Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS | ||
| Descritores: | QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA INSOLVÊNCIA CULPOSA CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO CRITÉRIO DE QUANTIFICAÇÃO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE CULPA ILICITUDE GERENTE | ||
| Data do Acordão: | 06/22/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I - A qualificação como culposa de uma insolvência – consistindo no escrutínio das condições em que eclodiu ou se agravou uma situação de insolvência – tem em vista “moralizar o sistema”: aplicar certas medidas/sanções ao(s) culpado(s) por tal criação ou agravamento, não permitindo que, havendo culpado(s), o(s) mesmo(s) passem(m) “impune(s)”. II - O que não significa que tais medidas/sanções – maxime, a indemnização consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE – devam ser impostas automaticamente, sem quaisquer limites e fora de quaisquer exigências ou controlo de proporcionalidade (ou de não desproporcionalidade). III - Assim, no caso de indemnização consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE, será atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afetado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas. IV - E entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização. V - Não perdendo o juiz de vista, na fixação das indemnizações, que a responsabilidade consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE (sobre as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa) tem uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória (da pessoa afetada/culpada na insolvência), pelo que a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável. VI - Será o caso – em que um gerente (afetado pela qualificação) é (sem desproporção) condenado a indemnizar os credores da devedora/insolvente no montante de todos os créditos reconhecidos não satisfeitos – de quem, em violação grosseira dos deveres gerais de gerente, passa a atividade duma sociedade de construção civil para outra sociedade (com atividade concorrente) de que também é sócio-gerente, deixando a primeira apenas com dívidas (e insolvente). | ||
| Decisão Texto Integral: | Proc. Nº 439/15.7T8OLH-J.E1.S1
ACORDAM, NA 6.ª SECÇÃO, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. Relatório Por apenso à ação especial de insolvência – em que, a sua apresentação, foi declarada em tal situação José & Sérgio Carolino – Construções. Lda., por sentença de 16/04/2015 – vieram os credores Vistor Internacional, SA. Poolgarve – Máquinas e Equipamentos, Lda., AA, Samicofra Equipamentos para Construção Civil, SA alegar (nos termos do art. 188.º/1 do CIRE) que a insolvência deve ser qualificada como culposa e que devem ser afetados pela qualificação BB, CC e DD, gerentes da devedora, expondo factos suscetíveis de preencher o preceituado nas alíneas a), b), e), f), g), h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE e nas alíneas a) e b) do n.º 3 do mesmo art. 186.º do CIRE. Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência (nos termos do art. 188.º/1 do CIRE), o Sr.º Administrador de Insolvência apresentou parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita. Cumprido o art. 188.º/4 do CIRE, o Ministério Público propôs a qualificação da insolvência como culposa, propondo a afetação dos mesmos gerentes BB, CC e DD. Observado o art. 188.º/6 do CIRE, apenas o requerido BB deduziu oposição, impugnando os fundamentos invocados pelos credores e pelo Ministério Público. Foi proferido despacho saneador – em que foi declarada a instância regular, estado em que se mantém – identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova. Realizada a audiência, o Exmo. Juiz proferiu sentença em que, com fundamento nos art. 186.º/1 e 2, alínea b) do CIRE, decidiu pela qualificação como culposa da insolvência de José & Sérgio Carolino – Construções. Lda., declarando afetados apenas os requeridos BB e CC, decretando a inibição de ambos para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 2 anos e meio, e condenando os mesmos a indemnizar os credores reconhecidos no montante dos créditos verificados e reconhecidos não satisfeitos nos autos, até às forças dos respetivos patrimónios.
Inconformados com tal decisão, interpuseram os requeridos BB e CC recursos de apelação, os quais, por acórdão da Relação de ….. de 08/10/2020, foram julgados totalmente improcedentes.
Ainda inconformados, interpuseram tais requeridos, BB e CC, recursos de “revista excecional. Verificados os requisitos gerais de admissibilidade de tais revistas e havendo “dupla conforme”, foram os autos remetidos à “Formação” (a que alude o art. 672.º/3 do CPC), tendo esta, em 23/03/2021, proferido acórdão em que observou e concluiu o seguinte: “(…) se para a qualificação da insolvência como culposa com os pressupostos previstos no artigo 186º, nºs 1 e 2, alínea b), do CIRE, não vislumbramos qualquer significativa complexidade ou relevante divergência interpretativa dessa norma, o certo é que o mesmo não se passa com aplicação conjugada dos artigos 186º e 189º nºs 2 als. a) e e) e 4 daquele diploma para efeitos da determinação da indemnização decorrente de tal qualificação: uma parte da nossa jurisprudência – como claramente sucede com o invocado acórdão da RP de 19-05-2020 [cf., ainda, os acórdãos da RP de 22/10/2019 (p. 327/15.7T8VNG-B.P1) e da RC de 16/12/2015 (p. 1430/13.3TBFIG-C.C1) – vem interpretando o quadro normativo tido por aplicável com um entendimento vinculado ao princípio da proporcionalidade, salvaguardando a ponderação da culpa do afetado na fixação do montante indemnizatório, de modo que o mesmo responda apenas na medida em que o prejuízo seja atribuído à parte da sua atuação determinante da qualificação da insolvência como culposa. Ora, sem nos imiscuirmos no mérito do recurso ou do acórdão por ele visado, tudo indica que a decisão neste contida perfilhou, ainda que não explicitamente, a diferente interpretação de que, no que respeita ao quantum indemnizatório, não cabe ao juiz considerar fatores ou circunstâncias que ultrapassem a mera operação aritmética resultante da diferença entre o passivo e o ativo, sendo despicienda, nomeadamente, a culpa manifestada nos factos determinantes da qualificação de insolvência. Por conseguinte, no que concerne, estritamente, à aferição da questão suscitada pelo requerente CC sobre a repercussão da culpa nos pressupostos da responsabilidade indemnizatória do afetado pela qualificação da insolvência (como culposa), sobressai, suficientemente, a relevância jurídica da sua apreciação, ainda que depois de duas decisões conformes. Face ao exposto, admite-se a revista excecional interposta pelo requerente CC, circunscrita ao aludido segmento decisório, e não se admite a revista interposta pelo requerente BB. (…)”
Temos, pois, que apenas foi admitida a revista excecional interposta pelo requerido/afetado CC e tendo tão só como objeto a sua condenação, como pessoa afetada pela insolvência, a indemnizar os credores da devedora/insolvente, nos termos do alínea e) do art. 189.º/2 do CIRE. A tal propósito, o requerido/afetado CC pediu, no recurso interposto, que “na fixação do montante indemnizatório deva ser ponderada a culpa do afetado, o qual deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.” E terminou a sua alegação com as seguintes conclusões: (…)
