Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
50/18.0YFLSB.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: PRESSUPOSTOS
PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
ACOLHIMENTO RESIDENCIAL
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDA A PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE GARANTIA PATRIMONIAL / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS.
Doutrina:
- Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1986, p. 273;
- Faria Costa, Habeas Corpus: ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume 75, Coimbra, 1999, p. 549 ; apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2001, CJSTJ 2001, Tomo III, p. 202;
- Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, p. 296;
- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, p. 509.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 222.º, N.º 2.
ENTRADA, PERMANÊNCIA, SAÍDA E AFASTAMENTO DE ESTRANGEIROS DO TERRITÓRIO NACIONAL, APROVADA PELA LEI N.º 23/2007, DE 04-07: - ARTIGO 146.º.
LEI DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO (LPCJP), APROVADA PELA LEI N.º 147/99, DE 01-09: - ARTIGOS 24.º E 35.º, ALÍNEA F).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-03-2006, PROCESSO N.º 885/06-3.ª, IN CJSTJ 2006, TOMO I, P. 208;
- DE 20-10-2010, PROCESSO N.º 21223/10.9T2SNT-A.S1;
- DE 27-10-2010, PROCESSO N.º 108/06.9SHLSB-AH.S1.
Sumário :
I - A providência excepcional de habeas corpus está vocacionada para impedir casos de prisão ilegal.
II - A jurisprudência tem entendido de forma maioritária, que este meio processual pode estender-se a casos em que não ocorrendo propriamente privação da liberdade, há restrição da mesma.
III - Essa extensão tem tido lugar relativamente à medida de coacção de obrigação de permanência em habitação, internamento em centro educativo na sequência de medida cautelar, e relativamente a colocação em centro de instalação temporária, na dependência do SEF, ao abrigo do art. 146.º da Lei 23/2007, de 04-07.
IV - Não quadra com a restrição da liberdade necessária para a providência excepcional de habeas corpus a situação de uma criança acolhida em instituição no âmbito de um processo de promoção e protecção, nos termos do art. 35.º, al. f), da Lei 147/99, de 01-09.
V - As medidas de promoção e protecção, como decorre do art. 24.º da LPCJP, têm como função promover os direitos das crianças e proteger aquelas que estão em perigo.
VI - Concedida que fosse a impetrada “libertação imediata”, a criança retornaria aos progenitores, que já demonstraram não terem condições para acolher a filha, pelo que, o retorno ao convívio com os progenitores significaria o colocar, de novo, em risco a criança, o que manifestamente não pode ser, sendo por isso de indeferir a providência de habeas corpus por não ter cabimento legal.

Decisão Texto Integral:

           
      Pelo Patrono nomeado à menor AA, acolhida em instituição no âmbito do processo de promoção e protecção n.º 129/07.4TMLSB-B do Juízo de Família e Menores de Lisboa - Juiz 2, foi apresentado o seguinte requerimento:
     “AA, nascida em ....2012, institucionalizada desde 25.09.2015 (há quase três anos), requer se ordene a sua libertação imediata (e entrega aos seus progenitores com monitorização inopinada da ECJ competente), por terem sido ultrapassados todos os prazos em que a menor podia estar institucionalizada.
      Quando se entenda que este Tribunal de Família e Menores não é competente para apreciar do presente pedido de HABEAS CORPUS, requer se extraia e remeta para o STJ, certidão do presente requerimento, acompanhado de certidão de todo o processado.
     Nota: O HABEAS CORPUS requerido em 13.12.2017, nunca subiu ao STJ.
      Espera Deferimento”.

                                                            *****
      Os autos foram instruídos de acordo com o requerido pelo peticionante e deferido no final da informação, com cópia dos mencionados autos, de fls. 1 a 745.

