Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
261/22.4TRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO DA SILVA DIAS
Descritores: RECURSO ORDINÁRIO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 06/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O facto da Srª. Juiz, arguida, ser titular do processo de regulação das responsabilidades parentais n.º xxx, que correu termos no Juízo de Família e Menores de C…., onde proferiu o despacho de 11.10.2022, que alterou provisoriamente as responsabilidades parentais da menor, filha da assistente, nos termos ali referidos (regime provisório esse que veio a ser revogado no respetivo acórdão do FF) não significa, nem equivale (como pretende a recorrente, sem apoio legal) que, por ter essas funções, tivesse assumido ou “acabado por estar [com a menor] sob a sua direção e educação, pois condicionou a sua decisão a tal circunstância”. Essa interpretação seria um atentado aos princípios da tipicidade e da legalidade, pois, contraria a finalidade e âmbito da norma, tendo presente que, tal como está definido o art. 152.º-A do CP, estamos perante um crime específico, exigindo-se (como é assinalado por Américo Taipa de Carvalho, no Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2012, p. 525) que “o agente se encontre numa relação de supra-ordenação face à vítima: relação/dever de cuidado, de guarda, de direção ou educação, ou relação de empregador.” Nenhuma dessas relações típicas previstas no art. 152.º-A do CP se enquadra no caso dos autos, sendo certo, por outro lado, que quando à magistrada/arguida foi atribuído o processo de regulação de responsabilidades parentais, independentemente dos despachos que nele proferiu, não passou a existir uma relação de guarda da magistrada para com a criança, porque esta (a menor) mantinha a relação que tinha com a respetiva progenitora (mãe/assistente), que tinha e manteve a sua guarda e que, no caso, até a amamentava (salvo nos períodos em que a menor estava na creche, mas que também era alimentada). Logo, por aí falece um dos elementos essenciais do tipo objetivo do crime de maus-tratos p. e p. no art. 152.º-A do CP, o que tanto basta para que nunca os factos alegados no RAI permitissem que a arguida fosse pronunciada por esse crime.

II. Com o despacho que a arguida proferiu em 11.10.2022 (alterando provisoriamente o regime de responsabilidades parentais, por aquela forma autorizando a pernoita em casa do pai da menor, não se pode concluir que tivesse causado ofensa no corpo ou na saúde da menor, filha da assistente, na medida em que iria privar, impedir aquela criança da amamentação materna). Os factos alegados no RAI, é que delimitavam e definiam o objeto da instrução, sendo no caso insuficientes para a imputação do crime de ofensas à integridade física p. e p. no art. 143.º do CP, que é um crime de dano e, como bem diz Paula Ribeiro Faria, no Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2012, p.299, “supõe a produção de um resultado que é a ofensa do corpo, ou da saúde, de outra pessoa, que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade.”

III. Sendo o RAI “inepto”/inócuo (porque, como sucede neste caso, não contém os factos pertinentes e essenciais relativos ao(s) crime(s) que se pretendia imputar à arguida), mais não restava ao juiz do que rejeitá-lo, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, não havendo lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento dessa peça (o que se conforma com a jurisprudência do ac. STJ n.º 7/2005), desde logo porque tal solução afrontava o prazo perentório previsto no art. 287.º, nº 1, do CPP.

Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 261/22.4TRL.SB.S1

Recurso

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

I. A assistente AA notificada da decisão do TRL de 29.12.2023, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por si apresentado em virtude do arquivamento do inquérito, nos termos do art. 277.º, n.º 1, do CPP, veio interpor recurso para o STJ, apresentando as seguintes conclusões:

A) De acordo com o douto despacho proferido foi indeferido o requerimento de abertura de instrução, apresentado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no n°3 art° 287° do C.P.P.

B) Tal decisão fundamenta-se, em síntese, na circunstância dos factos descritos não permitirem a imputação à denunciada de um crime de maus tratos e P. e P. pelo artº152-A do CP

C) Que não é alegada a relação existente entre a denunciada e a vítima.

D) Que o julgador apenas se socorreu dos poderes interpretativos do julgador e atendeu às particularidades do caso decidendo, nomeadamente à necessidade de um relacionamento próximo entre a menor e o Progenitor.

E) Que a conduta não preenche os mencionados elementos objetivos do tipo

F) Que não resulta do requerimento de abertura de instrução a alegação do dano,
efectivamente, sofrido pela menor

G) Ora, salvo o devido respeito não pode a ora recorrente concordar com tal
entendimento, pois

H) No que respeita ao facto das circunstâncias descritas não permitirem a imputação à denunciada de um crime de maus tratos P. e P. pelo artº 152° do CP, não concorda a ora Recorrente com tal entendimento, pois como consta do requerimento de abertura de instrução a denunciada ao agir da forma como fez e que consta dos autos, sendo por isso, de fácil prova, colocou em risco a saúde da menor e como tal o seu superior interesse, pois a sua decisão impedia a menor de ser amamentada pela mãe, ora Recorrente, não podendo ser esse um fundamento para a rejeição liminar do pedido de abertura de instrução

I) Quanto ao facto da denunciada, alegadamente, se ter socorrido dos poderes interpretativos do julgador e ter atendido às particularidades do caso denunciado tal fundamento também não pode ser aceite pela ora Recorrente, uma vez que acima de quaisquer poderes interpretativos do julgador estará sempre o superior interesse da menor que tem que ser salvaguardado

J) Acima da necessidade de estabelecer um relacionamento próximo entre a menor e o progenitor estaria sempre a saúda da menor

K) Na verdade a denunciada extrapolou os seus poderes na medida em que colocou em risco a saúde da menor e o seu desenvolvimento não havendo assim poderes interpretativos ou particularidades que o possam alterar

L) Quanto a não ser alegada a relação existente entre a denunciada e a vítima, tal não corresponde de todo à realidade, pois é, expressamente, referido no requerimento de abertura de instrução que os atos em causa são praticados por uma Mª Juiz a quem foi atribuído o processo de Regulação das Responsabilidades Parentais da menor, filha da Assistente, como é obvio a relação existente entre a denunciada e a vítima pode-se dizer ser meramente funcional, a denunciada agiu no exercício da sua actividade profissional de Juiz e a menor é a visada na decisão proferida pela Mª Juiz

M) Quanto à conduta não preencher os elementos objectivos do tipo, na verdade estando a denunciada a fixar o regime pelo qual a menor se iria relacionar com os Progenitores acaba por estar a mesma sob a sua direcção a educação da mesma, pois condicionou a sua decisão tal circunstância

N) No que respeita ao dano sofrido pela menor, consta expressamente, no requerimento de abertura de instrução aquilo que são as consequências da interrupção ou inexistência da amamentação, nomeadamente alteração grave do estado nutricional, sendo ainda referido que a menor reduziu 100g num período em que esteve sem aleitamento, facto que prova que a retirada do mesmo causa danos físicos à menor, como tal também este argumento não colhe

O) Pelo exposto entende-se que a douta decisão proferida viola o disposto no artº 287° do CP.C e no artº 152° do C. Penal

P) Deve assim ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente ser admitido o pedido de abertura de instrução, seguindo-se os ulteriores tramites legais.