NN. No caso em apreço, deve ter-se em consideração que o afetado BB, foi desde a fundação da sociedade insolvente José & Sérgio Carolino Construções, Lda em 11/03/2005, até 21/01/2014, o seu único gerente. OO. CC, só exerceu funções de gerência de direito durante cerca de 6 meses, ou seja, entre 21/01/2014 e 10/07/2014, altura em que renunciou à gerência e transmitiu a totalidade da sua participação no capital da insolvente, deixando assim de ter qualquer relacionamento com esta. PP. Atento o reduzido período em que CC exerceu a gerência nominal da insolvente, afigura-se-nos que a culpa, ou negligência (leve) do afetado CC, a existir na vertente de gerente de facto, no que não se concede, não pode ser valorada, como foi, igual à de BB, ou seja, com mesma responsabilidade e gravidade. QQ. Tanto mais que ficou provado que pelo menos dois meses após o momento em que CC se afastou da gestão nominal da sociedade insolvente, a manteve-se a mesma numa situação de solvência. RR. Sucede que no Acórdão sob censura, ou em momento algum o Tribunal de 1.º instância se pronuncia acerca da gravidade dos factos imputados a cada um dos afetados nos presentes autos, e nomeadamente qual a concreta contribuição de CC no criar ou agravar o estado de insolvência. SS. Nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5/02/2013, Proc. n.º 380/09.2TBAVRB, C1, defende-se que “na ponderação do período de inibição a fixar nos termos de tal normativo legal deve levar-se em conta a gravidade da conduta da pessoa afetada com a qualificação culposa da insolvência”, in www.dgsi.pt. TT. Ora, não se mostrando comprovado, em face das circunstâncias e atuação descritas na douta Sentença, que responsabilidade ou culpa o afetado pela qualificação, CC, possa ter tido concretamente na criação ou agravamento da situação de insolvência - no curto período de quatro meses, após ter deixado de ser gerente e sócio da insolvente (10/2014), e mesmo na hipótese de ter sido gerente de facto desde então e até à apresentação da devedora à insolvência, ocorrida em 9 de abril de 2015, UU. Salvo melhor opinião, com o devido respeito, não se mostram reunidas as condições para que ao afetado pela qualificação, CC, possa ser condenado a qualquer período de inibição, e muito menos a dois anos e meio, na mesma medida em que foi BB gerente de direito da sociedade desde o seu início - sendo patente uma errada subsunção jurídica dos factos ao previsto no art.º 189º do CIRE. VV. Consta no ponto b) da decisão constante da douta Sentença, a condenação do ora Recorrente a “indemnizar os credores reconhecidos no montante dos créditos verificados e reconhecidos não satisfeitos nos autos, até à s forças do respetivo património.” WW. Sucede que, esta condenação por excessivamente severa e desproporcional, mostra-se inconstitucional. XX. Desde logo nos presentes autos não se apurou da condição económica do afetado pela qualificação, que é media baixa, mas que devido à enorme diferença entre o valor do passivo da insolvente, superior a três milhões de euros, e o valor dos bens aprendidos para a massa de, €9.450,00, dúvidas não podem restar que, inexoravelmente, tal condenação iráconduzir o afetado àinsolvência pessoal, com todo o prejuízo pessoal e profissional que daí advém para o próprio, dado que é jovem empresário. YY. A condenação deste afetado pela qualificação em indemnizar os credores pelos créditos não satisfeitos não se confina ao período em que possa ter tido intervenção na sociedade, quer como gerente de direito ou de facto; tendo tais créditos também origem em anteriores anos, ou seja, CC vem solidariamente responsável pelo pagamento da totalidade dos créditos que se mostrarem devidos pela insolvente, e não só relativos ao período em que teve qualquer intervenção na gestão da sociedade insolvente (um ano, em 15 de antiguidade), o que é manifestamente injusto. ZZ. Condenação que não pode deixar de colidir com valores socioculturais, geradores de sentimentos de inquietação social, pondo em causa a eficácia do direito e fazer duvidar da sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística, como faz necessariamente a decisão em crise. AAA. O decidido pelo respeitável Tribunal de 1.ª instância, e confirmado pelo douto Acórdão da Relação de ….., sempre com o devido respeito, foi efetuado sem necessária ponderação, ao confirmar a condenação em indemnizar os credores no valor do passivo total da sociedade desde a sua constituição, o que se mostra inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação, conforme previstos no artigo 18º, nº 2 da CRP. BBB. Existe Jurisprudência superior que contraria o entendimento vertido no Acórdão recorrido, concretamente, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, 2.ª Secção, no âmbito do processo 976/19.4T8AMT-C.P1 relatado pela VenerandaJuizDesembargadora Alexandra Pelayo datado de19-05-2020 no qual foi decidido por unanimidade, e no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, a interpretação e aplicação do regime jurídico previsto no art.º 189º, alínea e) do n.º 2.º, e n.º 4.º, do mesmo corpo de Leis, sem prejuízo de outra Jurisprudência no mesmo sentido, tendo decidido o seguinte: CCC. “I - O incidente de qualificação da insolvência tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência. II - A verificação de alguma das situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE faz presumir, de forma inilidível a culpabilidade na insolvência. III - Uma vez qualificada a Insolvência como culposa, impõe-se retirar dessa qualificação todos os efeitos legais, e, em particular, os efeitos pessoais que poderão atingir o Administrador ou Gerente da Insolvente que tenha agido com culpa, nos quais se inclui a responsabilização de indemnizar os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados. (als. a) e e) do nº 2 do art. 189º do CIRE). IV - Na fixação desse montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.” (negrito nosso) DDD. Tal como aqui defendemos, no Acórdão fundamento, na fixação do quantum indemnizatório, apurada que esteja medida da responsabilidade do afetado, deve ser ponderada a sua culpa, o qual só deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa, e não como no douto Acórdão recorrido, solidariamente pela totalidade dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios EEE. Recordando-se que a sociedade insolvente apresentava já antes do afetado pela qualificação nela ter intervindo, a qualquer título, passivo superior a um milhão de euros. FFF. Pelo que, e salvo o devido respeito, que é muito, entendemos que terá de se verificar existir contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento, na medida que o primeiro nenhuma relevância ou consequência retira dos diferentes graus de culpa dos afetados, que de resto não foram apurados, bem como condena o aqui Recorrente no pagamento de passivos existentes antes de este ter qualquer intervenção na mesma, seja a título de gerente de direito ou de facto. GGG. O alcance do não apuramento e ponderação da culpa do afetado, na condenação e fixação do quantum indemnizatório, apenas e só na medida em que o prejuízo possa ser atribuído aos atos determinantes dessa culpa, gera insegurança e alarme social, em razão de a jurisprudência mostrar diferentes entendimentos relativamente a tal fixação indemnizatória. HHH. O douto Tribunal de primeira instância e o Venerando