algum caso concreto isolado, como se constata na situação vertente.

17. A legislação aplicável (Regulamento UE 2019/1111, do Conselho de 25.06.2019, relativo à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças, que reformulou o Regulamento 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003) não suscita dúvidas de interpretação nem reveste relevante complexidade, nem tão pouco os arestos convocados pelo recorrente evidenciam desconhecimento da lei, pelo que não estão reunidos os pressupostos para a intervenção do STJ.

18. Não deverá ser admitido o recurso interposto pelo Recorrente por não se verificarem os requisitos do n.º 2 do art. 672.º do CPC, mantendo-se na íntegra o decidido no douto acórdão recorrido, com o que farão, V.Excelências, aliás como sempre,

JUSTIÇA!

Foram os autos remetidos à formação a que se refere o art.º 672.º, n.º 3 do Código de Processo Civil por o recurso de revista normal apenas ter sido apresentado a título subsidiário.

Por acórdão proferido por aquela formação foi determinada a remessa do recurso à relatora para apreciação da admissibilidade do recurso de revista à luz do disposto no art.º 629.º do Código de Processo Civil.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 629.º, n.º 2, a) do Código de Processo Civil por se mostrar invocada a violação das regras de competência internacional.


*


I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das alegações e conclusões de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Competência internacional do tribunal.


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I.4 - Os factos

Os factos a ter em conta para a decisão do presente recurso são o texto da petição inicial.


***


II – Fundamentação

1. Competência internacional do tribunal

Como detalhada e acertadamente analisado por ambas as instâncias, em sentido com o qual convergimos inteiramente, tendo sido alegado na petição inicial que a menor BB, na companhia da sua mãe, com o consentimento do seu pai, aqui recorrente, foi viver para a Alemanha em 01 de Setembro de 2022, onde frequenta a escola, por aplicação do art.º 7.º do Regulamento UE 2019/1111, do Conselho de 25.06.2019, relativo à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças, que reformulou o Regulamento 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, aplicável à situação em apreço nos autos face às regras de hierarquia das leis e ao disposto no art. 59.º do Código de Processo Civil, a competência para conhecimento da presente acção está adstrita aos tribunais alemães, por nesse Estado-Membro ter a menor a sua residência.

A derrogação deste normativo, restrita ao direito de visitas constante do art.º 8.º, tem limitação temporal de 3 meses após a deslocação, período esgotado muito antes da propositura desta acção 1 de Abril de 2024.

Não se verificou qualquer deslocação ilícita que torne operante a derrogação constante do art.º 9.º do Regulamento. Não se verificam os pressupostos de aplicação do seu artigo 10.º.

O superior interesse da criança não se confunde com a comodidade e menor dispêndio que suportará o recorrente com a propositura da acção perante os tribunais da Alemanha.

Os Tribunais portugueses são, pois, internacionalmente incompetentes para apreciação da presente acção, por a criança residir na Alemanha.

Por último, não prevê a lei que acção seja remetida ao tribunal considerado competente internacionalmente.

Pelas indicadas razões, improcede o recurso.


***


III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, atento o seu decaimento.


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Lisboa, 04 de Julho de 2024

Ana Paula Lobo (relatora)

Paula Leal Carvalho

Isabel Salgado