Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3867
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ANTÓNIO COLAÇO
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
TENTATIVA IMPOSSÍVEL
ACTOS DE EXECUÇÃO
INSTIGAÇÃO
AUTORIA MORAL
AUTORIA
AUTORIA IMEDIATA
AUTORIA MEDIATA
CO-AUTORIA
Nº do Documento: SJ20081016038675
Data do Acordão: 10/16/2008
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I  -   Mostrando-se assentes, entre outros, os seguintes factos:

       - O arguido delineou um plano criminoso no sentido de matar a mulher e para o efeito, resolveu contratar uma ou duas pessoas, mediante o pagamento de montante a combinar, sendo que todos os pormenores, nomeadamente o modo, local e data, seriam determinados e ditados por si;

       - Para tanto contactou telefonicamente o armazém de S, dizendo que precisava de alguém «para tomar conta de uma pessoa», e tendo sido atendido por A, este entendeu que aquele procurava alguém que cuidasse de uma pessoa, idosa ou doente, pelo que lhe disse que poderia colocar um anúncio no placar do armazém, tendo o arguido informado que preferia enviar uma carta;

       - O arguido remeteu então pelo correio uma carta onde adiantava as primeiras informações sobre a pessoa de quem precisa que «cuidassem», explicitando que “de matar” se tratava, fornecendo elementos sobre a rotina do «alvo»; estabelece o momento e o local do cometimento do crime; decide da arma do crime; determina o seu modo de execução; impõe a simulação do móbil do crime; define a data do crime; fixa as regras a respeitar quando da prática do crime e após o cometimento do homicídio e confirma o envio de uma nova carta acompanhada de mapa da área e, posteriormente, de uma terceira carta com a identificação do veículo automóvel da vítima e respectiva matrícula;

       - S e O denunciaram a situação à PJ, o que o arguido sempre desconheceu;

       - Assim dias depois o arguido questionou A sobre se conheciam alguém que pudesse cometer o homicídio, tendo este respondido afirmativamente e que iriam estabelecer o contacto com o executante;

       - Alguns dias mais tarde, na sequência de novo contacto telefónico do arguido, A diz-lhe que o preço é de € 10 000, devendo pagar metade antes do serviço, o que este aceitou, ficando de remeter nova carta com instruções mais detalhadas;

       - Mais tarde, o arguido remeteu carta com o mapa da cidade de B; menciona que o alvo é uma mulher; identifica a residência; adianta os locais onde a mesma pode encontrar-se; acrescenta os cuidados a ter; reitera as cautelas indicadas na carta anterior e solicita que mantenham o contacto do executante para «trabalhos futuros»;

       - S, A e O entregaram essa carta à PJ;

       - Dias depois, o arguido remeteu carta contendo € 5000, aí identifica a marca, matrícula e modelo do veículo automóvel da vítima; a sua idade; indica duas datas para o cometimento do crime; impõe o cumprimento de todas as suas instruções e a destruição de todos os documentos;

       - Uma vez mais, aqueles entregaram a carta e o valor à PJ;

       - Porque em nenhum dos dias indicados pelo arguido o serviço encomendado foi efectuado, o mesmo contactou A para saber a razão de tal incumprimento;

       - O arguido, que tinha plena intenção de causar a morte da sua mulher M, só não o conseguiu por circunstâncias completamente alheias à sua própria vontade, nomeadamente pelo facto da pessoa ou pessoas contratada(s) não ter(em) levado a efeito tal plano, abortando desta forma o plano criminoso,

a 1.ª instância absolveu o arguido, integrando o caso na figura da instigação, não punível porque não consta qualquer acto de execução ou começo de execução.

II -  Autor não é apenas aquele que executa o facto por si mesmo; é, também, aquele que executa o facto por intermédio de outrem (autoria mediata). A autoria conexiona-se com a execução e não há autoria sem execução.

III - A autoria mediata é uma forma desta categoria criminosa e, tal como a autoria imediata, caracteriza-se pela existência do domínio do facto. É autor mediato [homem de trás] quem realiza o tipo legal de crime servindo-se de outrem [homem de diante] como «instrumento» – cf. Jescheck, Tratado de Direito Penal, versão espanhola, pág. 604.

IV - Tanto a instigação como a autoria mediata estão previstas no art. 26.º do CP pese embora estruturadas em termos diversos: na instigação a punição de quem “determinar outra pessoa à prática do facto” depende de existir “execução ou começo de execução”, já não assim tratando-se de autoria mediata, onde para a punição “de quem executar o facto (…) por intermédio de outrem” não se exige este requisito, nem qualquer outro equivalente.

V - Esta diversidade de estrutura da autoria mediata e de instigação é particularmente relevante numa ordem jurídica que, como a nossa, não incrimina a tentativa de instigação, pois daí decorre que o agente mediato, se o seu comportamento for tratado como instigação, ficará impune sempre que não chegar a haver execução ou começo de execução, por parte do instigado.

VI - Diferentemente, nos casos de autoria mediata, o regime resultante do art. 26.º do CP não exige para a responsabilidade do autor mediato, o início da execução pelo autor imediato, não excluindo, assim, a possibilidade de o “homem de trás” ser punido por tentativa a partir de um momento anterior àquele em que o autor imediato começa a praticar actos de execução do tipo legal de crime – cf. Maria da Conceição Valdágua in, Figura Central, Aliciamento e Autoria Mediata, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, I, págs. 932 a 934.

VII - O arguido agiu como autor mediato já que, até ser detido pela PJ, manteve sempre o domínio do facto, bastando pensar na possibilidade, sempre aberta, de substituição do “executor”.

VIII - O começo da tentativa surge naquele momento em que o círculo de protecção dos direitos do titular do direito se revela, objectivamente ameaçado pela acção realizada, ou seja, com a tentativa o agente põe “ imediatamente em marcha a realização do tipo” no dizer de Jescheck/Weigen.

IX - Todo o comportamento do arguido funcionou de molde a conduzir ao efeito ilícito por ele pretendido – a encomenda do crime; a idoneidade e a confiança nos meios e nos contactos estabelecidos; o planeamento do modus operandi; as precisões de tempo, modo e lugar transmitidas para a prática do delito na pessoa da vítima, cujas características teve o cuidado de pormenorizar e o ajuste a combinação de dinheiro disponibilizado –, integrando a previsão de um crime de homicídio qualificado, na modalidade de autoria mediata, na vertente tentada prevista no art. 22.º, n.º 2, al. c), do CP.

 

Decisão Texto Integral:


Relatório
Em processo comum, o Tribunal Colectivo da 4.ª Vara Criminal do Círculo do Porto, por Acórdão de 09.07.2007, absolveu AA da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. d) e i) do CP, pelo qual vinha acusado.
Dessa decisão absolutória interpôs recurso o Mº Pº, circunscrito à matéria de direito, ao abrigo do artigo 432º.d) do CPP/ 95, para o que das alegações apresentadas tirou as seguintes conclusões:
1º - O arguido planeou detalhadamente, mesmo quanto ao meio, o assassínio da esposa e encomendou a execução desse plano a terceiros;
2º - o plano não teve concretização, por razões alheias à vontade do seu autor;
3º - no que respeita à autoria, tal conduta é qualificável como autoria mediata e não como instigação.
4º - Com efeito, a conduta do arguido é subsumível na 2ª proposição da norma do artigo 26º do CP, que estabelece que “ é punível como autor quem executar o facto …por intermédio de outrem”;
5º - ao planear, delinear detalhes de execução e ao encomendar e pagar a execução, o arguido assumiu a posição a que a doutrina, no domínio das teses de autoria, designa como o “ homem – de- trás”;
6º - “homem – de - trás” que é um autor mediato, por não executar o facto directamente, mas que o mantém sob seu domínio, na vertente do domínio da vontade, controlando a execução e podendo dela desistir, querendo fazê-lo.
7º - No caso em apreço, a execução do plano só não ocorreu por razões alheias à vontade do autor, razões que o próprio desconhecia.
8º - Entende a doutrina que, se o autor imediato não chegar a executar o crime, o início da tentativa, na esfera do autor mediato, verificar-se-á quando os seus actos possam abranger, pelo menos, o tipo de actos de execução definidos na c) do nº 2 do artigo 22º do CP.
9º - Ao encomendar a execução do plano, o arguido deixou o processo causal decorrer livremente, fora do seu domínio e no domínio do executante do contrato, a quem até havia pago;
10º - e assim, como bem compreendeu o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão em que se apreciava a prisão preventiva a que o arguido foi sujeito, os actos praticados pelo arguido podiam fazer esperar que se lhes seguissem os actos idóneos a produzir a morte da esposa, morte que desejava;
11º - o mesmo é dizer: a conduta do arguido ultrapassou o patamar dos actos preparatórios, descendo aos de execução, na previsão da alínea c) do nº 2º do artigo 22º do CP.
12º - Assim, como autor mediato, o arguido praticou actos de execução do crime de homicídio que planeara, contra a sua mulher, a BB.
13º - O douto Acórdão recorrido violou as normas dos artigos 22º n° l e n° 2 c), 23º, 26º, 73º, 131º e 132º nº 1 e 2 d) e i) todos do CP.
14ª – Deverá o Acórdão ser revogado e substituído por outro que condene o arguido AAcomo autor mediato, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p e p. pelas normas conjugadas dos artigos 22º,23º,73º, 131º e 132º nº l e 2 d) e i) do CP.

Respondeu o arguido concluindo que:
1. O Acórdão recorrido faz uma aplicação irrepreensível do direito vigente, maxime do art 26.° do Código Penal, e não pode ser senão objecto de confirmação, devendo manter-se no presente a decisão absolutória nele contida.
2. Na realidade, por onde quer que se perspective os factos provados – pela óptica do conceito extensivo de autoria ou do conceito do domínio do facto – chegar-se-á sempre à conclusão de que os mesmos não são objecto de previsão incriminadora em lei penal vigente à data da sua pratica.
3. Em qualquer das orientações, e porque se dá como provado que os interlocutores do arguido actuaram sempre de livre vontade e com pleno conhecimento dos factos, a situação em causa deve integrar-se no campo da instigação.
4. Porque face a qualquer uma daquelas concepções, em sede de instigação constitui condição “sine qua non” para que o mandante seja penalmente responsabilizado pela sua acção de determinação sobre o executor é que este dê, pelo menos, início à execução,
5. e porque realmente ficou provado que em momento algum os interlocutores do arguido se predispuseram a matar ou a servir de intermediários para matar a assistente e que os mesmos não realizaram qualquer acto de execução de que pudesse resultar a morte da assistente,
6. estaríamos, quando muito, perante tentativa de instigação e não instigação propriamente dita..
7. À luz da lei penal portuguesa, a tentativa de instigação não é punível.
8. Assim sendo, e na linha do Acórdão do STJ de 31-10-1996, bem concluiu o douto Tribunal “a quo” que a conduta do arguido não chegou a assumir relevância penal.
9. A motivação do douto recurso do Ministério Público louva-se fundamentalmente no pensamento da Mestre Maria da Conceição Valdágua, que, na realidade, propõe o aliciamento como figura próxima da autoria mediata.
10. Mas daí a considerar, como insinua o Ministério Público, que no caso em apreço a doutrina da Conceição Valdágua conduziria á punição do arguido, apesar de os seus interlocutores não terem praticado qualquer acto de execução, não só não corresponde à verdade, como inclusive é desmentido pela posição expressamente assumida por aquela Autora:
11. “Isto, todavia, só será relevante para quem sustente, quanto ao início da tentativa do autor mediato, alguma das teses que admitem que a tentativa, pode começar, em regra, antes de o agente imediato praticar qualquer acto de execução, entendimento que, no seu conteúdo essencial, nos parece de rejeitar”(MARIA DA CONCEIÇÃO VALDÁGUA, «Autoria Mediata em virtude …in: Líber Discípulorum para Jorge Figueiredo Dias, p.671e seg).
12. Segundo Conceição Valdágua, mesmo considerando que o aliciador é autor mediato a sua punibilidade deverá, pois, em regra, depender da prática, de actos de execução pelo executor.
13. Assim, aplicando à matéria provada o pensamento de Conceição Valdágua – considerando-o na sua íntegra e não de uma forma truncada, como propõe o Ministério Público – conclui-se necessariamente pela irrelevância da conduta penal do arguido, uma vez que os seus interlocutores não praticaram qualquer acto do qual pudesse vir a resultar, de forma imediata ou sequer remota, a morte da assistente.
14. Na douta motivação do Ministério Público invoca-se ainda o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-09-2006, tirado em sede de recurso de medida de coacção aplicada ao arguido, e no célebre Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre o caso Meia Culpa.
15. Não há, todavia, qualquer paralelismo entre este caso e o caso da Meia Culpa, pois há um ‘’pormenor” que faz toda a diferença: enquanto no caso Meia Culpa os executores mataram 13 pessoas; aqui os supostos destinatários da ordem para matar foram logo denunciar a situação à Policia Judiciária.
16. Demais que, como já se referiu, no domínio do conceito extensivo de autoria, a melhor doutrina entende que “a autoria mediata postula que o facto a que o executor foi determinado alcance, pelo menos, um começo de execução”.
17. E também o Supremo Tribunal de Justiça considerou já que “para ser punível a autoria moral, e, antes de mais, necessário que o suposto autor material represente e queira o correspondente crime (no caso, um homicídio voluntário) e que o comece a executar”. (Sum. do Ac./STJ de 31.10.1996 – Proc. nº 04 8948- www.dgsi.pt)
Carece de fundamento a interpretação “adrede” pensada pelo Ilustre Recorrente, devendo negar-se provimento ao recurso.

