Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2636/22.0T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
RECUSA DE COOPERAÇÃO
EXAME HEMATOLÓGICO
PRESUNÇÃO LEGAL
CONSTITUCIONALIDADE
DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
RESERVA DA VIDA PRIVADA
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO
FILIAÇÃO BIOLÓGICA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A recusa injustificada, por parte do réu, em ação de investigação de paternidade, em se submeter a exames científicos de paternidade, onera o mesmo réu com a prova que não é pai, conforme estabelecido no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil.

II - A restrição mínima dos direitos do réu à integridade pessoal ou à reserva da vida familiar implicada na citada orientação está mais do que justificada no princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) e no direito destes à identidade pessoal (artigo 26º, n.º 1) e ao estabelecimento da filiação (artigo 36.º, n.º 1, da CRP).

III – Não se verifica, pois, na interpretação normativa adotada no acórdão recorrido qualquer violação dos direitos do réu ou qualquer restrição de direitos fundamentais que possa considerar-se desproporcionada à luz do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, dado o peso e a intensidade valorativa dos direitos dos filhos, que nem sequer pediram para nascer.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. AA, em representação do seu filho BB, nascido em ... de junho de 2007, interpôs ação de investigação da paternidade contra CC, alegando, em resumo, que manteve com o mesmo um relacionamento amoroso, com relações sexuais de cópula completa, entre o ano de 2004 e dezembro de 2006, tendo sido na sequência de uma dessas relações sexuais que engravidou, gravidez de que veio a nascer o menor BB, em .../06/2007.

Terminou pedindo que se declare que o menor BB é filho de CC, com as legais consequências, ordenando-se à Conservatória a realização do registo do assento de nascimento da criança dele constando tal paternidade, avoenga paterna e a nacionalidade portuguesa.

2. Contestando, o réu admitiu ter tido relações sexuais com a mãe do autor, entre finais de 2004 e meados de 2007, mas que as manteve por aquela ser alternadeira em clube noturno que o réu frequentava e não por ser sua namorada, nunca tendo reconhecido o menor como seu filho.

Recusou-se, ainda a fazer exame hematológico, escrevendo, nos artigos 34.º a 37.º da contestação, ipsis verbis:

«34º. É destituído de fundamento o pedido da realização de exame hematológico ao Réu, vulgo exame genético ou “exame de sangue”. O que o Réu invoca, em sede de audiência contraditória dos meios de prova requeridos pela Autora na petição inicial, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 415º, nº 1, do CPC.

35º. A realização do exame hematológico consubstancia uma violação da integridade física e da reserva da vida privada e familiar do Réu. Injustificada e irrelevante, tendo em conta o enquadramento factual anteriormente descrito, constituindo um meio de prova intrusivo que põe em causa os direitos fundamentais do Réu.

36º. Os direitos fundamentais da integridade física e a reserva da vida privada e familiar do Réu encontram-se constitucionalmente tutelados, nos termos do disposto no artigo 25º, n.º 1 e no artigo 26º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

37º. Por outro lado, a presente acção de investigação da paternidade parece constituir um verdadeiro abuso de direito. A Autora “não parece buscar o ser, antes visa o ter”, expressando a presente acção a chamada “caça à fortuna”. E esse parece ser o objectivo inconfessado da presente acção de investigação da paternidade.»

Pugnou pela improcedência da ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

4. Considerando o alegado nos artigos da contestação acima reproduzidos, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

«O réu admite ter tido relações sexuais com a mãe do BB no período legal de concepção do mesmo.

Apesar de ter sido uma relação casual e esporádica com a mãe do BB, o facto é que dessa relação poderá ter nascido a criança em causa.

Recusando efetuar exame de ADN , a consequência legal é a inversão do ónus de prova nos termos do art. 344º , nº 2 do Código Civil. Ou seja, deixa de caber à requerente o ónus de provar que o réu é o pai da criança, passando o réu a ter de provar que não é pai da criança em causa.

Neste sentido cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 6/2/2018 (Apelação nº 5525/16.3T8CBR.C1, Acórdão do STJ de 3/10/2017 (processo 737/13.4TBMDL.G1.S1), Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de Março de 2012, processo 331/09.4TCGMR.G1, entre outros.

Com interesse , transcrevo o sumário do último acórdão referido:

1.A recusa do réu em submeter-se a exames hematológicos nas ações de reconhecimento de paternidade é ilegítima porque viola o dever de colaboração das partes já que a realização do exame hematológico é um ato necessário à descoberta da verdade e não se trata de ato vexatório, humilhante ou causador de grave dano.

2. No que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico neste tipo de ação, há lugar à inversão do ónus de prova quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova, privando-o da prova direta, por meios científicos.

Assim, notifique o réu para, vir dizer se de facto recusa a realização do exame de ADN ficando o mesmo advertido das consequências legais dessa recusa.»

5. Notificado do antecedente despacho, veio o réu recusar-se, de novo, a submeter-se a exame de ADN.

6. Os autos prosseguiram e, após julgamento, foi proferida sentença, em 19 de dezembro de 2022, que julgou procedente a ação e o reconheceu como pai do menor.

7. Não se conformando o réu com essa sentença, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou a sentença integralmente e sem voto de vencido.

