Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
127/19.5YUSTR.L1-M.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
PRESCRIÇÃO DAS PENAS
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CONTRAORDENACIONA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :

I – O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem como pressupostos substanciais que: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, quando entre os dois acórdãos haja “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas – oposição entre decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas; e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.


II - O acórdão fundamento teve como objeto de julgamento e decisão a verificação ou não da prescrição de uma pena, no âmbito do direito penal, por força da legislação de cariz excecional que vigorou durante a pandemia do COVID-19 – in casu, artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020 -, tendo considerado inaplicável a suspensão do prazo aí prevista ao prazo de prescrição da pena, quando os factos tenham sido praticados anteriormente à sua vigência, em função de princípios inerentes ao direito penal com base constitucional.


III - O acórdão recorrido teve como objeto de julgamento e decisão, além do mais, a verificação ou não da prescrição do procedimento contraordenacional, por força da legislação de cariz excecional que vigorou durante a pandemia do COVID-19 – in casu, artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020 -, tendo considerado aplicável a suspensão do prazo aí prevista ao prazo de prescrição do procedimento contraordenacional por factos praticados em data anterior à entrada em vigor da dita legislação, ao que acresce, como fundamento para considerar não prescritas as infrações contraordenacionais, o entendimento de que a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 157/2014 ampliou o período de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo às infrações previstas no RGICSF, sendo aplicável o novo prazo de suspensão às condutas ilícitas imputadas – questão de direito inteiramente alheia ao acórdão fundamento.


IV- Verificando-se que os acórdãos em confronto decidiram em função de realidades factuais e jurídicas claramente distintas, em processos de natureza diversa e convocando diferentes ramos de direito, não se verifica oposição relevante de julgados que pressupõe que as situações de facto sejam idênticas nos arestos em confronto, e bem assim que neles haja expressa e explícita resolução da mesma e exata questão de direito.

Decisão Texto Integral:




NUIPC 127/19.5YUSTR.L1-M.S1


Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO


1. AA, BB e CC, com os sinais dos autos, vieram interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Lisboa - Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, de 02.12.2021, proferido no processo n.º 127/19.5YUSTR.L1, do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, alegando encontrar-se aquele acórdão em oposição com o decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.07.2020, no proc. n.º 76/15.6SRLSB, do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa - Juiz ..., transitado em julgado em 06.08.2020.


2. São do seguinte teor as conclusões que os recorrentes extraíram da motivação que apresentaram (transcrição):


5.1. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA E TEMPESTIVIDADE


1. O presente recurso de fixação de jurisprudência é interposto ao abrigo do artigo 437, n.ºs 2 a 5, do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO.


2. Por força da remissão do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o STJ, previsto nos artigos 437.º e ss. do CPP, é aplicável a processos contraordenacionais.


3. A jurisprudência mais recente do STJ (citada no corpo deste requerimento) admite, de forma unânime, a interposição do recurso de fixação de jurisprudência para o STJ em processos contraordenacionais, através da aplicação subsidiária dos artigos 437.º e ss. do CPP.


4. Em primeiro lugar, porque também na área contraordenacional se impõe a exigência de uniformidade da jurisprudência dos tribunais superiores, como corolário do princípio do Estado-de-Direito, sob pena de os cidadãos não gozarem do mínimo de segurança jurídica, como sucede com os RECORRENTES, que assistiram à aplicação contraditória das mesmas normas legais, pelo mesmo Tribunal da Relação.


5. Em segundo lugar, porque tendo a Justiça atuado, neste processo contraordenacional, como um poder cerceado pelo poder administrativo, não é admissível, que estando em causa coimas de valor tão exorbitante, os RECORRENTES não tivessem sequer direito ao mínimo de segurança jurídica assegurado pela uniformização de jurisprudência.


6. Em terceiro lugar, o recurso de uniformização de jurisprudência previsto no RGCO (artigo 73.º, n.º 2, do RGCO) e os recursos para fixação de jurisprudência do CPP (artigos 437.º e ss. do CPP) são distintos e não têm a mesma finalidade.


7. Desde logo, os recursos de uniformização de jurisprudência previstos do RGCO são interpostos para a Relação e os recursos para fixação de jurisprudência do CPP são dirigidos ao Supremo Tribunal de Justiça.


8. Além disso, os pressupostos destes dois tipos de recurso são diferentes, uma vez que no recurso de uniformização de jurisprudência para a Relação previsto no artigo 73.º, n.º 2, do RGCO, basta que a questão suscitada seja relevante para a melhoria do direito ou para a promoção da uniformidade da jurisprudência, ao passo que no recurso de fixação de jurisprudência para o STJ previsto nos artigos 437.º e ss. do CPP, a admissibilidade do recurso pressupõe uma oposição direta e frontal de julgados.


9. Acresce que o âmbito e a eficácia do recurso de fixação de jurisprudência previsto nos artigos 437.º e ss. do CPP e do recurso para uniformização de jurisprudência previsto no artigo 73.º, n.º 2, RGCO são diferentes.


10. O recurso do artigo 73.º, n.º 2, do RGCO visa a uniformização da jurisprudência da 1.ª instância, ao passo que o recurso ao abrigo do artigo 437.º do CPP visa, exclusivamente, a uniformidade da jurisprudência dos Tribunais Superiores, sendo fundamental o acesso extraordinário ao egrégio STJ, para assegurar essa uniformidade.


11. Estes dois tipos de recurso diferenciam-se ainda, pelo facto de a jurisprudência fixada no âmbito do recurso previsto nos artigos 437.º e ss. do CPP não ser obrigatória para os tribunais inferiores, que devem fundamentar a divergência relativa à jurisprudência fixada, ao passo que as decisões proferidas nos recursos do artigo 73.º, n.º 2, do RGCO apenas têm “eficácia” no próprio processo.


12. Em quarto lugar, o recurso de revisão dos artigos 80.º e 81.º do RGCO tão-pouco obsta à aplicação dos recursos de fixação de jurisprudência do artigo 437.º do CPP aos processos de contraordenação, pois é evidente que se trata de tipos de recursos diferentes: o recurso de revisão do RGCO apenas visa a reapreciação de decisões definitivas nos casos elencados no n.º 1 do artigo 449.º do CPP e pode tratar de questões de facto, enquanto que o recurso de fixação de jurisprudência visa harmonizar a jurisprudência entre as Relações (e entre as Relações e o Supremo) e apenas pode versar sobre questões de direito.


13. O recurso de revisão do RGCO remete para o regime do recurso de revisão previsto nos artigos 449.º e ss. do CPP, sendo certo que, em processo penal o recurso de fixação de jurisprudência (artigos 437.º e ss. do CPP) e o recurso de revisão (artigos 449.º e ss. CPP) coexistem, sendo dois tipos de recursos extraordinários.


14. Em quinto lugar, é também necessário salientar que o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO não estabelece uma irrecorribilidade absoluta dos Acórdãos da Relação, desde logo porque se admite recurso para o Tribunal Constitucional.


15. Em sexto lugar, a proibição genérica de recurso das decisões da Relação nos processos contraordenacionais – que resultará do artigo 75.º do RGCO – apenas diz respeito a recursos ordinários e não a recursos extraordinários.


16. Em face do exposto, o presente recurso de fixação de jurisprudência deve ser admitido, ao abrigo do artigo 437.º do CPP.


5.2. PRESSUPOSTOS GERAIS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA


17. No caso concreto, estão reunidos todos os pressupostos para que o presente recurso de fixação de jurisprudência seja admitido, nos termos dos artigos 437.º e ss. do CPP.


