Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2189/20.3T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: ACESSÃO INDUSTRIAL
BEM IMÓVEL
PRESSUPOSTOS
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRÉDIO URBANO
VALOR PATRIMONIAL
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. A acessão industrial imobiliária é uma forma de aquisição originária da propriedade, recebendo o beneficiário da acessão um novo direito totalmente independente das vicissitudes que possa ter sofrido o anterior direito que se extingue.

II. A acessão industrial imobiliária enquanto causa de aquisição originária retroativa do direito de propriedade sobre determinada coisa, compreende, na sua noção legal, o conceito de incorporação de uma coisa da titularidade de uma pessoa, numa outra coisa da titularidade de outra, exigindo para o seu reconhecimento o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos substantivos: a) a incorporação consistente no ato voluntário de realização de uma obra em terreno alheio; b) a pertinência inicial dos materiais ao autor da incorporação; c) a formação de um todo único do terreno e da obra; d) o maior valor desse todo único em relação ao anterior valor do prédio; e) a boa-fé do autor da obra, considerando-se como tal o facto de o dono da obra desconhecer que o terreno era alheio ou se foi autorizado pelo dono do terreno.

III. O requisito do maior valor desse todo único em relação ao anterior valor do prédio, decide sobre a propriedade do conjunto (obras mais terreno) de acordo com o valor relativo dos elementos que o integram, donde, esse conjunto, formado pelas obras e respetivo terreno, pertencerá ao dono da obra, desde que o acrescimento de valor diretamente trazido pela dita obra ao conjunto seja superior ao valor primitivo do terreno, pagando o autor da incorporação a quantia correspondente a este valor, para não se enriquecer à custa do dono do terreno, interessando calcular, por um lado, o valor (atualizado) que o terreno tinha antes, e, por outro lado, o valor (também atualizado) da nova unidade predial (constituída pelo conjunto formado pela obra nova e pelo terreno).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO

1. AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum (inicialmente no Julgado de Paz, mas remetido ao tribunal recorrido em 19.8.2020, na sequência de decisão de incompetência em razão do valor, tendo em conta a prova pericial realizada - decisão de 29.7.2020) contra, BB e outros, e bem ainda requereu a intervenção principal provocada de CC, para intervir na ação ao lado do Autor.

Articulou, com utilidade, que foi casado com CC e, na constância do casamento, o casal procedeu à construção de uma casa para sua habitação, em terreno pertencente aos pais da então sua mulher (a ré BB e DD, entretanto falecido) e com autorização destes. Para o efeito o predito casal pagou os materiais e serviços de execução da obra. Assim, por entender que a construção à data da conclusão tinha valor superior, pretende adquirir o dito terreno para si e para CC, mediante o pagamento do seu valor.

Alegou ainda que a primeira Ré é BB e atendendo ao falecimento de DD, os seus sucessores são a viúva e os seus filhos que, acompanhados dos cônjuges, figuram como demais réus, com exceção da filha CC.

Concluiu pedindo o seguinte: “Nestes termos, e nos mais de direito, provada e procedente a acção, deve ser proferida sentença que declare e reconheça a aquisição do direito de propriedade do dito terreno, com a área de 703 m2 (…) a favor do A. e CC, mediante o pagamento do valor que for determinado, mas sempre reportado à data do início da construção. Mais requer (…) se digne declarar o cancelamento de qualquer registo ou ónus em nome dos RR”.

2. Regularmente citados, os Réus, BB, Maria da Conceição Cunha, EE, FF, GG, Maria Ermelinda Cunha, HH e II deduziram contestação, por impugnação, na qual, em síntese, alegaram que a construção tem valor inferior ao do terreno e que naquela foram usados recursos do casal dissolvido, mas também de familiares, amigos e dos próprios réus.

Concluíram pedindo o seguinte: “termos em que deve a presente a acção ser julgada improcedente, por não provada, e em consequência, serem os RR. absolvidos do pedido formulado, considerando-se os RR. como únicos donos e legítimos proprietários do imóvel id. nos autos, nos termos do art. 1340º CC a contrario sensu”.

(A ré BB não procedeu ao pagamento da taxa de justiça, pelo que a contestação se teve como não apresentada em seu nome, nos termos do art. 570.º, n.º 6 do CPC).

Os demais réus não contestaram.