Termina pedindo o provimento do recurso e, consequentemente, que seja admitido o requerimento de abertura de instrução, seguindo-se os ulteriores trâmites legais.

II. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1º O RAI, nas situações accionadas ao abrigo do art 287º 1, b), CPP, suprindo a ausência (indevida, na tese do requerente) de Acusação pública (em função do arquivamento antecedente: art 277º 1, CPP), deve revestir-se das características próprias daquele libelo acusatório não proferido, ou seja, constituir ele mesmo uma "acusação alternativa" (Acs . RP, 21.11.2001; RC 6.06.12), estruturada como a lei impõe (art 283º 3, b) e c), CPP), sob pena de nulidade, dado que, fora desse registo e perfil, a abertura de Instrução e seus actos decorrentes seriam inúteis e, por isso, proibidos (cfr AC. 6.06. 12, acima citado), por assentar essa fase processual (instrutória) num processo sem objecto, afinal.

2º São os sujeitos processuais (em regra o MºPº titular da acção penal -art 219º 1, CRP-, mas também, em situações mais pontuais e residuais, o Assistente: art 287º 1, b), e 2, CPP), nunca o Juiz (de Instrução ou de Julgamento), que deve manter a equidistância imparcialidade e neutralidade, a suprir falhas dos "acusadores", corrigindo ou apelando ao aperfeiçoamento, a definir e delimitar o objecto do processo, vinculando tematicamente o órgão jurisdicional decisor, que só poderá alargar o âmbito de cognição, mesmo oficiosamente, por consenso obtido e, sempre, mediante a plena contraditoriedade (art 32º, 5, CRP).

3º No caso a que nos atemos, visivelmente (e independentemente de não resultar da Decisão de 11.10.22, que fixou um regime provisório de RRP, por natureza impugnável, o que foi concretizado nessoutro processo tutelar cível, matéria penalmente relevante, dada a solução eleita ser uma das equacionáveis, como se salientou no Despacho de arquivamento do MºPº e no Acórdão da RLx, que se pronunciou sobre o Recurso interposto dessa douta Decisão judicial de 11.10.22) a Assistente demitiu-se do cumprimento dos itens exigidos nos arts 287º,2, e 283º 3,b), CPP, expondo a defesa a um mero arrazoado narrativo, sem ordem lógica e concretizada no tempo, lugar e modo, inviabilizando o exercício do contraditório, pela vacuidade das imputações dirigidas, o que é uma negação do princípio do acusatório (art 32º, 5, CRP), do mesmo passo que inibe o Tribunal (JI) de conhecer e laborar sobre o objecto (inexistente), vedando-lhe a investigação que lhe vinha requerida (art 288º,4, CPP).

4º Nem sequer havendo espaço de manobra para "recauchutar" o RAI, quer por acção do próprio Tribunal (arts 1º, f), 303º, 3 e 309º, 1, CPP), quer por convite para aperfeiçoamento, dado que qualquer dessas opções colidiria com a estrutura acusatória do processo penal português.

5º Pelo que deve ser validada a judiciosa Decisão recorrida, por inevitabilidade e conformidade com o Direito (…).

III. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer concordando com a posição defendida no despacho recorrido e, em síntese, sustenta:

1)-Não é susceptível de integrar a prática do crime de “maus-tratos” ou, pelo menos, o de “ofensa à integridade física”, p. e p., respectivamente, nas disposições dos arts. 152º-A e 143º do Código Penal, a actuação de juiz que, proferindo decisão em processo de regulação das responsabilidades parentais, o fez em termos que, alegadamente, coloca “em risco a saúde” do menor;

2)-É nula a acusação por cujos termos não são narrados e imputados ao arguido quaisquer factos que possam integrar o concreto sentido de ilicitude vertido nalgum tipo-de-ilícito penal, assim como, nomeadamente, os que substanciam a imputação da culpa dolosa (quando pressuposta pela incriminação) – directa, necessária ou eventual;

3)-Motivo por que se impõe a sua rejeição, por inadmissibilidade legal (cfr, arts, 283º/3-b) e 287º/3 do Código de Processo Penal).

Termina, concluindo, que o recurso deve ser julgado não provido e improcedente e, consequentemente mantida a decisão recorrida.

IV. Notificados do Parecer do Sr. PGA, respondeu a assistente, a qual voltou a reafirmar o já alegado no recurso, pugnando pela procedência do recurso e consequente admissibilidade do requerimento de abertura de instrução, seguindo-se os ulteriores trâmites legais.

V. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Fundamentação

Factos

VI. Resulta dos autos, em resumo, com interesse para a presente decisão, o seguinte:

a)- o inquérito n.º 261/22.4..., a correr termos na Procuradoria-Geral Regional de Lisboa, que teve origem na denúncia apresentada por AA contra BB, Juíza de Direito, colocada no Juízo de Família e Menores de ..., ..., por factos ocorridos no âmbito do processo de regulação de responsabilidades parentais n.º 2863/22.0..., imputando-lhe a prática de um crime de maus tratos p. e p. no art. 152.º-A do CP e/ou de ofensas corporais p. e p. no art. 143.º do CP, foi objeto de arquivamento por despacho de ........2023, nos termos do art. 277.º, n.º 1, do CPP;

b)- a assistente AA, discordando desse arquivamento do inquérito, em ........2023 apresentou RAI do seguinte teor (transcrição sem sublinhados, nem negritos):

1º Foi, no âmbito dos presentes autos determinado o seu arquivamento, nos termos do disposto no art° 277, n° l do CP

2º Tal decisão é fundamentada no facto de não se vislumbrar a possibilidade de se perspectivar que a Denunciada tenha actuado como propósito de molestar fisicamente a criança ou sequer de haver proferido tal decisão, deliberadamente contra o direito

3º Concluindo que não existiu nada de onde se possa concluir que a senhora Magistrada, aqui Denunciada, tenha agido contra o direito, nem dolosamente nem por negligência, no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, por forma a que lhe possa ser imputado qualquer um dos crimes como seja o de ofensa à integridade física ou de maus tratos P. e P. pelos art° 143 e 152 A, ambos do C. P

4º Ora, como é obvio, não pode a Assistente deixar de discordar de tais entendimentos, pois

5º Na verdade e apesar de ter a Meritíssima Juiz o poder discricionário de decidir, face ao caso concreto, aquilo que melhor entender como resolução do mesmo

6º O facto é que esse poder discricionário não é ilimitado estando balizado não só pelo respeito pelas normas legais gerais, como pelo bom senso que se parte do princípio subjazer a todas as decisões que são dadas por dignas Magistradas, com formação para o efeito