8. Novamente inconformado, o recorrente/réu, na presente ação de investigação da paternidade, interpôs recurso de revista excecional, ao abrigo dos artigos 671º, n.º 3 e 672º, n.º 1, alínea a), do CPC, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso de revista excepcional tem por fundamento estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (artigo 671º, n.º 3/ e artigo 672º, n.º 1/, alínea a/ do Código de Processo Civil);

2. Para efeitos da intervenção excepcional do Supremo Tribunal de Justiça, em situações de dupla conforme, a discordância expressa pelo respectivo recorrente deve verificar-se em relação a questões inscritas nas atribuições do Supremo Tribunal de Justiça, essencialmente delimitadas e especificadas pelo artigo 674º do Código de Processo Civil;

3. Segundo a previsão do artigo 672º, n.º 1/, alínea a/ do Código de Processo Civil, cabe, excepcionalmente, recurso de revista quando “esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”;

4. Segundo a previsão do artigo 672º, n.º 1/, alínea b/ do Código de Processo Civil, cabe, excepcionalmente, recurso de revista quando “estejam em causa interesses de particular relevância social”;

5. O Recorrente sustenta e defende que está em causa neste processo uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (artigo 671º, n.º 3/ e artigo 672º, n.º 1/, alínea a/ do Código de Processo Civil);

6. O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8 de Fevereiro de 2024 decidiu erradamente que a recusa do Recorrente na realização do exame hematológico ou exame de ADN “é ilegítima e consequentemente culposa”, tendo determinado “a impossibilidade da prova directa da procriação biológica que era, em concreto, o meio mais idóneo para a demonstração de tal facto, atendendo às circunstâncias do caso concreto”;

7. O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8 de Fevereiro de 2024 decidiu erradamente quando concluiu que, “operando a inversão do ónus da prova, em vez de ser a Autora (representante legal do filho menor) a provar que o réu é pai do BB, passa a recair sobre o réu o ónus de provar que não é pai deste jovem, o que não aconteceu in casu”;

8. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que, operando a inversão do ónus da prova, nos termos do disposto no artigo 344º, n.º 2/ do Código Civil, deixou de caber à Recorrida o ónus de provar que o Recorrente é o pai da criança, passando a recair sobre o Recorrente o ónus de provar que não é o pai deste jovem;

9. O Recorrente sustenta e defende que a recusa do Recorrente de efectuar a realização de exame hematológico ou exame de ADN é uma recusa legitima;

10. O Recorrente entende que a recusa de efectuar exame de ADN é uma recusa legítima porque a sua obediência envolve violação da sua integridade física ou moral enquanto pessoa e importa intromissão na sua vida privada ou familiar;

11. Desta forma, não estão verificados ou preenchidos os pressupostos para a inversão do ónus da prova, nos termos previstos no artigo 344º, n.º 2/ do Código Civil;

12. O Recorrente sustenta e defende que a recusa do Recorrente não opera a sanção e a consequência que se encontra estabelecida sob o artigo 417º, n.º 2/ e n.º 3/, alínea a/ do Código de Processo Civil;

13. A realização do exame hematológico ou exame de ADN consubstancia uma violação da integridade física e da reserva da vida privada e familiar do Recorrente;

14. Injustificada e irrelevante, entende o Recorrente, tendo em conta o enquadramento factual anteriormente descrito, constituindo um meio de prova intrusivo que põe em causa os direitos fundamentais do Recorrente;

15. O Recorrente defende que não há motivo ou fundamento legalmente atendível para a operada inversão do ónus da prova, nos termos do disposto no artigo 344º, n.º 2/ do Código Civil, por força do artigo 417º, n.º 2/ do Código de Processo Civil, ao contrário daquilo que foi decidido no douto Despacho proferido em 13 de Junho de 2022, mantido pela douta Sentença proferida em primeira instância em 19 de Dezembro de 2022, e secundado pelo douto Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8 de Fevereiro de 2024;

16. O Recorrente entende e sustenta que a questão suscitada anteriormente, envolvendo a aplicação do disposto no artigo 344º, n.º 2/ do Código Civil, por força do artigo 417º, n.º 2/ do Código de Processo Civil, em função do julgamento decretado na douta Sentença proferida em 19 de Dezembro de 2022, mantido no douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 8 de Fevereiro de 2024, consubstancia “uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 672º, n.º 1/, alínea a/ do Código de Processo Civil;

17. A questão suscitada pelo Recorrente é plenamente justificativa do preenchimento das condições de admissibilidade do presente recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça;

18. O Recorrente sustenta que não se verifica também sub judice a presunção da paternidade estabelecida sob o artigo 1871º, n.º 1/, alínea e/ do Código Civil, porque a presunção de paternidade considera-se ilidida sub judice porque existem dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado, nos termos do disposto no artigo 1871º, n.º 2/ do Código Civil;

19. Os direitos fundamentais da integridade física e a reserva da vida privada e familiar do Recorrente encontram-se constitucionalmente tutelados e protegidos, nos termos do disposto no artigo 25º, n.º 1/, artigo 26º, n.º 1/ e artigo 36º, n.º 1/ da Constituição da República Portuguesa;