3. Foi proferido despacho pelo Julgado de Paz (12.6.2018) a homologar a desistência e a declarar extinção da instância quanto ao réu JJ, uma vez que, por divórcio, este deixou de ter a qualidade de cônjuge da ré II.

4. Admitida a intervenção principal provocada de CC, citada, a mesma não apresentou qualquer articulado.

5. Prosseguindo o processo ainda nos Julgados de Paz foi proferido em 17.12.2018 despacho a ordenar a realização de prova pericial em moldes singulares, prova pericial cuja realização foi remetida para o tribunal competente (despacho constante do acto mencionado em 18.3.2021).

6. Devolvidos os autos, após a realização da prova pericial, foi proferida a decisão já anteriormente referida, remetendo o processo para o Tribunal de 1ª Instância, por incompetência em razão do valor do Julgado de Paz.

7. Foi proferido despacho saneador, definido o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

8. A Ré, II apresentou reclamação, terminando requerendo que fosse “agendada audiência prévia, nos termos do n.º 3 do art. 593º do C.P.C”.

9. Em face desse requerimento, o Tribunal de 1ª Instância proferiu decisão, concluindo que inexiste qualquer omissão de pronúncia, nada mais havendo a determinar por parte do Tribunal.

10. Foi convocada Audiência prévia onde se procurou a conciliação das partes e organizou-se a produção da prova a produzir na audiência final.

11. Procedeu-se à realização da audiência final, tendo sido proferida sentença, onde o Tribunal de 1ª Instância conclui com a seguinte decisão: “Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:

a) Declarar que AA e CC adquiriram, por via de acessão industrial imobiliária, o direito de propriedade sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob n.º ...01 e na matriz predial urbana sob o artigo ...83.

b) Fixar como condição suspensiva do direito de propriedade mencionado em a), o pagamento à primeira ré BB e à herança aberta de DD, da quantia de €23.643,02, a actualizar segundo os índices de preços no consumidor entre o ano de 1995, inclusive, até ao momento do efectivo pagamento e a realizar no prazo máximo de 90 dias contados do trânsito em julgado da presente decisão (…).”

12. Inconformadas com o assim decidido, apelaram a interveniente, CC e a Ré, II.

13. A Relação, conhecendo dos interpostos recursos, proferiu acórdão em cujo dispositivo consignou: “Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o Recurso e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida.”

14. É contra esta decisão que o Autor/AA se insurge, interpondo revista, aduzindo as seguintes conclusões:

“i. O recorrente não se conforma com a douta decisão recorrida, pois no seu entendimento a mesma é injusta e não observa o direito, por manifesto erro de interpretação e aplicação das normas processuais e substantivas;

ii. O douto acórdão declarou que o valor da obra à data da avaliação devia cifrar-se em € 8.446,00, que é a diferença entre o valor que consta do facto nº 20 e o valor do terreno antes da construção;

iii. Para achar tal valor considerou que o valor constante do facto nº 20 contempla o valor do terreno e obra nele implantada, o que manifestamente está contra a letra e sentido expressos no facto provado, do relatório pericial em que o facto se fundamentou, e do entendimento atrás expresso no próprio acórdão, assim violando as disposições dos artº 607 nº 3, 4, 5; artº 662 nº 1 CPC;

iv. O douto acórdão consagra o entendimento de que a obra e o prédio onde está implantada tem de ser avaliada em conjunto, para se saber se há mais-valia ou menos valia da incorporação. Certo é que o resultado do todo não pode ser diferente do da soma das partes, ainda que se admita que pontualmente possa haver mais-valia (para além da soma das partes), que para o efeito do artº 1340 CC não interessa, ou menos valia, que os factos provados todavia rejeitam, uma vez que a obra foi devidamente avaliada em todos os parâmetros. Assim, haverá que reconhecer que a questão da metodologia da avaliação não influi no resultado que a lei pretende para os fins da sua aplicação;

v. Foi deste modo que o tribunal, o sr. Perito e as partes entenderam que a avaliação, tal como foi feita, satisfaz perfeitamente os requisitos para aplicação do artº 1340, sendo assim possível comparar o valor da obra com o valor do terreno antes do início daquela;

vi. Estando fixado o valor do terreno antes do início das obras (sendo este o valor que interessa para se aferir do direito de acessão), o relatório pericial determinou o valor da obra reportado ao início da construção, bem como à data da avaliação;