Tribunal da Relação de ….. entenderam não conferir qualquer importância ao facto. III. Pelo que, e salvo o devido respeito por melhor entendimento, terá de se entender que existe contradição entre o douto Acórdão recorrido e o douto Acórdão fundamento. JJJ. Estamos assim perante decisões contraditórias que assentam nos mesmos factos essenciais KKK. Por outro lado, impõe-se igualmente a existência de um consenso judicial em tal matéria para se evitar decisões contraditórias como as que estão aqui em causa e que levam a que situações idênticas sejam tratadas de forma injustamente diferenciada. LLL. O alcance do não apuramento e ponderação da culpa do afetado, na condenação e fixação do quantum indemnizatório, apenas e só na medida em que o prejuízo possa ser atribuído aos atos determinantes dessa culpa, gera insegurança e alarme social, em razão da jurisprudência mostrar diferentes entendimentos relativamente a tal fixação indemnizatória. MMM. Porém, e caso assim não se entenda, ou seja, que não existe oposição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento, no que não se pode conceder, sempre estará em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação de Direito, com fundamento na violação de lei substantiva por erro de interpretação da alínea b) do n.º 2 art.º 186 do CIRE, traduzida pela não verificação da aptidão de subsunção dos comportamentos do afetado aos factos índice da citada alínea. NNN. Nem se pode aceitar que todo e qualquer facto, possa ser subsumido à citada alínea b) do n.º 2 do art.º 186 do CIRE, e sem a concreta verificação da relevância que teve ou poderia ter no precipitar ou agravar da condição financeira da sociedade e que a levou à insolvência, aceitando-se a presunção de uma consequência entre as várias possíveis, sem se aceitar prova em contrário. OOO. Mesmo que assim não se entendesse, e sempre com o devido respeito, nos termos do artigo 411º do Código de Processo Civil, incumbiria ao Julgador realizar ou ordenar, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer o douto Tribunal de 1.ª Instância se absteve de fazer. PPP. Em suma, o acórdão recorrido afeta de forma grave e irremediável os direitos do Recorrente QQQ. A manutenção desta decisão sem apreciação do S.T.J., se traduz-se numa manifesta denegação de justiça, colocando irremediavelmente fim a uma questão que merece ser apreciada, dada a sua relevância jurídica e a sua importância para uma melhor aplicação do direito. RRR. A manter-se a decisão proferida pela Veneranda Relação de ….., a qual, com o devido respeito, se limitou a apreciar de forma aligeirada e parcial (no sentido de não atender a todos os elementos factuais relevantes), abrir-se-á um precedente, que põe em causa todos os princípios constitucionalmente consagrados. (…)”
Não foi apresentada qualquer resposta. Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II – Fundamentação de Facto II – A Factos Provados 1 - A sociedade José & Sérgio Carolino - Construções, Lda. apresentou-se à insolvência em 9 de Abril de 2015; 2 - Em 16/4/2015 foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade José & Sérgio Carolino - Construções, Lda.; 3 - A sociedade José & Sérgio Carolino - Construções, Lda. foi constituída em 03/11/2005, com um capital social de € 5 000,00, tendo como sócios fundadores CC com uma quota de € 4 750,00 e BB com uma quota de €250,00; 4 - Nessa data, como gerente único foi nomeado BB, situação que se manteve até 21/1/2014; 5 - Nessa data 21/1/2014, foi nomeado como gerente CC, filho de BB; 6 - Em 10/7/2014, formalmente, CC renunciou à gerência; 7 - Por contrato de 6/10/2014, CC declarou vender a sua quota de € 28 910,00 na sociedade insolvente para a sua mãe DD, pelo valor da respetiva quota, mas não há qualquer comprovativo desse pagamento; 8 - Apesar da renúncia à gerência, CC continuou a comandar os desígnios da sociedade até à sua insolvência, em particular coordenando as obras, reunindo e orientando os colaboradores e contactando a contabilidade; 9 - A sociedade Luxprojects, Lda. foi constituída como sociedade Unipessoal em 17/11/2010, por EE; 10 - Sendo o seu sócio e gerente único, com um capital social de € 5 000,00; 11 - O objeto social era a gestão, coordenação e fiscalização de projetos e obras de construção, medições e orçamentos, serviços de engenharia e arquitetura; 12 - Em 2013/1/28, houve um aumento do capital social para € 66 000,00 e transformação da sociedade de unipessoal para quotas; 13 - Tendo entrado para a mesma CC com uma quota de € 32 000,00; 14 - Assumiu igualmente a gerência da sociedade, em tal data; 15 - O objeto social foi alterado para indústria da construção, gestão, coordenação e fiscalização de projetos e obras de construção, medições e orçamentos, serviços de engenharia e arquitetura, compra e venda de bens imobiliários e revenda dos adquiridos para esse fim, promoção imobiliária e arrendamento de bens imobiliário; 16 - Em 28/11/2014 foi feito novo aumento de capital para o valor de € 115 000,00, subscrito e realizados pelos sócios EE e CC com o valor de € 47 450,00 e € 49 450,00, respetivamente em reforço das suas quotas já existentes e pelo novo sócio FF que subscreveu com uma quota de € 18 100,00; 17 - Desde Agosto de 2014 que a insolvente deixou de pagar à subempreiteira "Poolgarve, Lda." 18 - A sociedade até 31 de Dezembro de 2014, uma situação patrimonial (capitais próprios) positiva - € 298 681,00: Como resultados líquidos do exercício apresentou um resultado de €25 364; 19 - Em 30 de Abril de 2015 apresentava um capital próprio negativo de € 1 047 485,00; 20 - Em 2014, a sociedade insolvente vendeu ao sócio/gerente BB 3 viaturas: a. uma de marca ........, ..-CL-.., pelo valor de € 5 000,00, acrescido de IVA; b. .............., matrícula.-CQ-.., pelo valor de € 5 000,00, acrescido de IVA; c. Empilhador telescópico, pelo valor de € 8 000,00, acrescido de IVA. 21. Em 2015 foram vendidas 3 viaturas: a. uma delas a ........ …. ..-CL-.., pelo valor de € 5 000,00 ao sócio-gerente BB; b. A ............. ..-AL-.., pelo valor de € 2 150,00 , acrescida de IVA, a um sociedade designada por Valor e Segurança, Lda.; c. O veículo de marca …….., de matrícula ..-..-UO, em 8/4/2015, à Valor e Segurança, Materiais de Construção, Lda., que por sua vez, em 25/9/2015, transmitiu o referido veículo à Luxproject, da qual CC era gerente; 22 - No dia 19 de Março de 2015, a VDL 113 Limited, enviou missiva à insolvente a comunicar a resolução da prestação de serviços de empreitada do lote n" 1113, pedindo ainda o reembolso de todos e quaisquer créditos existentes relativos a serviços/material já pagos e não prestados/aplicados; 23 - No dia 16 de Março de 2015, a sociedade Vasco José das Serradas Vieira, Lda. enviou missiva à insolvente a comunicar a resolução do contrato de empreitada da obra no prédio descrito na CRP de Loulé sob o n° ….36; 24 - No dia 13 de Março de 2015, a VDL 1147 Limited, enviou missiva à insolvente a comunicar a resolução da prestação de serviços de empreitada do lote n° 1147, em Vale do Lobo; 25 - No dia 16 de Março de 2015, a Algarve Views LLC, enviou missiva à insolvente a comunicar a resolução do contrato de empreitada; 26 - No dia 18 de Março de 2015, a Parkland Rangers LLC enviou missiva à insolvente a comunicar a resolução do contrato de empreitada referente ao lote 34; 27 - No dia 16 de Março de 2015, JJ, enviou missiva à insolvente