20. A realização do exame hematológico ou exame de ADN constitui um meio intrusivo que põe em causa os direitos fundamentais do Recorrente, nomeadamente o direito à sua integridade física, o direito ao bom nome e reputação, o direito à reserva da intimidade da vida privada e de contrair casamento e o direito de constituir família e de contrair casamento, consagrados no artigo 25º, n.º 1/, no artigo 26º, n.º 1/ e no artigo 36º, n.º 1/ da Constituição da República Portuguesa;

21. Na douta Sentença proferida em primeira instância em 19 de Dezembro de 2022, assim como no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em segunda instância em 8 de Fevereiro de 2024, foi violado o disposto no artigo 1871º, n.º 1/, alínea e/ e n.º 2/ do Código Civil, no artigo 344º, n.º 2/ do Código Civil, no artigo 417º, n.º 2/ e n.º 3/, alínea a/ do Código de Processo Civil;

22. Na douta Sentença proferida em primeira instância em 19 de Dezembro de 2022, assim como no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em segunda instância em 8 de Fevereiro de 2024, foram violados os direitos do Recorrente tutelados e consagrados no artigo 25º, n.º 1/, no artigo 26º, n.º 1/ e no artigo 36º, n.º 1/ da Constituição da República Portuguesa;

23. O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8 de Fevereiro de 2024 não fez a correcta aplicação e interpretação da lei adequada;

24. Nos termos e com os fundamentos anteriormente expostos, deverá ser julgado procedente o presente recurso de revista excepcional, revogando-se a douta Sentença proferida em primeira instância em 19 de Dezembro de 2022 e revogando-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8 de Fevereiro de 2024 e, em consequência, deverá ser julgada não provada e improcedente a presente acção de investigação de paternidade instaurada pela Recorrida contra o Recorrente, fazendo assim V. Exas. a mais correcta e adequada aplicação e interpretação do Direito. Como é de Justiça».

9. Notificada das alegações de recurso de revista, a autora apresentou contra-alegações, em que pugna pela manutenção do decidido, formulando para o efeito as seguintes conclusões:

«1. Através do douto Acórdão proferido em segunda instância em 8 de Fevereiro de 2024, acordaram os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação do Recorrente totalmente improcedente, para confirmar a bem fundada sentença proferida em primeira instância em 19 de Dezembro de 2022, que julgou procedente a presente acção de investigação da paternidade e em consequência, declarou e reconheceu o Recorrente CC como pai do identificado BB (vide douta Sentença recorrida, a fls. 10);

2. O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8 de Fevereiro de 2024 acertadamente decidiu que a recusa do Recorrente na realização do exame hematológico ou exame de ADN “é ilegítima e consequentemente culposa”, tendo determinado “a impossibilidade da prova directa da procriação biológica que era, em concreto, o meio mais idóneo para a demonstração de tal facto, atendendo às circunstâncias do caso concreto”;

3. O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8 de Fevereiro de 2024 acertadamente decidiu quando concluiu que, “operando a inversão do ónus da prova, em vez de ser a Autora (representante legal do filho menor) a provar que o réu é pai do BB, passa a recair sobre o Réu o ónus de provar que não é pai deste jovem, o que não aconteceu in casu”;

4. O Tribunal de primeira instância decidiu que ficou provado que a Recorrida e o Recorrente mantiveram entre si relações sexuais de cópula completa no período legal da concepção do BB e considerou como provado que nesse período de tempo a Recorrida “não manteve relações sexuais com qualquer outro homem”.

5. O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que, “provada a existência de relações sexuais entre o réu e a autora durante o período legal de concepção, a paternidade presume-se”, por força do disposto na regra prevista no artigo 1871º, nº 1, alínea e) do Código Civil.

6. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que, “perante tal presunção, o autor da acção de investigação de paternidade não tem de provar a exclusividade das relações sexuais entre a mãe e o réu, recaindo sobre este o ónus da prova de que a mãe do autor teve relações sexuais com outros homens, de modo a ilidir aquela presunção”.

7. O Tribunal da Relação de Lisboa concluiu que, “sendo presentemente possível fazer a prova directa da paternidade através de exames hematológicos, a recusa injustificada, por parte do Réu em acção de investigação de paternidade, em se submeter a tais testes, onera o mesmo réu com a prova de que não é pai”.

8. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou que é ilegítima a recusa do Recorrente em submeter-se a exames hematológicos.

9. O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que o Recorrente, desta forma, recusou-se a colaborar para a descoberta da verdade, e por esta razão se justifica a aplicação da inversão do ónus da prova e que “ainda que tal presunção não existisse, tendo o réu recusado, injustificada e culposamente, a submeter-se a exames hematológicos, recaia sobre si a prova de não ser pai, por aplicação da inversão do ónus da prova estabelecida no artigo 344º, nº 2 do Código Civil. Prova que manifestamente não foi feita”.

10. O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que, operando a inversão do ónus da prova, nos termos do disposto no artigo 344º, nº 2 do Código Civil, deixou de caber à Recorrida o ónus de provar que o Recorrente é o pai da criança, passando a recair sobre o Recorrente o ónus de provar que não é pai do BB.