                                                                *****
       O Exmo. Juiz no Juízo de Família e Menores de Lisboa - Juiz 2, exarou a informação a que alude o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, a fls. 755 a 757 destes autos, nestes termos:
       «AA nasceu a ....2002 e é filha de BB e de CC.
      Por decisão proferida em 18.09.2015 (vide fls. 295e 296) foi substituída a medida de apoio junto dos pais pela medida de promoção e proteção de acolhimento em instituição, com os seguintes fundamentos: "AA nasceu a .....2000.
       Foi-lhe aplicada, por acordo, a medida de promoção e protecção de apoio junto dos progenitores, a 14/3/2013, pelo período de um ano.
       A medida tem sido revista e mantida (2 anos e meio), há muito tendo excedido o prazo indicativo de duração, de 18 meses.
      Aquando da antecedente revisão de medida, genericamente verificava-se um incumprimento generalizado do acordo.
       A ausência de competência dos progenitores, apesar de trabalhada ao longo do tempo, mantém-se. Em síntese, veriflcam-se os seguintes factores de perigo:
-desemprego de longa duração, sem mobilização activa para alteração da situação; -prestação de RS1 suspensa por incumprimento do acordo respectivo;
-dívidas de renda, água e luz, com risco de despejo e corte daqueles bens; -falta de cuidados de higiene e saúde, traduzida em sarna, pediculose,
-negligência da progenitora quanto ao seu acompanhamento em oftalmologia e neurologia, pondo em causa a prestação de cuidados à menor;
-inexistência de suporte familiar;
-alcoolismo do progenitor;
- violência doméstica;
-falta de integração da criança em equipamento infantil;
-falta de colaboração e até resistência à intervenção técnica.
       Como bem salienta a EATTL, estes factores de perigo levaram ao acolhimento dos irmãos de AA, BB e DD e no passado determinaram a adoção das irmãs EE e FF. E nem assim, houve mobilização dos progenitores.
A EATTL propõe a substituição da medida, por acolhimento em instituição com carácter de urgência"
      A menor foi acolhida no CAT ... em 25.09.2015 (cfr fls. 315), tendo sido transferida para CA. ... e mais recentemente (desde 09-10-2017) na CA. ... (cfr fls. 649)
      Foi proposta pela Equipa técnica que acompanha a execução da medida que o seu projecto de vida é futuro encaminhamento para adoção- medida de confiança a instituição com vista a futura adoção. (vide fls. 343 a 349; 369 a 373; 393 a 404;
       Por decisão proferida em o3.05.2016 foram nomeados patronos à menor e a seus pais, sendo feita a notificação para alegações por escrito e determinada a permanência da menor em colhimento até ser proferido acórdão (cfr. fls. 431).
       Apenas o M°P° apresentou alegações- cfr fls. 455 a 463, promovendo a aplicação da medida de confiança a instituição com vista à futura adoção.
       Foi designada o dia 11.07.2016 para realização de debate judicial (cfr fls. 466), o qual se iniciou nesse mesmo dia com inquirição de algumas das testemunhas arroladas (manhã e tarde) , e deferido o requerimento feito pela ilustre defensora dos menores no sentido de os pais da mesma serem sujeitos a testes de avaliação psicológica /psiquiatria no IML a fim de aferir das suas competências parentais, o que foi deferido , atendendo a que faltariam ouvir ainda mais testemunhas das arroladas e ainda as que então foram admitidas, o que sempre implicaria a interrupção/adiamento do debate em curso, sendo relegado para momento ulterior à junção dos relatórios periciais a designação de data para continuação do debate judicial- cfr fls. 503 a 514.
       A fls. 549 foi designado dia 16.03.2017 para continuação do debate judicial, uma vez que o INML não deu resposta ao solicitado, sendo nesse dia (manhã e tarde) ouvidas as demais testemunhas, ficando o debate suspenso a aguardar a marcação das perícias aos progenitores por parte INML e oportuno envio dos respectivos relatórios, sendo após agendadas alegações.
       A fls. 651, em 13.10.2017, foi proferida despacho de revisão da medida de acolhimento residencial aplicada à menor, sendo a mesma mantida.
       Foram marcados exames aos progenitores no Hospital de Santa Maria, em 17.10.2017 para a progenitora (cfr. fls. 638, 639), que faltou (cfr fls. 656), sendo designada nova data para 05.12.2017 (fls. 659) e em 17.01.2018 (para o progenitor), que também faltou (cfr fls. 690), sendo designada nova data para 14.03.2018, sendo na sua sequência requeridas outras avaliações psicológicas, que designadas foram alvo de vários adiamentos por falta de comparência dos progenitores.
       A medida foi novamente revista e mantida em 15.01.2018 (aí se considerando que as medidas provisórias não cessam apenas pelo decurso máximo das mesmas) e em 16.04.2018 (cfr fls. 689 e 728).
       O ilustre defensor da menor veio a fls. 665, em 14.12.2017 requerer o “Habeas Corpus”, solicitando a sua libertação imediata da menor. Requer ainda que seja extraído certidão do requerimento apresentado e sua remessa ao STJ.