a comunicar a resolução do contrato de empreitada relativo à construção de moradia no lote 12; 28 - No dia 17 de Março de 2015, Abacus (Gibraltar) Limited/Algarve Views LLC, enviou missiva à insolvente a comunicar a resolução do contrato de empreitada que mantinha com a mesma; 29 - No dia 13 de Março de 2015, GG / HH enviou missiva à insolvente a comunicar a resolução do contrato de empreitada que mantinha com a mesma, relativa ao lote 19, Loteamento ……………. - ………….; 30 - Nos primeiros 4 meses de 2015, a sociedade insolvente emitiu nota de créditos aos seus clientes - donos da obra- (entre eles VDL 113 LTD, Parkland Rangers LLC, II JJ, VDL 1147 LTD, GG, Algarve Views LLC, etc) num total de € 1 304 821, sem IVA, € 1 604 93,00, com IVA, o que representa um aumento de 124% relativamente aos demais anos; 31 - Houve notas de crédito emitidas por fornecedores à insolvente, com indicação da faturação de obras ter sido passada para outra entidade - LUXPROJECT, LDA (a sociedade Andrade & Filhos, Lda. emitiu em 15/4/2015 uma nota de crédito a favor da José & Sérgio Carolino - Construções Lda., no valor de € 6 184,50, referente ao Lote 19 do Monte Golf, por anulação de uma fatura emitida em 13/3/2015, com a indicação dos serviços não pertencerem a este cliente, mas sim à Luxprojects, Lda / A sociedade Schmitt Son Elevadores, em 18/5/2015 emitiu nota de crédito por alteração do cliente); 32 - As atrás referidas obras passaram para a sociedade "LuxProject -Lda.", titulada e gerida também por CC; 33 - Devido à resolução das empreitadas e das obras terem sido transferidas para a LUXPROJECT, LDA, a insolvente ficou sem atividade, continuando, no entanto, com o encargo do pagamento das dívidas aos seus credores; 34 - E, sem possibilidade, de gerar rendimentos; 35 - Muitos dos subempreiteiros que estavam em obra e a quem a insolvente não tinha pago, foram abordados por CC para concluir os trabalhos, mas por conta da "LUXPROJECT", assegurando o pagamento futuro, mas não o passado; 36 - Após a insolvência, muitos dos trabalhadores da insolvente passaram para a "LUXPROJECT", para continuarem com as obras que foram da insolvente; 37 - O passivo da sociedade insolvente constante da lista de créditos apresentada pelo AI é superior a três milhões de euros; E o constante do balancete da contabilidade a 30 de abril de 2015 é de € 2 488 978,00; 38 - O valor dos bens apreendidos em 2/10/2015 pelo Administrador de Insolvência foi avaliado em quantia não superior € 9 450.00; 39 - CC e BB de forma concertada, consciente não reagiram às rescisões unilaterais das empreitadas, emitiram notas de créditos aos clientes, proporcionaram a transferência das obras em curso, aliciaram os subempreiteiros e os trabalhadores da sociedade insolvente a passarem para a sociedade "Luxproject, Lda.", cujo primeiro era sócio e gerente, com o intuito de prejudicar os fornecedores, credores da sociedade e beneficiar a terceira sociedade (LUXPROJECT); 40 - A sociedade insolvente, no ano de 2014, possuía várias obras em curso, na sua maioria para com clientes estrangeiros, na qualidade de empreiteiro geral; 41 - BB a partir de meados de 2013 começou a sentir dificuldades de locomoção; 42 - No verão de 2014 foi sujeito a intervenção cirúrgica, que repetiu em Setembro; 43 - No início do ano de 2015, BB voltou a ser sujeito a nova intervenção cirúrgica - Lumbociatologia bilateral; 44 - O gerente BB fez suprimentos à sociedade de € 360 548,00. * II – B Factos não Provados Não se provou que A - Em 2014, houvesse um dever de apresentação à insolvência; B- Em Julho/Agosto de 2014, passou a verificar-se junto dos subempreiteiros uma suspensão generalizada dos pagamentos; C- O valor da viatura ..-..-UO tenha sido para o pagamento à Fazenda Nacional e Segurança Social; D- A situação da doença fosse a causa da situação económica difícil (pois o filho sempre de facto geriu a sociedade); E- Estivesse por longos períodos impedidos de trabalhar; F - A incapacidade física e de saúde do seu gerente, a sociedade passou cerca de um ano em autogestão, lidando com desafios do dia-a-dia, conforme os mesmos Iam surgindo, levando naturalmente, a que gradualmente as forças financeiras da mesma fossem sendo exauridas; G - Começou a surgir em "Vox Populi" que a sociedade estaria quase parada em virtude da incapacidade do seu gerente; H - CC só no início de 2014 inicia um périplo pelas obras existentes, a fim de se inteirar da realidade e poder na maior brevidade possível dar seguimento a todos os assuntos pendentes (fornecedores, obras em curso, licenças administrativas, contratação de empreiteiros, e subempreiteiros, pagamentos a terceiros e ao Estado); I - Constata então, que a maior parte das obras, pese embora a existência de autos de medição e de alegados fornecimentos de materiais, se encontrava em fase muito atrasada de desenvolvimento e construção, tendo na maior parte dos casos, os fluxos financeiros afetos a tais obras, já sido exauridos, pelo passar do tempo, por custos com subempreiteiros, custo de estaleiro, mão-de-obra parada ou mal aproveitada, multas contratuais, etc. J - E é neste cenário que o mesmo começa num último esforço a assumir de forma conjunta com o seu pai o resgate da situação financeira contratual em que a sociedade se encontrava, procurando dar rumo e recuperar a situação quer da produção quer financeira da mesma; L- E tal, veio efetivamente de forma tíbia a suceder, após diversas reuniões com fornecedores e clientes, no sentido de tentar restabelecer a confiança da sociedade em mercado; M - A situação complicada em que a sociedade já se encontrava em virtude da ausência forçada de BB, as situações de desacordo sobre o rumo a seguir, perante a situação existente, assim como incompatibilidade de feitios entre Pai e Filho, levaram a que passados cerca de 5 meses, o mesmo se tenha apartado da sociedade; N - DD tenha de facto ou de direito participado na gerência da sociedade; O - Algum bem corpóreo da insolvente tenha desaparecido (mormente grua - não se incluindo aqui os vendidos);
*
III – Fundamentação de Direito Circunscreve-se o objeto da presente revista, como já foi referido, à condenação, imposta ao recorrente CC (enquanto pessoa afetada pela insolvência), a indemnizar os credores da devedora/insolvente, nos termos da alínea e) do art. 189.º/2 do CIRE. A “revista excecional” interposta pela outra pessoa afetada (BB) não foi admitida e a “revista excecional” do recorrente CC só com o estrito objeto referido foi admitida, o que muito claramente resulta do Acórdão da Formação proferido nos autos, em que se terminou a dizer: “admite-se a revista excecional interposta pelo requerente CC, circunscrita ao aludido segmento decisório, e não se admite a revista interposta pelo requerente BB”. Significa, pois, o que se acaba de dizer que, quanto à revista admitida, está estabilizada (e não se discute) a qualificação da insolvência da José & Sérgio Carolino – Construções. Lda. como culposa (incluindo os termos e razões que levaram a tal qualificação), assim como estão estabilizados quer a identificação do CC como pessoa afetada por tal qualificação culposa quer todos os efeitos e consequências que lhe foram associados (à sua identificação como pessoa afetada), com exceção, já se vê, da condenação, que também lhe foi imposta, a indemnizar, nos termos da alínea e) do art. 189.