7º Ou seja, parte-se do princípio que todos os dignos Magistrados estão habilitados para decidir e munidos do necessário bom senso e competência para o fazerem

8º No caso vertente, claramente, tal não sucedeu, pois

9º É demasiado grave e clamoroso o comportamento da digna Magistrada que apesar de alertada para todos os inconvenientes para a menor de ser sujeita a um regime de guarda alternada, ainda assim decidiu implementar tal regime

10° Isto quando era notório e constava dos autos todos os elementos quer legais quer factuais que comprovavam que tal decisão iria prejudicar o superior interesse da menor, naquele momento

11° Tendo assim a digna Magistrada procedido com negligência, uma negligência grave face a tudo o que constava dos autos e sobre o qual a mesma nem refletiu, como era sua obrigação

12° Proferindo assim uma decisão violadora de regras fundamentais da vida e do direito como sejam o direito ao bem-estar, a uma alimentação adequada e à protecção da vida e do saudável desenvolvimento

13° Deste modo e contrariamente ao alegado no douto despacho de arquivamento entende-se estarem reunidos todos os elementos de prova, necessários, para que seja a Denunciada acusada da prática de um crime de maus tratos e de ofensa à integridade física P. e P. pelos art° 152a e 143 do CP. Isto porque

14° A Assistente é vítima de violência doméstica, tendo apresentado a respectiva queixa (cfr. Doc. 1 já junto aos autos).

15° A Assistente é mãe da menor CC, cuja regulação das responsabilidades parentais foi solicitada em ... de ... de 2022 (cfr. Doc. 2, já junto aos autos), devido ao pai ter subtraído a menor no dia ... de ... de 2022.

16° Correndo no Tribunal de Família e Menores de ... J3 o processo de Regulação das Responsabilidades Parentais sob o n° 2863/22.0...

17° À data em que foi proferida a decisão em causa a menor com 9 meses de idade encontrava-se a ser amamentada, tendo a Ilustre Procuradora do MP, após a subtração da menor acima referida promovido a sua entrega imediata à mãe, atendendo a que considerou a privação ao aleitamento, um mau-trato à menor (cfr. Doc. 3, já junto aos autos).

18° A Mm.ª Juiz Participada, aqui Denunciada, lavrou despacho em ... de ... de 2022, considerando a privação ao aleitamento materno um mau-trato e ordenando a entrega da menor à mãe:

" [...] notifique o progenitor pela via mais expedita para, ainda no dia de hoje, entregar a criança à mãe para ser amamentada, uma vez que consideramos ser um mau trato privá-la de um momento para o outro do contacto com a progenitora e da lactação materna", (cfr. Doc. 4, já junto aos autos).

19° Na sequência desse despacho a menor foi entregue à Assistente prosseguindo o aleitamento após essa interrupção de três (3) dias.

20° Nesse mesmo despacho, foi marcada conferência de pais para o dia ... de ... de 2022, pelas 13h30.

21° As partes foram convidadas a alegar no prazo de 2 dias, tendo a mãe apresentado as respectivas alegações (cfr. Doc. 5, já junto aos autos).

22° No dia ... de ... de 2022, o progenitor sem avisar a progenitora, aqui Assistente, retirou novamente a menor da creche, levando-a consigo para ..., informando a mãe que só voltaria a entregar a menor passado 2/3 dias (cfr. Doc. 6, já junto aos autos).

23° O Tribunal teve conhecimento desta situação através do Requerimento acima referido e foi solicitada a urgência na elaboração de despacho que privasse o convívio do pai à menor sem supervisão, (cfr.Doc.7, já junto aos autos)

24° Foram juntos documentos comprovativos da queixa por violência doméstica, documentos comprovativos de que a Assistente amamenta e documentos comprovativos de que a menor é amamentada (cfr. Doe. 8 e 9, já juntos aos autos).

25° Mais acresce ter sido igualmente junto aos autos o Boletim de Saúde da menor DD, onde se comprova nas consultas realizadas entre ... e ... de ... de 2022, a perda de 100 gramas de peso, isto durante o período em que por duas vezes, o progenitor negou a menor à mãe, privando o aleitamento (cfr. Doc.10, já junto aos autos).

26° Acontece porém que a Mm.ª Juiz, apesar de ter tido conhecimento de todos esses factos e documentos, e inclusive, ter lavrado em ... um despacho onde considera ser um mau trato privar a menor ao aleitamento, veio por despacho datado de ... de ... de 2022, (18) dias depois fixar um regime onde o progenitor estará com a menor em Fins-de-Semana alternados, de Sexta a Segunda-feira, indo para o efeito buscar a menor à creche no final das actividades na Sexta-feira e entregando-a na escola na Segunda-feira de manhã, antes do início das actividades. (cfr. Doc. 11, já junto aos autos).

27° Privando deliberadamente e conscientemente a menor do aleitamento materno durante 3 dias e 3 noites consecutivas.

28° Privação de aleitamento que (18) dias antes considerava ser um crime de maus tratos a menor.

29° Tendo na sua posse documentação médica de que não só a Assistente está a amamentar e a menor a ser amamentada, como ainda e mais grave a menor ter reduzido 100 gramas de peso durante o período em que por duas vezes e pelo período de 6 dias foi privada do aleitamento.

30° Fundamentando a Mmª Juiz tal despacho da seguinte forma " Assim, afigurando-se que o regime proposto pela Digníssima Magistrada do Ministério Público, por muito limitativo, não acautela o superior interesse da bebé DD de manter um relacionamento próximo com o progenitor, decide-se fixar o seguinte regime de convívios: - O Progenitor estará com a DD em fins de semana alternados, de 6ª a 2ª feira, indo para o efeito buscar a menor à creche no final das atividades na 6ª feira e entregando-a na escola 2ª feira de manhã, antes do início das atividades" (cfr. Doc. 11, já junto aos autos).

31° Fixou igualmente durante a semana que o progenitor estará igualmente com a menor às Segundas e Quartas-feiras, ao final do dia, nas semanas que antecedem o seu Fim-de-Semana, indo buscá-la à creche às 17 horas e entregando-a em casa da mãe às 19 horas (cfr. Doc. 11, já junto aos autos).

32° Ora, como é consabido nem a progenitora, nem o progenitor, têm Direitos em Família e Menores, pois quem tem Direito efectivamente é a criança.

33° Criança que tem o Direito a ser amamentada, conforme o regime estabelecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde), entre outras organizações mundiais que recomenda:

a) As crianças devem fazer aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses de idade;

b) A partir dos 6 meses de idade, todas as crianças devem receber alimentos complementares (sopas, papas, etc.) e manter o aleitamento materno;

c) As crianças devem continuar a ser amamentadas, pelo menos, até completarem os 2 anos de idade.

34° Ora, segundo a OMS as crianças devem continuar a ser amamentadas pelo menos até aos dois anos de idade, sendo desejável que se prolongue o período da amamentação para além dos dois anos.