       A fls. 668 e verso indeferiu-se na totalidade o requerido (cfr fls. 668 e verso).
      Todos os despachos proferidos transitaram pacificamente em julgado, não sendo algo de qualquer recurso, reclamação ou sequer pedido de substituição da medida aplicada.
       A fls. 747 e segs veio o ilustre defensor da menor, renovar o pedido de "Habeas Corpus", referindo que anterior não tinha sido remetido ao STJ.
       O M°P° pronunciou-se nos termos de fls. 754 (nada ter a promover, atento o decidido a fls. 668).
       Conforme já referimos no anterior despacho proferido a fls. 668 e verso, entendemos que o instituto de “Habeas Corpus” não tem aplicação no âmbito da aplicação da Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo- Lei n° 147/99, de 01-09, com as alterações da Lei n° 31/2003 de 22-08 e Lei n° 142/2015, de 08-09 ( doravante LPCJP).
Efetivamente as medidas de promoção e proteção têm como função/finalidade promover os direitos das crianças e proteger aquelas que estão em perigo (cf. art. 34° da LPCJP).
       O acolhimento residencial, como medida de promoção e proteção da criança não é uma medida detentiva, mas sim protectiva das crianças, promove os cuidados devidos à criança e a integração da mesma na sociedade, com respeito pela sua liberdade, em função da idade, como aliás, é uma obrigação do Estado- art 69° da Constituição da República Portuguesa. Não é assim possível comparar o acolhimento residencial no âmbito da LPCJP com o internamento da Lei Tutelar Educativa, este último sim, equiparável à “detenção” para efeitos de aplicação da providência de Habeas Corpus.
       Aliás, basta fazer um raciocínio simples: a medida foi aplicada para salvaguarda do perigo que se fazia sentir para criança (cfr art 3º e 37° da LPCJP) em função do comportamento gravemente negligente dos pais para com a mesma, e o deferimento de tal providência, de “habeas corpus” importaria que se colocasse outra vez a risca a criança, entregando-a aos pais!
       Neste mesmo sentido, Ana Rita Gil, in “A garantia de Habeas Corpus no contexto de aplicação de medida de promoção e proteção de acolhimento residencial- Comentário ao Acórdão do STJ de 18/01/2017 “, publicado na Revista Julgar on line, de Outubro de 2017. Note-se que a demora na conclusão do debate judicial em curso nestes autos advém do requerimento de exame pericial requerida aos progenitores pela defensora da menor, que foi deferido, sendo a sua realização protelada em função das sucessivas faltas dos pais. A medida de acolhimento residencial aplicada é uma medida cautelar e tem sido protelada para além do prazo máximo previsto (cfr.art. 37° da LPCJP), porquanto se mostra necessária para salvaguarda da integridade física, segurança e integral desenvolvimento da AA, enquanto se realiza debate judicial (iniciado pela Ex. VP Sr3 Juíza ..., antecessora neste Juiz, e necessariamente a continuar pela mesma), que aguarda a junção dos relatórios periciais, para então se decidir sobre a aplicação da medida de promoção e proteção proposta de confiança a instituição, com vista a adoção.
       Acresce por último, a medida aplicada não foi alvo de qualquer recurso, assim como o não foram as decisões de revisão que a mantiveram.
       Em suma, entendemos que o instituto não tem aplicação no âmbito de aplicação da LPCJP e ainda que assim não se entendesse, a medida de acolhimento residencial, tem sido sucessivamente revista e mantida, a última vez em 16.04.2018, não foi alvo de recurso ou pedido de substituição, inexistindo fundamento legal para o seu deferimento. No Entanto V°as Ex.°s, Venerandos Conselheiros, melhor decidirão.
      Extraia certidão de todo o processado, incluindo da presente “informação” e remeta ao S.TJ. para apreciação do " Habeas Corpus" requerido.
       Consigna-se que aquando da anterior decisão de fls. 668 sobre o pedido de “habeas corpus” não se remeteu efectivamente o processo ao STJ, conforme consta da respectiva decisão que foi oportunamente notificada e não foi objecto de qualquer recurso/reclamação, pelo requerente. Contudo, e porque resulta claro ser esse o propósito do ilustre defensor, remeta-se a mesma (certidão) de imediato. Notifique.
       Solicite informação, com nota de MUITO URGENTE, sobre o estado das perícias solicitadas, designadamente seja se mostram realizados todos os exames necessários pelos progenitores e na afirmativa, quando está prevista a remessa dos respectivos relatórios, sempre com a menção que a conclusão do debate judicial (cuja medida proposta é confiança a instituição com vista a adoção) apenas aguarda a sua junção.
       Dê ainda conhecimento do presente despacho à Srª Juiz Presidente da Comarca para que tome as diligências tidas por convenientes a fim de agilizar a junção célere aos autos do resultado das perícias aos progenitores.».
 