18. Em primeiro lugar, os RECORRENTES têm legitimidade e interesse em agir, porque o ACÓRDÃO RECORRIDO confirmou a decisão do Tribunal de 1.ª instância que aplicou a processo urgente, cuja tramitação nunca esteve suspensa, a suspensão do prazo de prescrição, por causa da pandemia Covid-19, nos termos do artigo 7.º, n.º, 3 da Lei n.º 1-A/2020 (8).


19. Em segundo lugar, o ACÓRDÃO RECORRIDO já transitou em julgado.


20. Em terceiro lugar, o presente recurso assenta num ACÓRDÃO FUNDAMENTO transitado em julgado – proferido no âmbito da mesma legislação do que o ACÓRDÃO RECORRIDO –, que se debruça sobre a mesma questão jurídica controvertida, que o ACÓRDÃO RECORRIDO e a decide em sentido diametralmente oposto.


5.3. TEMPESTIVIDADE DO RECURSO


21. O presente recurso é apresentado tempestivamente, porquanto é interposto dentro dos 30 dias a contar do trânsito em julgado do ACÓRDÃO RECORRIDO, ou seja, o “acórdão recorrido proferido em último lugar”, nos termos do artigo 438.º, n.º 1, do CPP.


22. Os ora RECORRENTES interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional do ACÓRDÃO RECORRIDO da Relação de Lisboa, o que fez com que o prazo de interposição do recurso de fixação de jurisprudência fosse interrompido e a sua contagem apenas se reiniciasse com o trânsito em julgado do Acórdão do Tribunal Constitucional que apreciou o recurso interposto pelos ora RECORRENTES do Acórdão da Relação de Lisboa (artigo 75.º, n.º 1 da LTC).


23. Decorre do artigo 80º, nº 4, da LOTC, que o ACÓRDÃO RECORRIDO transitou em julgado, no dia 27 de setembro de 2022, data em que transitou em julgado o Acórdão do Tribunal Constitucional proferido sobre o recurso interposto, pelos RECORRENTES.


24. O Tribunal Constitucional e o Tribunal da Relação de Lisboa certificaram, através de certidões judiciais ora juntas, que o ACÓRDÃO RECORRIDO transitou em julgado, no dia 27 de setembro de 2022.


25. Por Decisão Singular de 11 de outubro de 2022, o Venerando Desembargador Relator decidiu e sublinhou que o ACÓRDÃO RECORRIDO transitou em julgado no passado dia 27 de setembro de 2022.


26. O prazo de 30 dias para a interposição do recurso de fixação de jurisprudência começou a contar, no dia 28 de setembro de 2022, pelo que o presente recurso é tempestivo (artigo 438º, nº 1, do CPP).


5.4. OPOSIÇÃO DE JULGADOS


27. A oposição entre o ACÓRDÃO RECORRIDO e o ACÓRDÃO FUNDAMENTO é direta e flagrante, já que estes arestos decidiram, de forma manifestamente contraditória, a mesma questão de direito, dentro do mesmo contexto processual.


28. Em ambos os casos, estava em causa a questão da aplicabilidade da suspensão “covidiana” dos prazos de prescrição, prevista no artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020.


29. Os dois acórdãos pronunciam-se sobre processos que têm, nos termos do artigo 103.º, n.º 1, do CPP, uma natureza urgente, tendo decidido sobre a questão da aplicação da suspensão “covidiana” dos prazos de prescrição (artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020), a processos urgentes.


30. Sucede que o ACÓRDÃO RECORRIDO e o ACÓRDÃO FUNDAMENTO decidiram esta questão, em sentidos diametralmente opostos.


31. O ACÓRDÃO RECORRIDO considerou que as novas causas de suspensão responderam a uma situação de emergência nacional e de calamidade provocada pela pandemia, que determinou a impossibilidade temporária do prosseguimento dos processos e que, por isso, “não existe obstáculo constitucional à aplicação destas (novas) causas de suspensão da contagem do prazo de prescrição a factos praticados em data anterior à entrada em vigor dos diplomas respectivos”.


32. Ou seja, nos termos do ACÓRDÃO RECORRIDO, a suspensão da contagem dos prazos de prescrição prevista no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 é aplicada retroativamente a factos anteriores e a processos pendentes, na data de entrada em vigor do referido Diploma.


33. Em sentido diametralmente oposto, o ACÓRDÃO FUNDAMENTO entendeu que a nova “suspensão covidiana” dos prazos de prescrição punha um problema de sucessão de leis no tempo e como tal não pode ser aplicada retroativamente.


34. Observa, e bem, o ACÓRDÃO FUNDAMENTO que “o facto de se tratar de uma Lei temporária não afasta a existência de uma situação de leis no tempo, não constituindo, sem mais, uma exceção ao princípio da não retroatividade da lei penal”.


35. Assim, é patente a oposição de julgados entre o ACÓRDÃO RECORRIDO e o ACÓRDÃO FUNDAMENTO.


36. No ACÓRDÃO RECORRIDO, estando em causa um processo urgente, foi decidida a aplicação retroativa do artigo 7.º, n.º 3 da Lei 1-A 2020 a factos anteriores e a um processo pendente aquando da entrada em vigor do respetivo Diploma, considerando que a tal não obstam os n.ºs 1, 3 e 4 do artigo 29 da CRP.


37. Por outro lado, no ACÓRDÃO FUNDAMENTO, também perante um processo urgente, enquadrando-se a situação como uma sucessão de leis no tempo, decidiu-se pela não aplicação retroativa do artigo 7.º, n.º 3 da Lei 1-A 2020, à luz do princípio da aplicação da lei mais favorável previsto no artigo 29.º, n.º4 da CRP.


38. Do acima exposto, também podemos concluir que a questão de direito e as situações de facto são efetivamente idênticas.


39. Estamos perante dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que se aprecia a aplicação da “suspensão covidiana” a processos declarados urgentes, em que não se suspenderam os prazos para a prática de atos processuais.


40. Os acórdãos foram também proferidos no domínio da mesma legislação, tendo ambos aplicado as mesmas normas jurídicas, ou seja, os n.ºs 1, 3, e 7 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, o artigo 103.º, n.º 1 do CPP e os n.ºs 1, 3 e 4 do artigo 29.º da CRP.


41. Em face do exposto, o presente recurso de fixação de jurisprudência deve ser admitido, ao abrigo do disposto nos artigos 437.º e ss. do CPP.


5.5. A APLICAÇÃO ERRADA DA SUSPENSÃO COVIDIANA DOS PRAZOS DE PRESCRIÇÃO A PROCESSOS URGENTES, EM MANIFESTA OPOSIÇÃO COM O ACÓRDÃO FUNDAMENTO


42. Os RECORRENTES entendem que, no ACÓRDÃO RECORRIDO, o Tribunal fez uma aplicação manifestamente errada da suspensão-Covid a um processo urgente, cuja tramitação nunca esteve suspensa, tendo violado as seguintes normas jurídicas: artigo 7.º, n.ºs 1, 3 e 7, da Lei 1-A/2020 e 29.º, n.ºs 1, 3 e 4 da CRP.


43. Em concreto, o ACÓRDÃO RECORRIDO entendeu aplicar a suspensão do prazo de prescrição, por causa da pandemia Covid-19, apesar da natureza urgente do processo e de por isso, a suspensão de prazos processuais Covid-19 não lhe ser aplicável.


44. O ACÓRDÃO RECORRIDO esqueceu-se que o legislador, no artigo 7º, nº 3, da Lei nº 1-A/2020, só estabeleceu a suspensão dos prazos de prescrição, porque e na medida em que suspendeu os prazos processuais, não fazendo qualquer sentido aplicar aquela suspensão dos prazos de prescrição a processos urgentes, cujos prazos processuais não suspenderam.