vii. O douto acórdão concorda implicitamente que a data do relatório da avaliação é relevante pois utilizou o valor do facto nº 20 para os cálculos a que procedeu, não rejeitando também os valores do terreno e da obra achados para 1995, ano do início das obras, visto que não aderiu à impugnação do facto do valor da obra naquela data;

viii. À data do início da obra, o valor desta suplantava o valor do terreno e à data da avaliação, o valor calculado para a obra excede ainda mais o valor do terreno, reportado este à data de 1995;

ix. Embora o valor da obra, reportado à data da avaliação, não conste dos factos provados (provavelmente por o tribunal de 1ª instância não o ter considerado necessário), certo é que o mesmo está reconhecido pelas partes e pelo tribunal recorrido (fls 28); não obstante tal reconhecimento, entendendo o supremo tribunal que o valor deve constar dos factos provados, para a aplicação do direito, competirá a ampliação da matéria de facto, consoante a disposição prevista no artº 662 nº 1 e 682 nº 3 CPC; e portanto há de ficar assente que o valor da construção à data da avaliação era de €31.600,00, manifestamente superior ao valor do terreno antes da construção;

x. Decidindo como decidiu, fez o douto acórdão recorrido uma errada interpretação das disposições legais assinaladas e especialmente do artº 1340 nº 1 CC, com a consequente violação da lei.

Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o douto suprimento de V.Ex.as, deve ser revogado o douto acórdão, por violação das normas legais assinaladas, e prolatado douto acórdão que reconheça ao recorrente (e interveniente principal) o direito de acessão imobiliária peticionado, com a obrigação do pagamento a que se refere a douta sentença de 1ª instância, assim se fazendo JUSTIÇA”.

15. A Recorrida/II apresentou contra-alegações.

16. Foram dispensados os vistos.

17. Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. A questão a resolver, recortada das alegações de revista interposta pelo Recorrente/Autor/AA consiste em saber se: (1) O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito ao julgar improcedente a demanda, desconsiderando a reclamada aquisição originária do imóvel ajuizado, por acessão industrial, impondo-se a revogação dessa decisão e a sua substituição por outra na qual seja reconhecido o invocado direito, repristinando-se o decidido em 1ª Instância?


II. 2. Da Matéria de Facto

Com relevância e interesse para a decisão do mérito da causa, da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

“1. BB é viúva de DD, falecido em ... de Maio de 2017.

2. São seus filhos CC, KK (casado com LL), MM (casada com NN), FF (casada com GG), OO (casada com HH) e PP. 3. São sucessores de DD a viúva e os filhos.

4. Encontra-se registado a favor de “DD casado/a com BB no regime de comunhão geral”, pela Ap. ..., de 1 de Julho de 2002, o prédio urbano, que constitui o lote ... de terreno para construção, com a área de 703 m2, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial competente, sob o número ...01 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...83 (que teve origem no artigo ...24).

5. AA e CC casaram em ... de Janeiro de 1988, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em ... de Novembro de 2012, no processo n.º 4534/12...., do ... juízo Cível do Tribunal Judicial ....

6. AA e CC, na constância do casamento, tiveram autorização de DD e BB para construir uma casa para habitação do casal no terreno identificado em 4.

7. Foi emitido Alvará de Licença de Construção n.º ...95, cujo teor se dá por reproduzido, em que foi requerente AA, e no qual, além do mais, constam as seguintes menções: “construção de anexo, com área total de 30 m2, destinado a arrumos (…)”.

8. AA e CC construíram, no terreno identificado em 4, uma casa, para sua habitação, com área bruta de 117,60 m2, composta por dois quartos, casa de banho, cozinha, sala, corredor e garagem.

9. A construção foi iniciada em 1995 e terminada em 1999.

10. AA e CC pagaram todos os materiais e serviços, como de pedreiro, trolha, carpinteiro, picheleiro e pintor, usados na construção da casa.

11. Convencidos de estarem a construir para si e em seu proveito.

12. Que o fizeram à vista de todos, sem oposição de ninguém e com autorização.

13. E passaram a usufruir da construção como sua casa.

14. O referido prédio não possui licença de habitabilidade.

15. Esta construção não se encontra descrita na Conservatória do Registo Predial, nem na matriz das Finanças.

16. O terreno tem acesso à via pública.

17. Em 1995, o terreno era um terreno de construção e não tinha pavimentação, saneamento, abastecimento de água, gás ou telefone, o que tem na actualidade.