º/2 do CIRE, os credores da devedora/insolvente. Explicado está o que se começou por referir: que o objeto da presente revista se circunscreve à condenação, imposta ao recorrente CC, a indemnizar os credores da devedora/insolvente, nos termos da alínea e) do art. 189.º/2 do CIRE, mais exata e concretamente à parte em que as instâncias condenaram o CC “a indemnizar os credores reconhecidos no montante dos créditos verificados e reconhecidos não satisfeitos nos autos, até às forças dos respetivos patrimónios”. E, sendo este o objeto, a questão fulcral que se coloca e suscita é a da interpretação de tal alínea e) do art. 189.º/2 e da sua conjugação com o n.º 4 do mesmo art. 189.º do CIRE. Debrucemo-nos, pois, sobre tal questão: Afirma-se no ponto 40 do preâmbulo do diploma legal (DL 53/2004, de 18-03) que aprovou o CIRE: “(…) Um objetivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares das empresas e dos administradores de pessoas coletivas. É essa a finalidade do novo “incidente de qualificação da insolvência”. As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. (…) O CPEREF, particularmente após a revisão de 1998, não era alheio ao problema mas os regimes então instituídos a este propósito - a responsabilização solidária dos administradores (com pressupostos fluidos e incorretamente explicitados) e a possibilidade de declaração da sua falência conjuntamente com a do devedor - não se afiguram tecnicamente corretos nem idóneos para o fim a que se destinam. (…) O tratamento dispensado ao tema pelo novo Código (inspirado, quanto a certos aspetos na recente Ley Concursal espanhola), que se crê mais equânime - ainda que mais severo em certos casos - consiste, no essencial, na criação do ‘incidente de qualificação da insolvência’ (…). O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos atos necessariamente desvantajosos para a empresa. A qualificação da insolvência como culposa implica sérias consequências para as pessoas afetadas que podem ir da inabilitação por um período determinado, a inibição temporária para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de determinados cargos, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência e a condenação a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.” Temos pois que, não obstante as expostas finalidades do novo (em 2004) incidente de qualificação da insolvência – uma maior e mais eficaz responsabilização dos devedores/insolventes[1] – a redação inicial do CIRE era omissa quanto à “imputação” de danos às pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, “rompendo” com um efeito já previsto (a partir do DL 315/98, de 20 de Outubro) nos artigos 126.º‑A e 126.º‑B do anterior CPEREF[2]. É assim – exprimindo o reconhecimento de que tal omissão não permitia a devida responsabilização dos administradores de direito e de facto das pessoas coletivas e um eficaz combate às insolvências culposas e às suas consequências[3] – que surge, com a Lei 16/2012, de 20 de abril, o preceituado em causa (a alínea e) do n.º 2 e o n.º 4 do art. 189.º do CIRE), responsabilizando (e condenando em indemnizações) as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência, assim reforçando, no caso das pessoas coletivas, a responsabilidade dos administradores de facto e de direito[4]. Passou, pois, a dizer-se no art. 189.º do CIRE que, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: (…) 2 e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados. (…) 4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.(…)” À primeira vista e numa interpretação literal/superficial, parece que o legislador – que antes, na redação inicial do CIRE, foi omisso na “imputação” de danos às pessoas afetadas pela qualificação da insolvência – se basta agora com muito pouco (ou quase nada), uma vez que, para impor a condenação na obrigação de indemnizar os credores pelo montante dos créditos não satisfeitos, se satisfaz com a mera qualificação da insolvência como culposa, fazendo incidir, como que automaticamente, tal obrigação de indemnizar sobre as pessoas afetadas por tal qualificação culposa. Ou seja, à primeira vista, o juiz não terá que efetuar qualquer apreciação/verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, uma vez que, verificados os pressupostos da insolvência culposa, têm necessariamente que ser identificadas as pessoas afetadas (cfr. art. 189.º/2/a) do CIRE) e estas, a seguir, serão necessária/automaticamente condenadas a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos; pelo que, nesta linha de raciocínio, os factos constitutivos da responsabilidade constante do art. 189.º/2/e) do CIRE – o facto ilícito que criou ou agravou a situação de insolvência; a culpa do art. 186.º/1 e/ou a presumida nos n.º 2 e 3 do mesmo art. 186.º; o dano consistente na não satisfação dos créditos no processo de insolvência; e a causalidade (também presumida nos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE) entre a atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência – ficam, no essencial, “previamente” apreciados quando se procede à qualificação da insolvência como culposa. Mais, a impressão que fica é que também o n.º 4 do art. 189.º se limita a dizer/repetir o que já está dito no n.º 2/e)[5], ou seja: se ao tempo da decisão sobre o incidente da qualificação da insolvência estiver já apurado o diferencial entre o ativo e o passivo, o tribunal fixará quantitativamente (nos termos do n.º 2/e)) as indemnizações devidas; se ao tempo da decisão sobre o incidente da qualificação da insolvência não estiver ainda apurado o diferencial entre o ativo e o passivo, o tribunal deverá determinar tão só o critério da fixação das indemnizações (nos termos do n.º 4). Sucede que uma tal interpretação/aplicação – automática ou quase-automática do critério art. 189.º/2/e) do CIRE, com a condenação dum qualquer afetado numa indemnização no montante dos créditos não satisfeitos – resiste mal ao que, em termos racionais, pode/deve ser observado e contraposto. Basta ter presente o vasto campo de aplicação do art. 186.º/1 do CIRE e a sua ampliação através das presunções absolutas e relativas – algumas delas verdadeiras ficções legais – constantes do n.º 2 e 3 do mesmo art. 186.º do CIRE, para tal interpretação/aplicação automática ter que suscitar as maiores dúvidas e reservas. “A insolvência é culposa – segundo o art. 186.º/1 do CIRE – quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores[6], de direito ou de facto, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência”, sendo que tal “definição” é complementada, nos n.º 2 e 3 do mesmo art. 186.º do CIRE, por um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis) que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular[7] sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adotado um dos comportamentos aí descritos. Temos pois – é onde se quer chegar – que é vasta (e desigual) a panóplia de situações suscetíveis de levar à qualificação duma insolvência como culposa, o mesmo é dizer, que é vasta (e desigual) a panóplia de atuações dos afetados sujeitos à condenação/indemnização do art. 189.