45. Note-se que in casu, está em causa um processo urgente, que continuou a tramitar normalmente e no qual foram praticados vários atos processuais, durante o período de suspensão previsto no artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, pelo que só com total violação do princípio da proporcionalidade se pôde aplicar esta restrição ao artigo 29.º, n.º 4, da CRP.


46. Ao aplicar erradamente a “suspensão covidiana” dos prazos de prescrição a um processo urgente, o ACÓRDÃO RECORRIDO está em oposição com o ACÓRDÃO FUNDAMENTO, que excluiu a aplicação daquela suspensão, em processo urgente.


Termos em que deve o presente recurso ser admitido, ser julgado procedente e fixada a seguinte jurisprudência: “A causa de suspensão dos prazos de prescrição prevista no n.º 3 do artigo 7.º da Lei 1-A 2020 não deve ser aplicada retroativamente a processos urgentes”.


3. O Ministério Público junto da Relação de Lisboa respondeu ao recurso, concluindo ser o mesmo intempestivo e não se verificar coincidência entre a questão de direito conhecida no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, pelo que os mesmos não acolhem soluções antagónicas da mesma questão fundamental de direito, inexistindo oposição de julgados, devendo o recurso ser rejeitado.


4. O Banco de Portugal respondeu ao recurso, concluindo que o mesmo deve ser rejeitado por não ser admissível e não se verificar oposição de julgados, por inexistir coincidência entre as questões de direito conhecidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento.


5. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), pronunciou-se igualmente pela intempestividade do recurso e não verificação do pressuposto da oposição de julgados, pugnando pela sua consequente rejeição.


6. Notificados os recorrentes da posição assumida pelo Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, para efeitos de contraditório, os recorrentes sustentaram a tempestividade do recurso e a verificação dos respetivos pressupostos substanciais, enquanto o Banco de Portugal acompanhou o sentido do parecer do Ministério Público.


7. Realizado o exame preliminar a que alude o artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP) e colhidos os vistos, cumpre decidir em conferência - decisão que, nesta fase, se circunscreve a aquilatar da admissibilidade ou rejeição do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. A questão objeto do recurso, nos termos em que os recorrentes a configuram nas conclusões da motivação, consiste em saber se existe oposição de julgados, justificativa do presente recurso extraordinário, entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, quanto à questão que consiste em saber se a causa de suspensão dos prazos de prescrição prevista no n.º 3, do artigo 7.º, da Lei 1-A 2020, deve ou não ser aplicada retroativamente a processos urgentes.


2. Estabelece o artigo 437.º do CPP, sob a epígrafe “Fundamento do recurso”:


«1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.


2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.


3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.


4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.


5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.»


O recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, devendo o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, bem como justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência (n.ºs 1 e 2 do artigo 438.º do CPP).


Os artigos 437.º e 438.°. n.ºs 1 e 2, do CPP, assim como a jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, fazem depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dos seguintes pressupostos (vd., por todos, Pereira Madeira, Código de Processo Penal, Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016, 2.ª ed. Revista, p. 1438 e ss.; acórdão de 29.10.2020, proc. 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1, em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação):


a) Formais:


1. legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público);


2. interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;


3. identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se publicação houver;


4. trânsito em julgado do acórdão fundamento.


b) - Substanciais:


1. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;


2. a identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;


3. a oposição deve verificar-se entre duas decisões sobre a mesma ou as mesmas questões de direito e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra (exige-se que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções opostas para a mesma questão fundamental de direito);


4. que as decisões em oposição sejam expressas e não meramente tácitas ou implícitas;


5. a identidade de situações de facto - que os dois acórdãos assentem em soluções opostas da mesma questão de direito a partir de idêntica situação de facto.


2. Entre os requisitos de ordem formal, questiona-se, apenas, no caso vertente, a tempestividade do recurso, sendo certo que o acórdão fundamento, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.07.2020, proferido no proc. n.º 76/15.6SRLSB, do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa - Juiz 2, transitou em julgado em 06.08.2020.


Como já se disse, o prazo de interposição deste recurso extraordinário é de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (artigo 438.º, n.º1, do CPP), que é o acórdão recorrido.


Os recorrentes apresentaram o recurso no dia 27.10.2022.


Do acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 02.12.2021, os recorrentes reagiram através dos seguintes três procedimentos, todos apresentados em 21.12.2021:


I- Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), na parte em que se pronunciou sobre a invocada prescrição do procedimento contraordenacional;


II- Recurso para o Tribunal Constitucional (TC), por considerarem que a decisão punha em causa normas e direitos de índole constitucional;


III- Arguição de nulidades do acórdão, junto do Tribunal da Relação de Lisboa.


O recurso ordinário interposto para o STJ foi rejeitado por despacho proferido na Relação de Lisboa, datado de 10.01.2022. Desta decisão houve reclamação para o Presidente do STJ.


Seguidamente, a Relação de Lisboa, por acórdão datado de 27.01.2022, indeferiu a arguição de nulidade do acórdão proferido em 2.12.2021.


No TC, pela Decisão Sumária n.º 221/2022, da 3.ª Secção, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto dos recursos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), uma vez que a decisão recorrida, no momento da interposição dos recursos, não era ainda definitiva na ordem jurisdicional respetiva. Nenhum dos recorrentes reclamou da Decisão Sumária n.º 221/2022.


Por decisão singular do Vice-Presidente do STJ, datada de 21.02.2022, foi indeferida a reclamação do despacho do Tribunal da Relação de Lisboa que havia rejeitado o recurso para o STJ, confirmando-se a inadmissibilidade do recurso para aquele tribunal.


Desta decisão, recorreram os arguidos para o TC. Através da Decisão Sumária n.º 337/2022, da 3.ª Secção, decidiu-se não julgar inconstitucional a norma, decorrente do artigo 75.º do RGCO, segundo a qual, em processo contraordenacional, não cabe recurso das decisões da 2.ª instância e, consequentemente, negar provimento ao recurso.


A Decisão Sumária n.º 337/2022 foi objeto de reclamação para a conferência, tendo sido integralmente confirmada pelo Acórdão n.º 459/2022, da 3.ª Secção, de 24.06.2022, que não julgou inconstitucionais as normas então sindicadas e, assim, manteve a decisão de rejeição do recurso para o STJ.


Os arguidos recorreram uma vez mais para o TC, do acórdão da Relação de Lisboa de 02.12.2021, mediante requerimentos que deram entrada nos dias 13.07.2022 e 14.07.2022.


Através da Decisão Sumária n.º 496/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 78.º-A, da LTC, não tomar conhecimento do objeto dos recursos, por se entender que o prazo de recurso para o TC do acórdão do Tribunal da Relação, datado de 02.12.2021, começou a contar da notificação da decisão do STJ, de 21.02.2022, que indeferiu a reclamação do despacho que não admitiu o recurso para aquele tribunal, pois por ser essa a decisão definitiva na ordem judiciária respetiva, “é esse o momento que, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º da LTC, determina o termo inicial do prazo de recurso”.


A referida Decisão Sumária n.º 496/2022 foi objeto de reclamações para a conferência, tendo sido confirmada pelo Acórdão n.º 546/2022, de 29.08.2022, que indeferiu na totalidade as reclamações deduzidas.