Subidos os autos ao Supremo Tribunal foram os mesmos vista ao M.P., a que se seguiram os vistos dos Juízes Conselheiros desta Secção Criminal – 5ª, sendo posteriormente submetidos à decisão do Exmº Presidente da Secção para marcação da data para audiência.

Estatuto pessoal do arguido: Esteve detido preventivamente entre 27.6.2006 a 09.07.2007, sendo que desde 20.09.2006 até á sua restituição de liberdade esteve sob a medida de uso de pulseira electrónica.

Fundamentação:
A)
A motivação do recorrente – o M.P. – centra-se na questão da qualificação jurídica dos factos, pugnando pela condenação do arguido como autor mediato de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22°, 23°, 73°, 131° e 132º n.°s 1 e 2, als. d) e i) todos do CP. Como se sabe, o Acórdão recorrido fundamentado no artigo 26º- última parte- do CP absolveu o arguido perfilhando o entendimento que aí se configurava um caso de instigação, mas não punível por não ter ocorrido execução ou começo de execução; muito menos seria então caso para punição de tentativa de instigação, cuja punição a lei nem sequer contempla.
A questão que o Supremo Tribunal é chamado a decidir assenta, pois, no dimensionamento da acção participativa do arguido AAno evento que lhe é imputado, tendo por base a factualidade apurada na instância recorrida.

B)
Na instância recorrida foram dados como provados os seguintes factos: (transcrição)