º/2/e) do CIRE. É caso para perguntar: Num processo em que a insolvência seja considerada culposa com base num único negócio ruinoso celebrado com pessoa especialmente relacionada, deve, sem mais, o administrador que assim procedeu ser condenado e responder por todo o passivo não satisfeito? Ainda que tal atuação do administrador não crie a situação de insolvência e só a agrave numa percentagem marginal do montante dos créditos não satisfeitos, deve, sem mais, o administrador que assim procedeu ser condenado e responder por 100% dos créditos não satisfeitos? Num processo em que a insolvência seja considerada culposa tão só por ter sido incumprido o dever de apresentação à insolvência dentro do prazo de 30 dias a contar da data em que teve, ou devia ter tido, conhecimento da situação de insolvência, deve, sem mais, o administrador que omitiu o cumprimento de tal dever ser condenado e responder por todo o passivo não satisfeito? Deve, sem mais, ser condenado e responder, por causa da omissão cometida, por 100% dos créditos não satisfeitos? Num processo em que a insolvência seja considerada culposa tão só por ter sido incumprida a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na C. Registo Comercial, deve, sem mais, o administrador que omitiu o cumprimento de tal dever ser condenado e responder por todo o passivo não satisfeito? Deve, sem mais, ser condenado e responder, por causa da omissão cometida, por 100% dos créditos não satisfeitos? E como estas muitas outras hipóteses podem ser desenhadas em que pode haver, entre a ação ou omissão que cria ou que agrava a situação de insolvência, com dolo ou culpa grave, e uma indemnização correspondente ao montante de todos os créditos não satisfeitos, uma desproporcionalidade e disparidade mais ou menos evidente e chocante[8]. Pelo que, independentemente do tipo de responsabilidade que se considere ter sido consagrada no art. 189.º/2/e) – seja de cariz meramente ressarcitório, seja de cariz sancionatório, seja de cariz misto – quer-nos parecer que sempre a mesma terá que ser considerada como sujeita a algum controlo de proporcionalidade, ou seja, por exigência do princípio constitucional da proporcionalidade e da proibição do excesso (que decorre da própria ideia de Estado de Direito e que é claramente traçado no art. 18.º/2 da CRP, na parte em que se diz que devem “as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos”), o dever de indemnizar estabelecido no art. 189.º/2/e) do CIRE tem que ter “limites”, tem de algum modo que se relacionar com o grau de culpa das pessoas afetadas e/ou com a gravidade da ilicitude (contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência). Sem prejuízo, claro está, dos “limites” e do controlo de proporcionalidade (ou porventura mais exatamente de não desproporcionalidade) não ter que ser exatamente o mesmo, quer se considere que o art. 189.º/2/e) do CIRE enuncia uma sanção (ou também uma sanção), quer se considere que tem um cariz meramente ressarcitório. Sendo que para nós – enfrentando tal questão – a obrigação de indemnizar consagrada no art. 189.º/2/e) do CIRE e a responsabilidade aí imposta (sobre as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa) deve ser considerada como tendo, com todo o respeito por opinião diversa, uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, terá também uma dimensão punitiva ou sancionatória. O art. 126.º-B/1 do CPEREF limitava o dever de indemnizar dos administradores à conexão causal entre o comportamento ilícito e o dano: o administrador só respondia (só tinha de responder) pelo montante do dano concretamente causado; ora, não parece, atento o texto do art. 189.º/2/e) e 4 do CIRE, que se tenha querido recuperar o art. 126.º-B/1 do CPEREF e limitar o dever de indemnizar dos administradores à conexão causal entre o seu comportamento ilícito e o dano. Perante os problemas/dificuldades de prova do dano e principalmente de prova da relação de causalidade entre o comportamento ilícito dos administradores e o dano, a responsabilidade (por insolvência culposa) legislativamente consagrada tem justamente o propósito de tornar desnecessária a prova do dano que foi causado pelo comportamento ilícito da pessoa afetada. É isto que, a nosso ver, se extrai do texto do art. 189.º/2/e) e 4 do CIRE (e do seu confronto com o texto do art. 126.º-B/1 do CPEREF), que não inclui, entre os pressupostos de tal responsabilidade, qualquer referência ao dano causado pelo comportamento ilícito da pessoa afetada e que não exige que a concreta atuação da pessoa afetada seja causa da insuficiência do património do insolvente para a satisfação dos créditos não satisfeitos[9]. Embora tal responsabilidade, prevista e regulada pelo direito da insolvência, tenha em vista, no caso de pessoas coletivas como sociedades, responsabilizar os administradores pelos danos indiretos causados aos credores[10] e nessa medida cumpra uma função ressarcitória, de indemnização de danos, a verdade é que é diferente – pelos seus pressupostos e por utilizar uma “técnica” que, ao contrário da responsabilidade ressarcitória, não se baseia na prova do dano e da relação de causalidade entre o comportamento ilícito e o dano – “especifica” e autónoma da responsabilidade civil dos administradores prevista e regulada pelo direito das sociedades comerciais (cfr. arts. 72.º e 78.º do CSC)[11], desempenhando também uma função punitiva dos administradores – sendo, nesta medida, uma responsabilidade também sancionatória – que são condenados[12], não no dano que causaram, mas sim, na redação do art. 189.º/2/e) do CIRE, nos “créditos não satisfeitos”, o mesmo é dizer, no deficit patrimonial que decorre da liquidação do património da sociedade. Uma insolvência decorre, via de regra, da conjugação e encadeamento de múltiplas circunstâncias, do “efeito multiplicador” que pode resultar da conjugação e encadeamento de tudo isto: é assim numa pessoa singular e muito mais numa empresa, pelo que estabelecer qual o dano causado ao interesse social por um concreto comportamento ilícito do administrador não é tarefa que se apresente como fácil. Importando aqui, no caso de pessoas coletivas como sociedades, não esquecer que o que no art. 186.º do CIRE se estabelece está relacionado com o que no art. 64.º/1 do CSC também se estabelece, a propósito dos deveres gerais dos administradores, ou seja, está relacionado com o dever que têm de não adotarem nenhum comportamento cujo fim seja a causação ou o agravamento da insolvência da sociedade (deveres de lealdade[13]) e com o dever que também têm de adotar um comportamento cuja finalidade seja a prevenção do perigo ou do risco de insolvência (deveres de cuidado). Pelo que, face ao interesse económico dos credores na boa gestão da sociedade (interesse protegido pelos referidos art. 64.º do CSC e 186.º do CIRE), é compreensível, provando-se atos de má gestão (praticados, como é caso, com dolo ou culpa grave), que o legislador impute o resultado final – o deficit patrimonial da sociedade – aos administradores, assim os sancionado por, durante a sua gestão (mais exatamente, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência), haverem cometido os provados atos de má gestão. Não nos parece pois, com todo o respeito por opinião diversa[14], que o art. 189.º/2/e) do CIRE consagre uma inversão do ónus da prova: uma presunção de dano e de causalidade, ou seja, a presunção de que a contribuição dos administradores para a insolvência causou um dano aos credores e, em segundo lugar, a presunção de que o dano causado corresponde aos créditos não satisfeitos; e que, nesta linha de raciocínio, o art. 189.