Nesse acórdão, afastou-se o entendimento dos recorrentes, no sentido de que apenas após a prolação da última decisão do TC relativa ao recurso da referida decisão do STJ, em sede de reclamação, de 21.02.2022, ou seja, apenas com a prolação do Acórdão n.º 459/2022 teria começado a contar o prazo para a interposição do recurso de constitucionalidade relativo ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2.12.2021, o que importaria a tempestividade dos recurso interpostos em 13 e 14 de julho de 2022.


Entendeu o TC que nos casos em que da decisão recorrida – acórdão da Relação - tenha sido interposto recurso ordinário, rejeitado com fundamento em irrecorribilidade por despacho de que se reclamou para o STJ, reclamação que foi indeferida por decisão que, por sua vez, foi objeto de recurso de constitucionalidade, a definitividade a que alude o n.º 2 do artigo 75.º da LTC não corresponde ao momento do trânsito em julgado da decisão relativa à irrecorribilidade, mas sim ao momento em que tenha sido proferida a última palavra das instâncias quanto à irrecorribilidade do acórdão sindicado.


No caso, essa última palavra foi a decisão do Vice-Presidente do STJ, datada de 21.02.2022.


Foram subsequentemente apresentados dois requerimentos no TC: solicitando a reforma quanto a custas; solicitando, ao abrigo do disposto no artigo 79.º-A, da LTC, que o Presidente do Tribunal Constitucional provocasse a intervenção do plenário e, subsidiariamente, a arguir a nulidade do Acórdão n.º 546/2022.


Pelo Acórdão n.º 620/2022, de 27.09.2022, o TC decidiu:


«a) Indeferir o pedido de reforma quanto a custas;


b) Que, extraído traslado dos presentes autos, sejam os mesmos remetidos ao tribunal recorrido a fim de aí prosseguirem os seus normais termos;


c) Que apenas depois de pagas as custas devidas pelos recorrentes, se a tal pagamento houver lugar, seja dado seguimento, no translado a extrair, ao incidente suscitado pelos recorrentes e a outros que porventura sobrevenham; e


d) Consignar que, com a prolação do presente acórdão, se considera transitado em julgado o Acórdão n.º 546/2022.»


*


Entendem os recorrentes que a data do trânsito em julgado a considerar é a de 27.09.2022.


Por seu lado, o Ministério Público junto da Relação de Lisboa e neste Supremo Tribunal, bem como o Banco de Portugal, pronunciaram-se no sentido da intempestividade do recurso.


Importa reter que AA, aqui recorrente, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, no dia 26.09.2022, com o mesmo fundamento e em sentido idêntico ao do presente, assumindo como data do trânsito em julgado do acórdão recorrido – o supra referido acórdão da Relação de Lisboa, de 02.12.2021 – a de 11.07.2022, por ser essa a data do trânsito do Acórdão n.º 459/2022, que indeferiu a reclamação para a conferência e confirmou a Decisão Sumária n.º 337/2022.


Esse recurso extraordinário para fixação de jurisprudência não foi admitido, por despacho de 24.10.2022, por ser tido como intempestivo.


Desse despacho reclamou o recorrente AA, vindo a ser indeferida a reclamação, por decisão do Vice-Presidente do STJ (apenso J), datada de 27.11.2022, por se entender que o acórdão da Relação de Lisboa, de 2.12.2021, havia transitado em 27.09.2022, sendo a partir da mesma que se contam os trinta dias para interposição de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.


O mesmo aconteceu com os recursos extraordinários interpostos pelos demais arguidos/recorrentes, em 26.09.2022, igualmente não admitidos por intempestividade, tendo sido apresentadas reclamações da não admissão, apreciadas e decididas pelo Juiz Conselheiro Vice-Presidente do STJ no sentido de que o acórdão da Relação, de 2.12.2021, transitou em 27.09.2022, sendo a partir dessa data que se contam os trinta dias para a interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.


Adiante-se, outrossim, que a Relação de Lisboa, por decisão de 11.10.2022, que julgou improcedente a invocada prescrição do procedimento contraordenacional, considerou expressamente, na respetiva fundamentação, que o acórdão de 2.12.2022 transitou em julgado em 27.09.2022, estando isso mesmo certificado nos autos.


Conforme já se assinalou, o Acórdão do TC n.º 546/2022 considerou que a “definitividade” prevista no n.º 2 do artigo 75.º da LTC não se confunde com o trânsito em julgado da decisão. “Definitiva”, para os efeitos de referido preceito, é a última decisão a proferir sobre a questão da recorribilidade, não tendo esta expressão o significado de “após transitada em julgado” (cf. Carlos Lopes do Rego, Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 199/200), como se o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional só se iniciasse a partir desse momento. Pelo contrário, o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe que a decisão seja definitiva, mas ainda não transitada em julgado.


Por conseguinte, ao assumir que a definitividade do acórdão da Relação de Lisboa, de 2.12.2021, para aqueles efeitos, corresponde ao momento em que foi proferida a última palavra das instâncias quanto à irrecorribilidade do acórdão sindicado, o que fez corresponder à decisão do Juiz Conselheiro Vice-Presidente do STJ, datada de 21.02.2022, o TC partiu necessariamente do pressuposto de que essa data não é a do trânsito em julgado do mencionado acórdão.


Não se ignora que o STJ, a propósito do recurso para fixação de jurisprudência, ou de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo, tem vindo a densificar o conceito de trânsito em julgado, para efeitos de contagem do prazo de interposição de tais recursos. Conforme jurisprudência uniforme do STJ, uma decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 628.º, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º, do CPP).


Diz-se no acórdão de 11.03.2021, proferido no processo n.º 130/14.1PDPRT.P1.S1:


«Atendendo aos relevantes efeitos associados ao trânsito em julgado [como seja, a exequibilidade da decisão (artigo 467.º, n.º 1, do CPP), o prazo para interposição de recursos extraordinários (artigos 438.º, n.º 1 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP), ou momento a partir do qual se iniciam os prazos de contagem de prescrição da pena (artigo 122.º, n.º 2, do CP), bem como, os institutos do caso julgado ou ne bis in idem, o mesmo desempenha uma relevante função de acautelamento da segurança jurídica.


É, justamente, a previsibilidade, estabilidade e segurança, no firmamento da data do trânsito em julgado, que o Supremo Tribunal de Justiça tem invocado para decidir que “a reclamação (apresentada ao abrigo do disposto no artigo 405.º, do CPP) do despacho que não admitiu o recurso não tem qualquer reflexo no trânsito em julgado do acórdão da Relação” (ac. STJ, Rel. Helena Moniz, 26.11.2020, Proc. n.º 775/18.0T9LRA-B.S1 - 5.ª Secção), pois que, “a decisão do presidente do Supremo que indefere a reclamação da decisão que não admite o recurso limita-se a declarar e confirmar a «insusceptibilidade» do recurso, a qual, ao nível do trânsito do acórdão recorrido, se deverá reportar ao momento em que o recurso já não é legalmente possível. Isto é, o acórdão transitou «logo que», no caso, se esgotou a possibilidade de recorrer por a lei não admitir recurso” (ac. do STJ, Rel. Lopes da Mota, 22.01.2020, Proc. n.º 1784/17.2T9AMD.L1-B.S1 - 3.ª Secção).