11. O Recorrente declarou que se recusava submeter-se a exame hematológico ou exame de ADN porque consubstanciava uma violação da integridade física e da reserva da vida privada do Recorrente. Injustificada e irrelevante, segundo acrescentou o Recorrente, tendo em consideração o enquadramento em que teria se relacionado com a Recorrida, concluindo que a realização do exame hematológico constitui um meio de prova intrusivo que põe em causa os direitos fundamentais do Recorrido.

12. Existem outras possibilidades de se realizar o exame de ADN sem que dele se resulte a alegada violação da integridade física, tais como a recolha do ADN colhido em saliva, cabelo ou unhas.

13. No que concerne a alegada violação da reserva da vida privada do Recorrente, está não pode estar acima do direito do suposto filho saber a sua verdadeira identidade.

14. Entende a Recorrida que se mostram perfeitamente reunidos e preenchidos na presente acção de investigação de paternidade os pressupostos necessários à verificação da presunção de paternidade, estabelecida sob o artigo 1871º, n.º 1/, alínea e/ do Código Civil;

15. Entende a Recorrida que a presunção de paternidade, estabelecida sob o artigo 1871º, n.º 1/, alínea e/ do Código Civil, foi perfeitamente avaliada, analisada e com muita segurança o Tribunal da Relação de Lisboa concluiu que não existe qualquer dúvida sobre a paternidade do investigado, na presente acção de investigação de paternidade, nos termos do disposto no artigo 1871º, n.º 2/ do Código Civil;

16. A Recorrida entende e sustenta que a matéria de facto in casu foi correctamente julgada pelo Tribunal da Relação de Lisboa como provada;

17. A Recorrida entende e sustenta que a matéria de facto in casu foi correctamente julgada pelo Tribunal da Relação de Lisboa como não provada;

18. Não houve erro de julgamento, nem foi errada a apreciação dos meios de prova carreados para o processo, no que respeita aos seguintes factos dados como não provados: o Recorrente nunca duvidou ser pai do BB e o Recorrente nunca considerou que o BB seja seu filho;

19. Em sede de factos dados como não provados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, deverá manter-se como não provado que o Recorrente nunca duvidou ser pai do BB e que o Recorrente nunca considerou que o BB seja seu filho;

20. A Recorrida defende e sustenta que o douto Acórdão recorrido proferido em 8 de Fevereiro de 2024 deve ser mantido na íntegra por não padecer de nenhum erro de julgamento;

21. A Recorrida baseia a paternidade do Recorrente na presunção estabelecida sob o artigo 1871º, n.º 1/, alínea e/ do Código Civil: quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção;

22. Conforme se conclui do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/83 de 21 de Junho de 1983, o que é necessário provar e demonstrar na acção de investigação de paternidade é que, no período legal de concepção, a mãe só com o investigado manteve relações de sexo;

23. O art. 1801º do Código Civil prescreve que nas ações relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados.

24. E é inegável a importância que as provas científicas têm na atualidade para se alcançar o objetivo de fazer coincidir a verdade jurídica com a verdade científica já que os testes de ADN fazem prova cabal da filiação, sendo considerada a rainha das provas, ficando os demais elementos de prova relegados para casos excecionais em que aquela não seja possível.

25. O art.º 417.º do CPC estabelece que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade. Aqueles que recusem tal colaboração devida serão condenados em multa. Se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do art.º 344.º do Código Civil.

26. Segundo o douto Despacho proferido em 13 de Junho de 2022, recusando efectuar exame de ADN, a consequência legal é a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344º, n.º 2/ do Código Civil;

27. Tem entendido a jurisprudência mais recente, e também a doutrina, particularmente no que respeita à recusa do Recorrente de se submeter a exames hematológicos em sede de ação de investigação ou impugnação de paternidade, que a consequência da inversão do ónus da prova deve aplicar-se nos casos em que, tal recusa impossibilita a prova do facto a provar pela contra parte, por não ser possível consegui-la por outros meios. A recusa da sujeição a exames hematológicos é particularmente relevante nas ditas ações, salientando-se que, atualmente, o exame hematológico e outros métodos científicos, permitem determinar com grande segurança a filiação biológica, ou a sua exclusão (Cf. entre outros, Acórdãos do STJ de 23/02/2012, proferido no Processo 994/06.2TBVFR.P1.S1 e de 28/05/2002, publicados em www.dgsi.pt, Lopes do Rego, Comentários ao Código de processo Civil 2.ª edição 454 e 455, Lebre de Freitas Código de Processo Civil Anotado, 2008, vol. II.pags 440 e ss).

28. O Recorrente afirma que recusa fazer o exame hematológico por o mesmo constituir uma violação da integridade física e da reserva da vida privada e familiar do réu, injustificada e irrelevante tendo em conta o contexto em que conheceu e se relacionou com a autora.

29. Como bem observou o Tribunal da Relação de Lisboa, os exames de ADN já nem implicam análise de sangue, bastando a recolha de um cabelo ou a passagem de um cotonete no interior da boca, não havendo assim qualquer violação relevante da integridade física do examinado. Quanto à alega violação da reserva da vida privada e familiar do Recorrente, desconhecendo o tribunal que tipo de vida privada e familiar o Recorrente tem, o facto é que é o próprio que reconhece na sua contestação que manteve relações sexuais com a Recorrida e que os mesmos se conheceram num bar que o mesmo denomina como sendo bar de alterne. Assim, é o próprio réu que expõe a sua privacidade na contestação, não se percebendo que o ato recusado possa desrespeitar essa mesma vida privada e familiar.