1 - O arguido AA e a assistente BB, são casados entre si.
2 - O casal tem dois filhos CC e DD.
3 - O arguido desempenhou funções de Director na empresa II Portuguesa, Importações e Exportações, Lda”, com sede em Arcos de Valdevez, até ter sido despedido, em data não apurada do mês de Setembro de 2005, sendo que, na sequência de tal despedimento, o arguido terá efectuado telefonemas anónimos e enviado cartas, também anónimas, a algumas entidades, denunciando alegadas práticas ilegais por parte da empresa em questão.
4 - Em Janeiro de 1996, no contexto da actividade da empresa “BR – Gestão de Unidades Hoteleiras, Lda”, de que é sócia gerente, a assistente iniciou a sua actividade na área da restauração, inaugurando o restaurante “MS, sito na Av...., em Braga.
5 - Em consequência das imposições dos contratos - tipo celebrados, em regime de franchising, entre as empresas e a MS – imposição da existência de dois sócios, um com 99% do capital outro com 1% – o arguido assumiu-se como sócio gerente daquela empresa.
6 - Na realidade, porém, limitava-se a colaborar com a assistente, desempenhando, nos bastidores, funções diversas, designadamente, administrativas e financeiras.
7 - O que veio igualmente a verificar-se relativamente à empresa “BG – Gestão de Unidades Hoteleiras, Lda”, através da qual, em Novembro de 1999, a assistente, sócia gerente, abriu o seu segundo restaurante “MS, sito na Variante ..., Gualtar, Braga, em que contava com a colaboração do arguido, sócio, sobretudo na realização de operações bancárias diversas, através da Internet.
8 - Entretanto, a vida conjugal da assistente e do arguido foi-se deteriorando até que, em data indeterminada do mês de Setembro de 1999, se deu o rompimento total e definitivo.
9 - Não obstante este rompimento e durante os cerca de cinco anos que se seguiram, assistente e arguido continuaram a partilhar aquela que era, então, a casa de morada da família, sita na R. ..., n.º 000, Nogueiró, Braga.
10 - Este imóvel, adquirido pela “BR – Gestão de Unidades Hoteleiras, Lda.”, veio a ser adquirido àquela empresa pelo casal, em Dezembro de 2003, tendo, para este efeito, a assistente e o arguido contraído um empréstimo bancário junto do MILLENIUM BCP, no valor aproximado de 500.000€ (quinhentos mil euros).
11 - Quando dos factos participado e investigados, encontrava-se em curso o processo de divórcio litigioso do casal, que se havia iniciado sensivelmente cerca de dois anos antes.
12 - Inicialmente, o exercício do poder paternal de CC e DD, filhos menores do casal, foi atribuído à assistente, tendo, posteriormente sido alterado, ficando ambos os filhos entregues aos cuidados do arguido.
13 - Quando desta alteração do poder paternal a assistente abandonou aquela que fora a casa de morada da família e ficaram separados de facto desde Maio de 2005.
14 - Em Janeiro de 2006, na sequência de nova decisão judicial, DD, o filho mais novo do casal passou a estar aos cuidados da assistente, tendo CC, o filho mais velho, continuado a residir com o arguido.
15 - Em data não apurada mas próxima do ano de 2004, na sequência de desvio de dinheiro das empresas supracitadas e bem assim de inúmeras faltas injustificadas, o arguido acabou por ser despedido.
16 - Embora e exprima em Língua Portuguesa, o arguido AA não domina a sua forma escrita, razão por que comete vários erros gramaticais e de sintaxe, sendo que na sua vida quotidiana em família, assistente e arguido tinham por hábito falar com os filhos em Língua Inglesa.
17 - O arguido utilizava o veículo automóvel BMW, modelo 535I, de cor azul, com a matrícula 00-00-KB, registado em nome da empresa “BR – Gestão de Unidades Hoteleiras, Lda”” e bem assim um Range Rover, com a matrícula 00-00-ED, de cor azul, registado em nome da empresa “BG – Gestão de Unidades Hoteleiras, Lda”, ambos equipados com dispositivo de “Via Verde”, cuja facturação era enviada para as empresas supracitadas.
18 - Sendo a assistente quem pagava aquelas despesas e tendo, consequentemente, acesso à informação sobre os percursos efectuados, por aqueles veículos automóveis quando circulando em auto-estradas.
19 - O arguido AA delineou um plano criminoso no sentido de proceder à eliminação física da assistente, BB, sua mulher, ou seja, matá-la.
20 - Para este efeito, o arguido resolveu contratar uma ou duas pessoas que fossem capazes de levar por diante os seus intentos, mediante o pagamento de um montante a combinar, sendo que todos os pormenores, nomeadamente o modo, local e data, para a boa prossecução de tal plano, seriam determinados e ditados pelo arguido.
21 - Assim e na sequência deste plano, em data não apurada mas sensivelmente uma semana antes da recepção da carta redigida em Língua Russa, o arguido AA contactou telefonicamente o armazém de SP, tendo sido atendido por AZ, com quem manteve uma conversa com duração aproximada de 3 minutos.
22 - O arguido, que não se identificou, afirmou pretender falar com “YY” ou com o “patrão”, tendo sido esclarecido, pelo AZ, que ali não trabalhava qualquer indivíduo com aquele nome e que tão pouco o patrão dominava a Língua Portuguesa, razão por que melhor seria falar consigo.
23 - O arguido AA referiu, então, que precisava de alguém “para tomar conta de uma pessoa (SIC), tendo AZ ficado convencido de que aquele procurava alguém que cuidasse de uma pessoa, idosa ou doente.
24 - Assim, sugeriu ao arguido que se deslocasse ao estabelecimento comercial “TT”, sito na Rua ... – 314, na cidade do Porto, onde poderia colocar um anúncio no placar ali existente, destinado, justamente, à afixação de anúncios diversos, para o que, inclusivamente, ali se encontravam disponíveis pequenos formulários.
25 - Esta sugestão de AZ foi recusado pelo arguido que referiu preferir enviar uma carta, não tendo, contudo, solicitado, aquele, a morada para onde deveria remeter tal carta
26 - Em data não apurada mas situada na semana de 15 a 19 de Maio de 2006, o arguido enviou para o estabelecimento comercial “TT”, no Porto, uma carta redigida em Língua Russa, remetida por correio azul, foi enviada num envelope branco, sem remetente, e era dirigida a “Sr. YY, ..., Ldaa, Rua do ..., 314; 4050-033 Porto”, palavras escritas com utilização de escantilhão.
27 - O envelope era em tudo idêntico ao constante de fls. 805 dos autos, ou seja, àquele em que, posteriormente enviou a primeira carta redigida em Língua Portuguesa e que o denunciante, SP, devidamente identificado a fls. 813 dos autos, entregou á Polícia Judiciária do Porto, quando da denúncia dos facto.
28 - SP, que era quem sempre abria a correspondência remetida para o estabelecimento, abriu o envelope em causa.
29 - Esta carta, escrita a computador, numa folha branca de tamanho A4, encontrava-se redigida em língua russa e, portanto em alfabeto cirílico.
30 - Não obstante as palavras constantes do texto existirem e estarem correctamente escritas, a missiva apresentava-se desprovida de qualquer sentido, não passando de um conjunto de frases desconexas e, por isso, de teor imperceptível.
31 - SP manteve a carta em seu poder, no seu estabelecimento, durante dois ou três dias, após o que a destruiu, tendo durante este lapso de tempo, AZ, lido o conteúdo da carta em causa.
32 - Em data posterior, SP relatou a OR, seu amigo, que recebera a carta aqui em questão.
33 - Três ou quatro dias depois de enviar a carta em questão, eventualmente a 22 ou 24 de Maio, o arguido contactou novamente e telefonicamente o armazém do denunciante, tendo o AZ atendido a chamada em causa, na presença de SP.
34 - O arguido perguntou a AZ se tinham recebido a carta que lhes enviara, tendo-lhe aquele respondido afirmativamente, acrescentando, porém, que o seu teor era imperceptível.
35 - Nesta altura, ainda AZ admitia, à semelhança de SP, que o arguido pretendia contratar os serviços de alguém para cuidar de uma pessoa, razão por que lhe sugeriu que enviasse uma nova carta mas redigida em Português, por forma a poderem afixá-la no placar existente na loja.
36 - No dia 25 de Maio de 2006, o arguido remeteu, pelo correio, para o estabelecimento comercial do denunciante, no sobrescrito cujo original se encontra junto a fls. 805 dos autos, a carta cujo original se encontra junta a fls. 806.
37 - Nesta carta, o arguido adianta as primeiras informações, escassas, sobre a pessoa de quem, afinal, precisava que “cuidassem”, subentenda-se, matassem – uma “pessoa”, residente em Braga e com filhos.
38 - Fornecendo os primeiros elementos sobre a rotina diária do alvo – leva as “crianças” à escola, de carro, às 08H30 e regressa dez minutos depois, estacionando o veículo automóvel em frente ao prédio onde reside.
39 - Estabelece o momento e local do cometimento do crime – quando a vítima estiver a regressar a casa, após deixar as crianças na escola, e quando estiver a sair da viatura.
40 - Decide da arma do crime - uma arma de fogo.
41 - Determina o seu modo de execução – dois disparos na cabeça.
42 - Impõe a simulação do móbil do crime – encenação de roubo, mediante roubo da carteira.
43 - Define a data do crime – 09 de Junho, “sem falha”.
44 - Estabelece e fixa as regras a respeitar quando da prática do crime (homicídio) – a utilização de um veículo furtado ou com matrícula falsa.
45 - Fixa as regras a respeitar após o cometimento do homicídio – a destruição da carteira da vítima e da arma e o abandono do país do autor do crime.
46 - Confirma o que fará a seguir – enviará uma segunda carta, acompanhada de um mapa da área onde a vítima reside, sublinhando, de antemão, que importa conhecer bem a zona, ensaiar a entrada e saída do local e não utilizar auto-estradas, atenta a existência de câmaras de filmar; poucos dias antes da data fixada, 09 de Junho, enviará, pelo correio, uma terceira carta, identificando o veículo automóvel da vítima e a respectiva matrícula.
47 - Em data não apurada mas que se admite ter sido no dia seguinte ao da recepção de tal carta, SP exibiu a mesma a AZ.
48 - No dia 29/05/2006, às 11H25, a partir da cabine telefónica com o número 00000000, localizada na Av.a Dr. .... – Shell, em Leça da Palmeira, Matosinhos, o arguido efectuou uma chamada, com a duração de 104 segundos, para o armazém do SP.
49 - Após ter-se identificado como o autor da missiva referida supra, confirmou a recepção daquela carta e quis saber se tinham já arranjado alguém para executar o serviço, tendo-lhe sido respondido negativamente.
50 - No dia 29/05/2006, o denunciante SP telefonou ao seu amigo OR, pedindo-lhe ajuda e conselho relativos a algo que tinha para lhe mostrar.
51 - a sequência de tal contacto telefónico, SP e ORencontraram-se e neste encontro, o primeiro exibiu ao segundo a carta acima referida e informando-o que, nesse mesmo dia, o autor daquela tinha já contactado telefonicamente o seu armazém, com o propósito de confirmar a sua recepção e apurar se tinham já providenciado alguém para matar a vítima.
52 - Relatou-lhe ainda que já antes recebera uma carta redigida em Língua Russa, cujo teor não tinha alcançado e por esse motivo a havia deitado fora.
53 - Finda a conversa, decidiram e acordaram que se impunha denunciar a situação, o que fizeram nesse mesmo dia, pelas 16H00, no Piquete da Polícia Judiciária do Porto.
54 - No dia 30/05/2006, às 10H42M, a partir da cabine telefónica com o número 22 00000, localizada na Av.a ..., DF 1288, em Leça da Palmeira, o arguido AA telefonou novamente para o armazém de SP, tendo sido atendido por AZ, com quem manteve uma conversa com a duração de 25 segundos.
55 - Nesta conversa, o arguido AAperguntou ao AZ se podia “fazer este trabalho” (SIC), tendo-lhe este respondido negativamente e que tão pouco estavam interessados em fazê-lo, após o que, apressadamente, desligou o telefone.
56 - SP, que se encontrava no armazém, questionou AZ sobre a chamada telefónica que acabara de atender, tendo-lhe este relatado teor da mesma.
57 - Nesta altura, o SP deu conhecimento a AZ que já denunciara esta situação à Polícia Judiciária do Porto e que, na eventualidade de contactos telefónicos futuros, não deveria afirmar peremptoriamente da indisponibilidade para providenciar para quem executasse o serviço pretendido pelo arguido,
58 - Mas sim, devendo, tentar empatá-lo, dizendo que iriam envidar esforços nesse sentido, a fim de recolher todos os elementos necessários que pudessem conduzir, a Polícia Judiciária do Porto, à sua identificação, conforme, aliás, indicações que recebera aquando da denúncia, por parte daquele órgão de polícia criminal.
59 - Nesse mesmo dia, 30/05/2006, às 10H47M, daquela mesma cabine telefónica, o arguido voltou a contactar o armazém de SP, tendo sido novamente atendido por AZ.
60 - A conversa, com a duração de 216 segundos, que foi presenciada pelo denunciante SP, que dava indicações a AZ sobre o que dizer ou perguntar, pois que aquele, embora soubesse já que a situação fora denunciada à Polícia, se mostrava hesitante e ansioso por pôr termo ao telefonema, contrariamente, SP, pretendia que aquele prolongasse a conversa o mais que pudesse.
61 - O arguido, insistentemente, questionou AZ sobre se conheciam ou não alguém que pudesse cometer o homicídio da vítima, tendo-lhe aquele, perante a determinação do arguido, respondido afirmativamente mas acrescentado que teriam que estabelecer contacto com o possível executante, o que poderia ainda levar algum tempo.
62 - AZ questionou o arguido sobre o montante que estaria disposto a dispender, tendo obtido por parte deste, em resposta, a pergunta sobre o montante que lhe seria cobrado.
63 - AZ respondeu que desconhecia em absoluto tal montante porquanto a fixação do preço seria da competência do executante, que, para esse e outros efeitos, se impunha ainda contactar, razão pela qual, nesta conversa, nem o arguido nem o AZ mencionaram qualquer montante.
64 - Não obstante, AZ e arguido falaram na possibilidade de o executante, uma vez fixado o preço do serviço, vir a exigir, antes da sua execução, metade daquele montante.
65 - Apesar de abordados estes assuntos, nada ficou definido pois que, conforme alegara AZ, à semelhança do montante a cobrar, competiria ao executante definir valor e modo de pagamento daquele.
66 - No dia 02/06/2006, às 10H25M, a partir da cabine telefónica com o número 22000000, localizada na R. Dr. .... – 00, Avilhó, Lavra, o arguido contactou, mais uma vez, o armazém de SP, tendo mantido com AZ uma conversa com a duração de 56 segundos, presenciada pelo SP, que, uma vez mais, servia de auxiliar ao AZ.
67 - O arguido AAcomeçou por perguntar a AZ se sabiam já o montante que o executante cobraria pelo serviço pretendido, ao que aquele respondeu afirmativamente, adiantando o montante de 10.000€ (dez mil euros).
68 - Entendendo que o montante pedido era elevado, o arguido tentou negociar tal montante, mas o AZ justificou aquele montante, referindo as exigências que ele próprio fizera, designadamente, a de o executante abandonar o país e acrescentando e referindo as despesas que a execução de tal serviço implicaria.
69 - O arguido aceitou o preço do serviço contratado – 10.000€ - e a condição de pagamento de metade daquele valor antes da sua concretização, adiantando que, posteriormente, enviaria nova carta com instruções mais detalhadas sobre como o serviço deveria ser executado.
70 - No dia 06/06/2006, o arguido remeteu, pelo correio, a carta cujo original se encontra junta a fls. 809 dos autos, acompanhada do mapa da cidade de Braga, junto a fls. 808 dos autos, uma e outro no interior do envelope cujo original se encontra junto a fls. 807 dos autos.
71 - Começa por adiantar um detalhe, até então nunca mencionado, sobre o alvo – é uma mulher.
72 - Identifica a residência daquela – assinala no mapa, com setas, as artérias de acesso à rua onde aquele reside, a rua da residência e escreve, com recurso a escantilhão, as palavras “PRÉDIO A-4”, com uma seta que remete para a rua onde o imóvel fica situado.
73 - Adianta os locais onde a mulher pode encontrar-se – o restaurante “MS, na Quinta d...., assinalado no mapa com um círculo, e a Av.ª ... e artérias circundantes, também devidamente assinaladas com traços e um círculo.
74 - Acrescenta cuidados a ter – as instalações do restaurante em causa estão equipadas com máquinas de filmar, o veículo usado no dia do crime, furtado ou com matrícula falsa, deve ser diferente do utilizado para praticar os percursos, deve fazer-se o reconhecimento dos diferentes locais assinalados, diversas vezes, de manhã e durante o dia.
75 - Reitera as cautelas já referidas na carta anterior – a não utilização de auto-estrada, a necessidade de praticar os percursos, a saída imperiosa do autor material do crime do país, a melhor altura do dia para praticar o crime – de manhã, no regresso a casa, após levar “as crianças”, a necessidade de simular um assalto e a posterior destruição da arma de fogo utilizada;
76 - Revela dúvidas quanto à data – em alternativa ao dia 09 de Junho, referido na primeira carta, adianta o dia 16 do mesmo mês.
77 - Refere que, quando estiver certo quanto à data, enviará nova carta com informações sobre a cor e a matrícula da viatura utilizada pelo alvo e bem assim metade do preço estabelecido.
78 - Acrescenta que pagará o restante, uma vez executado o serviço.
79 - Solicita que mantenham o contacto do executante, para “futuros trabalhos” (SIC).
80 - SP exibiu a carta e mapa em causa a AZ, contactou telefonicamente com OR, dando-lhe conhecimento de que recebera a carta supracitada.
81 - Na sequência deste contacto, acabaram por se encontrar, altura em que SP mostrou aquele a missiva em causa e bem assim o mapa que a acompanhava, tendo OR manuseado a carta, a fim de a ler.
82 - No dia seguinte, na posse desta carta, deslocaram-se às instalações da Polícia Judiciária do porto, onde fizeram a entrega da mesma.
83 - No dia 09/06/2006, à 09H49M, a partir da cabine com o número 20000000, no Largo ..., em Arcozelo, Braga, o arguido, mais uma vez, telefonou para o armazém de SP, tendo, mais uma vez, falado com AZ, tendo a conversa, com duração de 245 segundos, sido presenciada pelo denunciante SP.
84 - O arguido AA começou por confirmar a recepção da correspondência que enviara para o estabelecimento na R. ....., n.º 00, no Porto, após o que referiu estar na dúvida quanto à data em que pretendia que o serviço fosse efectuado, tendo indicado como dias possíveis para a eliminação do alvo os dias 16 ou 23 de Junho.
85 - Tentou ainda que o AZ lhe desse o contacto telefónico do executante, solicitação e ta que foi recusada, com o argumento de que o executante pretendia ver mantido e garantido o seu anonimato.
86 - O arguido mostrou-se preocupado com o facto de ter que pagar metade do montante acordado antes de executado o serviço pois que não tinha garantias de que tal viesse efectivamente a suceder.
87 - Como resposta, AZ argumentou que tão pouco o executante tinha garantia alguma de que, uma vez cometido o crime, o arguido cumprisse com o acordado, ou seja, procedesse á entrega do montante restante.
88 - Perante esta resposta, o arguido AA afirmou que, poucos dias ante da data definitiva, enviaria uma nova carta, com instruções ainda mais precisas e bem assim o montante de 5.000€ (cinco mil euros).
89 - Em 16/06/2006, às 10H19M, a partir da cabine com o número 200000, instalada na área de restauração da P..., área de Serviço d....., na A1, sentido Norte/Sul, o arguido, mais uma vez, contactou telefonicamente o armazém do SP.
90 - Porque AZ se não encontrava presente no momento, a chamada telefónica foi atendida por AP, irmão do denunciante, tendo a conversa tido a duração de 24 segundos.
91 - Tendo AP pelo seu interlocutor habitual, o arguido perguntou-lhe, de imediato, se tudo estava pronto para que o serviço fosse executado na semana seguinte. AP desfez o equívoco do arguido, dizendo-lhe que não era AZ, informando-o que este e não encontrava presente, pelo que devia voltar a telefonar mais tarde.
92 - Às 11H10M, da cabine com o número 2000000, instalada na área de restauração da EU, na área de serviço de Pombal, na auto-estrada referida e no mesmo sentido Norte/Sul, o arguido voltou a telefonar para o armazém do denunciante, tendo sido atendido por AZ, que, entretanto, já havia chegado.
93 - Numa breve conversa de 31 segundos, o arguido perguntou a AZ se tudo estava pronto para que o serviço fosse feito na semana seguinte, ao que aquele respondeu afirmativamente, tendo o arguido AA referido que, posteriormente, lhes enviaria mais detalhe e os 5.000€ (cinco mil euros) em notas do Banco Central Europeu.
94 - Em hora não apurada, entre as 19H00 do dia 18/06/2006 e as 09H00 do dia 19/06/2006, o arguido AA deixou no estabelecimento “TT”, sito na R. do ..., n.º 314. Porto, o sobrescrito junto a fls. 810 dos autos, que continha, no seu interior, o recorte de revista de junto a fls. 811 dos autos, a carta junta a fls. 812 dos autos, e
95 - ainda um envelope, mais pequeno, devidamente fechado, que continha 50 (cinquenta) notas do Banco Central Europeu, com o valor facial de 100 (cem) Euros, no total de 5.000 (cinco mil) Euros, conforme consta do termo de recebimento junto a f1s. 39 dos autos e fotografias juntas a fls. 41 a 44 do autos.
96 - Nesta carta, escrita com recurso a escantilhão, o arguido identifica a marca e o modelo do veículo utilizado pela ofendida – Audi Allroad.
97 - Fornece a matrícula correcta da viatura – 00-00-QX.
98 - Adianta a idade da vítima – 46 anos.
99 - Indica duas datas para o cometimento do crime (homicídio) – 22 ou 23 de Junho.
100 - Impõe o cumprimento de todas as suas instruções.
101 - Determina a destruição de todos os documentos.
102 - Tendo a folha de revista sido meticulosamente recortada do exemplar n.º 861 da revista “Auto Hoje”, publicada em 12/5/2006, de forma a eliminar o rodapé que permitia identificar a revista de onde fora retirada.
103 - No recorte em questão, podem ver-se uma fotografia da frente de um veículo automóvel idêntico ao da ofendida e uma fotografia da parte traseira daquele, sendo que em ambas as fotografias, o arguido colou duas pequenas tiras de papel em que escreveu, com recurso a escantilhão, a matrícula 00-00-QX, a do veículo automóvel utilizado pela assistente.
104 - Porque a cor do veículo constante do artigo é distinta da cor da viatura utilizada pela vítima – preta – na fotografia frontal, o arguido escreveu, com escantilhão, a palavra “Preto”, especificando a cor correcta da viatura e para que não subsistissem quaisquer dúvidas, colou, na mesma fotografia, uma tira em que pode ler-se, em Língua Russa, as palavras “cor preta”.
105 - No dia 19/06/2006, cerca das 09H00, quando abria o estabelecimento, RP encontrou o envelope em causa, que se encontrava no chão, em frente à ranhura existente na porta de entrada, própria para a introdução da correspondência.
106 - Atendendo ao volume do envelope e aquilo que lhe havia sido dito pelo arguido, na conversa anterior, SP suspeitou que aquele pudesse conter a quantia em dinheiro e bem assim a carta com os últimos detalhe referentes ao serviço solicitado pelo arguido.
107 - Assim, colocou o envelope num saco plástico e dirigiu-se ao armazém, local onde, após calçar um par de luvas, verificou o seu conteúdo, leu a carta e o recorte de revista mas não tendo aberto o envelope mais pequeno, que se encontrava devidamente fechado, mas cujo conteúdo, atento o seu volume, suspeitou que fosse a quantia previamente estipulada.
108 - Tomou esta iniciativa ou comportamento por pensar que o arguido, como habitualmente fizera até então, contactasse telefonicamente o seu armazém, a fim de confirmar a recepção do envelope, e que, no decurso da conversa, se apercebesse do seu desconhecimento sobre o conteúdo, criando, desta forma, a suspeita de que o poderiam ter denunciado ás autoridades competente.
109 - Seguidamente, exibiu o conteúdo do envelope a AZ, a quem relatou as circunstâncias de tempo e modo em que tal envelope entrara na sua posse.
110 - Após, telefonou a OR, a quem pôs ao corrente do que se estava a passar, tendo combinado encontrar-se.
111 - Neste encontro, o SP não permitiu que o OR tivesse acesso ao conteúdo do envelope, ou seja á carta e ao recorte de revista, tendo, contudo, na conversa entabulada, partilhado das suas suspeitas, nomeadamente que o volume do envelope indiciava que o arguido podia lá ter introduzido o montante previamente estipulado para a realização do plano criminoso.
112 - Após esta conversa, ambos se deslocaram às instalações da Polícia Judiciária do Porto, fazendo a entrega do envelope com todo o seu conteúdo, conforme consta do termo de recebimento junto a fls. 39 dos autos.
113 - Durante a tarde de 20/06/2006, o arguido tentou contactar o armazém de SP, tendo, para o efeito, efectuado 4 (quatro) telefonemas, a partir das cabines telefónicas com os números 22 000000, 22 000000, 22 000000 e 22 0000000, instaladas na Av....., Aldoar, Passeio ..., no Porto, Av...., Porto e Lugar de Padrão, Perafita, respectivamente.
114 - AZ não atendeu nenhuma das chamadas telefónicas, porém anotou os números dos telefones a partir dos quais foram efectuadas.
115 - No dia 21/06/2006, às 10H50M, 10H53M e 10H55M, o arguido tentou, novamente, contactar telefonicamente o armazém de SP, a partir da cabine telefónica com o número 2000000, instalada no Largo ...., Arcozelo, Braga.
116 - Porém, nenhuma destas chamadas foi atendida pelo SP.
117 - No dia 26/06/2006, às 12H12M, a partir da cabine telefónica com o número 22 00000, instalada na Av.a..../R., no Porto, o arguido contactou, mais uma vez, telefonicamente o armazém de SP, tendo sido atendido por AZ, com quem manteve uma breve conversa de cerca de 125 segundos.
118 - O arguido AA quis saber junto de AZ por que razão o serviço contratado não fora executado, até porque já fornecera todos os elementos necessários e enviara, inclusivamente, metade do preço acordado.
119 - AZ afirmou desconhecer as razões de tal incumprimento, sublinhando que agiam na mera qualidade intermediários e que nenhuma relação tinham com o assunto.
120 - Adiantando, porém, que certamente algum imprevisto impedira o executante de levar a bom termo o plano criminoso, acrescentando que, posteriormente, lhe forneceria o contacto telefónico daquele, a fim de que o arguido pudesse contactá-lo directamente e esclarecer a situação.
121 - No dia 27/06/2006, às 10H21M, a partir da cabine telefónica com o número 200000000 instalada na Praceta ...., S. João do Souto, em Braga, o arguido contactou, novamente, telefonicamente o armazém do SP, mantendo com AZ uma conversa de cerca de 331 segundos.
122 - O arguido AA, manifestamente descontente com a situação, quis, mais uma vez, saber junto de AZ da razão ou razões pelas quais o plano criminoso – serviço –, devidamente encomendado, não fora executado.
123 - Nesta conversa, mais uma vez o AZ reafirmou que nada sabia ou podia fazer sobre o assunto, atento o facto de ser um mero intermediário.
124 - Seguidamente, o AZ forneceu ao arguido o contacto de um telemóvel que a Polícia Judiciária do Porto havia entregue a OR, para ser utilizado nesta situação.
125 - No dia 27/06/2006, às 10H26, a partir da cabine telefónica com o número 20000000, instalada na Praceta ..., S. José de S. Lázaro, em Braga, o arguido tentou, sem sucesso, contactar o armazém do denunciante, Só não o conseguindo por a mesma se encontrar avariada.
126 - Seguidamente, o arguido AA que se fazia transportar no veículo automóvel da marca BMW, modelo 535 I, de matrícula 00-00-KB, entrou no referido veículo automóvel e dirigiu-se na direcção de Viana do Castelo, onde cerca das 12 horas e 30 minutos, é abordado por elementos da Polícia Judiciária do Porto, conforme consta do relatório de diligência externa junto a fls. 110 e seguintes dos autos.
127 - A mulher com cerca de 46 anos de idade que se fazia transportar no veículo automóvel da marca Audi, modelo Allroad, de matrícula 00-00-QX, era, nem mais nem menos, do que a mulher do arguido, a assistente BB, de quem o arguido forneceu todos os pormenores quer hábitos, aos eventuais contratados, para que estes levassem a bom termo o seu plano criminoso, ou seja, poder tirar-lhe a vida.
128 - O arguido AA ao delinear o plano criminoso acima descrito, contratando pessoa ou pessoas para o realizar, ao entregar, em notas do Banco Central Europeu, metade do montante estabelecido pelo pagamento do serviço contratado, ao estabelecer as circunstâncias de tempo e modo em que tal plano criminoso deveria ser levado a efeito, tinha plena intenção de causar a morte á assistente BB, sua mulher,
129 - Só não o tendo conseguido por circunstâncias completamente alheias á sua própria vontade, nomeadamente pelo facto da pessoa ou pessoas contratada para levar a efeito tal plano, terem dado conhecimento do mesmo ao órgão de polícia criminal competente, a Polícia Judiciária do Porto, abortando, desta forma, o plano criminoso do arguido.
130 - O arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é reprovável e censurável.