Num plano mais lato, o que se sustenta é que no caso em que o recurso não é admissível para o Supremo Tribunal de Justiça, a decisão transita a partir do momento em que já não é possível reagir processualmente à mesma, estabilizando-se o decidido, pelo que, no caso de “decisões que não admitam recurso, o trânsito verifica-se findo o prazo para arguição de nulidades ou apresentação de pedido de correcção (arts. 379.º, 380.º e 425.º, n.º 4, do CPP), ou seja, o prazo-regra de 10 dias fixado no n.º 1 do art. 105.º do CPP, em caso de não arguição ou de não apresentação de pedido de correcção” e, em caso de arguição, após o trânsito da decisão que conhece da arguição (ac. do STJ, Rel. Lopes da Mota, 22.01.2020, Proc. n.º 1784/17.2T9AMD.L1-B.S1 - 3.ª Secção), data a partir do qual se inicia a contagem do prazo dos recursos extraordinários que pressupõe o trânsito em julgado (ac. STJ, Rel. Clemente Lima, 14.03.2019, Proc. n.º 740/12.1GELLE.E1-A.S1 – 5.ª Secção). Deste modo, impede-se a abertura de “uma nova via para prolongar, ou seja, alterar, os prazos legalmente estabelecidos” (ac. STJ, Rel. Helena Moniz, 22.09.2016, Proc. n.º 43/10.6ZRPRT.P1-D. S1 - 5.ª Secção).»


Julgamos, porém, não ser de questionar, in casu, a tempestividade do recurso em apreço.


Realmente, a data do trânsito em julgado do acórdão recorrido está certificada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.


A Relação, por decisão de 11.10.2022, que julgou improcedente a invocada prescrição do procedimento contraordenacional, considerou, na respetiva fundamentação, como já se disse, que o acórdão recorrido transitou em julgado em 27.09.2022.


Essa é, igualmente, a data que, nas reclamações apreciadas neste STJ, é assinalada, nas respetivas decisões, como a do trânsito em julgado do acórdão recorrido e dies a quo do início do prazo de interposição do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.


Neste quadro, entendemos não ser de retomar o debate sobre a data do trânsito em julgado do acórdão da Relação de Lisboa, de 2.12.2021, depois de não terem sido admitidos os recursos anteriores por alegadamente serem prematuros (interpostos em 26.09 quando se entendeu, como se diz nas supra mencionadas reclamações, que o acórdão transitou no dia seguinte, em 27.09), razão por que se tem, sem mais considerações, o recurso como tempestivo.


3. Preenchidos os pressupostos de ordem formal, impõe-se verificar agora o preenchimento dos supra indicados pressupostos substanciais, que se verificam quando: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, quando entre os dois acórdãos haja “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas – oposição entre decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas; e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.


A questão de direito que vem identificada no recurso traduz-se em saber se a causa de suspensão dos prazos de prescrição prevista no n.º 3, do artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, deve ou não ser aplicada retroativamente a processos urgentes.


A referida Lei n.º 1-A/2020 enquadra-se na chamada legislação COVID-19, que estabeleceu “medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.


Na sua versão inicial, o artigo 7.º, n.º3, estabelecia:


“3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.”


O texto do n.º3 manteve-se com a Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.


Esta disposição foi revogada pelo artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, que no respetivo artigo 5.º estabeleceu:


“Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.”


Numa primeira aproximação, poderia parecer que, estando fundamentalmente em causa a interpretação de normas constantes dos diplomas legais de índole excecional publicados durante a referida pandemia do COVID-19, mais concretamente do mencionado artigo 7.º, n.º3, que determinou a suspensão do decurso dos prazos de prescrição e caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, seria de entender que os acórdãos em confronto se movem no quadro da mesma legislação.


Porém, não é assim, como passaremos a demonstrar, não existindo identidade quanto à questão fundamental de direito, nem das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos.


No que concerne ao acórdão fundamento, constata-se que, no âmbito do Processo Abreviado n.º 76/15.6SRLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa – J2, o Ministério Público promoveu a devolução dos mandados de detenção emitidos para cumprimento da prisão subsidiária por entender que a pena de multa aplicada nos autos estava prescrita.


Por despacho de 13.05.2020 foi indeferida o promovida devolução dos mandados de detenção, por se entender que a causa de suspensão dos prazos de prescrição prevista na Lei n.º 1-A/2020 era aplicável a todos os processos em curso, determinando que o prazo de prescrição da pena devesse ser alargado pelo período em que perdurasse a referida causa de suspensão, a qual ainda não havia cessado.


Desse despacho foi interposto recurso pelo Ministério Público, por entender que a pena de multa aplicada nos autos tinha prescrito pelo decurso do prazo máximo de prescrição da pena, defendendo que a suspensão dos prazos de prescrição prevista no artigo 7.°, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, apenas era aplicável aos factos praticados na sua vigência, por força dos princípios da não retroatividade da lei penal e da aplicação da lei mais favorável.


O recurso em causa foi apreciado e decidido pelo acórdão da Relação de Lisboa indicado como acórdão fundamento, que decidiu: “Conceder provimento ao recurso e em consequência revogar o despacho recorrido, o qual terá de ser substituído por outro que declare a prescrição da pena de multa a que o arguido foi condenado nestes autos e, em consequência, ordenada a imediata recolha dos mandados de detenção para cumprimento de prisão subsidiária emitidos.”


A sustentar a sua decisão, entendeu o acórdão fundamento:


«Com a Lei n.º 1-A/2020, posteriormente Lei n.º 4-A/2020, no seu art.º 7.º criou-se uma nova causa de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança, a par das indicadas no artigo 125.º do Código Penal.


Porém, tal como consta do estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, a aplicação deste normativo, no âmbito penal tem de ser efetuada no quadro sistémico de todo o ordenamento jurídico, designadamente efetuando-se uma leitura e aplicação conforme ao Código Penal e à Constituição da República Portuguesa, devendo às normas respeitantes à prescrição (do procedimento ou da pena) ser sempre aplicado o princípio da maior favorabilidade para o arguido (artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal).


A Ex.ma Juiz “a quo” decidiu que tal nova causa de suspensão da pena (prevista na Lei n.º 1- A/2020) se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso, o que lhe confere um efeito retroativo proibido por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, porque mais gravoso para a situação processual do arguido, alargando a possibilidade da sua punição/execução.


O n.º 6 do artigo 19.º da CRP expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar [...] a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos [...]», tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do artigo 2.° da Lei n.º 44/86 e expresso nos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.°, n.º 1), e 17-A/2020, de 2.IV, que o renovou (artigo 7.°, n.º 1).


E que o facto de se tratar de uma Lei temporária não afasta a existência de uma situação de sucessão de leis no tempo, não constituindo, sem mais, uma exceção ao princípio da não retroatividade da lei penal.


Como se afirma no estudo referido: Recorde-se que, nos termos previstos no artigo 3.º do Código Penal, o tempus delicti é o momento em que o agente atuou ou, no caso de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido. É esse (e não o da consumação do crime, que pode ser posterior ao da atuação do agente, ou, no caso da condenação, o do trânsito em julgado) o momento para determinação da lei penal aplicável.


Entender que a nova causa de suspensão do procedimento criminal se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso seria conferir-lhe um efeito retroativo proibido, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, porque mais gravoso para a situação processual do arguido, alargando a possibilidade da sua punição.


O mesmo se diga relativamente a quaisquer penas ou medidas de segurança já aplicadas ou que venham ser aplicadas por crimes em que o tempus delicti é anterior à vigência da Lei n.º 1- A/2020.


Note-se que o n.º 6 do artigo 19.º da CRP expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar […] a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos […]», tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 44/86. Assim ficou igualmente expresso nos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.º, n.º 1), 17-A/2020, de 2 de abril (artigo 7.º, n.º 1), e 20-A/2020, de 17 de abril (artigo 6.º, n.º 1), que o renovaram .


A nova causa de suspensão do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança apenas poderá, então, ser aplicada para os factos praticados na sua vigência.