35° Aleitamento que não será possível estabelecer durante os 3 dias e 3 noites no fim de semana (alternado) que menor estiver com o progenitor devido a distância das residências dos progenitores, que segundo a Mmª Juiz participada é impeditivo de uma guarda alternada devido a essa mesma distância.

36° A privação de aleitamento materno é um mau trato infligido à menor.

37° A própria Juiz Participada, reconhece-o no primeiro despacho (de ... de ... de 2022) que a privação ao aleitamento materno é um mau trato infligido à menor.

38° Pelo que a Mmª Juiz, aqui Denunciada, ao decidir pela forma que decidiu na fixação do regime provisório do exercício das responsabilidades parentais, tinha perfeita consciência que estaria a privar a menor do aleitamento, e que com essa decisão estaria a causar -lhe maus tratos.

39° Os maus tratos contra crianças e jovens podem ser definidos como qualquer ação ou omissão não acidental perpetrada pelos pais, cuidadores ou outrem que ameace a segurança, dignidade e desenvolvimento biopsicossocial e afetivo da vítima. Qualquer tipo de mau trato atenta, de forma direta, contra a satisfação adequada dos direitos e das necessidades fundamentais das crianças e jovens, não garantindo, por este meio, o crescimento e desenvolvimento pleno e integral de todas as suas competências físicas, cognitivas, psicológicas e sócio emocionais" (Manual - Crianças e Jovens Vítimas de Violência: compreender, intervir, prevenir (2011) APAV -Associação de Apoio à Vítima; Lisboa).

40° O mau trato físico resulta de qualquer ação não acidental, isolada ou repetida, infligida por pais, cuidadores ou outros com responsabilidade face à criança ou jovem, a qual provoque (ou possa vir a provocar) dano físico. Este tipo de maus tratos engloba um conjunto diversificado de situações traumáticas, desde a Síndroma da Criança Abanada até a intoxicações provocadas. Alguns indicadores, sinais e sintomas de mau trato físico são:

Equimoses, hematomas, escoriações, queimaduras, cortes e mordeduras em locais pouco comuns aos traumatismos de tipo acidental (face, peri ocular, orelhas, boca e pescoço ou na parte proximal das extremidades, genitais e nádegas);

Síndrome da criança abanada (sacudida ou chocalhada); lopecia traumática e/ou por postura prolongada com deformação do crânio; Lesões provocadas que deixam marca(s) (por exemplo, de fivela, corda, mãos, chicote, régua...); Sequelas de traumatismo antigo (calos ósseos resultantes de fratura); Fraturas das costelas e corpos vertebrais, fratura de metáfise; Demora ou ausência na procura de cuidados médicos;

História inadequada ou recusa em explicar o mecanismo da lesão pela criança ou pelos diferentes cuidadores; perturbações do desenvolvimento (peso, estatura, linguagem,...); Alterações graves do estado nutricional. http://www.aprendersemlimites.pt/blogue-asl/maus-tratos-a-crianças-e-jovens-definicao-e-tipos

41° Agiu a Denunciada de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta constituía a prática de um crime de maus tratos e/ou de um crime de ofensa à integridade física P. e P. pelos art° 152a e 143 do CP.

Termina pedindo que seja admitido o pedido de abertura de instrução e proferido despacho de pronúncia e, como prova, requer a audição da assistente.

c)- por despacho de ........2023 foi rejeitado o RAI (despacho sob recurso), o qual é do seguinte teor:

No termo do inquérito a que respeitam os presentes autos, que tiveram origem numa queixa apresentada por AA contra a Senhora Juíza de Direito BB, pela prática por esta de factos subsumíveis ao crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º-A do C.Penal e/ou de ofensas corporais, p. e p. pelo art. 143º do C.Penal, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, nos termos do art. 277º, nº 1 do C.P.Penal, por ter entendido que "dos elementos dos autos, resulta que os actos praticados pela senhora Magistrada denunciada não integram a prática de qualquer crime".

Inconformada com tal decisão de arquivamento, a ofendida por AA, constituída assistente, apresentou o requerimento para abertura de instrução de ........2023, peticionando a pronúncia da denunciada pela prática de um crime de maus tratos e/ou de um crime de ofensa à integridade física P. e P. pelos art° 152º-A e 143º do C.Penal.

A instrução, que tem sempre carácter facultativo, visa estabelecer um controlo jurisdicional da acusação ou de arquivamento do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento - art. 286º do C.P.Penal.

Daí que o requerimento de abertura de instrução seja a peça processual, mediante a qual o arguido ou o assistente, expressam as suas razões de divergência com o precedente despacho do Ministério Público, de acordo com o preceituado no art. 287º, nº 1 do C.P.Penal.

No caso da instrução ser requerida pelo assistente, que é o que aqui interessa, a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação e os mesmos não sejam suscetíveis, como é óbvio, de acusação particular - pois se assim sucedesse bastaria que tal libelo fosse deduzido.

Por sua vez, segundo o disposto no art. 287º, nº 2 do C.P.Penal "o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, só espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.° 3 do artigo 283.º... ".

Neste último segmento normativo estipula-se que "a acusação contém, sob pena de nulidade: "b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; d) A indicação das disposições legais aplicáveis ".

Assim, tratando-se de uma instrução requerida pelo assistente, que visa sempre a pronúncia do arguido, acresce ainda mais um requisito, ou seja, deve tal requerimento conter ainda a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica.

Aliás, tal descrição factual deverá conter os factos concretos suscetíveis de integrar todos os elementos constitutivos (objetivos e subjetivos) do tipo criminal que o assistente considere ter sido preenchido pois, caso a decisão instrutória venha a ser de pronúncia, esta Instrução delimitará o objeto específico do processo com a correspondente vinculação temática do Tribunal, na fase da discussão e julgamento da causa, como reflexo da estrutura acusatória do processo penal (neste sentido, Acórdão deste Tribunal da RL de 24.05.2023, Proc. nº 160/21.7T9FNC.L1-3).

De acordo com o n° 3 do citado artigo 287°, "O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".

Neste segmento normativo apenas questões de índole formal podem conduzir à rejeição da instrução.

No entanto, se a instrução for requerida pelo assistente e não contiver os requisitos específicos de uma acusação atrás enunciados, tal requerimento é nulo, tornando, por isso, inexequível, por falta de objeto, o controlo jurisdicional da decisão do Ministério Público.

Trata-se de algo semelhante à de uma acusação manifestamente infundada, de acordo com o preceituado no art. 311º, nº 3 do C.P.Penal que conduz à sua rejeição.

E é compreensível que assim seja, porquanto é esse requerimento que ao reproduzir uma acusação fixa o objeto do processo, limitando os poderes de cognição do juiz de instrução (cfr. art. 288º, nº 4, 307º a 309º do C.P.Penal) e possibilita o direito do arguido defender-se das imputações que lhe são feitas (art. 61º, nº 1, al. b), c) e d) do C.P.Penal e 32º Constituição da República Portuguesa).