18. O terreno, em 1995, valia 23.643,02 €.

19. A casa, em 1995, valia 24.441,10 €.

20. O terreno, em 19/06/2019, valia 32.089,00 €.”

Factos não provados

“A. Foi obtido licenciamento camarário para a construção da casa.

B. Para edificação da casa foram também usados recursos de familiares, amigos e dos réus.”


II. 3. Do Direito

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente/Autor/AA, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

II. 3.1. O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito ao julgar improcedente a demanda, desconsiderando a reclamada aquisição originária do imóvel ajuizado, por acessão industrial, impondo-se a revogação dessa decisão e a sua substituição por outra na qual seja reconhecido o invocado direito, repristinando-se o decidido em 1ª Instância? (1)

1. Cotejado o acórdão recorrido anotamos que o Tribunal a quo, perante a facticidade demonstrada nos autos (reapreciada que foi a decisão de facto proferida em 1ª Instância, que não mereceu censura, mantendo-se inalterável), concluiu no segmento decisório pela revogação da decisão proferida em 1ª Instância, desconsiderando a respetiva subsunção jurídica.

2. O aresto escrutinado, conquanto tivesse apreendido a conflitualidade subjacente ao pleito chegado a Juízo, merece censura, como adiante reconheceremos.

3. A  exegese seguida no acórdão recorrido no que respeita ao objeto da presente revista, qual seja, sobre a verificação dos requisitos da acessão industrial imobiliária, concretamente, saber se se encontra verificado que o valor acrescentado pela obra, acrescentou valor (económico e substantivo) aquele que o prédio possuía antes de ter sofrido a incorporação da obra, é superior ao valor que o prédio tinha antes da incorporação, vai no sentido de concluir que, aplicando o critério legal, pese embora “não haja dúvidas que a incorporação das obras efetivadas pelo Autor (e pela Interveniente) poderá ter efetivamente produzido uma mais valia no prédio (ainda que se tenha que atualizar o valor apurado em 1995 segundo os índices de preços sucessivamente aplicáveis), a verdade é que tal valor acrescentado é inferior ao valor do prédio antes da incorporação das obras (ou nem sequer foi apurado)”.

Na verdade, respigamos, com utilidade, do aresto em escrutínio: “(…) os requisitos da acessão industrial imobiliária, são os seguintes:

(…)

e) Que o valor acrescentado pela obra, sementeira ou plantação acrescente valor (económico e substantivo) aquele que o prédio possuía antes de ter sofrido a incorporação da obra, sementeira ou plantação ser superior ao valor que o prédio tinha antes da incorporação;

(…) Julga-se também que é pacífico que o preenchimento dos requisitos da acessão, devem ser aferidos em relação à data dos respectivos factos, ou seja, à data da incorporação da obra no terreno alheio (art. 1317º d), do CC).

Ponderando todos estes requisitos legais, o tribunal recorrido entendeu que os mesmos se encontravam totalmente preenchidos e, nessa sequência, julgou a presente acção procedente.

(…)  as recorrentes defendem que não tendo ficado provado qual o valor da construção à data da conclusão das obras – 1999 – não poderia o tribunal recorrido ter efectuado essa comparação tendo por referência os valores do prédio e das obras incorporadas por referência ao ano de 1995.

Julga-se que poderá existir efectivamente aqui um equívoco das partes e do próprio tribunal recorrido (que conduziu ao resultado da própria perícia).

A questão que se coloca é a de saber qual é o termo comparativo que o legislador elegeu no art. 1340º do CC como requisito do reconhecimento do direito a adquirir a propriedade por parte do autor da incorporação nesta modalidade da acessão.

O que se discutiu nos autos, na sequência do que foi alegado pelo Autor na petição inicial, foi a diferença entre dois valores:

- o valor do prédio antes da incorporação da obra efectuada pelo Autor e Interveniente (no ano de 1995) – tendo ficado provado que “O terreno, em 1995, valia 23.643,02 €” (ponto 18)

- e o valor das obras incorporadas no prédio (em 1995: “A casa, em 1995, valia 24.441,10 €” – ponto 19 – ou, conforme havia alegado na petição inicial o Autor, em 1999 – item 15 da p.i. “estima o autor que a construção feita, à data da sua conclusão, tinha um valor não inferior a 50.000 € - valor (referente ao ano de 1999) que, como bem assinalam os recorrentes, não consta da matéria de facto considerada provada (nem foi averiguado na prova pericial).