No caso em análise, a situação jurídico-fáctica já se encontrava a decorrer e a lei nova (temporária) vem agravar a situação do arguido, ainda que de forma temporária e decorrente das excepcionais exigências do combate à pandemia COVID-19.


Assim, como bem refere o Digno Recorrente, e independentemente de se tratar de uma lei temporária ou não, sempre configurará uma situação de sucessão de leis penais no tempo, pelo que a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável em bloco ao arguido. O regime em bloco mais favorável ao arguido é sem dúvida manter como únicas causas de suspensão da prescrição da pena as previstas no artigo 125.º do Código Penal, afastando-se a aplicação ao caso concreto do artigo 7.º da Lei n.º1-A/2020, esta última sem dúvida mais gravosa para o arguido.


Nestes termos e em obediência ao princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido, o prazo máximo de prescrição da pena de multa a que foi condenado já foi atingido, motivo pelo qual o recurso terá de proceder e em consequência revogar-se o despacho recorrido, o qual terá de ser substituído por outro que declare a prescrição da pena de multa a que o arguido foi condenado nestes autos e, em consequência, ordenada a imediata recolha dos mandados de detenção para cumprimento de prisão subsidiária emitidos.»


Está em causa, claramente, no acórdão fundamento, a interpretação do n.º 3, do artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, no âmbito da prazo de prescrição da pena, rejeitando-se, em função de princípios inerentes ao direito penal, a sua aplicação a prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena quando os factos tenham sido praticados anteriormente à sua vigência. No quadro do entendimento perfilhado pelo acórdão fundamento, é indiferente a natureza urgente ou não urgente do processo, verificando-se, aliás, que a natureza urgente apenas foi atribuída no dispositivo do próprio acórdão fundamento, para que o processamento dos autos fosse efetuado durante o período de férias judiciais de verão.


Quer isto dizer que, para o acórdão fundamento, a não aplicação da suspensão determinada pelo referido artigo 7.º, n.º3, aos prazos de prescrição do procedimento criminal e da pena (no caso, era a prescrição da pena que estava em causa) nada tem a ver com a natureza urgente ou não urgente do processo, mas antes e exclusivamente com a sua natureza penal / criminal, pelo que falece razão aos recorrentes quando colocam no centro da solução jurídica alegadamente em oposição nos dois arestos a questão da urgência do processo.


O acórdão recorrido, por sua vez, reporta-se ao domínio do direito contraordenacional, mais concretamente a contraordenações previstas no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de dezembro (RGICSF).


Lê-se no acórdão recorrido:


«III.5.2.1. DA APLICAÇÃO DAS CAUSAS DE SUSPENSÃO DE CONTAGEM DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO PREVISTAS NOS NÚMEROS 2 DO ARTIGO 7.º DA LEI N.º 4-B/2020, DE 06/04 E DO ARTIGO 6.ºB DA LEI N.º 4-B/2021, DE 01/02 (A CHAMADA “LEGISLAÇÃO COVIDIANA”).


(…)


Na decisão sob recurso sentença entendeu-se que ao prazo máximo de prescrição, sucessivamente interrompido, de sete anos e meio, num total de oito anos – acrescem “86 dias da suspensão covidiana, 6 meses pela pendência dos autos em juízo e o demais prazo que a computar, por força da nova lei covidiana de 2021, iniciado em 22 de Janeiro de 2021 e cessado em 5 de Abril de 2021”.


Como é sabido, esta Secção do Tribunal da Relação já por diversas vezes se pronunciou acerca de tal questão, e designadamente nos Acórdãos proferidos nos processos 164/10.0YUSTR.L1, 124/18.8YUSTR.L2, 178/20.7YUSTR.L1 e 309/20.7YUSTR sempre no mesmo sentido da aplicação da suspensão do prazo de prescrição previsto na legislação referida aos processos pendentes.


Firmou, pois, esta Secção do Tribunal da Relação de Lisboa jurisprudência no sentido da conformidade constitucional das leis temporárias decorrentes da situação de pandemia, que operaram a suspensão dos prazos processuais e substantivos, esclarecendo-se que a causa de suspensão (a primeira com a duração de 86 dias, a segunda com a duração de 74) respondeu a uma situação de emergência nacional e de calamidade provocada pela pandemia, um estado de exceção constitucional, com previsão no artigo 19.º da Constituição, que determinou a impossibilidade temporária do prosseguimento dos processos, aplicando-se as normas dos artigos 7.º/3 da Lei 1-A/2020 e 6.ºB da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, não retroativamente, mas apenas para o futuro aos processos de contraordenação pendentes.


Entendeu-se que, pelo menos no âmbito do ilícito de mera ordenação social, não existe obstáculo constitucional à aplicação destas (novas) causas de suspensão da contagem do prazo de prescrição a factos praticados em data anterior à entrada em vigor dos diplomas respectivos, existindo normas de direito transitório que apontam expressamente neste sentido - o n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2020, de 06/04, e o n.º 3 do artigo 6.º B da Lei n.º 4B/2021, de 01/02 -, em particular os artigos 6.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, e 5.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, já citados.»


Citando o acórdão da mesma Secção, proferido no âmbito do processo n.º 309/20.7YUSTR.L1, refere-se:


«A necessária distinção face à área estritamente penal acarreta, claramente e de imediato, na situação que nos ocupa, o afastamento da exceção garantística lançada no n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, «Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência» (e no n.º 6 do art. 19.º da Constituição da República Portuguesa), ou seja, o alijamento da asseguração da não retroatividade da lei criminal no quadro do estado de emergência. É assim, porque nos encontramos, nesse âmbito normativo, no núcleo mais sensível do travejamento do sistema, ou seja, num quadro de esforço de protecção dos derradeiros e mais importantes valores humanos num contexto de exceção absoluta, guardando-os como quem, despojado de tudo, tenta salvar as suas derradeiras referências individuais, i.e, um pequeno cofre existencial comprimido pela emergência. Trata-se de restrição que protege a liberdade individual e não o património (afinal o único bem atingido pela sanção contra-ordenacional).


A questão suscitada foi já avaliada por este Tribunal nos recursos de contraordenação nºs 164/19.0YUSTR.L1 e 124/18.8YUSTR.L2.


A fundamentação aí lançada sustentou-se em algumas noções que merecem reverberação porque ajustadas ao que cumpre avaliar.


São elas:


1.- O quadro motivador da norma questionada é de excepção constitucional, ou seja, de parêntesis na tutela dos direitos, liberdades e garantias;


2.- A vigência do dispositivo é transitória;


3.- O mecanismo excepcional funciona por reforço do poder público;


4.- Tal mecanismo é instrumental fazendo corresponder a uma situação de ruptura e anormalidade uma solução orientada para a consecução da sua cessação;


5.- Tem expressão em diversas normas constitucionais e numa lei aglutinadora de soluções;


6.- A suspensão de direitos não é incondicional e irrestrita devendo, entre outros, respeitar, desde a declaração à execução, o princípio da proporcionalidade e da necessidade estrita, tudo nos termos do estabelecido no n.º 4 do já invocado art. 19.º da Lei Fundamental;


7.- A baliza instrumental corresponde ao «pronto restabelecimento da normalidade constitucional» – ibidem;


8.- A medida de suspensão dos prazos de prescrição tem relação umbilical com a crise sanitária sendo proporcionada à enormidade e carácter inusitado dos efeitos da pandemia;


9.- O n.º 1 do artigo 27.º-A do RGCO contém, a propósito da suspensão, enunciado não taxativo, ao ressalvar os casos previstos na lei;