Tal injunção passa pelo arguido ser informado, em detalhe, dos factos que lhe são imputados e os termos em que tal é feito, conforme decorre do disposto no art. 6º, nº 3, al. a) da CEDH, no seguimento da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que vê neste preceito o direito do acusado poder desde logo preparar a sua defesa, sendo para Instrução o efeito suficiente, mas necessário, uma breve descrição dos factos, mormente a data e o lugar de tal ocorrência e a identidade da alegada vítima, e das disposições legais que lhe são imputadas .

Nesta conformidade o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deve sempre descrever, de modo autónomo, os factos imputados ao arguido, indicando ainda os tipos legais de crime que os mesmos integram - neste sentido Acórdão do TRG de 06.12.2021, Proc. nº 123/20.0T9VPA.G1; Acórdão do TRG de 11.01.2021, Proc. nº 32/19.5T9BRG.G1; Acórdão deste TRL de 24.05.2023, Proc. nº 160/21.7T9FNC.L1-3; Acórdão deste TRL de 13.10.2022, Proc. nº 1315/17.4T9TVD.L1-9; Acórdão do TRP de 22.11.2023, Proc. nº 1093/20.0T9PRT.P1.

Nessa medida, "a tarefa de acusar cabe ao acusador - in casu à assistente - e não há outra forma de a cumprir sem ser condensando os factos no libelo acusatório, narrando-os, enumerando-os e ordenando-os lógica e cronologicamente, sem outras considerações de permeio que aí não podem ter assento, de forma a que quem lê tal relato compreenda o que se imputa a quem, sem necessidade de realizar qualquer triagem fáctica. Não o fazendo, a suposta peça acusatória está votada ao insucesso e ao juiz não lhe resta senão rejeitá-la" -Acórdão do TRE de 05.12.2023, Proc nº 1959/20.7T9PTM.E1.

Pelo que, se tal não suceder ou se o mesmo limitar-se a remeter para o auto de participação ou denúncia, dando por reproduzido o mesmo, esse requerimento é nulo e suscetível de rejeição, por ser destituído dos requisitos enunciados no art. 287º, nº 2, conjugado com o art. 283º, nº 3, al. b) e d) do C.P.Penal.

No caso vertente, incumbia à assistente tomar posição expressa, clara e especificada sobre quais são os factos que pretende ver imputados à denunciada e as disposições legais aplicáveis, em sintonia com tais características do processo penal e princípios constitucionais aplicáveis.

A assistente pretende que a denunciada seja submetida a julgamento, por factos que em seu entender, integram a prática dos crimes p. e p. pelos arts. 152º-A e 143º do C.Penal.

Vejamos.

De acordo com o disposto no art. 152º-A do C.Penal, sob a epígrafe "Maus tratos", lê-se que:

"1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:

a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;

b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou

c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2. - Se dos factos previstos no número anterior resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos".

A função deste artigo é prevenir as formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho.

Tutela-se um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana. Para constituir maus tratos, a conduta do agente deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas características (a analisar no caso concreto, à luz do específico contexto relacional existente entre o agente e a vítima, correspondente a um dos descritos no corpo do n.º 1 da norma incriminadora), se reflete negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduz à degradação da sua dignidade pessoal.

São pois elementos constitutivos do tipo deste crime:

- Que o agente se encontre numa determinada (especial) relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos pois é um crime específico ("Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço");

- Que a vítima se encontre, para com o agente, numa relação de subordinação (pessoa que esteja ao cuidado, à guarda, sob a responsabilidade da direção ou educação do agente);

- As condutas previstas são maus tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, tratamento cruel.

Trata-se de um crime específico que "no caso de maus tratos físicos, não passa de um crime de ofensas à integridade física autonomizado em função da particular relação existente entre o agente e a vítima, havendo uma relação de concurso aparente entre os dois tipos de ilícito" (Acórdão deste TRL de 24.05.2011, Proc. nº 309/09.8PEOER.L1.5).

"Este crime exige o dolo. Todavia, uma vez que este crime tanto pode ser um crime de resultado ... como de mera conduta ... como, ainda noutra perspetiva, tanto pode ser um crime de dano ... como crime de perigo ..., o conteúdo do dolo é variável em função da espécie de comportamento do agente ... Em qualquer caso, é sempre necessário o dolo, ou seja, o conhecimento da relação de proteção-subordinação e da Instrução menoridade, deficiência, doença ou gravidez do sujeito passivo" (in "Comentário Conimbricense do Código Penal Parte Especial", Tomo I, pág. 334)

O requerimento de abertura de instrução deve conter a descrição dos factos, por forma a que deles possam extrair-se todos os elementos constitutivos dos crimes imputados.

Porém, não é o que sucede no requerimento de abertura da instrução pois os factos que nele estão descritos não permitem a imputação à denunciada do crime de maus tratos p. pelo art.º 152º-A do C.Penal, que vimos de sucintamente analisar.

De facto, desde logo o requerimento de abertura de instrução é completamente omisso quanto à alegação da relação, entre o agente (a denunciada) e a vítima (a menor), suscetível de preencher o mencionado tipo legal. Nem ela existirá, vista a função desempenhada pela denunciada.

Com efeito, ao proferir o despacho de ........2022, no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais nº 2863/22.0..., a Senhora Juíza de Direito BB, no exercício da sua atividade jurisdicional, ao abrigo do disposto no art. 28º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, fundamentadamente, regulou provisoriamente as responsabilidades parentais da menor EE, nascida em ... de ... de 2021. Para o efeito, ponderou nomeadamente a pendência de inquérito crime "pela alegada prática do crime de violência doméstica pelo Requerido contra a Requerente", o facto de a menor estar a ser amamentada e a necessidade de acautelar a manutenção de um relacionamento próximo entre a menor e o progenitor.

Por Acórdão deste TRL de ........2022 o regime provisório fixado foi revogado e foi substituído por outro que permite que a menor passe as noites com a mãe, o qual está em vigor "enquanto a menor for amamentada pela mãe".

Resulta do exposto, bem como do alegado no requerimento de abertura de instrução, que a menor não está ao cuidado da denunciada, nem à sua guarda, nem sob a sua direção ou educação pois o que estava à sua responsabilidade era a regulação das responsabilidades parentais da menor, em obediência ao superior interesse da criança (conceito genérico/critério orientador que consubstancia o fim legal supremo que deve presidir à regulação do exercício das responsabilidades parentais).

Para tal, a denunciada socorreu-se dos poderes interpretativos do julgador, atendeu às particularidades do caso decidendo e baseou-se, tal como referido no despacho de arquivamento, "na sua convicção, fundada na livre apreciação do acervo probatório disponível e em função da sua sensibilidade na área do direito em causa", devendo a sua conduta ser entendida "como refectindo a sua normal actividade judicial, tomando decisões que podem ser impugnadas e revogadas, se tal for o entendimento do tribunal superior, como sucedeu no presente caso ..."