Sucede que, salvo o devido respeito pela opinião contrária, não foi nenhum desses critérios que o legislador elegeu para fundamentar o direito a adquirir a propriedade por parte do autor da incorporação de obra em prédio alheio (por acessão industrial imobiliária).

Na verdade, decorre da própria letra da lei que o que importava alegar e provar não era o valor das obras incorporadas (“o valor da Casa”), mas sim “o valor que as obras (…) tiverem trazido à totalidade do prédio” – cfr. art. 1340º, nº 1 do CC.

E depois de alegar e provar esse valor, ter-se-ia de comparar esse valor com o “valor que o prédio tinha antes da incorporação”, só podendo o autor da incorporação da obra adquirir por acessão o direito de propriedade do prédio, se este valor (inicial) fosse inferior ao “valor acrescentado” pela obra incorporada.

Interessava, pois, saber o valor que as obras trouxeram para o prédio (valorização do prédio), e não o valor das obras (que podem ou não ter valorizado o prédio).

Assim, o que interessava apurar era a diferença entre:

- o valor do prédio antes da incorporação da obra;

- o valor do prédio depois da incorporação da obra;

Se a diferença entre um valor e o outro, fosse superior aquele primeiro valor, então o autor da incorporação podia adquirir o prédio por acessão.

(…)

Assim, neste apuramento não entra em equação o valor das obras incorporadas – que foi a realidade fáctica alegada pelo Autor na petição inicial – nem tem interesse apurar o valor dessas obras (“o valor da casa”) na data do início da incorporação (1995) – como se pretendeu averiguar na prova pericial – nem sequer na data final dessa incorporação (1999).

Como se referiu, o que interessava alegar e provar era, por um lado, o valor do prédio antes da incorporação da obra e, por outro lado, o valor do prédio depois da incorporação da obra.

Uma vez efectuado esse apuramento, ter-se-ia de verificar o valor da diferença entre os dois referidos valores e concluir quem poderia ser o beneficiário da incorporação, consoante o critério estabelecido pelo legislador.

Se a diferença apurada entre um valor e o outro (o valor acrescentado do prédio), for superior ao valor do prédio antes da incorporação, então o autor da incorporação pode adquirir o prédio por acessão por força do art. 1340º, nº 1 do CC.

Se, pelo contrário, o dito valor acrescentado do prédio (apurado pela referida diferença) for inferior ao valor do prédio antes da incorporação, então “as obras pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação” (neste caso, já teria interesse apurar o valor das obras – e não do prédio - por referência a esta data).

(…) Ora, revertendo para o caso concreto, fica, a nosso ver, claramente evidenciado que as partes (e o tribunal recorrido) não tiveram em consideração todas estas considerações, pois que, em nenhum momento (na petição inicial e na sentença), tiveram como preocupação atender ao valor do prédio após a incorporação da obra, limitando-se a alegar e a ponderar o valor da obra incorporada (“o valor da casa”).

Daí que o tribunal recorrido tenha apresentado as seguintes conclusões (na sequência da instrução da causa que levou a cabo induzido pelas posições das partes, desde logo, pela alegação do Autor na petição inicial – que, como já referimos, alegou apenas o valor das obras incorporada e não o valor do prédio depois da incorporação): “Neste aspecto ficou demonstrado que antes da implementação da construção, em 1995, o terreno valia 23.643,02 € e a casa nele construída, tendo por referência a data de início da incorporação, 1995, tinha avaliação de 24.441,10 € (factos provados em 18 e 19) (…).

Lançando mão do critério definido pelo legislador, considerando, por referência à data anterior à incorporação, as obras tinham avaliação superior à avaliação do terreno, respectivamente, 24.441,10 € e 23.643,02 €, pelo que cabe ao autor da incorporação a aquisição do terreno, nos termos do art. 1340.º, n.º 1 do CC”.

Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, tal como evidenciamos atrás, não é esse o critério estabelecido no nº 1 do art. 1340º do CC.

O critério que o legislador elegeu foi antes o do “valor acrescentado” pelas obras incorporadas no prédio alheio, critério esse que se apura pela diferença entre o valor do prédio antes da incorporação e o valor do prédio depois da incorporação da obra (valores actualizados) – e não pela diferença entre o valor das obras e o valor do prédio antes da incorporação daquelas.