30. A recusa do Recorrente é uma recusa ilegítima e consequentemente culposa e determinou a impossibilidade da prova direta da procriação biológica que era, em concreto, o meio mais idóneo para a demonstração de tal facto, atendendo às circunstâncias do caso concreto.

31. Donde, em consequência, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu e concluiu que a recusa do Recorrente “é ilegítima e consequentemente culposa”, pois, temos por superior o direito fundamental da identidade pessoal do menor, sendo certo que, o acto recusado, se afigura decisivo para alcançar a verdade biológica que se busca nos autos;

32. A Recorrida entende que o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu corretamente ao decidir que, operando a inversão do ónus de prova, em vez de ser a Recorrida (representante legal do filho menor) a provar que o Recorrente é pai do BB, passa a recair sobre o Recorrente o ónus de provar que não é pai deste jovem, o que não aconteceu in casu.

33. Entende a Recorrida que ficou provado através de prova documental e testemunhal que o identificado BB é filho do Recorrente, conforme cabia à Recorrida provar e demonstrar na presente acção de investigação de paternidade;

34. No douto Acórdão recorrido proferido em segunda instância em 8 de Fevereiro de 2024, o Tribunal da Relação de Lisboa não houve violação a nenhum artigo do Código Civil ou da Constituição da República Portuguesa, que trate da matéria in casu.

35. Deste modo, em suma, o douto Acórdão recorrido proferido em segunda instância em 8 de Fevereiro de 2024 fez uma correcta interpretação dos factos provados e não provados e fez a correcta aplicação e interpretação da lei adequada;

36. Deste modo, concordamos em pleno com a decisão ora em crise, porquanto nos parece ter aplicado de forma correcta, bem fundamentada e justa a decisão guerreada, não merecendo, por isso, qualquer censura antes, pelo contrário, integral confirmação.

37. Nos termos e com os fundamentos anteriormente expostos, deverá ser julgado totalmente improcedente o presente Recurso de Revista Excepcional, mantendo-se na íntegra o douto Acórdão proferido em segundo grau pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 8 de Fevereiro de 2024, que julgou improcedente o recurso de apelação do Recorrente, confirmando a douta Sentença proferida em primeira instância em 19 de Dezembro de 2022 e, em consequência, mantida a decisão que julgou provada e procedente a presente acção de investigação de paternidade intentada pela Recorrida contra o Recorrente, para reconhecer o Recorrente como pai do BB.»

10. A Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC admitiu o referido recurso de revista excecional.

11. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, a única questão de direito a decidir é a seguinte:

I - Legitimidade e efeitos da recusa do pretenso pai, em ação de investigação da paternidade, a realizar exame hematológico ou de ADN

II – Fundamentação

A – Os factos

As instâncias consideraram na sua decisão os seguintes factos:

1. A autora [rectius, mãe do autor e sua representante] e o réu mantiveram relações sexuais de cópula completa um com o outro entre 2004 e Dezembro de 2006.

2. A conceção do BB ocorreu em resultado dessas relações sexuais.

3. Que ocorreram durante os primeiros 120 dos 300 que precederam o nascimento do BB.

4. Nesse período de tempo a autora não manteve relações sexuais com qualquer outro homem.

5. Quando a autora contou ao réu que estava grávida e que o filho era dele, este terminou o relacionamento entre ambos.

6. Desde há vários anos que o réu paga € 250,00 à autora mensalmente.

7. E envia presentes ao BB e cartões de aniversário a desejar felicidades.

8. O réu conheceu a autora no final do ano de 2004 no Clube Noturno L..., sito na Praça ..., ....

9. A autora trabalhava nesse clube.

10. Esse clube era publicitado com um bar para entretenimento e diversão noturna ou dancing club.

11. A função da autora nesse clube era seduzir os clientes homens incitando-os a pagar bebidas.

12. E foi nessas circunstâncias que o réu teve relações sexuais com a autora entre o final de 2004 e fim de 2006.

13. Entre o fim de 2006 e os primeiros meses de 2007 a autora informou o réu que estava grávida e que o filho era do mesmo.

14. O réu viu o BB uma vez quando este teria cerca de 3 anos.

15. O réu tem procurado ajudar a autora respondendo positivamente aos pedidos de auxílio económico-financeiros da autora.

B – O Direito

1. O acórdão recorrido confirmou a sentença do tribunal de 1.ª instância, que reconheceu a paternidade do réu em relação ao menor BB, nascido em ...-06-2007, dando como provado que a conceção do BB ocorreu em resultado das relações sexuais mantidas entre a autora e o réu durante o período legal de conceção, nos termos da presunção fixada no artigo 1871.º, n.º 1, al. e), do Código Civil, presunção que o réu não afastou, sendo, pelo contrário, a autora quem provou a exclusividade das relações sexuais.

Notificado para realizar testes de científicos de paternidade (hematológico ou de ADN), o réu recusou sujeitar-se aos mesmos, tendo o acórdão recorrido considerado tal recusa injustificada e, em consequência, onerado o réu com a prova de que não é pai, conforme estabelecido no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil. Afirmou, ainda, o acórdão recorrido a validade deste regime jurídico mesmo para os casos em que o réu tivesse demonstrado que a mãe tinha mantido relações sexuais com outros homens durante o período legal de conceção.

