Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
043559
Nº Convencional: JSTJ00019113
Relator: SOUSA GUEDES
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
CULPA GRAVE
DEMISSÃO
Nº do Documento: SJ199305270435593
Data do Acordão: 05/27/1993
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T CIRC PENAFIEL
Processo no Tribunal Recurso: 74/92
Data: 07/14/1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/PESSOAS.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 14 N3 ARTIGO 68 N2 ARTIGO 72 ARTIGO 136 N2.
CPP87 ARTIGO 410 N2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1985/03/26 IN BMJ N345 PAG343.
ACÓRDÃO STJ DE 1987/12/09 IN BMJ N372 PAG282.
Sumário : I - É "grosseira a culpa", para efeitos do n. 2 do artigo
136 do Código Penal, quando faltem as precauções exigidas pela mais elementar prudência, quando forem manifestas a irreflexão ou ligeireza.
II - Age desse modo o soldado da G.N.R. que, num café, por puro exibicionismo, descarrega as balas de um revólver, menos uma que inadvertidamente deixa no tambor, aponta a arma à testa de um circunstante e lha dispara, apesar das recomendações da vítima e de outros.
III - Ajusta-se, no caso, a pena de demissão - medida acessória de justiça que nada tem a ver com qualquer sanção disciplinar.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 - O arguido A, devidamente identificado a fls. 204 dos autos, foi julgado no Tribunal de Círculo de Penafiel como autor material de um crime de homicídio do artigo 131 do Código Penal (de que serão todos os artigos adiante referidos sem menção do diploma a que pertencem), mas o Tribunal Colectivo, face à matéria de facto que considerou provada, condenou-o, pelo crime previsto e punido pelo artigo 136, ns. 1 e 2, na pena de 32 meses de prisão, de que declarou perdoado um ano, nos termos do artigo 14, n. 1 da Lei n. 23/91, de 4 de Julho, e demitiu-o da função pública, declarando perdido a favor do Estado o revólver apreendido.
Na parcial procedência do pedido cível deduzido pelo assistente B e sua mulher C, o Colectivo condenou o mesmo arguido a pagar àqueles requerentes a indemnização global de 1800000 escudos, por danos não patrimoniais.
2 - Recorreu desta decisão o arguido, que limitou o seu recurso à matéria penal, como permite o artigo 403, n. 2, alínea a) do Código de Processo Penal.
Na sua motivação concluiu, em síntese, o seguinte:
I - A sua negligência, embora grave, não deve ser reputada de grosseira, pois se situa nos parâmetros da actuação das pessoas medianamente negligentes, pelo que deveria ser condenado, pelo crime do n. 1 do artigo
136, na pena de um ano de prisão;
II - Mesmo a considerar-se grosseira a negligência, a pena não deverá exceder os 14 meses de prisão, à semelhança do caso tratado no acórdão deste Supremo Tribunal de 9 de Dezembro de 1987, in B.M.J. n.
372-282;
III - Não podendo concluir-se que, com a sua actuação, o arguido tenha feito perder a confiança geral necessária ao exercício das suas funções, a sua demissão viola o artigo 66, pelo que deve ser revogada.
Apenas respondeu o Ministério Público, que pugnou pelo improvimento do recurso.
Conforme o requerido, foram apresentadas neste Tribunal alegações por escrito, em que tanto o recorrente como o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo mantiveram, embora explicitando-a e desenvolvendo-a, a posição expressa na motivação do recurso e na respectiva resposta.