Mais se provou que:
131 - O arguido não tem antecedentes criminais.»

C)
A questão que o Supremo Tribunal é chamado a decidir assenta agora pois no dimensionamento da acção participativa do arguido AA no evento que lhe é imputado, tendo por base a factualidade apurada na instância recorrida. A legislação criminal dá conta deste postulado legi-punitivo constituindo sua clara expressão o postulado decorrente do artigo 10º do CP quando alude à comissão por acção ou omissão. E mais especificamente no plano criminal sempre se poderia referir a actos preparatórios que, de um modo geral e nos termos do artigo 21º do CP, não são puníveis (salvo disposição em contrário) por não serem descritos na tipicidade qualificativa do crime.
O complexo da actuação do arguido e que cabe aqui sujeitar ao crivo de avaliação visando uma caracterização para efeitos de subsunção incriminatória ou não, resume-se ao seguinte: Por vicissitudes que não importa aqui aprofundar mas que se prendem com uma feição conturbada da vida do casal – arguido e esposa – apura-se que o arguido delineou um plano no sentido da eliminação física da sua mulher BB (facto 19). Assim por altura do dia 07.05.2006 (facto 21) o arguido AA contactou telefonicamente o armazém de SP sendo atendido por AZ. No telefonema informava que precisava de alguém “para tomar conta de uma pessoa” expressão essa que mais tarde se veio a verificar como referindo-se a “ MATAR” uma pessoa, residente em Braga (facto 37) e que essa pessoa era uma mulher (facto 71). Tratava-se na realidade da mulher do arguido, a assistente BB, relativamente a quem o arguido fornecera todos os pormenores e hábitos, aos eventuais contratados, para que estes levassem a bom termo o seu plano criminoso, ou seja, poder tirar-lhe a vida (facto 127).
Os contactos com SP e AZ, a quem o arguido encomendara o trabalho de eliminação física da mulher, desenvolveram-se através de inúmeros telefonemas e cartas espaçados no tempo (factos 21, 26, 33, 36, 48, 54, 59, 66, 70, 83, 89, 92, 94, 113, 115, 117, 121,e 125).
Com vista à execução da morte encomendada o arguido chegou mesmo a ajustar o montante monetário de 10.000.00 € (facto67) tendo feito a entrega de 5.000.00 € (facto 95).
A Polícia Judiciária começou a estar a par de todo este acontecimento no seu conjunto, a partir do dia 29.05.2006 (factos 50 e 53) quando SP, acompanhado de um seu amigo OR, deu conhecimento do que sucedido àquela instituição policial. Até aí, e no que diz respeito ao relacionamento entre o arguido AA e os contactados, SP e AZ, haviam tido lugar dois telefonemas daquele para estes, o envio de uma carta escrita em língua russa (facto 26) mas que foi destruída (facto 31) e uma outra esta escrita em português e que foi entregue à P.J. em 29.05.2006. Foi a Polícia Judiciária quem aconselhou os contactados para “empatarem” o arguido animando-o nas e para as iniciativas que tomava (facto 58).

D)
Um tribunal nem julga o homem nem os factos isoladamente. Julga sim um cidadão (ou cidadã) que praticou factos (acção ou omissão) subsumíveis ao tipo da anti-sociabilidade prevista na legislação punitiva como crime. Esta afirmação tópica assume sentido quando se coloca a tónica na manifesta e óbvia não punibilidade de quem pode nutrir propósito de prática de delito criminal mas que não passa de mera intenção sufragada pelas sociedades democráticas onde é unânime o consenso da política legislativa no sentido de proibição da punição pelo delito de opinião (a nuda cogitatio), por pior que seja a carga intencional desde que desacompanhada de factos.
A legislação criminal dá conta deste postulado legi-punitivo constituindo sua clara expressão os postulado decorrente do artigo 10º do CP quando alude à comissão por acção ou omissão. E mais especificamente no plano criminal sempre se poderia referir a actos preparatórios que, de um modo geral e nos termos do artigo 21º do CP, não são puníveis (salvo disposição em contrário) por não serem descritos na tipicidade qualificativa do crime.