º/4 do CIRE reflita o facto de tais presunções serem ilidíveis, querendo-se com isto dizer que as pessoas afetadas poderão alegar e provar que o seu comportamento não causou nenhum dano ou que o seu comportamento causou um dano inferior ao montante dos créditos não satisfeitos (e que, se não o alegarem ou não o conseguirem provar, se a aplicará a alínea e) do n.º 2)[15]. A qualificação como culposa duma insolvência – consistindo no escrutínio das condições em que eclodiu ou se agravou uma situação de insolvência – tem em vista aplicar certas medidas/sanções ao(s) culpado(s) por tal criação ou agravamento, ou seja, o propósito da qualificação duma insolvência como culposa é não permitir que, havendo culpado(s), o(s) mesmo(s) passe(m) “impune(s)” e, no fundo, “moralizar o sistema” (fazendo com que o direito/processo de insolvência proteja realmente os interesses públicos, relacionados com a economia, e os interesses privados, da satisfação dos credores). Em todo o caso, tal não pode significar, como já referimos, que tais medidas/sanções/indemnizações, pese embora o seu objetivo moralizador, possam ser impostas sem quaisquer limites e fora de quaisquer exigências ou controlo de proporcionalidade (ou de não desproporcionalidade). Tudo isto para dizer que não pode ser automaticamente, mas sim atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (o que está provado no processo e o que levou à qualificação), que o juiz pode-deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas. E entre as circunstâncias com significado para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar[16], sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização. Resulta do que se acaba de dizer que, sem prejuízo de não vermos (como referimos) no art. 189.º/2/e do CIRE a consagração duma inversão do ónus da prova, cabe/interessa ao requerido (e sob afetação) alegar e provar todas os factos e circunstâncias que diminuam a contribuição do seu comportamento para a criação ou agravamento da insolvência (e para a mitigação da sua culpa) ou até (o que se antevê como raro, mas que não é de excluir) alegar e provar factos e circunstâncias que demonstrem que o seu comportamento não causou qualquer dano[17]. Pelo que, caso o requerido (e sob afetação) nada alegue ou prove, terá que ser atendendo às circunstâncias provadas no processo e que conduziram à qualificação e afetação, que o juiz (usando o seu poder-dever) fixará, com prudência e não perdendo de vista a dimensão também sancionatória de tal condenação, as indemnizações, que têm como limite o montante dos créditos não satisfeitos na liquidação do processo de insolvência e que devem estar relacionadas com a sua contribuição (com o seu comportamento ou os comportamentos em que que participou) para a insolvência e para o montante dos créditos não satisfeitos. E, tudo isto dito, aplicando o que vimos de dizer sobre a interpretação do art. 189.º/2/e) e 4 do CIRE, somos levados a afirmar e concluir que o recorrente CC foi bem condenado, no presente incidente de qualificação, a indemnizar os credores da devedora/insolvente no montante dos créditos reconhecidos não satisfeitos, até às forças do seu património, condenação esta (solidária com o outro afetado, BB, seu pai), já se vê, a concretizar em incidente de liquidação. É certo que tal condenação não foi imposta, como sustentámos dever acontecer, no seguimento duma apreciação, tendo em vista tal condenação, das circunstâncias e elementos factuais reveladoras da contribuição do comportamento do recorrente para a criação ou agravamento da insolvência – as Instâncias limitaram-se a aplicar, como efeito/consequência da sua declaração como pessoa afetada, automaticamente, o texto do art. 189.º/2/e) – porém, procedendo-se a tal apreciação, há que concluir que a mesma aprova a condenação na indemnização que foi imposta. A insolvência foi qualificada como culposa por se terem considerado verificados comportamentos integradores da alínea b) do art. 186.º/2 do CIRE. A tal propósito, sintetizando o que havia sido dado como provado, escreveu-se na sentença da 1.ª Instância (e reproduziu-se no acórdão recorrido) que “(…) os gerentes CC e BB, que de forma consciente e intencional precipitaram de forma inusitada e repentina a insolvência e agravaram o passivo de forma relevante. Com efeito, indicam os autos que houve uma concertação na resolução dos contratos de empreitada por parte dos donos das obras (note-se que os donos da obra, apresentaram a rescisão dos contratos no mês de março, a maioria todos na mesma semana, o que demonstra uma ação conjunta), situação que foi aceite, sem mais, pela sociedade (insolvente), emitindo várias notas de crédito no valor de € 1 304 000,00 (o que disparou a divida para mais de três milhões de euros), transmitindo a maioria das obras para a Luxproject (sociedade gerida por CC, filho de BB e até há muito pouco tempo atrás tinha sido até sócio e gerente de direito da insolvente, sendo que de facto foi gerente até à insolvência), propondo aos subempreiteiros que terminassem as obras por conta dessa outra sociedade, absorvendo os trabalhadores para tais obras depois da insolvência. Estes descritos comportamentos levaram a assegurar o pagamento de uma dívida ingerível (que aumentou para mais de dois milhões de euros), sem meios para pagar (sem obras e fatores de produção ficou privada de gerar rendimentos para pagar a fornecedores ou minorar as dívidas), o que conduziu irremediavelmente a uma situação de insolvência, quando em Dezembro de 2014 ainda estava em situação de solvência, com capitais próprios positivos acima dos duzentos mil euros, com lucros de vinte cindo mil euros. Além, de precipitar a insolvência, agravou muito o passivo, proporcionando que outra empresa de CC (gerente de facto e de direito nos últimos 3 anos), Luxproject assumisse as obras, ganhando novos clientes e progredisse no segmento de construção de moradias de luxo (o que representa um benefício para terceiro especialmente relacionado).” Efetivamente, resulta dos factos provados: Que o recorrente foi gerente de direito da devedora/insolvente entre 21/1/2014 e 10/07/2014, porém, como consta do ponto 8, após 10/07/2014, continuou a comandar os desígnios da sociedade até à sua insolvência (ocorrida em 16/04/2015, após apresentação uma semana antes), em particular coordenando as obras, reunindo e orientando os colaboradores e contactando a contabilidade. Que, enquanto assim procedida, era, em simultâneo, sócio e gerente da sociedade Luxprojects, Lda., com atividade concorrente – indústria da construção civil – da devedora/insolvente. Que, em 2014, a devedora/insolvente transmitiu todos os seus veículos – alguns deles a favor do outro sócio-gerente e um a favor de uma sociedade que, depois, o “retransmitiu” à já referida Luxprojects, Lda. – e que (ponto 39 dos factos) o CC e o BB, de forma concertada e consciente, não reagiram às rescisões unilaterais das empreitadas recebidas de 8 donos de obra, emitindo-lhes notas de créditos no valor de € 1.604.093,00 (com IVA) e passando as obras em causa (e os subempreiteiros e os trabalhadores da sociedade insolvente) para a já referida sociedade Luxproject, Lda., “com o intuito de prejudicar os fornecedores, credores da sociedade e beneficiar a terceira sociedade Luxproject, Lda.”