Resulta claro que a denunciada, na procura do equilíbrio entre as várias componentes da vida da criança, por forma a que a mesma cresça de forma sadia e equilibrada, valorizou, com especial ênfase, o relacionamento próximo entre a menor e o progenitor (comparativamente ao direito à amamentação) enquanto que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa valorizou este direito em detrimento daquele, implementando um regime destinado a vigorar durante a amamentação da menor.

Em suma, tal conduta não preenche os mencionados elementos objetivos do tipo.

Por outro lado, o requerimento de abertura de instrução também é omisso relativamente ao elemento subjetivo do crime pois limita-se a afirmar que a denunciada procedeu "com negligência, uma negligência grave face a tudo o que constava dos autos e sobre o qual a mesma nem refletiu, como era sua obrigação" quando este crime exige o dolo e, como tal, o propósito de causar maus tratos à menor.

E, sem tal alegação, não pode ser imputado à denunciada o referido crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152º-A do C.Penal.

No que respeita ao crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143º do C.Penal, este dispõe que pratica tal crime "quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa".

Da análise desta norma resulta que o tipo incriminador configura um crime material ou de resultado e de dano, o qual é constituído por elementos de natureza objetiva e subjetiva.

Ao nível do tipo objetivo, torna-se necessária a verificação de uma agressão no corpo ou na saúde de outrem, ainda que a mesma não se materialize numa concreta lesão anatómica ou fisiológica, somática ou psíquica. Sobrevindo, porém, qualquer resultado dessa agressão, necessário se torna que o mesmo esteja numa relação de causalidade adequada com aquela, devendo apresentar-se como uma consequência normal ou, pelo menos, não de verificação rara ou anómala.

Ao nível do tipo subjetivo, este ilícito apresenta-se como um crime doloso, na medida em que pressupõe uma conduta intencional dirigida à lesão do corpo ou da saúde de outrem.

Resulta do exposto que "o art. 143.º do Código Penal não prevê um crime de perigo, seja ele abstrato ou concreto, mas antes um crime de resultado de dano, pois a lei exige a verificação de um evento separado espácio-temporalmente da conduta do agente que se traduza na lesão efetiva do bem jurídico protegido (a integridade física), não se bastando com a mera colocação em perigo daquele mesmo bem jurídico" (Acórdão do TRE de 21.05.2013, Proc. nº 74/09.9GBGLG.E1).

No caso em apreço, a assistente alega que a denunciante privou "deliberadamente e conscientemente a menor do aleitamento materno durante 3 dias e 3 noites consecutivas" e que "a privação de aleitamento materno é um mau trato infligido à menor", mas não especifica qual o dano (a lesão efetiva) que foi efetivamente causado à menor em virtude da alegada privação do aleitamento materno.

Conforme resulta do exposto, para o preenchimento do tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples não basta a mera colocação em perigo e, não resulta do requerimento de abertura de instrução a alegação do dano efetivamente sofrido pela menor, sem o qual não pode ser imputado à denunciada o referido crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143º do C.Penal.

No entanto, a falta da alegação da mencionada factualidade não pode ser corrigida oficiosamente pelo tribunal, pois que o juiz não pode substituir-se à assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos mencionados elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais. Com efeito, tal representaria uma alteração substancial dos factos, tal como descrita no art. 1º al. f) do C.P.Penal, para além de colocar em causa a estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.

Importa ainda chamar à colação a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 7/2005, de ........2005 (Proc. n.º 430/2004, publicado no Diário da República n.° 212,1 Série A, de ... de ... de 2005), nos seguintes termos "Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, Instrução apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido ".

Assim, por não conter a narração dos factos que permita o preenchimento dos tipos legais de crime em questão e que fundamentam a aplicação de uma pena à denunciada, não havendo lugar a convite à assistente para aperfeiçoar o seu requerimento, este terá que ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no art. 287º, nº 3 do C.P.Penal.

Pelo exposto, indefere-se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no nº 3 do art. 287º do C.P.Penal.

Notifique.

Custas pela assistente, nos termos do art. 515º do C.P.Penal.

Direito

VII. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Ora, analisadas as conclusões do recurso apresentadas pela assistente, coloca-se a questão de saber se deve ou não ser admitido o requerimento de abertura de instrução (RAI) por si apresentado e que foi rejeitado na Relação, através da decisão sob recurso.

Vejamos então.

Em traços gerais, começaremos por dizer que a instrução destina-se, neste caso (quando é requerida pelo assistente), a proceder ao controlo judicial da decisão do M.ºP.º de arquivar, tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, CPP).

A instrução, enquanto fase jurisdicional1 (ainda que facultativa), compreende a prática dos atos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

“O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução” – de modo a fundar a sua convicção para pronunciar ou não pronunciar o arguido – mas, “tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2” do art. 287.º do CPP (cf. art. 288.º, n.º 4, do mesmo código).

Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), reafirmada na primeira parte do n.º 1 do art. 289.º do CPP, não é absoluta, estando antes limitada pelo objeto da acusação2.

Com efeito, “a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objeto do processo, é ela que delimita o conjunto de factos que se entende consubstanciarem um crime, estabelecendo assim os limites da investigação judicial. Nisto se traduz o princípio da vinculação temática. Ao vedar os poderes de cognição do juiz a outros factos, que não os contidos na acusação, está a garantir-se ao arguido que só deles tenha de defender-se e que por outros não poderá ser condenado (no processo em curso). A relevância do conceito, em sede de acusação, tem, pois, uma dimensão de garantia dos direitos e da posição do arguido”3.

Portanto, a importância da fixação do objeto da instrução prende-se diretamente por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigo 289.º, nº 1, do CPP, na fase da instrução) e, por outro, com o asseguramento de todas as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1 e n.º 5 da CRP), “do direito de audiência de todo e qualquer participante processual que possa vir a ser pessoalmente afectado por qualquer decisão judicial”4, o que compreende ainda, de forma destacada e autónoma, o respeito pelo exercício efetivo do princípio do contraditório, princípio este que atinge a sua dimensão máxima na fase do julgamento, visto que, nas fases preliminares (inquérito e instrução), há ainda limites ao seu exercício, por, numa ponderação de interesses prevalecer o superior interesse público da prevenção e repressão da criminalidade.

A efetividade e a eficácia do direito de defesa e do princípio do contraditório constituem, pois, requisitos essenciais para assegurar um processo justo e equitativo (art. 20.º, n.º 4, da CRP) 5.

Daí que se compreenda que o objeto da instrução tenha “de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa”6 e, essa definição “abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.”7

Por isso, nessa fase processual, o requerimento para abertura de instrução é uma peça essencial que tem de ser elaborada com todo o cuidado.

Perante o arquivamento do inquérito (concretamente em casos de investigação de crimes públicos ou semi-públicos), o assistente pode requerer a abertura da instrução (art. 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP) mas, neste caso, terá de observar os requisitos ou pressupostos legais.