2. Pretende o recorrente, no recurso de revista excecional, que, da circunstância de ter conhecido a autora num bar de diversão noturno, onde a autora desempenhava a função de seduzir os clientes homens incitando-os a pagar bebidas (factos provados n.º s 8, 9 e 10), decorre que a presunção de paternidade estabelecida na al. e) do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil se tem de considerar ilidida por dúvidas sérias em relação à paternidade, nos termos do n.º 2 do artigo 1871.º, sem a necessidade de realização de exames hematológicos ou de ADN para afastar a sua paternidade.

Sustenta ainda que é legítima a sua recusa em realizar exame hematológico ou de ADN, para proteção dos seus direitos à integridade física e moral, ao bom nome e reputação, bem como à reserva sobre a sua vida familiar, direitos constitucionalmente protegidos nos artigos 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP.

3. O pedido nas ações de investigação ou de reconhecimento da paternidade é a declaração da paternidade jurídica do réu relativamente ao filho, estabelecendo por decisão judicial a filiação que não foi estabelecida por perfilhação.

Já a causa de pedir é o vínculo biológico de progenitura que pretensamente liga o réu ao filho, ou dito por outras palavras, essa causa de pedir é o facto naturalístico da procriação biológica do filho pelo réu a quem essa paternidade é imputada (cfr. Guilherme de Oliveira, “Estabelecimento da Filiação”, Petrony, 2018, p. 211 e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 20/07/2003, Proc. 04A1974 e de 24/05/2012, Proc. 69/09.2TBMUR.P1.S1)

A prova dessa causa de pedir (a procriação biológica), conforme decorre do disposto nos artigos 1801º, 1871º, 349º e 351º do Código Civil e é reafirmado pela doutrina e pela jurisprudência pode ser feita por três vias possíveis, a saber: a) em primeiro lugar, por via de prova direta, através da realização “de exames de sangue (exames hematológicos) ou quaisquer outros métodos cientificamente comprovados”, nos termos do artigo 1801º do Código Civil, como seja recolha de material de ADN nas unhas, cabelos, pele, etc. do filho e do pretenso pai; b) em segundo lugar, por via indireta, através do recurso pelo autor a alguma das presunções legais de paternidade taxativamente enunciadas no artigo 1871º do CC, em que o autor apenas tem de alegar e fazer prova dos factos base da presunção (artigo 350º, n.º 1, do Código Civil), para que uma vez feita essa prova se tenha estabelecida a paternidade biológica do réu a quem essa paternidade é imputada, contanto que este último não ilida essa presunção através da alegação e prova de factos que criem no espírito do julgador “dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado” (artigos 1871º, n.º 2 e 350º, n.º 2 do Código Civil); e c) também por forma indireta, através do recurso a presunções naturais ou judiciais, alicerçadas em regras ou máximas da experiência, nos termos consentidos pelo artigo 351º do Código Civil, como sucede na generalidade das causas em que não haja lugar à prova direta, através da realização de exames de sangue e em que não ocorra alguma das situações de facto que servem de substrato às aludidas presunções legais de paternidade.

3. No caso vertente, o estabelecimento da paternidade baseou-se na presunção legal fixada na al. e) do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil, que o réu não conseguiu ilidir, nem pela realização de exames de sangue que se recusou a fazer, nem pela prova da exceptio plurium. A matéria de facto demonstra, de forma inequívoca, serem completamente infundadas as insinuações feitas pelo réu a propósito das circunstâncias em que conheceu a autora, já que, segundo o facto provado n.º 4, durante o período legal de conceção, a autora não manteve relações sexuais com qualquer outro homem. Apesar de não caber à autora, desde a entrada em vigor da Lei n.º 21/98, o ónus da prova da exclusividade das relações sexuais, como exigia o Assento n.º 4/83, o certo é que fez essa prova no presente processo, pelo que a presunção da alínea e) tem uma força especial que só poderia ser afastada por exame científico que excluísse a paternidade do réu.

Exames de sangue ou de ADN com resultado negativo seriam, portanto, a única forma de o réu demonstrar que não era o pai do menor BB. Tendo recusado os mesmos, apesar de notificado para tal, entendeu a Relação que contra si correm, em termos probatórios, as consequências dessa recusa, exarando o seguinte sumário:

«Sendo presentemente possível fazer a prova direta da paternidade através de exames hematológicos, a recusa injustificada, por parte do réu em ação de investigação de paternidade, em se submeter a tais testes, onera o mesmo réu com a prova que não é pai, conforme estabelecido no artigo 344.º, n.º 2, do CC».

4. A questão essencial que o presente recurso encerra é a de se saber se a Relação decidiu bem ao proceder à inversão do ónus da prova a que alude o artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil, em conjugação com o artigo 417.º, n.º 2, in fine, do CPC, derivado da circunstância de o exame biológico não se ter realizado por culpa do réu.

Se bem que, pelo facto de a ação ter sido julgada procedente com base na prova da exclusividade das relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai, o tema deixe, in casu, de ter interesse decisivo, será debatido e revisto no presente Acórdão, na medida em que foi utilizado pelo acórdão recorrido como fundamento da decisão.