E)
Está em apreço, como se afirmou, o alcance a atribuir á intervenção do arguido em todo este processo. Tanto o Acórdão recorrido como as intervenções processuais do recorrente e do arguido são suficientemente eloquentes na apreciação interpretativa da dogmática decorrente da doutrina mais recente relativamente ao dimensionamento da co-autoria e autoria mediata. É o caso da Maria da Conceição Valdágua (Figura Central, Aliciamento e Autoria Mediata – contributo para uma crítica intra-sistemática da doutrina de Claus Roxin sobre a delimitação da autoria mediata face à participação no âmbito dos crimes de domínio – Estudos em Homenagem à Cunha Rodrigues –I – pgs. 917e ss); de Figueiredo Dias (Revista de Legislação e Jurisprudência nº 3937, Ano 135, Mar.- Abril. 2006, pgs 225, nota 4 e Sumários do Direito Penal 1976, pgs. 87 e ss), Eduardo Correia (Direito Criminal 1988, Vol II pgs. 252, nota de rodapé 1) e Figueiredo Dias /Susana Aires Sousa (RLJ – nº 3937, Ano 2006, pgs. 256 e ss)..
É manifesto que as referências doutrinais constituem uma base referencial que sustenta e faculta a nervura e a essência dos moldes em que a teoria jurídica deve ser orientada e seguida. Porém, nunca se lhes pode atribuir o sentido de uma dogmática absolutista,. Sem por em causa o “ magister dixit” o julgador tem por obrigação de a sujeitar, na parte pertinente, a um juízo crítico, na sua aplicação à realidade das coisas e da vivência humana – a começar precisamente pela verdade material, do que só os factos apurados nos podem dar um testemunho fiel, subsumindo-os à previsão legal que se impõe. A partir daqui, é que se apreciará, se analisará e se decidirá fazendo uso de critérios e instrumentos que a doutrina nos ensina, e não a inversa ou seja, partindo da formatação da teoria para nela compactar a factualidade.

F)
Está em apreço a caracterização da acção do arguido AA, tendo como suporte participativo a intervenção de SP e AZ.
Reportam-se os autos ao facto do arguido ter planeado matar a sua mulher BB tendo para tanto contactado os dois cidadãos russos, para a execução material do homicídio projectado. Os contactos estabelecidos entre o arguido e os contactados cifram-se em cartas e contactos telefonemas ocorridos entre 07.05.2006 (aproximadamente) e 27.06.2006, data esta em que o arguido foi detido. No desenvolvimento destes contactos o arguido, na carta subscrita em 25.05.2006 adiantou como indicação precisa de que o objectivo era o de matar uma pessoa com filhos (facto 37º), que posteriormente informou tratar-se de uma mulher(facto 71) e que finalmente se constatou ser a mulher do arguido BB ( facto 127º); indicando a forma de o fazer e facultando todos os pormenores para a realização do feito. Em 29.05.2006 Em 29.05.2006 é feita comunicação à Policia Judiciária (factos 50º e 53º) .
Daí em diante, pese embora por indicação da P.J. no sentido de “empatar”o arguido, os dois cidadãos russos revelam a este a aceitação da execução do plano., da tarefa de matar, ajustando um preço (10.000.00 €), ocorrendo um adiantamento de ½ do preço ajustado para o cometimento do crime em 22 ou 23 de Junho 2006.
F.1.)
Importa ajuizar que no contexto do relacionamento entre o arguido e tais cidadãos, muito embora estes se viessem a referir a um hipotético terceiro como executante, nunca se constatou a existência deste terceiro homem. E a dúvida quanto à sua existência ainda se torna mais sentida quando deste terceiro homem se continuou a falar já depois do contacto com a P.J.
Há que admitir pois que, com o terceiro homem ou sem ele, para o arguido tudo se passou com sendo o SP e o AZ os destinatários da sua proposta a quem estava confiada a execução aprazada para a prática do homicídio. Com efeito, de nenhum interesse se revestiria para o arguido a existência desse terceiro. A questão fundamental que se lhe colocava era que a morte da sua mulher tivesse lugar fosse por que mãos fosse….menos as dele, arguido.
Para a consecução deste objectivo o arguido estabeleceu um entendimento para a execução estabelecendo as coordenadas de tempo, modo e lugar, culminando no pagamento antecipado da metade da contrapartida.

G)
Na apreciação da relação dicotómica que os intervenientes revelam, urge acentuar que o arguido AA tendo proposto em 25/05/2006, o plano do crime, isto é, todo o processo causal homicida (factos 36 a 46), consolidou-o em 29/05/2006, apesar de nesse mesmo dia toda a situação ter sido dada a conhecer à P.J. pelos cidadãos SP e OR. Com efeito, está apurado (facto 49) que tendo o arguido telefonado para o armazém do SP no sentido de saber se já estava arranjado alguém para executar o serviço, foi-lhe respondido negativamente, ou seja, no sentido de que ainda não, tendo em conta a evolução que os factos assumiram. Esta transmissão telefónica de aceitação implícita da proposta, dá inequívoca sequência à actos de execução de que nos falam os tratadistas e que se encontra reflectido no art.º 22.º n.º 1, desde logo, e, em qualquer caso, n.º 2, alínea c) do CP.(1) Com efeito, se uma tal constatação de aceitação implícita exprime um domínio de acção por parte do destinatário, confirma, do ponto de vista da representação intelectual, o domínio do processo causal e domínio do facto pelo arguido até ao resultado final, sem prejuízo do domínio de acção vir a poder também pertencer ao autor imediato. Da postura do SP nem seria razoável que o arguido pensasse que a P.J. conhecesse do projecto ou sequer na reserva mental do SP ou do AZ.
A partir daquela aceitação do plano, com efeito, passou a ficar a projectada vítima imediata e directamente colocada em perigo, fora já, do domínio (absoluto) de intervenção do arguido, no que se refere à específica execução do “serviço”. A conexão temporal entre o começo da tentativa e a representada produção do resultado era manifesta (cfr. facto 43) e, analisada (como deve ser) a situação sempre do ponto de vista do arguido, restaria apenas, para que aquele objectivo fosse alcançado, que se firmasse o “preço” e fosse transmitida a identificação precisa da pessoa visada, actos estes que “…segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis…” se afiguram ___ tal como, de resto, o da própria formulação global da proposta ___ “…de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores…”, ou seja, os projectados actos finais de simulação de roubo, com os planeados disparos.

H)
Neste entendimento entre os intervenientes importa no essencial encontrar a situação em que o arguido se coloca em todo o processo de formação de vontade e de acção consequente visando a prática do delito homicida. Estamos todos cientes da doutrina em matéria da participação criminosa urgindo descortinar a posição em que o arguido AA se encontra.
Dispõe o artigo 26º do CP que: “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática de facto, desde que haja execução ou começo de execução“.
O preceito indica quatro formas de comparticipação criminosa expressas na literatura juspenalista portuguesa de seguinte forma:
- autoria imediata: executar o facto por si mesmo;
- autoria mediata: executá-lo por intermédio de outrem;
- co-autoria: tomar parte directa na execução do facto por acordo ou juntamente com outro ou outros; e
- instigação: determinar dolosamente outra pessoa à prática do facto desde que haja execução ou começo de execução. Nota 2- ao artigo 26º: Código Penal anotado e comentado: Victor Sá Pereira /Alexandre Lafayette – Quid Júris
H.1)
A este propósito importa reter que, assente na precedente classificação, a instância recorrida proferiu acórdão absolutório por perfilhar o entendimento de que, configurado o caso dos autos como integrando a figura de instigação, esta não era de punir porquanto não se constataria qualquer acto de execução ou começo de execução.
H.2)
Na verdade, a autoria conexiona-se com a execução. Não há autoria sem execução. Mas autor não é apenas aquele que executa o facto por si mesmo. Autor é também, com efeito, aquele que executa o facto por intermédio de outrem. É a autoria mediata. É sabido que o artigo 26º do CP adoptou um conceito extensivo de autor. É no fundo, um “participante principal” (cfr. Cavaleiro Ferreira – Lições – I – 4ª ed. 473).. Para a teoria do domínio do facto aqui tão citada, é autor quem, de acordo com o significado do seu contributo, governa o curso do facto ou como significativamente foi já decidido no STJ “segundo a importância da sua contribuição efectiva, comparte o domínio do decurso do facto (CJ//STJ - 22.11.2006- XIV, 3/230).
“A autoria mediata é uma forma de autoria e, como a autoria imediata, caracteriza-se pela existência do domínio do facto. É autor mediato [homem de trás] quem realiza o tipo penal de maneira que para a execução da acção típica se serve de outrem [homem de diante] como “instrumento”” – JESCHECK- Tratado de Direito Penal – Versão espanhola - pgs. 604).
H.3)
Todavia a instigação não esgota o campo cognitivo da realidade que desponta dos autos nem a figura da autoria mediata se confunde com aquela. É enganadora a aparência de uma pretensa uniformidade de tratamento entre as duas figuras quando subsumidas ao dispositivo do artigo 26º do CP. É que [no art. 26° do Código Penal a instigação e a autoria mediata estão estruturadas em termos diversos: segundo este preceito, a punição de quem “determinar outra pessoa à prática do facto” depende de existir “execução ou começo de execução”, mas para a punição de quem “executar o facto (…) por intermédio de outrem”, não se exige esse requisito, nem qualquer outro equivalente. (…) Esta diversidade de estrutura da autoria mediata e de instigação é particularmente relevante numa ordem jurídica que, como a nossa, não incrimina a tentativa de instigação, pois daí decorre que o agente mediato, se o seu comportamento for tratado como instigação, ficará impune sempre que não chegar a haver execução ou começo de execução, por parte do instigado. Diferentemente, nos casos de autoria mediata, o regime resultante do artigo 26º do CP não exige para a responsabilidade do autor mediato, o início da execução pelo autor imediato, não excluindo, assim, a possibilidade de o “homem de trás” ser punido por tentativa a partir de um momento anterior àquele em que o autor imediato começa a praticar actos de execução do tipo legal de crime. (…) Saber se esse momento, anterior à prática de actos de execução pelo autor imediato, coincide com o início ou com o fim da actuação do autor mediato sobre o executor, ou com o momento em que o autor mediato larga das mãos o curso dos acontecimentos, ou com a verificação do perigo imediato para o bem jurídico, é questão que não tem de ser aqui decidida. Em qualquer caso, parece-nos correcto afirmar que, também no direito penal português vigente, quando o autor imediato não chega a praticar actos de execução do facto tipicamente ilícito, o âmbito de punição do autor mediato pode ser mais amplo (pode começar mais cedo) do que o da punição do instigador ] – Maria da Conceição Valdágua –in. Figura Central, Aliciamento, e Autoria Mediata- Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues - -1- pgs. 932/934.
Complementando este entendimento doutrinal, já atrás na al. G) ficou demonstrado o acto de execução praticado pelo arguido enquanto autor mediato, do que deriva o preenchimento do pressuposto para a sua eventual punição.
H.4)
Este alargamento conceitual de autoria, como tal há muito recepcionado no nosso CP tem a sua explicação no desenvolvimento contemporâneo da sociedade humana, sendo que as inerentes actividades multifacetadas que se desenvolveram no seu seio vieram determinar um olhar mais consentâneo com os problemas gerados. Neste contexto, é conhecida a trama em que se desdobrou a criminalidade nomeadamente a organizada e a transnacional. Neste mesmo contexto e resultante da especificidade da vivência humana se impuseram de uma forma algo estruturada formas de actuações anti-sociais que até há poucos anos não passavam de ocorrências esporádicas. Estamos a pensar, na actualidade, do incremento do que constitui a actuação delituosa de “crime por encomenda” onde o homicídio ocupa já um receoso grau de incidência. Se este entendimento envolve, no quadro de política criminal, uma valoração de prevenção geral, a verdade é que o caso dos autos determina que nos lancemos decididamente, abandonando, ao menos como posição de princípio, uma leitura complacente na apreciação do fenómeno, sobretudo quando o valor em causa é o bem supremo da vida humana.