3 - Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto que o Colectivo considerou provada:
- No dia 16 de Janeiro de 1990, cerca da uma hora, o arguido, soldado da G.N.R., mas não no exercício das suas funções, deslocou-se ao estabelecimento de café denominado "The End", sito no 1 andar do Centro Comercial de Santa Luzia, em Amarante, então propriedade de D, onde penetrou;
- No interior deste estabelecimento encontravam-se, nomeadamente, o seu proprietário, o E e o F;
- A determinada altura o arguido empunhou o revólver descrito e examinado a fls. 8 (de calibre 32 S long, cano de 7,7 cm de comprimento, sendo o calibre equivalente ao da pistola de 7,65 mm), que trazia consigo e, abrindo o respectivo tambor, despejou dele as balas, com excepção de uma que, inadvertidamente, o arguido deixou ficar no tambor, e colocou-as sobre o balcão; de seguida recolocou o tambor do revólver na posição de disparo e começou a manusear o dito revólver, em atitude exibicionista;
- Premiu então o gatilho do revólver por várias vezes;
- A vítima F encontrava-se em frente ao arguido, ambos de pé junto ao balcão e distanciados entre si cerca de um metro;
- A dada altura, e já depois de advertido pelos presentes, e por várias vezes, nomeadamente pelo proprietário do café e pelo José M. M. Matias Gonçalves para que terminasse com essa actuação/exibição, o arguido rodou uma outra vez o tambor da arma e, de seguida, disparou a bala com que a arma estava municiada, atingido a vítima na parte média da região frontal;
- Em consequência desse disparo, a vítima sofreu as lesões examinadas e descritas no relatório de autópsia de fls. 92, que directa e necessariamente lhe provocaram a morte;
- O arguido, soldado da G.N.R., não ignorava a perigosidade daquela arma de fogo, quando manuseada com falta de cuidado pelos seus utilizadores;
- Apesar disso, após ter despejado as balas do tambor do revólver, o arguido não verificou se o mesmo se encontrava efectiva e totalmente desmuniciado, antes de iniciar o manuseamento do revólver;
- Acresce que o arguido, durante o manuseamento da arma, apontou-a, desnecessariamente, na direcção dos circunstantes, nomeadamente da vítima;
- O arguido actuou no convencimento de que não causaria dano físico, nomeadamente a morte, a qualquer dos presentes;
- É de modesta condição socio-económica;
- Os requerentes do pedido cível são os pais da vítima, que faleceu solteiro e sem descendentes; os requerentes nutriam amor e carinho pelo filho, sentimentos que ele retribuía; foi com dor que os requerentes receberam a noticia da morte do filho; é com dor e saudade que o recordam;
- O F era jovem (tinha 23 anos - doc. de fls. 129) e saudável.
4 - O recorrente insurge-se contra a qualificação da sua negligência como grosseira, embora ele próprio a considere grave.
A negligência grosseira a que alude o artigo 136, n. 2 é uma negligência qualificada que consiste, no dizer de Maia Gonçalves (Código Penal Anotado, 3 ed., 82), "na falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das cautelas aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos actos correntes da vida; ou em uma conduta de manifesta irreflexão ou ligeireza".
Este tipo de negligência vem classificado em Cuello Calón (Derecho Penal, I, 435) como "imprudência temerária", que consistirá no esquecimento das precauções exigidas pela mais vulgar prudência, ou na omissão das precauções ou cautelas mais elementares.
Por sua vez Yescheck (Tratado, Parte Geral, 783) refere que o legislador requer em crescente medida a figura da negligência temerária (Leichfertigkeit), como forma agravada de negligência, a qual ocorrerá quando se inobserve o cuidado exigível "em uma medida desusada", ou quando o agente não observou "o que no caso concreto havia de resultar evidente a qualquer pessoa".
E acrescenta: "Ao julgar o grau de culpabilidade do facto, a negligência temerária deve medir-se segundo critérios individuais".
Todos estes conceitos foram acolhidos na jurisprudência deste Alto Tribunal, como pode ver-se dos acórdãos de 9 de Dezembro de 1987, B.M.J. n. 372-282, de 26 de Março de 1985, B.M.J. n. 345-343 e de 25 de Junho de 1992, no proc. n. 42714.
Ora, o arguido - de 25 anos de idade - era um agente da autoridade, a quem competia o dever específico de velar pela segurança dos cidadãos.
Além disso, tinha o estatuto de militar da Guarda Nacional Republicana e, por esse facto, era conhecedor do manejo de armas de fogo e dos perigos que o mesmo sempre implica.
Fazendo apelo às regras da experiência comum, como decorre do artigo 410, n. 2 do Código de Processo Penal, pode afoitamente afirmar-se que a primeira regra ensinada aos recrutas nos primeiros dias do serviço militar - e nunca esquecida - é a de que "nunca se aponta uma arma a um camarada, mesmo que se julgue ter a certeza de que está descarregada; o Diabo disparou uma tranca!".
Assim, toca as raias da mais crua e soez leviandade o comportamento exibicionista do arguido.
Em primeiro lugar, deve dizer-se que é muito mais fácil verificar se o tambor de um revólver está descarregado (basta examinar rapidamente a parte posterior do cilindro e ver se existe alguma câmara preenchida pelo rebordo de algum cartucho) do que afirmar que uma pistola está descarregada (ao extrair-se o carregador pode inadvertidamente ter ficado uma bala na câmara de percussão).