Dispõe o art. 287.º, n.º 2, do CPP, na parte que ora interessa, que “o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.”

Estabelece o artigo 283.º, n.º 3, do CPP, no que aqui interessa, que a acusação contém, sob pena de nulidade:

(…)

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

d) A indicação das disposições legais aplicáveis;

(…)

Por isso se diz que, em casos como o destes autos, o requerimento de abertura de instrução “consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento, por factos geradores de responsabilidade criminal. A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução. (…) [Existe] uma semelhança substancial entre tal requerimento [de abertura de instrução] e a acusação. Daí que o art. 287.º, n.º 2, remeta para o art. 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do CPP, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento de abertura de instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento de abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do art. 283º do CPP”8.

Ora, no caso dos autos, como é fácil de verificar da leitura do RAI, apesar da recorrente/assistente se insurgir contra a sua rejeição (e, por isso, impugnar a decisão recorrida), a verdade é que desse mesmo RAI não consta a dedução de acusação alternativa ao arquivamento do MP, por qualquer crime, designadamente, o de maus-tratos p. e p. no art. 152.º-A do CP e o de ofensas à integridade física p. e p. no art. 143 do CP que pretende imputar à arguida.

E, sem uma acusação alternativa (não foram narrados factos concretos que integrassem qualquer crime a imputar à arguida) não há objeto para realizar a instrução e, não havendo lugar a convite para aperfeiçoamento do RAI (de acordo com a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º 7/2005), por inadmissibilidade legal, impunha-se a sua rejeição, como foi decidido.

Não há dúvidas que, se a assistente pretendia requerer a abertura de instrução, impunha-se que alegasse factos concretos que entendesse estarem suficientemente indiciados, integradores dos crimes que pretendia imputar à arguida.

Ao contrário do que consta da decisão recorrida, a recorrente entende que o RAI contém todos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes que imputou à arguida.

Com efeito, a partir da sua discordância do despacho de ........2022 proferido pela Srª. Juiz (aqui arguida) no processo de regulação das responsabilidades parentais n.º 2863/22.0..., que correu termos no Juízo de Família e Menores de ..., ... - no qual aquela magistrada, em resumo, permitia que a criança (filha da assistente/recorrente), com 10 meses de idade e que estava a ser amamentada pela mãe, pernoitasse com o pai em fins de semana alternados e nos demais períodos indicados nessa decisão, o que veio a ser alterado por ac. do TRL de ........2022, sendo eliminada a pernoita em casa do pai enquanto durasse a amamentação -, a assistente (mãe da criança) veio a entender no RAI que, por aquela via a referida Magistrada cometera um crime de maus-tratos p. e p. no art. 152.º-A do CP e/ou um crime de ofensa à integridade física p. e p. no art. 143.º do CP, uma vez que ao por aquela forma autorizar a pernoita em casa do pai ia privar, impedir aquela criança da amamentação materna, causando-lhe um mau-trato (tal como anteriormente já decidira, no despacho de ........2022), tendo inclusivamente perdido 100 gramas no período em que esteve sem aleitamento, sendo certo que tinha a mesma menor sob a sua direção e educação na medida em que estava a fixar o regime pelo qual a menor se iria relacionar com os progenitores (dado que lhe foi atribuído aquele processo de regulação das responsabilidades parentais da menor), ainda que a arguida estivesse a atuar no exercício dos seus poderes funcionais, considerando que foram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes imputados no RAI.

Pois bem.

O facto de o requerimento de abertura de instrução não estar sujeito a formalidades especiais (art. 287.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPP), não significa que, em caso como o destes autos, a assistente fique dispensada de apresentar uma “acusação alternativa” ao arquivamento do Ministério Público.

Analisado o RAI verifica-se, desde logo, que o ali alegado é inócuo desde logo por falta de alegação de factos concretos que integrem o tipo objetivo e o tipo subjetivo dos crimes que a assistente pretendia imputar à arguida (o que também significa que não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, como lhe incumbia).

O facto da Srª. Juiz, arguida, ser titular do processo de regulação das responsabilidades parentais n.º 2863/22.0..., que correu termos no Juízo de Família e Menores de ..., ..., onde proferiu o despacho de ........2022, que alterou provisoriamente as responsabilidades parentais da menor, filha da assistente, nos termos acima referidos (regime provisório esse que veio a ser revogado como decidido no ac. do ... de ........2022) não significa, nem equivale (como pretende a recorrente, sem apoio legal) que, por ter essas funções, tivesse assumido ou “acabado por estar [com a menor] sob a sua direção e educação, pois condicionou a sua decisão a tal circunstância”.

Essa interpretação seria um atentado aos princípios da tipicidade e da legalidade, pois, contraria a finalidade e âmbito da norma, tendo presente que, tal como está definido o art. 152.º-A do CP, estamos perante um crime específico, exigindo-se (como é assinalado por Américo Taipa de Carvalho9) que “o agente se encontre numa relação de supra-ordenação face à vítima: relação/dever de cuidado, de guarda, de direção ou educação, ou relação de empregador.”

Nenhuma dessas relações típicas previstas no art. 152.º-A do CP se enquadra no caso dos autos, sendo certo, por outro lado, que quando à magistrada/arguida foi atribuído o processo de regulação de responsabilidades parentais, independentemente dos despachos que nele proferiu, não passou a existir uma relação de guarda da magistrada para com a criança, porque esta (a menor) mantinha a relação que tinha com a respetiva progenitora (mãe/assistente), que tinha e manteve a sua guarda e que, no caso, até a amamentava (salvo nos períodos em que a menor estava na creche, mas que também era alimentada).

Logo, por aí falece um dos elementos essenciais do tipo objetivo do crime de maus-tratos p. e p. no art. 152.º-A do CP, o que tanto basta para que nunca os factos alegados no RAI permitissem que a arguida fosse pronunciada por esse crime.

Por outro lado, a alegação de que com aquele mesmo despacho de ........2022, alterando provisoriamente o regime de responsabilidades parentais, ao por aquela forma autorizar a pernoita em casa do pai ia privar, impedir aquela criança da amamentação materna, causando-lhe um mau-trato (tal como anteriormente já decidira, no despacho de ........2022), tendo inclusivamente perdido 100 gramas no período em que esteve sem aleitamento, assim cometendo a arguida o crime de ofensas à integridade física p. e p. no art. 143.º do CP, também não é suficiente para a imputação de tal crime à arguida.

Dessa alegação não se pode deduzir que a arguida, ao proferir tal despacho, tenha agido com a intenção de molestar fisicamente a menor, fosse a título de dolo ou de negligência, apesar do despacho que proferira anteriormente em ........2022.

O despacho de ........2022 foi proferido em virtude da atitude do pai da criança, que foi buscá-la à creche e, sem autorização, a levou consigo, o que levou a que fosse determinada a referida notificação (“…notifique o progenitor pela via mais expedita para, ainda no dia de hoje, entregar a criança à mãe para ser amamentada, uma vez que consideramos ser um mau trato privá-la de um momento para o outro do contacto com a progenitora e da lactação materna”.)