5. À luz dos princípios constitucionais no domínio do direito da filiação e à luz dos deveres de cooperação do réu com a descoberta da verdade material, entendemos que esta orientação jurisprudencial adotada pelo Tribunal da Relação é a mais adequada à verdade biológica, ao interesse do filho e ao interesse público de que todas as crianças tenham um pai que por elas se responsabilize.

Tem sido esta também a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, válida mesmo para os casos em que se prove a falta de exclusividade das relações com o pretenso pai, conforme decorre dos excertos que a seguir se transcrevem:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/02/2012, proc. 994/06.2TBVFR.P1.S1, com o seguinte sumário:

«III – Aquele que, culposamente, se recusa a se submeter a testes de ADN em acção de investigação da paternidade em que é réu, fica onerado com o encargo de provar que não é pai, nos termos do art.º 344º nº 2 do C. Civil.

IV – O direito à identidade pessoal, por referência a um determinado arquétipo familiar, do réu, em acção de investigação da paternidade, tem de ceder perante o direito à identidade pessoal e genética do filho, nos termos do art.º 26º da Constituição».

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/10/2012, proc. 194/08.7TBAGN.C1.S1:

III - No caso, o réu, ao faltar ao exame injustificadamente, inviabilizou a sua realização, obstaculizando, assim, a que a verdade da sua paternidade em relação ao autor fosse cientificamente investigada e determinada. Recusou-se, assim, a colaborar para a descoberta da verdade, pelo que se justificou a inversão do ónus da prova a que alude o n.º 2 do art. 344.º».

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/10/2017, proc. 737/13.4TBMDL.G1.S1, em cujo sumário consta o seguinte:

«Se o réu, investigado, com a sua recusa ilegítima – de se submeter a exame laboratorial susceptível de fornecer prova directa da filiação biológica – inviabiliza a prova desta filiação, face à falência da prova indirecta através de testemunhas, deve, por aplicação do art. 344º, nº 2, do CC, inverter-se o ónus da prova, passando aquele, que impossibilitou a prova, a ficar onerado com a demonstração da não verificação daquele facto, isto é, que o autor não é fruto de relações de sexo entre o réu e a mãe do autor e, assim, que este não é filho daquele».

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/03/2023, proc. 2404/18.3T8STB-A.E1.S1:

«I. O n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil estabelece que há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sendo que, no que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas ações de reconhecimento de paternidade, dar-se-á a inversão do ónus da prova quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova.

II. Perante a inversão do ónus da prova, competia ao Réu provar que a Autora não é fruto de relações de sexo entre o Réu e a mãe da Autora e que esta não é sua filha, o que o Réu não conseguiu provar, porquanto, como consta do facto provado, não se provou se o relacionamento sexual entre o Réu e a mãe da Autora terminou antes do período legal da conceção».

6. No caso vertente, a citada orientação é válida, por maioria de razão, uma vez que ficou provada a exclusividade das relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai. No momento histórico atual, esta prova, considerada um ónus probatório demasiado gravoso e de cariz discriminatório para as mulheres, por envolver a prova de um facto negativo, já não é necessária. Não está, contudo, excluído que os tribunais possam recorrer a este método, se, por qualquer razão, não tiverem exames científicos disponíveis (cfr. Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, Petrony, 2019, p. 214). A prova rainha são os exames hematológicos ou de ADN ao pretenso pai e ao filho que permitem obter um grau de certeza sobre a filiação próximo dos 100%, ou exclui-la quase completamente quando não ocorra. Por isso se entende que, nas ações de investigação da paternidade, desde logo por consequência do artigo 1801.º do Código Civil, estes exames constituem elementos essenciais para a descoberta da verdade, secundarizando as outras provas, designadamente a testemunhal, mais falível e aleatória.

Como se tem afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. por todos, o Acórdão, de 02-06-2020, proc. n.º 3278/16.4T8GMR.G1.S1, citando outro Acórdão do Supremo de 20/07/2003), onde se afirmou que «A paternidade biológica pode hoje provar-se por qualquer meio, nomeadamente científico, conforme dispõe expressamente o art. 1801º do CC. (…) E nem se esgrima com a margem do erro científico, já que este é infinitamente menor face à prova testemunhal, mesmo sem considerar as contingências que esta encerra. (…) Aqui chegados, os exames hematológicos, assim como os outros métodos cientificamente comprovados, permitem, no estado atual do conhecimento científico, fruto da evolução científica, a prova direta do facto naturalístico da procriação biológica, que constitui a causa de pedir nas ações de investigação da filiação, não admirando, por isso, que o art. 1801º do CC, tenha passado a admitir estes meios de prova – prova pericial – como meios de prova legalmente admissíveis neste tipo de ações e que a doutrina e a jurisprudência tenham atribuído aos mesmos um papel central, fundamental ou nuclear nas mesmas, que, na prática, secundarizam a prova indireta, seja por presunções judiciais, seja por presunções naturais ou judiciais de demonstração dessa filiação biológica e, bem assim que subalternem os outros meios de prova legalmente previstos, nomeadamente, a prova testemunhal, quando comparado com este meio de prova, que é pericial».