Não podemos, pois, acompanhar o raciocínio desenvolvido pelo tribunal recorrido.

A questão que se coloca, então, é a de saber se se pode retirar da matéria de facto considerada provada os elementos factuais que permitirão concretizar o citado critério legal.

Ora, quanto aos referidos valores aqui em jogo (valor do prédio depois da incorporação das obras - valor do prédio antes da incorporação da obra), temos na decisão da matéria de facto os seguintes valores:

Ponto 18 dos factos provados:

- O terreno, em 1995, valia 23.643,02 €.

Ponto 19 dos factos provados:

- 19. A casa, em 1995, valia 24.441,10 €.

Ponto 20 dos factos provados:

- O terreno, em 19/06/2019, valia 32.089,00 €.

(ainda que não se mostre esclarecido se este valor se refere ao valor actual (em 2019) do terreno (sem construção) ou ao valor do terreno (com a construção) – como quer que seja, mesmo que se entenda que o valor era apenas do terreno, sem a construção – como parece decorrer da prova pericial -, também a solução jurídica acabaria por ser a mesma, pois que, nessa hipótese, não estaria provado um dos valores que permitem ponderar a acessão – o valor do prédio depois da incorporação da obra (só estaria provado o valor do terreno (sem obra incorporada) em 1995 e em 2019 e o valor da obra incorporada em 1995); partiremos, no entanto, do princípio de que o valor referido no ponto 20 é o do valor do prédio depois da incorporação da obra (até para explicar, em termos práticos, o critério legal), pois que, no caso contrário, a questão ficava, desde já, resolvida por falta de (alegação e) prova do aludido valor - valor do prédio depois da incorporação da obra).

Dentro destas considerações, poder-se-á entender que decorre da matéria de facto os valores que aqui poderiam (deveriam) ser ponderados, ou seja: - o valor do prédio antes da incorporação da obra - 23.643,02 € (em 1995 - valor a que faltaria a sua actualização segundo os índices de preços sucessivamente aplicáveis - actualização que, conforme decorrerá do exposto, nem sequer será necessária); - o valor do prédio depois da incorporação da obra - 32.089,00 € (valor actualizado ao ano de 2019)

Ora, realizando a operação matemática subjacente ao critério que o legislador elegeu no nº 1 do art. 1340º do CC (nos termos explicitados) pode-se concluir que o valor acrescentado pelas obras incorporadas no prédio corresponde a 8.446 € (oito mil quatrocentos e quarenta e seis euros) (valor da diferença entre o valor do prédio depois da incorporação das obras (32.089,00 € - em 2019) subtraído do valor do prédio antes da incorporação da obra (23.643,02 €- em 1995 – valor que teria ainda que ser actualizado – o que diminuiria ainda a diferença apurada)). Nesta conformidade, aplicando o critério legal, poderíamos concluir que o indicado “valor acrescentado” das obras incorporadas no prédio (8.446 €) é inferior ao valor do prédio antes da incorporação da obra (23.643,02 € - em 1995 - mesmo sem a ponderação do seu valor actualizado, conforme se imporia ainda efectuar).

(…) Não há dúvidas que a incorporação das obras efectivadas pelo Autor (e pela Interveniente) poderá ter efectivamente produzido uma mais-valia no prédio (ainda que se tenha que actualizar o valor apurado em 1995 segundo os índices de preços sucessivamente aplicáveis), mas a verdade é que tal valor acrescentado é inferior ao valor do prédio antes da incorporação das obras (ou nem sequer foi apurado).

(…) Ora, compulsada a matéria de facto considerada provada, e efectuando a operação matemática atrás explanada, pode-se concluir que o valor da diferença obtida pela ponderação daqueles dois valores (mesmo que sem a actualização do valor do prédio antes da incorporação das obras) é inferior ao valor desta última avaliação.

Ou, como referimos por mais de uma vez, nunca tal ponderação poderia sequer ser efectuada, pois que não é possível apurar a referida diferença, em face da alegação do Autor e da matéria de facto considerada provada, já que não se mostra provado o valor do prédio depois da incorporação.”