I)
Já acima se referiu que todo o comportamento do arguido, cujo dimensionamento participativo não pode deixar de integrar o “tatbestand” de um autor mediato face à sua ligação directiva e determinante para o comportamento dos cidadãos SP e AZ. Visando assim realizar o assassinato da sua mulher e dessa forma mandatá-los para esta finalidade última, concertou com estes previamente, visando um encontro de mútuas vontades, um ajuste monetário, que veio, aliás, a concretizar-se, da sua parte ainda com toda a pureza de convicção, na entrega de 5.000.00 €. A isto se aditou todo um conjunto de contactos, via telefone e epistolar para uma tanto quanto possível concertação para a almejada finalidade de eliminação física da visada vítima. Pelo menos até 29.05.2006, data em que foi formulada a comunicação à P.J., os promitentes executantes revelaram efectiva adesão à proposta do arguido alimentando a convicção e confiança deste na relação sinalagmática assim estabelecida. Na verdade, da aceitação da sinalagma pelo aliciado, [decorre que, se o “homem de trás” mudar de ideias e comunicar ao aliciado que não pagará a prestação inicialmente proposta, ou que, afinal, já não pretende a execução do facto, o aliciado não cometerá o facto punível. Ora, quem tem nas mãos a ultima decisão sobre a execução do facto possui, do mesmo passo, aquele poder de supra-determinação do processo causal, conducente à realização do tipo legal de crime, que é a quinta essência do domínio do facto. (…) Quanto ao aliciado verifica-se que ele, nas circunstâncias referidas, aceita a tarefa de executor do plano criminoso do agente mediato e subordina-se inteiramente à vontade deste. Daí que deva entender-se que o domínio do facto, sob a forma de domínio da vontade, cabe ao agente mediato, sem embargo de também o executor ter o domínio do facto, sob forma de domínio da acção.] – (cfr. Maria da Conceição Valdágua – ibidem- pgs.937.)
E a verdade é que até ao momento de ser detido pela P.J., o arguido, enquanto autor mediato deteve o domínio do facto, bastando pensar na possibilidade, sempre aberta, de substituição do “executor”, perante a posterior recusa do anteriormente seleccionado que motiva a intenção policial, que os autos documentam, de “empatar(entreter) o arguido para evitar essa substituição.

J)
Face aos dispositivos dos artigos 131º e 132º ambos do CP., a acção visada pelo arguido, envolveria a prática de um crime de homicídio qualificado.
A questão coloca-se porém no âmbito da tentativa. Como se sabe o começo da tentativa surge naquele momento em que círculo de protecção dos direitos do titular do direito se revela, objectivamente, ameaçado pela acção realizada. No dizer de Jesckeck/Weigen, com a tentativa o agente “ põe imediatamente em marcha a realização do tipo”.. Já acima se demonstrou que todo o comportamento do arguido funcionou de molde a conduzir ao efeito ilícito por ele pretendido. Assim, a encomenda do crime; a idoneidade e a confiança nos meios e nos contactos estabelecidos, o planeamento do “modus operandi”, as precisões de tempo, modo e lugar transmitidas para a prática do delito na pessoa da vítima, cujas características teve o cuidado de pormenorizar, e o ajuste e combinação de dinheiro disponibilizado, são de molde a integrar a previsão do artigo 26º.do CP na modalidade de autoria mediata na vertente tentada prevista no artigo 22º.2.c. do mesmo diploma.

K)
É irrecusável não ver reconhecida face aos factos apurados e no quadro da lei penal nacional, a responsabilidade do arguido, enquanto autor mediato do crime de homicídio qualificado tentado na pessoa da sua mulher BB.
O CP vigente fala expressamente da circunstância agravante da prática do facto contra “cônjuge, ex-cônjuge, ….” ( al.b. do nº 2. do artigo 132º ). Porém, esta agravação inexiste na versão do CP vigente á data dos factos, que, por isso mesmo se revela mais favorável ao arguido.
K.1)
O cuidado posto pelo arguido no projecto e planeamento de toda a trama do crime sendo de destacar o pormenor com que vinha sucessivamente instruindo os seus intermediários e demonstrativo da premeditação com que agiu. Não está demonstrado sequer o arrependimento ou qualquer outra circunstância relevante atenuativa da responsabilidade, sendo que é mesmo de relevar o dolo directo que inspira e anima todo o comportamento do arguido.
K.2)
Ao crime de homicídio qualificado corresponde a moldura de 12 a 25 anos de prisão.
Por força das disposições conjugadas dos artigos 23º.2. e 73º do CP a moldura aplicável é de 2anos- 4meses – 8 dias a 16 anos - 8 meses de prisão.
Entende-se que para o caso a pena ajustada deve situar-se próximo do mínimo legal mas pouco acima desse mesmo limite, sendo assim a mesma fixada em 4 anos e 6 meses.
K.3)
Porém, em confronto com o dispositivo do artigo 50º do CP vigente, entende-se que o arguido não deve beneficiar do instituto de suspensão de execução de pena de prisão. Com efeito, o comportamento do arguido reveste-se de muita gravidade na sociedade civilizada e contemporânea. A criminalidade “por encomenda” com particular referência ao homicídio, modalidade criminal esta toda eivada de um sentido comportamental traiçoeiro, falso e cobarde. A atitude do arguido tanto anterior como posterior ao acto cometido em nada ajuda a nele confiar em como venha a adoptar um comportamento de fiabilidade face à sua postura social. Decide-se por isso não fazer uso do instituto de suspensão de execução de pena de prisão.

Decisão
Em audiência realizada, decidem os Juízes - Conselheiros da Secção Criminal -5ª – do Supremo Tribunal:
- Dar provimento ao recurso do Ministério Público revogando a decisão recorrida.
- Condenar o arguido AA como autor mediato na forma tentada pela prática do crime de homicídio qualificado previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22º.1.2.c), 23º, 26º, 131º e 132º.1. todos do CP; e
- Aplicar a pena de 4 (quatro anos) e 6 (seis) meses de prisão.

· Vai o arguido condenado em 4 € de taxa de justiça.

Lisboa, 16 de Outubro de 2008

      António Colaço (relator)

      Soares Ramos - Do ponto de vista das representações mentais do arguido passou a haver, a partir da figurada aquiescência do seu plano, logo em finais de Maio de 2006, uma co-autoria do “domínio de facto conjunto”, no sentido de que o acontecimento ou resultado global esperado dessa situação conjunta, passaria ou poderia passar a imputar-se, uma vez ele verificado, a cada um dos agentes (mediato e imediatos): ou seja, cada acção de execução do plano elaborado pelo arguido, materializado embora pelos projectados autores imediatos, corresponderia, sempre no domínio das suas representações mentais, a uma acção executória concretizadora global (de todos os figurados autores), iminente, no caso concreto, como se deduz da natureza do contacto e da marcante pertinácia do arguido, antes e após a interposição policial.

       Santos Carvalho (“vencido, nos termos da declaração do Conselheiro Souto Moura”)

       Souto Moura - Votei vencido, muito sinteticamente, por quatro razões:
1) A lei portuguesa não pune a tentativa de instigação.
2) Na autoria mediata o “homem da frente” é um mero instrumento não responsabilizável, sem domínio moral ou material do facto. A estender-se a autoria mediata como faz o acórdão nem sequer teria sido necessário ao legislador prever a instigação.
3) Não há co-autoria sem dolo de autor. No caso dos autos os factos provados não permitem afirmar sequer a efectivação de qualquer acordo prévio. Para além do mais.
4) Porque a mulher do arguido não morreu, a haver crime ele teria que ser tentado. O que o arguido fez, para ser considerado acto de execução, teria que preceder imediatamente o acto idóneo a produzir a morte.

Elaborei um projecto de acórdão que não fez vencimento e em que me pronunciei pela confirmação da decisão da primeira instância. Apresentei o seguinte fundamento:

1) Não oferece qualquer contestação a matéria de facto dada por provada, pelo que a mesma será de dar por definitivamente fixada. Muito sinteticamente, reportam-se os autos ao facto de o arguido ter planeado matar a mulher, e, para levar a cabo os seus intentos, resolver contactar quem, a seu ver, poderia executar materialmente o homicídio, por si, ou arranjando quem o fizesse. Da parte dos contactados não só não obteve a anuência pretendida, como os mesmos alertaram a polícia, com a qual passaram a colaborar, tudo sem o mandante saber. Entretanto, o arguido multiplicou-se em instruções pormenorizadas de execução, tendo mesmo chegado ao ponto de enviar metade do preço, fingidamente acordado, para efectivação do trabalho.

2) Enquanto que o acórdão recorrido entendeu que se configurava um caso de instigação, do artº 26º, última parte, do C.P., não punível por não ter havido começo de execução, sabido que a nossa lei não prevê a tentativa de instigação, o recorrente Mº Pº veio defender a punição do arguido, por se estar perante uma situação de autoria mediata, à luz da 2ª proposição daquele artº 26º, por ter havido início de execução do crime de homicídio, que seria então punível a título de tentativa.
Cumpre então tomar posição.

3) Como anota Figueiredo Dias, a elaboração dogmática à volta do conceito de autoria de um crime, cobra razão de ser, no fundo, com vista a poder determinar-se “aquele que cometeu a infracção” (in Sumários e notas das Lições polic. de 1976). Ao contrário do que ocorria no Código anterior, em que ao lado da autoria se elegiam a cumplicidade e o encobrimento como formas de comparticipação, presentemente, remeteram-se as situações de encobrimento para o âmbito das previsões típicas. Quedámo-nos apenas com a autoria, tratada nas suas várias aflorações do artº 26º do C.P., por um lado, e com a cumplicidade, consagrada como categoria dependente da autoria, no artº 27º, por outro. Sabe-se que o nosso direito se afastou da solução alemã de integrar a cumplicidade e a instigação no âmbito da “participação”, por oposição à autoria, pelo que a instigação não pode, entre nós, deixar de figurar como uma modalidade de autoria plural.
Assim, naquele artº 26º poderão ver-se duas modalidades de autoria singular e outras duas de autoria plural. No primeiro caso, sempre que o crime é levado a cabo por uma única pessoa, ou então por mais, mas em termos de só uma poder ser responsabilizada. No segundo caso, em situações de co-autoria e instigação. O caso dos autos reclama que nos detenhamos, para já, na distinção entre a chamada autoria mediata e a instigação.

4) Ora, se o artº 26º focado começa por se referir ao que poderemos chamar autoria singular imediata, “É punível como autor quem executar o facto por si mesmo”, contempla a seguir a autoria singular mediata: também é autor quem executar o facto “por intermédio de outrem”. Neste caso, a intervenção material de mais de uma pessoa é completamente inócua, porque em termos penalmente significativos só uma pode ser responsabilizada.
O autor não executa por si o facto materialmente. Deixa que outrem, ou faz com que outrem, o execute por si e para si, sendo certo que este outrem não tem nenhum domínio do facto relevante. Acaba por surgir como instrumento (humano) nas mãos do autor.
Tal terá lugar quando esse executante material não tem vontade de agir, caso em que da parte dele nem sequer se poderia falar de acção humana (coacção absoluta, hipnose etc.), quando o executante actua em erro sobre a factualidade típica, erro sobre a proibição, não exigibilidade relevante, ou com falta de consciência da ilicitude, não censurável, em que foi induzido pelo autor mediato. Ainda quando o executante material é inimputável, porque o domínio do facto não se reduz ao domínio naturalístico do facto. O domínio ético-jurídico do facto supõe evidentemente que se esteja à altura de o avaliar.
Mais discutíveis serão as situações ocorridas no seio de “aparelhos organizados de poder”, trabalhadas pela doutrina e jurisprudência alemãs depois do episódio da 2ª Guerra Mundial, como manifestação do domínio mediato do facto. Aí “o sujeito de trás tem à sua disposição uma maquinaria pessoal (quási sempre organizada estatalmente), com cuja ajuda pode cometer os crimes que pretende, sem ter que delegar a sua realização numa decisão autónoma do executante” (cf. ROXIN in “Autoria y Domínio del Hecho en Derecho Penal”, pag. 270). Ainda se poderia aludir a casos laterais, também sem interesse para o que nos ocupa, em que o executante “apesar de deter em princípio o domínio do facto, é um extraneus que não reúne as qualidades exigidas pelo tipo específico que cometeu” ou em “crimes cuja tipicidade exige uma intenção específica, quando ela não esteja presente no agente imediato sem por isso prejudicar o domínio do facto” (cf. F. Dias ob. cit. pag. 64 e 65).
Passado em revista este conjunto de afloramentos de autoria mediata, ressalta como realmente decisivo que a natureza de mero instrumento, do “homem da frente”, leva a que “todos os pressupostos de punibilidade têm que concorrer na pessoa do “homem de trás” e hão-de colocar-se para efeito da sua caracterização dogmática, unicamente face a ele” ( F. Dias, in “Direito Penal, Parte Geral, I, pag. 776).
Ora, surge como evidente que o domínio do facto, sob a forma de domínio da vontade, que hipoteticamente o arguido pudesse ter tido sobre os indivíduos que contactou, não excluiria, de todo, o domínio do facto, por parte destes, sob a forma de domínio da acção, caso tivessem anuído à proposta formulada. Tal se nos afigura suficiente para que, no caso dos autos, se não pudesse falar de autoria mediata, em relação ao arguido, melhor, em relação ao plano do arguido. Este teria sempre que contar com a vontade consciente e responsável dos “aliciados”, cuja vinculação ao “ajuste” estaria sempre na mão deles manter ou não, mesmo depois de, responsável e conscientemente terem acedido a executar o trabalho. Se porventura tivesse sido esse o caso.
Por outro lado, acresce que a responsabilização do arguido, enquanto autor mediato, pressuporia sempre execução efectivada (“quem executar o facto”), o que nos levaria então a averiguar, se a actuação do arguido se enquadra, numa das modalidades de “actos de execução”, do artº 22º nº 2 do C.P.. Na verdade, porque efectivamente a mulher do arguido nada sofreu, importa congregar para o caso os pressupostos da tentativa.