                                                               ***
       Convocada a Secção Criminal e notificado o Ministério Público e o Defensor, teve lugar a audiência.
                                                               ***
       Cumpre apreciar e decidir.
                                                               ***
       Constam dos autos – documentos juntos e teor da informação prestada – os seguintes elementos fácticos que interessam para a decisão da providência requerida:
I – A menor AA nasceu em ...-2012, sendo filha de BB e CC. 
II – A situação da menor foi sinalizada à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de ..., em DD de 2012, pelo Serviço de Apoio à Família (SAF), da SCML, que conhece e acompanha o agregado familiar desde o ano de 2009.
III – Em 19-04-2012, o Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, por apenso ao processo de promoção e protecção n.º 129/07.4TMLSB-B (a que foram apensos idênticos processos em benefício dos irmãos de AA, BB, acolhido na Casa da Luz, DD, integrado na ..., EE e FF, ambas acolhidas após o nascimento e posteriormente adoptadas), requereu a instauração de processo judicial de promoção e protecção em benefício da menor AA.
IV – Em 14-03-2013 foi celebrado acordo para aplicação da medida de promoção e protecção de apoio junto aos Pais, sendo homologado por decisão ditada em auto de fls. 118 a 126.
 V – Em 21-11-2013 a medida foi revista e determinada a continuação da sua execução - fls. 190/1-, tendo sido prorrogada por mais 6 meses em decisão de 6-03-2015, ut fls. 266.
VI – Por decisão de 18-09-2015, nos termos do artigo 62.º, n.º 3, al. b) da LPCJP, foi determinada a substituição da medida de apoio junto dos progenitores, pela medida de p. e p. de acolhimento em instituição – fls. 295/6.
VII – O acolhimento foi efectuado no dia 25-09-2015, pelas 14 horas, no CAT ... - fls. 315 e 316 -, tendo sido transferida para a Casa de Acolhimento ... e mais recentemente (desde 09-10-2017) na Casa de Acolhimento ..., em Lisboa (fls. 649).
VIII – Por decisão de 13-10-2017 foi prorrogada a medida cautelar de acolhimento residencial da menor, ao abrigo do disposto no artigo 62.º, n.º 1, e n.º 3, alínea c), da LPCJP, por três meses - fls. 651 e verso.
IX – O debate judicial foi suspenso, tendo tido lugar a 1.ª sessão em 11-07-2016, aguardando a realização de exame pericial.
X – Por despacho de 14-12-2017, proferido a fls. 668 e verso, foi indeferido pedido de habeas corpus por não ser o caso dos autos, sendo certo que a menor não está internada em centro educativo, mas sim acolhida em instituição no âmbito de um processo de promoção e protecção.
XI – Por despacho de 17-01-2018, a fls. 689, por não ter ocorrido qualquer alteração desde a última revisão da medida cautelar efectuada, não tendo sido juntos os relatórios dos exames periciais determinados, foi renovado integralmente o despacho proferido a fls. 651 e verso.
XII – Por despacho de 16-04-2018, a fls. 728, inexistindo qualquer alteração nos autos, aguardando os mesmos a junção dos relatórios periciais dos progenitores, foi renovado integralmente o despacho de fls. 651 e verso.
XIII – Foram marcados exames aos progenitores no Hospital de ..., em 17-10-2017 para a progenitora (fls. 638, 639), que faltou (fls. 656/7), sendo designada nova data para 05-12-2017 (fls. 659) e em 17-01-2018 (para o progenitor), que também faltou (fls. 690), sendo designada nova data para 14-03-2018, sendo na sua sequência requeridas outras avaliações psicológicas, que designadas foram alvo de vários adiamentos por falta de comparência dos progenitores.