4. A  propósito do regime jurídico atinente à acessão industrial imobiliária, enquanto aquisição originária retroativa do direito de propriedade sobre determinada coisa, importa relembrar, a tal propósito, que a orientação do direito substantivo civil consiste em atribuir a propriedade da coisa a uma só pessoa, quer para evitar a destruição do edificado e, desse modo, preservar o valor económico da nova realidade constituída pelas coisas unidas e incorporadas, quer ainda para evitar situações de conflito potencial no futuro entre o dono do terreno e o construtor da obra, além de que tal solução produz clareza nas situações jurídicas e segurança no comércio jurídico.

Textua o art.º 1325º do Código  Civil: “dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia”, sendo que de acordo com o estabelecido no art.º 1326º n.º 1 do mesmo diploma: “dá-se a acessão industrial, quando, por facto do homem, se confundem objetos pertencentes a diversos donos, ou quando alguém aplica trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com propriedade alheia”, prescrevendo o seu n.º 2 que: “a acessão industrial é mobiliária ou imobiliária, consoante a natureza das coisas”.

Por sua vez, determina o art.º 1340º do Código Civil que: “1. Se alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio (…) e o valor que as obras (…) tiverem trazido à totalidade do prédio for maior que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras (…)”.

Assim, afastando a regra superfícies solo cedit, o interventor, autor da obra, adquirirá a propriedade do terreno alheio, cumpridos os pressupostos enunciados no direito substantivo civil.

A acessão ocorre quando com uma coisa, que é propriedade de alguém, se une e incorpora outra coisa que não lhe pertence, daí advindo uma ligação material, definitiva e permanente entre a coisa acrescida e o prédio, e a impossibilidade de separação das duas coisas sem alteração substancial do todo obtido através da união, neste sentido, Pires de Lima e A. Varela, in, Código Civil, Anotado, 2ª edição Volume III, página 164; A. Varela, Acessão Imobiliária Industrial, in, parecer, publicado na CJ/STJ, Ano VI, tomo II, páginas 5 e seguintes; Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, in, CJ/STJ, ano IV, tomo I, página 12.

A acessão, como já adiantamos, é uma forma de aquisição originária da propriedade, recebendo o beneficiário da acessão um novo direito totalmente independente das vicissitudes que possa ter sofrido o anterior direito que se extingue, dependendo da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

a) a incorporação consistente no ato voluntário de realização de uma obra em terreno alheio;

b) a pertinência inicial dos materiais ao autor da incorporação;

c) a formação de um todo único do terreno e da obra;

d) o maior valor desse todo único em relação ao anterior valor do prédio;  

e) a boa-fé do autor da obra, considerando-se como tal o facto de o dono da obra desconhecer que o terreno era alheio ou se foi autorizado pelo dono do terreno.

No que tange ao enunciado requisito do maior valor desse todo único em relação ao anterior valor do prédio, enquanto requisito que interessa sobremaneira ponderar, atento o objeto da presente revista, impõe-se sublinhar a consolidada orientação jurisprudencial e doutrinária de que o art.º 1340º nºs 1, 2 e 3 do Código Civil “decide sobre a propriedade do conjunto (obras mais terreno) de acordo com o valor relativo dos elementos que o integram. E assim, esse conjunto, formado pelas obras e respetivo terreno, pertencerá ao dono da obra, desde que o acrescimento de valor diretamente trazido pela dita obra ao conjunto seja superior ao valor primitivo do terreno, pagando o autor da incorporação a quantia correspondente a este valor, para não se enriquecer à custa do dono do terreno. Se, ao invés, o valor primitivo do terreno superar o valor que a obra aditou ao conjunto, o dono do terreno faz a obra sua, indemnizando o autor dela pelo valor desta ao tempo da incorporação”, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de julho 2009, proferido no âmbito do Processo n.º 09B0534, e neste mesmo sentido, Luís A. Carvalho Fernandes, in, Lições de Direitos Reais, 3ª edição, páginas 328 e 329.