O homicídio não é crime de execução vinculada pelo que está à partida afastada a hipótese da al. a), do nº 2 daquele artº 22º: actos de execução como preenchimento de um elemento constitutivo de um tipo de crime.
A não idoneidade da actividade do arguido para, só por si, causar o resultado morte, decorre desde logo de se ter que socorrer de executantes materiais. Está assim afastada a hipótese da al. b): actos idóneos a produzir o resultado típico.
Fica-nos a hipótese de os procedimentos do arguido, “segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores” [al. c)].
Não é, também, claramente o caso.
A doutrina tem explicitado que “se pode conferir relevo como de execução apenas ao acto que (assumindo as exigências de “normalidade social” requeridas pela alínea em exame) antecede imediatamente , sem solução de continuidade substancial e temporal, o acto cabido nas als. a) ou b)” do nº 2 do artº 22º do C.P. (cf. F. Dias in última ob. cit. pag. 706).
Os actos seguidos, das espécies da al. a) e b) do nº 2 do artº 22º , são os actos que, numa avaliação objectiva, previsivelmente se seguiriam à conduta do agente, sem outros de permeio. A esta “conexão de perigo” acrescentar-se-á uma “conexão típica”, quando o acto perturbe a esfera de protecção da vítima, quando entre já no âmbito de protecção do tipo.
No caso dos autos não se pode falar de “conexão temporal estreita” entre os actos, entre o último acto do arguido, e o que se esperava que se lhe seguisse, consistente no acto idóneo a causar a morte. A esfera de protecção da vida, da vítima potencial, também não chegou a ser de facto perturbada.
Por outras palavras, a factualidade provada não permite afirmar que, à luz da normal experiência da vida, “toda a gente iria pensar” que logo a seguir à actividade do arguido se ultimaria a execução do crime e/ou a morte da vítima. Na verdade, tudo iria ainda ficar dependente, e decisivamente dependente, da colaboração dos contactados. Colaboração que se iria até cifrar, de acordo com a matéria de facto apurada no caso, no contacto dos contactados com um tal YY, que seria, não se sabe bem quando, o executante, o que tudo afastaria ainda mais a produção do resultado típico, em relação à actividade do arguido. Aliás, mesmo para além da ponderação, para nós decisiva, do elemento temporal, a probabilidade da verificação do resultado passaria ainda pelo tipo de pessoas que os contactados fossem. Se, por um lado, o arguido se dirigiu a estas pessoas e não a outras, com certeza de acordo com as informações que obtivera, por outro, não se sabe se essas possíveis informações eram correctas, e nada há na matéria de facto provada que permita caracterizar os contactados, quanto à probabilidade de aceitação do trabalho.
Quando a nossa lei diz, na al. c) do nº 2 do artº 22º do C.P., que só há actos de execução quando é de esperar que, “segundo a experiência comum”, “lhes sigam” os idóneos a produzir o resultado, estes últimos haverão que seguir-se àqueles, sem outros de permeio. A lei não fala simplesmente a actos que se sigam aos executados já, e optou por precisar uma imediatez temporal, através da expressão “lhes sigam”.
A nossa lei não centrou a punição da tentativa na mera perigosidade do agente, revelada só pela análise do seu plano. Fosse esse o caso, e bastaria que o agente, de acordo com o seu plano, pusesse em acção os actos que segundo ele eram decisivos, para serem actos de execução. A consideração do plano do agente interessa, como ponto de partida, para se saber se se está perante actos preparatórios ou de execução, mas, conhecido esse plano, importa que os actos do agente antecedam imediatamente o preenchimento de elementos do tipo, ou se posicionem como um perigo imediato de lesão do bem jurídico, “segundo a experiência comum”.
É evidente que, havendo como há, actos de execução que em si não são ilícitos, eles cobram significado quando observados à luz do plano do agente. Mas importa ainda que, objectivamente, (“segundo a experiência comum” diz a lei), seja de esperar que esses mesmo actos se façam seguir logo de outros, idóneos concretamente a produzir a morte, para o caso que nos ocupa.
Dando a palavra a M. C. Valdágua, “importa assinalar que a referida alínea c) do nº 2 do artº 22º, abrange, em relação ao co-autor da tentativa, sempre e só actos que, isoladamente considerados, apenas fundamentariam a punição por cumplicidade no delito tentado, mas que, tendo em conta o plano concreto dos comparticipantes, são de natureza a fazer esperar (“segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis”),que se lhes sigam, em estreita conexão temporal com eles, actos do mesmo agente que justificam a sua qualificação como co-autor” (in “Início da Tentativa do Co-autor”, pag. 214 e 215). “Em estreita conexão temporal com eles” sublinhe-se.
A doutrina e jurisprudência alemãs vinham exigindo uma anterioridade temporal imediata, dos actos levados a cabo, em relação aos que consumariam o tipo, e, para casos especiais (de autoria mediata, omissão, tentativa acabada, ou “actio libera in causa”, que não interessam ao caso), exigiam o agente tivesse invadido ou diminuído a esfera de protecção da vítima.
Como diz Jescheck “Determinante é que o comportamento ainda formalmente atípico esteja tão estreitamente vinculado com a verdadeira acção executiva, que se possa passar à fase decisiva do facto sem necessidade de passos intermédios essenciais” (in “Derecho Penal – Parte General” pag. 558). E, Stratenverth adverte em consonância que, na tentativa, o acto de execução aparece para uma concepção natural como parte integrante da verdadeira acção típica, porque entre aquele e esta não existe “nenhum acto parcial essencial” (in “Derecho Penal – Parte General” I, pag. 288).
Foi em consonância com estas posições que o § 22º do C.P. alemão definiu tentativa como um avançar imediatamente para a realização do tipo penal (in M. C. Valdágua ob. cit., pag. 46). À letra, aquele preceito diz-nos que “Tentará realizar um acto ilícito quem, de acordo com o seu plano de execução do facto se proponha realizar imediatamente a acção típica”. Por isso é que Jakobs refere mesmo que não há tentativa, por exemplo, quando alguém não ultrapassa a fase de angariação de participes (in “Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y Teoria de la Imputación”, pag. 887).
Resta dizer que “Quanto à regulamentação do início da tentativa em geral (delimitação da tentativa face à fase dos actos preparatórios em princípio impunes), ela é feita no StGB em termos que, na substância das coisas, não se afastam essencialmente daqueles que o legislador português estabeleceu no artº 22º do nosso Código Penal.” (ainda M. C. Valdágua in ob. cit. pag. 45).

No seu recurso, o Mº Pº optou por caracterizar a actuação do arguido como autoria mediata. Para tanto, recorreu ao pensamento de Maria da Conceição Valdágua, a quem atribui a inclusão nos casos de autoria mediata das situações de “aliciamento” sob a forma de ajuste, como seria o dos autos.
Na sequência do que se disse, não se vê como é que é possível considerar o aliciado um mero instrumento do autor mediato. Segundo a ilustre autora citada, “(…) o “homem de trás” tem o domínio do facto (sob a forma de domínio da vontade) e é, portanto autor mediato” (in “Figura Central, Aliciamento e Autoria Mediata”, “Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues”, tomo I, pag. 937). Crê-se, porém, que para se ser autor mediato não basta ter o domínio do facto. É preciso que mais ninguém o tenha.
Mas aquela autora prossegue do seguinte modo: “É que o aliciado, ao concordar, designadamente, com o estabelecimento de uma relação sinalagmática entre a realização da prestação, que o agente mediato se propõe proporcionar-lhe, e a prática do facto tipicamente ilícito, que é condição dessa prestação, põe nas mãos do agente mediato a decisão final, derradeira, sobre o cometimento do facto para que foi aliciado. Na verdade, daquela relação sinalagmática, aceite pelo aliciado, decorre que, se o “homem de trás” mudar de ideias e comunicar ao aliciado que não pagará a prestação inicialmente proposta, ou que, afinal, já não pretende a execução do facto, o aliciado não cometerá o facto punível. Ora, quem tem nas mãos a última decisão sobre a execução do facto possui, do mesmo passo, aquele poder de supra-determinação do processo causal, conducente à realização do tipo legal de crime, que é a quinta-essência do domínio do facto.” Ora, importa sublinhar que, como se deixou expresso, e é inerente às situações de co-autoria, tanto tem o domínio do facto o “homem de trás” que pode mudar de ideias e desistir do projecto, como o “homem da frente” que pode mudar de ideias e deixar de alinhar no projecto. Ambos têm portanto “nas mãos a última decisão sobre a execução do facto” (idem).
Mais adiante refere-se: “Quanto ao aliciado verifica-se que ele, nas circunstâncias referidas, aceita a tarefa de executor do plano criminoso do agente mediato e subordina-se inteiramente à vontade deste. Daí que deva entender-se que o domínio do facto, sob a forma de domínio da vontade, cabe ao agente mediato, sem embargo de também o executor ter o domínio do facto, sob a forma de domínio da acção” (idem). Quer dizer que se reconhece o domínio do facto, sob a forma de domínio da acção, por parte do aliciado, mas, ao mesmo tempo, afirma-se que a vontade deste se subordina “inteiramente” à vontade daquele, o que nos parece contraditório. Tanto o aliciado está nas mãos do aliciante para receber a contrapartida do seu trabalho, como o aliciante está nas mãos do aliciado para ver o seu projecto realizado. Mas tanto o aliciante pode romper com o ajuste, como o aliciado pode deixar de ser sensível ao aliciamento. Sendo este último a romper com o ajuste.