O facto de naquele despacho considerar aquela atitude do pai em relação à criança, naquelas circunstâncias, um mau trato não é suficiente, só por si, para se considerar preenchido quer o crime de maus tratos, quer o crime de ofensa à integridade física, que agora de forma implícita a assistente no RAI pretende imputar à arguida com base no despacho que proferiu em ........2022 a alterar provisoriamente as responsabilidades parentais.

Tão pouco se pode concluir que, com tal despacho que proferiu em ........2022 (suscetível de ser impugnado pelas vias legais, como o foi), tivesse causado ofensa no corpo ou na saúde da menor, filha da assistente.

Obviamente que não se pode atender aos factos novos que a assistente agora acrescenta em sede de recurso para, de alguma forma, tentar justificar as imputações imprecisas e genéricas que fez, mas que não incluiu, na altura própria, no RAI.

Foi sobre os factos alegados no RAI, que delimitavam e definiam o objeto da instrução, que foi e tinha de ser proferida a decisão recorrida e, como bem se decidiu, os mesmos eram insuficientes para a imputação do crime de ofensas à integridade física p. e p. no art. 143.º do CP, que é um crime de dano e, como bem diz Paula Ribeiro Faria10, “supõe a produção de um resultado que é a ofensa do corpo, ou da saúde, de outra pessoa, que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade.”

Os factos concretos a imputar, objeto da instrução, tem de ser alegados de forma objetiva, clara e expressa, o que no caso não foi feito e, por isso, se referiu bem na decisão recorrida, que “para o preenchimento do tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples não basta a mera colocação em perigo e, não resulta do requerimento de abertura de instrução a alegação do dano efetivamente sofrido pela menor, sem o qual não pode ser imputado à denunciada o referido crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143º do C.Penal.

No entanto, a falta da alegação da mencionada factualidade não pode ser corrigida oficiosamente pelo tribunal, pois que o juiz não pode substituir-se à assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos mencionados elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais. Com efeito, tal representaria uma alteração substancial dos factos, tal como descrita no art. 1º al. f) do C.P.Penal, para além de colocar em causa a estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.”, não havendo neste caso lugar a convite (conforme jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 7/2005, de 12.05.2005).

Daí que não mereça censura a conclusão a que se chegou na decisão recorrida no sentido de que por o RAI “não conter a narração dos factos que permita o preenchimento dos tipos legais de crime em questão e que fundamentam a aplicação de uma pena à denunciada, não havendo lugar a convite à assistente para aperfeiçoar o seu requerimento, este terá que ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no art. 287º, nº 3 do C.P.Penal.”

De facto, como sabido, sem alegação dos factos concretos que integrem os tipos objetivo e subjetivo de ilícito, não existe crime.

Sem alegação dos factos concretos em falta não era possível pronunciar a arguida.

Também, o juiz não pode substituir a assistente, colocando por sua (do juiz) iniciativa os factos em falta, que eram essenciais para a imputação do(s) crime(s) em questão.

O juiz não pode transformar uma narração de factos que é inócua, numa infração criminal: caso viesse a acrescentar os factos concretos em falta, estar-se-ia perante uma alteração substancial dos factos, o que tornaria nula a decisão instrutória (art. 309.º, n.º 1, do CPP).

O facto de se dizer que essa alteração substancial de factos tornaria nula a decisão instrutória não significa que se esteja a conhecer oficiosamente de nulidade dependente de arguição, tanto mais que nem foi proferida decisão instrutória.

De todo o modo, o que sucede neste caso é que inexiste objeto da instrução por não ter sido cumprido o disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. b), do CPP.

Ora, sendo o RAI “inepto”/inócuo (porque, como sucede neste caso, não contém os factos pertinentes e essenciais relativos ao(s) crime(s) que se pretendia imputar à arguida), mais não restava ao juiz do que rejeitá-lo, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, sendo manifesto que não havia lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento dessa peça (o que se conforma com a jurisprudência do ac. STJ n.º 7/2005 acima citado), desde logo porque tal solução afrontava o prazo perentório previsto no art. 287.º, nº 1, do CPP.

É, pois, de negar provimento ao recurso da assistente, sendo certo que não foram violados os preceitos e normas legais por ela invocados.

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Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC`s.

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 19.06.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Antero Luís (Adjunto)

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)

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1. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 128, citando Jorge Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 16, refere: “A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito.↩︎

2. Sobre a instrução, refere Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 129: “Porque, porém, se trata de fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limita a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação». Também, Anabela Rodrigues, “O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77, realça “que se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo”.

3. Assim, Frederico Isasca, Alteração Substancial dos factos e a sua relevância no processo penal português, Almedina, 1992, p. 54. Em nota de rodapé, cita o pensamento de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, Coimbra Editora, 1974, p. 145, quando escreve: “deve pois afirmar-se que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal (…). Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação (…) constituem o cerne de um verdadeiro direito de defesa do arguido e deixam transparecer os pilares fundamentais em que se alicerça um Estado que os acolhe”.

4. Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-9, p. 108.

5. Ver Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra Editora, 2005, p. 192. A nível do TEDH, ver, entre outros, o acordão de 25/7/2000 – que pode ser consultado no site www.echr.coe.int/echr - proferido no caso Mattoccia c. Itália (debruça-se sobre as garantias do direito de defesa: v.g. conhecimento detalhado, pronto e adequado da natureza e das causas da acusação e disposição de tempo e das facilidades necessárias para preparar a defesa), pronunciando-se sobre o disposto nas alíneas a) e b) do § 3 do art. 6 (direito a um processo equitativo) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Note-se, como diz João Ramos Sousa, “Ainda há juízes em Estrasburgo”, in sub judice nº 28, Abril/Setembro de 2004, p. 7, que “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem um valor duplo no direito português: por um lado é directamente aplicável na ordem interna; e por outro lado, as suas normas e princípios servem de paradigma na interpretação e integração das normas constitucionais correspondentes. Isto é, as normas constitucionais referentes a direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas de acordo com a interpretação e integração das correspondentes normas da Convenção, estabelecidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”.

6. Ac. do TC nº 358/2004, DR II de 28/6/2004 (relatora Fernanda Palma).

7. Assim, Ac. do TC nº 358/2004.

8. Assim, Ac do TC nº 358/2004, sendo que a remissão depois da alteração introduzida pela Lei n.º 94/2021, é para o art. 283.º, n.º 3, als. b) e d) do CPP.

9. Américo Taipa de Carvalho, em anotação ao art. 152.º-A do CP, AAVV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131.º a 201.º, 2ª ed., dir. Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 525.

10. Paula Ribeiro Faria, em anotação ao art. 143.º do CP, AAVV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131.º a 201.º, 2ª ed., dir. Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 299.