Assim, o que interessa é, tendo como referencial a data da incorporação, calcular, por um lado, o valor (atualizado) que o terreno tinha antes, e, por outro lado, o valor (também atualizado) da nova unidade predial (constituída pelo conjunto formado pela obra nova e pelo terreno). O “valor acrescentado” reside na diferença entre aqueles dois valores, e o facto de ser ele maior ou menor que o valor do terreno antes da incorporação é que dependerá ser o interventor ou o dono do terreno o beneficiário da acessão, como, aliás, enuncia o Tribunal recorrido, e com o que se concorda, questionando-se, porém, a bondade da subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, levada a cabo no aresto em escrutínio, ao reconhecer a não verificação deste pressuposto, concluindo que “o valor da diferença obtida pela ponderação daqueles dois valores (mesmo que sem a atualização do valor do prédio antes da incorporação das obras) é inferior ao valor desta última avaliação, ou, em todo o caso, nunca tal ponderação poderia sequer ser efetuada, pois que não é possível apurar a referida diferença, em face da alegação do Autor e da matéria de facto considerada provada, já que não se mostra provado o valor do prédio depois da incorporação”.

5. Revertendo ao caso sub iudice, sem deixar de sufragar a orientação seguida pelo Tribunal recorrido no que respeita ao aludido e exigido pressuposto substantivo com vista ao reconhecimento da acessão industrial imobiliária, qual seja, o maior valor desse todo único em relação ao anterior valor do prédio, e sem deixar de afirmar que os restantes exigidos pressupostos substantivos estão pacificamente reconhecidos pelas Instâncias, com o que os litigantes se conformam, entendemos que, ao invés do consignado no aresto recorrido, estão verificados todos os pressupostos de que depende o reconhecimento da acessão industrial imobiliária, em beneficio do interventor, o Autor, AA.

Na verdade, subsumida a facticidade apurada, designadamente, o item 18. “O terreno, em 1995, valia 23.643,02€”; item 19. “A casa, em 1995, valia 24.441,10€” e item 20. “O terreno, em 19/06/2019, valia 32.089,00€”, importará reconhecer que o valor do conjunto (obras mais terreno), enquanto todo único, que não poderá descurar o valor relativo dos elementos que o integram (o terreno valia €23.643,02 e a casa nele construída tinha avaliação de €24.441,10), é maior em relação ao anterior valor do prédio, decorrendo daqui, uma mais-valia, como, aliás, o Tribunal recorrido reconheceu ao afirmar “Não há dúvidas que a incorporação das obras efectivadas pelo Autor (e pela Interveniente) poderá ter efectivamente produzido uma mais valia no prédio (ainda que se tenha que actualizar o valor apurado em 1995 segundo os índices de preços sucessivamente aplicáveis)”.

Atendendo a que o valor acrescentado será a diferença entre aqueles dois valores e de ser ele maior ou menor que o valor do terreno antes da incorporação é que dependerá ser o interventor ou o dono do terreno o beneficiário da acessão, temos que acórdão recorrido merece censura ao sustentar que “o valor da diferença obtida pela ponderação daqueles dois valores (mesmo que sem a atualização do valor do prédio antes da incorporação das obras) é inferior ao valor desta última avaliação, ou, em todo o caso, nunca tal ponderação poderia sequer ser efetuada, pois que não é possível apurar a referida diferença, em face da alegação do Autor e da matéria de facto considerada provada, já que não se mostra provado o valor do prédio depois da incorporação”.

Sublinhamos, pois, conquanto se reconheça que o que interessa, para efeitos da acessão industrial seja o valor do conjunto (obras mais terreno), enquanto todo único, não se poderá desprezar os factos adquiridos processualmente que demonstram o valor relativo dos elementos que o integram [o terreno e a casa nele construída, tendo por referência a data da incorporação], decorrendo uma mais valia, os quais nos permitirão concluir pelo reconhecimento de que o valor da nova unidade predial resultante da incorporação é superior ao valor do terreno em que se incorporou a obra, condizente a uma diferença, embora diminuta, favorável ao Autor, interventor, AA.

6. Pelo exposto, tendo em devida atenção o enquadramento jurídico consignado, temos de reconhecer que o acórdão recorrido merece reparo, e, assim, na procedência das conclusões retiradas das alegações trazidas à discussão, pelo Recorrente/Autor/AA, reconhecemos às mesmas virtualidades no sentido de alterar o destino da demanda, pelo que, revoga-se o aresto em escrutínio, repristinando-se o sentenciado em 1ª Instância.


III. DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam procedente o recurso interposto pelo Recorrente/Autor/AA, concedendo a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando a sentença proferida em 1ª Instância.

Custas em todas as Instâncias pelos Recorridos/Ré/II e outros.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 15 de dezembro de 2022  

                                                         

Oliveira Abreu (Relator)

Nuno Pinto Oliveira

Ferreira Lopes