       Apreciando.


       A providência de habeas corpus constitui uma garantia do direito à liberdade com assento na Lei Fundamental que nos rege.
       Incluída no Capítulo I «Direitos, liberdades e garantias pessoais», do Título II “Direitos, liberdades e garantias”, da Parte I “Direitos e deveres fundamentais”, a providência de habeas corpus está prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece:
1 – Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2 – A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3 – O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.
       O texto do n.º 1 foi alterado/revisto pela Lei Constitucional n.º 1/97, que introduziu a Quarta revisão constitucional (Diário da República I-A Série, n.º 218/97, de 20 de Setembro de 1997) e que pelo artigo 14.º alterou a redacção do n.º 1 do artigo 31.º da Constituição, de modo a que nesse preceito a expressão “a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos” fosse substituída pela expressão “a requerer perante o tribunal competente”, assim afastando a referência a tribunais militares.
       Mas como assinala Faria Costa em Habeas Corpus: ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume 75, Coimbra, 1999, pág. 549, a revisão constitucional de 1997 não veio, nem de longe nem de perto, restringir o âmbito de aplicação da norma. Por isso, o habeas corpus vale também e em toda a linha perante a jurisdição militar.
      Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, a págs. 509, o n.º 2 do artigo 31.º reconhece uma espécie de acção popular de habeas corpus (cfr. art. 52.º -1), pois, além do interessado, qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos tem o direito de recorrer a providência em favor do detido ou preso. Além de corporizar o objectivo de dar sentido útil ao habeas corpus, quando o detido não possa pessoalmente desencadeá-lo, essa acção popular sublinha o valor constitucional objectivo do direito à liberdade.        
       A providência em causa é uma garantia fundamental privilegiada (no sentido de que se trata de um direito subjectivo «direito-garantia» reconhecido para a tutela do direito à liberdade pessoal, neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 296) e citando este e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, a figura do habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo - saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911 (artigo 3.º- 31), tendo como fonte a Constituição Republicana Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional americano.
       A Constituição de 1933 (artigo 8.º, § 4.º) consagrou igualmente o instituto, que só veio a ser regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 35.043, de 20 de Outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de Maio, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27 de Dezembro de 1974 e do Decreto-Lei n.º 320/76, de 4 de Maio de 1976.
       A Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro - lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, a cujo abrigo foi elaborado o Código de Processo Penal vigente - estabeleceu a garantia no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39 – “ (…) garantia do habeas corpus, a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça em petição apresentada perante a autoridade à ordem da qual o interessado se mantenha preso, enviando-se a petição, de imediato, com a informação que no caso couber, ao Supremo Tribunal de Justiça, que deliberará no prazo de oito dias”.
      Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.
       Sendo o direito à liberdade um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal.
       Ou, para utilizar a expressão de Faria Costa, apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2001, in CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 202, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder».
       Para Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1986, pág. 273 “o habeas corpus é a providência destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade”.
       E como assinala Cláudia Cruz Santos, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10.º, fascículo 2.º, pág. 309: “E é precisamente por pretender reagir contra situações de excepcional gravidade que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários”.
      A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de gravidade extrema ou excepcional, de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.º 1 do artigo 220.º do CPP e quanto ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.
      Sendo a prisão efectiva e actual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, pág. 297) há-de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão proveniente de (únicas hipóteses de causas de ilegalidade da prisão):
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
        