10.- A dispersão normativa assim admitida não agride os princípios da legalidade e sua derivada tipicidade que requerem enunciado, verbalização precisa, mas não exigem concentração das fórmulas ou carácter coevo do enunciado podendo, pois, a norma constar de um diploma autónomo e ser posterior;


11.- O Decreto-Lei que aprovou o RGCO (n.º 433/82) não tem, sequer, superior grau hierárquico face à Lei n.º 1-A/2020 e poderia até, numa perspectiva de hierarquia de leis, ser por ele revogado;


12.- Não estamos perante retroatividade direta ou de primeiro grau, no sentido de aplicação de regra nova a contexto passado mas face a aplicação de preceito a quadro temporal futuro relativo a realidade contemporânea – a pendência processual;


13.- Não há arbitrariedade, surpresa, desproporção ou um gorar de expectativas, logo não há inconstitucionalidade;


14.- O princípio da confiança não reclama que se materialize a possibilidade de serem conhecidas todas as causas de suspensão do prazo de prescrição no momento da consumação;


15.- Se assim não fosse, estaria retirado ao Estado a possibilidade de reagir em emergência perante situação física portadora de particular gravidade e, obviamente, imprevisível no momento dessa consumação;


16.- O carácter inusitado do facto genésico da medida que impossibilitou temporariamente o exercício da acção punitiva impõe uma reanálise dos quadros teóricos.


Assim é.


Particularmente, quanto a este último ponto, é crucial ter presente que tese oposta representaria a total artificialização, manietação e secundarização da acção legislativa e da possibilidade de exercer a actividade política e de governação. Pois se o legislador não pudesse responder de emergência a uma situação de grave risco colectivo que, sem paralelo, ponha em causa toda a sociedade e as suas estruturas básicas de sustentação, então teríamos que concluir que estaríamos a levar a tutela de direitos ao estertor, ao domínio da impossibilidade, por se preferir a extinção da sociedade que tutela o direito à sua suspensão temporal e constitucionalmente enquadrada.


Ficaríamos, por exemplo, sem poder responder à pandemia com potencial de extinção da espécie, ao sismo de dimensões bíblicas ou à imaginada deriva da «jangada de pedra».


Salvo o respeito devido, não parece ter sentido o maximalismo analítico que coloque a recusa da sujeição a uma coima acima da resposta colectiva a uma pandemia, que se aproveite da inoperabilidade ou do desmantelamento do sistema punitivo para evitar a punição do ilícito efectivamente cometido.


Não se divisam argumentos que abalem o ora dito e o já consignado anteriormente por este órgão jurisdicional.


A inexistência de uma verdadeira retroatividade e o carácter específico da jurisdição de mera ordenação social afastam liminarmente que se possa equacionar uma violação do disposto no n.º 4 do 29.º da CRP.»


Mais adiante, o acórdão recorrido recorda as decisões do TC, proferidas no âmbito dos processos 367/2021 (Acórdão n.º 660/2021, de 29 de julho de 2021), 353/2021 (Acórdão n.º 500/2021 de 09.07.2021) e 164/2021 (Acórdão n.º 798/2021), todas relativas a ilícitos contraordenacionais.


Ainda que se extraia de diversas considerações expendidas ao longo do acórdão recorrido o entendimento de que a mesma interpretação será aplicável independentemente da natureza criminal ou contraordenacional dos procedimentos, certo é que o dito acórdão reporta-se, em concreto, a procedimento contraordenacional e não deixa de assinalar, como já se disse, constituir jurisprudência da Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, da Relação de Lisboa, que, “pelo menos no âmbito do ilícito de mera ordenação social, não existe obstáculo constitucional à aplicação destas (novas) causas de suspensão da contagem do prazo de prescrição a factos praticados em data anterior à entrada em vigor dos diplomas respectivos”(sublinhado nosso).


Mais adiante, afirma o acórdão recorrido que o legislador não estabeleceu, no tocante à suspensão dos prazos de prescrição, qualquer diferença entre processos urgentes ou não urgentes, “diversamente do que sucedeu no que respeita à prática de atos processuais e procedimentais, e até aos prazos estritamente processuais”.


Acresce que a aplicação da suspensão estabelecida pelo mencionado artigo 7.º, n.º 3, surge, no contexto do acórdão recorrido, como um dos fundamentos da decisão e não como o único e determinante fundamento.


Diz-se no acórdão recorrido:


«(…) sucede que no decurso do prazo de prescrição de qualquer uma das infracções imputadas previstas no RGICSF entrou em vigor em 23.11.2014, o Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24.10.2014.


Tal diploma foi publicado na sequência da crise financeira ocorrida nos anos anteriores à sua publicação, crise que pôs em causa a confiança necessária à actividade bancária - pois é com base nela que todo o sistema funciona – por força das inúmeras falhas, designadamente de natureza humana, que foram, então, assinaladas.


(…)


O Dec. Lei n.º 157/2014 já mencionado, publicado no uso da autorização legislativa da Lei n.º 64/2014, de 28.07, procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 2013/36/UE, introduzindo no ordenamento jurídico nacional as alterações necessárias à implementação das normas previstas na mesma, respeitando assim os compromissos assumidos pelo Estado Português nesta matéria.


Procurou-se tornar o regime sancionatório previsto no Regime Geral mais adequado e eficiente, introduzindo algumas alterações no mesmo com o intuito de contribuir para a agilização do processo de contraordenação e ao robustecimento do poder interventivo do Banco de Portugal, sem contudo prejudicar os direitos e as garantias de defesa do arguido, em linha com os referidos diplomas europeus.


Ora, com a entrada em vigor do citado diploma, o artigo 209.º do RGICSF passou a prever que “sem prejuízo de outras causas de suspensão ou de interrupção da prescrição, a prescrição do procedimento por contraordenação se suspende a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão que aplique sanção até à notificação da decisão final do recurso, não podendo tal suspensão ultrapassar os 30 meses, caso a infração seja punível com coima até (euro) 1 500 000, tratando-se de pessoas coletivas, ou com coimas até (euro) 500 000, tratando-se de pessoas singulares, ou cinco anos, caso a infração seja punível com coima superior àqueles montantes, sendo estes prazos elevados para o dobro se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional.”


O prazo de suspensão do procedimento contra-ordenacional a que já anteriormente fizemos referência e que encontrava previsão apenas no artigo 27.ºA, n.º 1, al. c) do RGCO sofreu pois um alargamento para trinta meses ou cinco anos consoante os casos ali previstos.


Estabelecem agora os números 4, 5 e 6 do artigo 209.º, n.º 4 do RGICSF que a suspensão resultante da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão que aplique a sanção, até à notificação da decisão final do recurso, atentas as coimas abstractamente aplicáveis, não pode ultrapassar os trinta meses, nos casos do n.º 5 do artigo 209.º, e os cinco anos, naqueles previstos no artigo 209.º, n.º 6.


Assim, em vez do prazo de suspensão de seis meses, temos agora, no que concerne às infracções previstas no RGICSF, o prazo de suspensão de, pelo menos, trinta meses, que acresce ao já mencionado prazo de sete anos e meio, e aos períodos da suspensão “Covid” a que nos referimos.


Ora, em face da jurisprudência citada e muito recente do Tribunal Constitucional em matéria de aplicação aos processos pendentes em matéria de causas e prazos de suspensão do procedimento contra-ordenacional decorrentes da legislação publicada por força da pandemia que tem assolado o mundo, e dos argumentos ali invocados, não encontramos razão que justifique a não aplicação do prazo mais longo de suspensão, desde logo atenta a natureza contraordenacional (e não criminal) das infracções em causa, e bem assim a circunstância de se tratar disso mesmo, de um alargamento do prazo de suspensão, e não de uma causa de interrupção, não inutilizando o tempo decorrido até à sua entrada em vigor, apenas se aplicando para o futuro desde a data da entrada em vigor do diploma que prevê tal alargamento.