Em segundo lugar, e tendo o arguido procedido à abertura do tambor e à extracção das respectivas balas, só por extraordinário desleixo e falta de cuidado a mais censurável pode ter deixado ainda uma bala no tambor.
Em terceiro lugar, é comportamento de enorme leviandade e ligeireza começar a apontar a arma aos frequentadores, num café público, e persistir nesta atitude depois de ter sido por várias vezes advertido pelos circunstantes para que o não fizesse e, para cúmulo, apontar directamente o revólver de grosso calibre à testa da vítima, a cerca de um metro, e disparar.
Tudo isto, da parte de um agente da autoridade e de um militar - que, como o Colectivo apurou, não ignorava a perigosidade da referida arma de fogo, quando manuseada com falta de cuidado - revela a chamada negligência temerária (acima definida) em tão alto grau que se situa na zona cinzenta entre a negligência grosseira do n. 2 do artigo 136 e o dolo eventual do artigo 14, n. 3, a requerer um juízo de censura e reprovação muito acentuado.
5 - Quanto à pena, e tendo presentes os elementos a que o artigo 72 manda atender na determinação da sua medida, designadamente a intensidade da culpa do agente, as exigências de prevenção especial e geral e as condições pessoais do arguido, sendo certo que o mesmo não confessou os factos provados (antes procurando escudar-se numa versão diferente, como se vê da sua contestação de fls. 229, que o Colectivo não acolheu) e nem sequer tem a seu favor o bom comportamento anterior (que, embora alegado, não foi provado), considera-se adequada à responsabilidade do recorrente - e de manter - a pena que lhe foi aplicada no tribunal "a quo".
Esgrime o recorrente - numa consideração de justiça relativa - com o tratamento dado por este Supremo Tribunal ao caso analisado no acórdão de 9 de Dezembro de 1987, B.M.J. n. 372-282.
Deve dizer-se, antes de mais, que, em direito penal, nenhum caso é igual a outro.
E a hipótese apreciada no dito acórdão é bem diferente, não podendo quedar-nos pela leitura do sumário, que diz:
"Pegar numa arma carregada por si próprio há poucas horas e apontá-la à cabeça de outrem, a escassos centímetros, constitui falta de cuidado em que o homem médio não incorre, integrando o conceito de negligência grosseira do n. 2 do artigo 136 do Código Penal".
O arguido desses autos - que não estava prático no manejo de armas e, segundo o acórdão, não disparou voluntariamente - tinha a seu favor a confissão, o bom comportamento anterior e o imediato e profundo arrependimento, a ponto de se quedar em estado de choque emocional, circunstâncias que muito pesaram na dosimetria penal utilizada.
Nada disto se passa no caso em presença.
6 - Quanto à pena acessória de demissão, deve afirmar-se que está a mesma bem fundamentada no acórdão recorrido, não merecendo a censura deste Tribunal.
Com efeito, o arguido, para além de ter violado gravemente os seus deveres inerentes à segurança dos cidadãos, que lhe incumbem mesmo fora do exercício das suas funções, teve um comportamento que implica a perda da confiança necessária ao exercício da função por parte da população em geral.
Não podem os cidadãos ter confiança num elemento da G.N.R. que é capaz de empunhar uma arma de fogo e, num café público, ter o comportamento acima descrito, como se brincasse aos "jogos de guerra" num computador.
Está em causa um importante valor, que o Tribunal não pode ignorar: a dignidade do cargo de agente da autoridade, sobremaneira posta em crise pela conduta do arguido.
Trata-se - na demissão - de uma medida de justiça (que não tem a ver com o processo disciplinar para que o recorrente pretenderia ver relegada a decisão) a que os tribunais não podem subtrair-se, justificada que seja, como é, no caso.
Medida, aliás, referida ao cargo concreto, e que não tem o dramático efeito invocado pelo recorrente, como se vê do artigo 68, n. 2.
7 - Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Pagará o recorrente 5 UCs de taxa de justiça e a procuradoria de 1/4.
Lisboa, 27 de Maio de 1993.
Sousa Guedes;
Alves Ribeiro;
Cardoso Bastos;
Sá Ferreira.
Decisão impugnada:
Acórdão de 14 de Julho de 1992 do Tribunal do Círculo de Penafiel.