7. Assim, o réu está adstrito a um rigoroso dever de colaboração e de cooperação com a justiça (artigo 417.º, n.º 1, do CPC), perante a criança e perante o Estado, com a certeza de que, caso não seja efetivamente o pai, os exames excluirão a sua paternidade. Algumas ordens jurídicas, como a alemã, permitem mesmo que seja ordenado pelo tribunal a realização coativa dos exames com recurso à força pública. A ordem jurídica portuguesa suavizou o poder do Estado, mas sanciona a recusa culposa de realizar o exame com a inversão do ónus da prova, entendendo que “quem não deve, não teme”.

Não tem, pois, razão o réu, quando considera que o Tribunal da Relação não poderia valorar a sua recusa em sujeitar-se a exames como inversão do ónus da prova, ao abrigo do artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil, nem quando sustenta que a sua recusa é legítima à luz dos seus direitos fundamentais à integridade física e moral e à reserva da vida familiar.

A visão do réu está centrada na auto-defesa dos seus interesses e desconsidera completamente o interesse da criança e o seu direito ao estabelecimento da filiação. A ser aceite pela jurisprudência, permitiria aos pretensos pais, que não querem assumir a responsabilidade mesmo sabendo que são os progenitores biológicos, facilmente impedir a prova da paternidade.

Os direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar, e à integridade física e pessoal, não podem ter um âmbito tal que acabe por proteger o interesse do progenitor, que participou num relacionamento biológico e afetivo de consequências reprodutivas, em não assumir a responsabilidade jurídica desse ato. É que, na cultura social e jurídica atual, o Estado responsabiliza, pelo bem-estar da criança nascida, em primeiro lugar, os progenitores biológicos, e tem um interesse de ordem pública em que estes vínculos biológicos adquiram a devida relevância jurídica no domínio do direito da filiação e do estado da pessoa.

A proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, consagrada no n.º 4 do artigo 36.º da CRP, garante a todos os filhos, independentemente das circunstâncias do seu nascimento, o acesso ao estatuto de filho.

Após a reforma de 1977, imposta pela Constituição da República de 1976, os interesses dos progenitores masculinos, que não querem assumir a procriação, deixaram de ser tutelados, prevalecendo a verdade biológica demonstrável pelos exames científicos disponíveis para o efeito. Os interesses da mãe e da criança a receber auxílio financeiro, a título de alimentos, para as despesas de alimentação, habitação, saúde e educação assumem um relevo decisivo, num contexto em que os testes de paternidade podem demonstrar com segurança quem é o autor da conceção.

Os direitos fundamentais do réu, constitucionalmente protegidos nos artigos 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP, não são, pois, absolutos e têm de ser balanceados com os direitos das crianças nascidas fora do casamento à historicidade pessoal e ao estabelecimento da filiação, bem como com o interesse público do Estado em averiguar a verdade biológica para responsabilizar o autor da conceção pela procriação na qual colaborou.

A restrição mínima dos direitos do réu implicada na posição do acórdão recorrido está mais do que justificada no princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) e no direito destes à identidade pessoal (artigo 26º, n.º 1) e ao estabelecimento da filiação (artigo 36.º, n.º 1, da CRP). Não se verifica, pois, na interpretação normativa adotada no acórdão recorrido qualquer violação dos direitos do réu ou qualquer restrição de direitos fundamentais que possa considerar-se desproporcionada à luz do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, dado o peso e a intensidade valorativa dos direitos dos filhos, que nem sequer pediram para nascer.

Conforme se entendeu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2018, o « (…) direito do filho a conhecer e a ver reconhecidos juridicamente aspetos tão determinantes na formação da individualidade deve afastar qualquer pretensão do progenitor no sentido da não assunção do papel de pai, a qual, ainda que apresente conexão com uma eventual tutela da sua própria individualidade, não pode ser colocada no mesmo plano (cf. Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das origens Genéticas, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 208). Note-se que, não existe «um direito a não ser juridicamente reconhecido como pai», mas apenas um interesse ligado à segurança jurídica do investigado e à proteção da paz e intimidade da sua família, os quais, quando em conflito com o direito fundamental do filho a conhecer as suas origens e a ver estabelecida a sua filiação, não têm força jusfundamental para prevalecer sobre os direitos, pessoalíssimos, do filho».

Confirma-se, pois, integralmente, o acórdão recorrido.

8. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I - A recusa injustificada, por parte do réu, em ação de investigação de paternidade, em se submeter a exames científicos de paternidade, onera o mesmo réu com a prova que não é pai, conforme estabelecido no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil.

II - A restrição mínima dos direitos do réu à integridade pessoal ou à reserva da vida familiar implicada na citada orientação está mais do que justificada no princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) e no direito destes à identidade pessoal (artigo 26º, n.º 1) e ao estabelecimento da filiação (artigo 36.º, n.º 1, da CRP).

III – Não se verifica, pois, na interpretação normativa adotada no acórdão recorrido qualquer violação dos direitos do réu ou qualquer restrição de direitos fundamentais que possa considerar-se desproporcionada à luz do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, dado o peso e a intensidade valorativa dos direitos dos filhos, que nem sequer pediram para nascer.

III - Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 18 de junho de 2024

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Manuel Aguiar Pereira (1.º Adjunto)

Nelson Borges Carneiro (2.º Adjunto)