(…)


Ora, perante a entrada em vigor do Dec. Lei n.º 157/2014 citado, que como vimos, ampliou o prazo de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional relativo às infracções previstas no RGICSF, em face da configuração dos ilícitos levada a cabo na sentença recorrida e não tendo, à data de tal entrada em vigor, decorrido o prazo de prescrição contado do termo das condutas ilícitas imputadas, a aplicação do novo prazo de suspensão não comporta qualquer ilegalidade e muito menos qualquer inconstitucionalidade.


A este quadro acrescem as suspensões de contagem prazo impostas no contexto da adopção de medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica que já fizemos referência, que, como vimos, perfaz um período global de suspensão de 160 dias.


Tudo visto, importa concluir que perante os factos e o enquadramento jurídico realizados na sentença recorrida, a prescrição não ocorreu relativamente a qualquer dos ilícitos imputados e previstos no RGICSF.»


Confrontando os dois arestos, verificamos que, sem margem para dúvidas, estamos perante realidades factuais e jurídicas distintas.


Enquanto no acórdão fundamento decidiu-se que a suspensão prevista no aludido artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020, reportada à prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança, apenas poderá ser aplicada, em nome de princípios de direito penal com assento constitucional, quando estejam em causa factos praticados na sua vigência, razão por que se entendeu que a pena de multa ali em causa estava prescrita, o acórdão recorrido, por sua vez, refere-se à prescrição do procedimento por ilícitos contraordenacionais, sustentando que aquela suspensão é aplicável a tais ilícitos, independentemente de serem anteriores à nova lei e da natureza urgente ou não urgente dos processos.


A doutrina reconhece a existência de razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contraordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide Figueiredo Dias, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, ed. 2001, pág. 144-152).


No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de julho, que introduziu o ilícito de mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa, no quadro de um pretendido movimento de descriminalização, começou por se afirmar que hoje «é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contraordenação “é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal” [...]. Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal. Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridade administrativa, com o sentido dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às pessoas coletivas e adotar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade.»


Para efeitos de distinção entre ambos os ilícitos, a jurisprudência do TC tem seguido fundamentalmente os critérios da ressonância ética e dos diferentes bens jurídicos em causa (Acórdãos n.ºs 158/92, 344/93, 469/97, 461/2011, 537/2011, 45/2014, 180/2014, 76/2016).


Com fundamento na diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções, o TC tem considerado que os princípios constitucionais com relevo em matéria penal não valem com a mesma extensão e intensidade no domínio contraordenacional.


Por isso, não obstante estar consolidado na jurisprudência constitucional o entendimento de que o direito sancionatório público, enquanto restrição de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, tem-se decidido reiteradamente que os princípios que orientam o direito penal não são automaticamente aplicáveis ao direito de mera ordenação social (Acórdãos n.ºs 344/93, 278/99, 160/04, 537/2011, 85/2012), aceitando o TC, atenta a diferente natureza dos ilícitos, uma variação do grau de vinculação do regime das contraordenações aos princípios do direito criminal em diversas matérias, como, por exemplo, as do âmbito da responsabilização das pessoas coletivas, da culpa, do erro, da autoria e do concurso.


Essa orientação jurisprudencial, reiterada no Acórdão n.º 110/2012, em que se escreveu que “as diferenças existentes entre a ilicitude de natureza criminal e o ilícito de mera ordenação social obstam a que se proceda a uma simples transposição, sem mais, dos princípios constitucionais aplicáveis em matéria de definição de penas criminais para o espaço sancionatório do ilícito de mera ordenação social”, sustenta o entendimento do TC de que o legislador, dispõe, no âmbito contraordenacional, por exemplo, de uma margem mais ampla de conformação dos ilícitos.


A propósito da aproximação crescente do direito contraordenacional ao direito penal, Frederico de Lacerda da Costa Pinto salienta que o essencial é a existência de uma dogmática própria que, podendo acolher os contributos da dogmática penal, não se limite, contudo, a uma importação acrítica de regimes e figuras (“O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal”, Direito Penal Económico e Europeu/Textos Doutrinários, Volume I, p. 209 e ss.).


A reconhecida expansão do direito de mera ordenação social e o surgimento de vários subdomínios contraordenacionais tem colocado novos desafios à delimitação do direito contraordenacional face ao direito penal, continuando, porém, a aceitar-se a diferenciação entre crime e contraordenação, como ilícitos autónomos, o que obsta, como já se assinalou e se reitera, a que os princípios vigentes no âmbito penal possam ser transpostos de forma automática para o âmbito das contraordenações, ou que tenham de aí valer com a mesma extensão ou com o mesmo grau de intensidade.


Constatamos, pois, que os acórdãos em confronto decidiram em função de realidades factuais e jurídicas claramente distintas, em processos de natureza diversa e convocando diferentes ramos de direito:


(i) O acórdão fundamento teve como objeto de julgamento e decisão a verificação ou não da prescrição de uma pena, no âmbito do direito penal, por força da legislação de cariz excecional que vigorou durante a pandemia do COVID-19 – in casu, artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020 -, tendo considerado inaplicável a suspensão do prazo aí prevista ao prazo de prescrição da pena, quando os factos tenham sido praticados anteriormente à sua vigência, em função de princípios inerentes ao direito penal com base constitucional;


(ii) O acórdão recorrido teve como objeto de julgamento e decisão, além do mais, a verificação ou não da prescrição do procedimento contraordenacional, por força da legislação de cariz excecional que vigorou durante a pandemia do COVID-19 – in casu, artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020 -, tendo considerado aplicável a suspensão do prazo aí prevista ao prazo de prescrição do procedimento contraordenacional por factos praticados em data anterior à entrada em vigor da dita legislação.


Acresce, no acórdão recorrido, como fundamento para considerar não prescritas as infrações contraordenacionais, o entendimento de que a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 157/2014 ampliou o período de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo às infrações previstas no RGICSF, sendo aplicável o novo prazo de suspensão às condutas ilícitas imputadas – questão de direito inteiramente alheia ao acórdão fundamento.


Temos de concluir que não há coincidência entre a questão jurídica conhecida no acórdão recorrido e a conhecida no acórdão fundamento, pelo que os mesmos não acolhem soluções antagónicas da mesma questão fundamental de direito.


Resultando distintas as situações de facto e as questões de direito que estiveram na base das decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, não se verifica a invocada oposição relevante de julgados que pressupõe que as situações de facto sejam idênticas nos arestos em confronto, e bem assim que neles haja expressa e explícita resolução da mesma e exata questão de direito, pelo que falece, manifestamente, um requisito substancial para a admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência.


Em consequência, o recurso deve ser rejeitado nos termos do artigo 441.º, n° 1, do CPP.


*


III - DECISÃO


Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:


a) rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto por AA, BB e CC, nos termos do disposto no artigo 441.º, n.º 1, do CPP; e


b) condenar os recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça de cada um em 3 (três) UCs (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais), a que acresce, ao abrigo do disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi do artigo 448.º, do mesmo diploma, a condenação de cada um dos recorrentes no pagamento da importância de 4 (quatro) UCs.


Supremo Tribunal de Justiça, 7 de dezembro de 2023


(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)


Jorge Gonçalves (Relator)


António Latas (1.º Adjunto)


Leonor Furtado (2.º Adjunto)