5) A partir daqui somos levados a ensaiar o enquadramento da actividade do arguido na instigação, como fez o acórdão recorrido.
Segundo o artº 26º do C.P., última parte, é autor quem “dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”. A lei prevê, neste segmento, as situações em que alguém comete um crime, e por ele é inteiramente responsável, certo que, no entanto, nunca o teria cometido se não fosse a influência psicológica de outrem. Determinar outrem é criar noutro a decisão de cometer o crime, assumindo-se o último como executante, autor material ou “homem da frente”.
O instigador é na nossa lei autor porque sem ele não havia crime. É figura central, deu um contributo decisivo para que o crime ocorresse, ou, se quisermos abandonar uma concepção causal de autoria, para o legislador, o instigador ascende à categoria de autor, porque domina o facto, sob a forma de domínio da vontade (do executante).
Claro que, para que o crime tenha lugar, não basta a acção do instigador, importando ainda que haja quem o execute. E o executante também será autor, quer porque se entenda que o seu contributo é decisivo, quer porque se considera que domina o facto, sob a forma de domínio da acção. Dois autores (ou mais), portanto, e daí ser a instigação um afloramento de autoria plural, como se disse.
Ao contrário do que acontece na autoria mediata, em que o legislador começou logo por se referir a “quem executar o facto” (não tendo que falar mais em execução ou actos de execução), na instigação o legislador fez depender a sua relevância de haver “execução ou começo de execução”. Do que resulta, em primeiro lugar, que a actividade dirigida a determinar alguém ao cometimento do crime não é vista, sem mais, como execução ou começo de execução do crime. Se a determinação por parte do instigador, fosse o começo de execução do crime, não faria sentido dizer que tem que haver começo de execução. Daí que o começo de execução só possa reportar-se à actuação do(s) instigado(s). Como nos diz M. C. Valdágua, “no caso da instigação, a execução do facto ilícito típico é algo que acresce à conduta do comparticipante em causa (instigador), algo, em suma, que terá que ser levado a cabo por outrem – o instigado – para que aquele seja punível.” (in “Início da Tentativa do Co-autor” pag. 121).
Depois, mesmo que se concedesse que a acção finalisticamente ordenada à determinação, protagonizada pelo instigador, era o modo próprio de ele executar o crime, sempre importaria saber se determinou, ou não, de facto, outrem. E o legislador entendeu, como “exigência de política criminal” (cf. F. Dias, in obra por último citada, pag. 809), que o sinal, o sintoma, a revelação de que tinha ocorrido determinação, só podia ser dado, convincentemente, pelo menos com o começo de execução. Assim, com o começo de execução por parte do “homem da frente” revelar-se-á, retrospectivamente, a execução própria do “homem de trás”.
No caso dos autos, não só o começo de execução, e muito menos a execução do homicídio, não foi obstaculizado pela intervenção de estranhos ao “ajuste”, como foram os interlocutores do arguido que resolveram não iniciar qualquer execução, denunciando a situação à polícia. O que significa que não ficou preenchido o elemento “determinação”.
Se o agente não determinou ninguém, não é, à luz do artº 26º do C.P. instigador. E não sendo instigador não é por essa via autor. A lei não se basta, para que alguém ascenda à categoria de autor, que tenha pretendido ser autor, sem o conseguir.
“É também patente que enquanto o agente imediato não praticou nenhum acto de execução não há verdadeiramente instigação. Aliás nem de outra forma poderia ser, já que então estar-se-iam a punir meras cogitationes (cf. Faria Costa in “Jornadas de Direito Criminal, C.E.J.”, pag. 173)
Isto dito, fica sem sentido discorrer sobre se a factualidade dos autos, encarada como instigação, seria, em matéria de iter criminis, assimilável a uma situação de tentativa.
Dir-se-á, na sequência das anteriores considerações, e com F. Dias, mais uma vez, “que o início da tentativa da prática do facto implica, na instigação, a prática de um acto de execução pelo instigado” (ob. cit. pag. 822).
Por último, se o executante houvesse de ser outro indivíduo que não os contactados, teríamos que configurar uma instigação em cadeia. Mesmo que tivesse havido actos dos contactados, como é sabido, a instigação da instigação, entre nós, não é punida.
Vale a pena anotar que segundo o Código Penal brasileiro (artº 31º), por exemplo, a situação teria o mesmo tratamento.
“… o ajuste, determinação (induzimento), instigação ou auxílio, são impuníveis, se o crime não chega, pelo menos a ser tentado. A forma tentada é o patamar mínimo para efeito da punibilidade da participação, que sempre depende de uma conduta principal (típica e anti-jurídica). Sabemos que a forma tentada exige actos executórios (execução do verbo núcleo do tipo ou começo de execução do crime – teoria objectiva-individual). Os actos preparatórios (que antecedem os executórios), em regra não são puníveis. Isso é o que diz o artº 31º do C.P. Várias pessoas ajustam (combinam) um roubo e elegem A para executá-lo. A, nem sequer inicia a execução. A combinação precedente, nesse caso, é impunível. Essa é regra do direito penal brasileiro.” (cf. Flávio Gomes e Garcia-Pablos de Molina, in “Direito Penal – Parte geral”, vol. II, pag. 482).

6) Há que ver, finalmente, se a situação dos autos não poderá implicar a responsabilização do arguido, considerando-o simplesmente co-autor.
O artº 26º já citado considera, também, autor, quem
- tomar parte directa na execução do facto
- por acordo ou juntamente com outro ou outros.
A propósito deste segmento tem-se distinguido um elemento objectivo do elemento subjectivo da co- autoria.
Dir-se-á que, quanto ao primeiro, tem que existir uma distribuição complementar de tarefas para levar a cabo o crime. Para se afastar qualquer intervenção na execução, que seja só de cúmplice, importa que o co-autor tome parte na execução “de modo directo”, com isso se querendo aludir a uma intervenção essencial em termos de causalidade adequada (E. Correia). Ou então que tenha o domínio funcional do facto (Roxin) sempre que, tendo em conta certo estádio de execução, a intervenção do co-autor for indispensável à execução do crime, sob pena de sem ela o plano de conjunto falhar.
Segundo o plano do arguido, este levou a cabo um conjunto de “tarefas” que já estão para além do trabalho de aliciamento, ou que fossem, só, pressuposto do ajuste que ele pensava ter sido feito. O arguido podia ter actuado, só, para psicologicamente criar noutrem a vontade de cometer o crime, fundamentalmente com a oferta duma compensação monetária. Acontece é que, para além disso, praticou os actos de execução que a ele competiam, consubstanciados no fornecimento da informação indispensável ao cometimento do crime (cf. v.g. pontos 70 a 76, ou 94 a 104 e 127 da matéria de facto). A prestação dessa informação está para além da acção de determinação de outrem, porque não aparece, na matéria dada por provada, como elemento condicionante do próprio aliciamento.
Quanto ao elemento subjectivo, dir-se-á que, no convencimento do arguido, começou por haver acordo para a execução do crime, e houve da sua parte colaboração para a sua execução, ao prestar a aludida informação. Sobretudo, poderá falar-se em relação a ele de dolo de autor, porque era o arguido que mais tinha a vontade directa na realização do tipo.
Acontece é que, no caso, a co-autoria ainda teria que ser afastada, por não ter tido lugar acordo real. O acordo fingido (ou a ilusão de que o comparsa está a participar na execução), não são relevantes para efeito de se poder falar de co-autoria. Em primeiro lugar, porque sem acordo (ou consciência de colaboração recíproca), não há participação na execução partilhada. Quando muito ocorreriam autorias paralelas. E por aí ficaria desde logo comprometida a fase de execução em si.
Depois, e decisivamente, porque não há autor, ou co-autor , sem dolo de autor.
No caso dos autos, a matéria de facto nada nos diz sobre se os indivíduos contactados chegaram a ter agido com dolo de autor (e muito menos de cúmplice). Muito pelo contrário, a crer naquela matéria de facto, que é, e é só, o nosso ponto de partida, os contactados não agiram com dolo de autor quando fizeram o que se deu por provado que fizeram.
Resta dizer, que pouco interessará discorrer a partir da ideia de que, caso o crime se tivesse consumado, o arguido teria sido considerado autor, e não teria feito nem mais nem menos do que aquilo que fez (salvo, eventualmente, pagar o preço que faltasse).
Em primeiro lugar, porque nessa hipótese seria, desde logo, responsabilizado como instigador. Depois, porque caso o crime se tivesse consumado, e mesmo que raciocinássemos fora do contexto da instigação, o contributo do arguido para o cometimento do crime teria que ser conjugado com o dos participes, para o efeito de se aferir da sua idoneidade para produzir o resultado típico.
Diz-nos Cavaleiro Ferreira: “A idoneidade não pode qualificar cada um dos actos de execução. (…) o acto incoactivo ou inicial da execução pode não ser por si só idóneo, causal em relação ao resultado. A idoneidade para a produção do crime consumado refere-se à execução, de que o primeiro ou primeiros fazem parte.
E, por isso, a definição de cada acto de execução pressupõe a sua inserção na totalidade do plano de execução que o agente se propõe realizar. Há que partir do plano concebido pelo agente, quanto à execução, para avaliar da idoneidade de toda a execução, e é em função desse plano que se atribui a cada parcela, a cada acto do todo, idoneidade em conjunto com os actos não executados. É também esta a interpretação que deve dar-se à alínea b) do nº 2 do artº 22º “ (in “Lições de Direito Penal” vol. I, pag. 286 e 287).

7) Isto dito, somos empurrados para uma reflexão sobre a responsabilização do arguido, em termos de autoria tão só singular. Ao discorrermos sobre a configuração da acção do arguido como simples co-autor, a resposta dada ressalvava sempre o plano do agente, o convencimento do arguido. Objectivamente não houve acordo, não houve consciência partilhada por parte dos co-autores de actuação conjunta, não houve participação na execução por parte dos contactados, porque não houve actos de execução. E não houve actos de execução, como atrás se disse, porque nenhuma das alíneas do nº 2 do artº 22º do C.P. o permite afirmar.
Como se sabe, não ocorreu a morte de ninguém, pelo que a ter havido crime, este teria forçosamente que ser tentado. Já atrás nos referimos à tentativa, para a afastar, a propósito da autoria mediata.
Procedem do mesmo modo, aqui, as considerações atrás feitas sobre a distinção entre actos preparatórios, não puníveis nos termos do artº 21º do C.P., e os actos de execução.
O arguido não pode ser considerado autor mediato, ou instigador, mero co-autor ou simplesmente autor, e obviamente que também não é cúmplice de nada. Por isso, não pode ser responsabilizado.

8) Não fica sem referência que o comportamento do recorrido revela perigosidade, pese embora o bem jurídico protegido nunca ter estado ameaçado de modo penalmente relevante. Mais, tendo em conta a chamada “teoria da impressão”, quanto ao fundamento teórico da tentativa, estar-se-ia perante uma actuação que autorizava que o legislador a tivesse previsto e punido, em face do “alarme social causado”. E a via a seguir poderia ser, em termos de política criminal, que se tivesse enveredado (como chegou a acontecer na fase de projecto do actual C.P.), no sentido de se responsabilizar a “tentativa” de instigação (desde que não seja “manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente”, à semelhança do que dispõe o artº 23º nº 3 do C.P.).
Ou então, seguindo o caminho que o do C.P. espanhol seguiu, onde os actos preparatórios também não são punidos, salvo se assim estiverem especificamente previstos. Por isso criou a figura da “conspiração”, da “proposta “, da “provocação” e “apologia” públicas do crime, como forma de contornar as dificuldades sentidas, exactamente ao nível da distinção entre actos preparatórios e de execução. Diz-nos especificamente aquele C.P. que “a proposta existe quando aquele que resolveu cometer um crime convida outra ou outras pessoas para o executar”, sendo indiferente saber se houve ou não acolhimento da dita proposta (artº 17º nº 2 do C.P. espanhol). E o mesmo Código pune, depois, a simples “proposta” de homicídio (artº 141º).
Não é essa porém a lei que temos.
Outra solução que não a colhida, comprometeria, a nosso ver, o princípio da legalidade: “Nullum crimen sine lege stricta”. Poderíamos estar perante a aplicação analógica de um dos segmentos do artº 26º do C.P., com a consequente inconstitucionalidade.

       Simas Santos - Além do que se refere na decisão, a consideração da co-autoria levaria também à punibilidade da conduta. Com efeito, o arguido desenvolveu um plano minucioso para matar a assistente, que passou pela determinação do dia, hora e meio de execução (dois tiros de arma de fogo na cabeça), o tipo de veículo a utilizar, e a escolha do “executor”. E na execução desse plano, o arguido cumpriu todas as tarefas que se atribuiu, inclusivamente a selecção e o pagamento ao “executor” contratado. Perante a informação de retorno daqueles que contactara para obter a colaboração daquele executor, e a quem pagara já metade do preço que lhe fora pedido (devendo a outra metade ser paga depois da execução), tinha todas as razões (e também as teria qualquer outra pessoa colocada na mesma posição) para esperar que se seguissem os tiros nas condições acordadas.
A circunstância de os seus contactos não estarem, afinal disponíveis para disparar aqueles tiros (com a margem de manobra para especulação sobre esse ponto, que os factos provados consentem e é acentuada na decisão), torna a tentativa impossível, sem que a inaptidão do meio (pela última posição assumida pelos contactos e a intervenção da Polícia Judiciária) fosse manifesta.


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(1)  Artigo 22º.2. do CP: São actos de execução: a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou, c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.