                                                           ********
      A providência do habeas corpus tem lugar quando alguém se encontra ilegalmente preso, tratando-se de meio expedito, célere, destinado a pôr cobro a situações de prisão ilegal.
       Como se extrai do acórdão de 27-10-2010, proferido no processo n.º 108/06.9SHLSB-AH.S1-3.ª, o processo de habeas corpus assume-se como de natureza residual, excepcional, e de via reduzida: o seu âmbito restringe-se à apreciação da ilegalidade da prisão, por constatação e só dos fundamentos taxativamente enunciados no artigo 222.º, n.º 2, do CPP. Reserva-se-lhe a teleologia de reacção contra a prisão ilegal, ordenada ou mantida de forma grosseira, abusiva, por chocante erro de declaração enunciativa dos seus pressupostos.
                                                                        
       A requerente encontra-se acolhida em instituição no âmbito de um processo de promoção e protecção, nos termos do artigo 35.º, alínea f), da Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n° 147/99, de 1 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2003, de 22 de Agosto, e pela Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro, que prevê o acolhimento residencial, designação que sucedeu a acolhimento em instituição.
      A questão primeira que se coloca é a de saber se a aplicação de uma medida de promoção e protecção envolve privação ou restrição de liberdade.
      A providência excepcional de habeas corpus está vocacionada para impedir casos de prisão ilegal.
       No entanto, a jurisprudência tem entendido, de forma maioritária, que este meio processual pode estender-se a casos em que não ocorrendo propriamente privação de liberdade, há restrição da mesma.
       Essa extensão tem tido lugar relativamente à medida de coacção de obrigação de permanência em habitação, como no acórdão de 13-02-2008, por nós relatado no processo n.º 435/08, a internamento em centro educativo na sequência de medida cautelar, como no acórdão de 8-03-2006, processo n.º 885/06-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 208, e relativamente a colocação em centro de instalação temporária na dependência do SEF, ao abrigo do artigo 146.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, como no acórdão por nós relatado de 20-10-2010, no processo n.º 21223/10.9T2SNT-A.S1, onde são enunciados acórdãos a conceder a providência nas situações apontadas.
       A situação no presente caso não quadra com restrição de liberdade.
        As medidas de promoção e protecção, como decorre do artigo 24.º da LPCJP, têm como função promover os direitos das crianças e proteger aquelas que estão em perigo.
       Concedida que fosse a impetrada “libertação imediata”, a criança retornaria aos progenitores, que já demonstraram não terem condições para acolher a filha, sendo certo que se os prazos estão ultrapassados, para o efeito muito contribuem os progenitores com as sucessivas faltas de comparência no Hospital de Santa Maria.
       O retorno ao convívio com os progenitores significaria o colocar, de novo, em risco a criança, o que manifestamente não pode ser.
       Sendo assim, por não ter cabimento legal, é de indeferir a pretensão.
 
        Decisão

      Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por manifestamente infundada, a providência de habeas corpus requerida por AA.
       Sem tributação.
       Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
                           
Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 12 de Julho de 2018


Raul Borges (relator)
Manuel Augusto de Matos
Santos Cabral