. Que a devedora/insolvente se apresentou à insolvência com bens avaliados em € 9.450.00, sendo a lista de créditos reconhecidos superior a 3 milhões de euros, quando, a 31 de Dezembro de 2014, apresentava uma situação patrimonial positiva de € 298 681,00. E, perante tais factos, a circunstância do recorrente não ter sido gerente durante a totalidade dos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência é, ao contrário do que invoca, completamente irrelevante (e não diminui, em relação ao outro afetado e seu pai, o seu grau de culpa ou a gravidade da sua ilicitude), uma vez que resulta de tais factos – e é o que conta – que era gerente, primeiro de direito e depois de facto, quando foram cometidas pela administração da insolvente as atuações que conduziram à sua insolvência. E a gravidade de tais factos/atuações – que, no fundo e em síntese, se traduziram na “desnatagem” da sociedade (a favor de pessoas e sociedade relacionadas com os sócios) e posterior apresentação à insolvência tão só com as dívidas – é tão intensa que não se nos afigura violador do princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso condenar o recorrente a indemnizar os credores da devedora/insolvente no montante dos créditos reconhecidos não satisfeitos. É que, voltando ao que supra se referiu, importa não esquecer que a obrigação de indemnizar consagrada no art. 189.º/2/e) do CIRE tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória, pelo que a observância do principio da proporcionalidade não exige que a indemnização imposta tenha que ser avaliada como justa, adequada, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável. O princípio da proporcionalidade remete-nos sempre e no essencial para a indagação acerca da adequação entre dois termos ou entre duas grandezas variáveis e comparáveis, ou seja, no caso, a atuação ilícita e culposa do recorrente, enquanto gerente de direito e de facto da devedora insolvente, e o montante da indemnização a impor-lhe. E, é o ponto, quem, em violação grosseira dos deveres gerais de gerente, passa a atividade duma sociedade de construção civil para outra sociedade (com atividade concorrente) de que também é sócio-gerente, deixando a primeira apenas com dívidas (e insolvente), não pode deixar de ser responsabilizado com rigor e, sendo assim, não se pode dizer que exista excessividade ou desproporção em condená-lo no pagamento dos créditos não satisfeitos na insolvência da sociedade ostensivamente “desnatada”. Especialmente quando, como é o caso, nada há, factualmente alinhado, que exprima qualquer desadequação entre as duas grandezas referidas, ou seja, quando não estejam reveladas outras circunstâncias, alheias à atuação dolosa ou com culpa grave do aqui recorrente, suscetíveis de poder ter concorrido para o montante dos créditos não satisfeitos na insolvência. Como acima se referiu e aqui se repete, a qualificação como culposa duma insolvência – consistindo no escrutínio das condições em que eclodiu ou se agravou uma situação de insolvência – tem em vista aplicar certas medidas/sanções ao(s) culpado(s) por tal criação ou agravamento, ou seja, o propósito da qualificação duma insolvência como culposa é não permitir que, havendo culpado(s), o(s) mesmo(s) passe(m) “impune(s)” e, no fundo, “moralizar o sistema”, fazendo com que o direito/processo de insolvência proteja realmente os interesses públicos, relacionados com a economia, e os interesses privados, da satisfação dos credores. As instâncias terão condenado mais ou menos automaticamente o recorrente na indemnização referida no art. 189.º/2/e) do CIRE, o que, porém, só pode/deve acontecer após a apreciação das circunstâncias do caso – após a apreciação da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência – mas, esta apreciação efetuada, atenta a dimensão punitiva ou sancionatória que a condenação em tal indemnização também cumpre, não se pode dizer e avaliar a decisão recorrida – a indemnização em que o recorrente foi condenado – como excessiva, desproporcionada e desrazoável. É quanto basta para, concluindo, considerar que bem andaram as instâncias ao condenar o recorrente a indemnizar os credores da insolvente, até às forças do seu património, no montante dos créditos não satisfeitos (valor em que também foi condenado, em idêntica medida, o outro afetado e cuja quantificação terá que ser efetuada em incidente de liquidação, nos termos do art. 189.º/4) e para, em consequência, julgar improcedentes as alegações do recorrente.
*
IV - Decisão Nos termos expostos, decide-se negar a revista. Custas pelo recorrente.
*
Lisboa, 22/06/2021
António Barateiro Martins (Relator) Luís Espírito Santo Ana Paula Boularot
*O relator declara que, nos termos do art. 15.º-A do DL n. 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL n. 20/2020, de 1 de maio, o presente acórdão tem voto de conformidade dos Conselheiros adjuntos.
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
_____________________________________________________
[1] O preâmbulo fala em titulares das empresas e nos administradores de pessoas coletivas, dando a ideia, incorreta (como resulta claramente do art. 186.º/4 do CIRE), do incidente não se aplicar às pessoas singulares. [3] Não se compreendia, face aos objetivos propugnados no preâmbulo do CIRE, a eliminação de um efeito já previsto nos anteriores artigos 126.º‑A e 126.º‑B do CPEREF, “que precisavam apenas de alguns acertos, constitu[indo] o verdadeiro pilar responsabilizador de um sistema falimentar, enquanto constitutivos do direito dos credores concursais a exigir uma indemnização a outros sujeitos passivos para além do insolvente, quando impossibilitados de obter a satisfação integral dos seus créditos.”- cfr. Maria do Rosário Epifânio, “Efeitos da Declaração sobre o Insolvente no novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, in Ciclo de Conferências “O Novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Faculdade de Direito no Porto, 2004, 13. [5] Sem prejuízo de alguma desconformidade nos respetivos textos: a alínea e) diz que as pessoas afetadas devem indemnizar os credores “no montante dos créditos não satisfeitos” e o n.º 4 fala em o “tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos”, desconformidade que terá resultado do legislador se ter esquecido de adaptar o n.º 4 à redação final que deu à a alínea e) do n.º 2, tendo mantido, no n.º 4, o texto que resultava dos textos preparatórios. [8] Aliás, sempre que a ação ou omissão (que qualifica a insolvência como culposa) se “limite” a agravar a situação de insolvência, pode colocar-se a questão de saber se é adequada e proporcional uma indemnização no montante de todos os créditos não satisfeitos. [11] Podendo colocar-se um problema de concorrência entre a responsabilidade civil prevista e regulada pelo direito das sociedades comerciais e a responsabilidade pela insolvência culposa, tendo que haver – até para não haver uma duplicação de indemnizações – uma coordenação/articulação entre os dois tipos de ações de responsabilidade. [15] Como já se referiu, a desconformidade nos textos – falar a alínea e) numa indemnização “no montante dos créditos não satisfeitos” e o n.º 4 no “montante dos prejuízos sofridos” – decorre apenas do legislador se ter esquecido de adaptar o n.º 4 à redação final que deu à a alínea e) do n.º 2, tendo mantido, no n.º 4, a expressão que resultava dos textos preparatórios, ou seja, a liquidação, prevista em tal n.º 4 deve agora entender-se como referida ao montante dos créditos não satisfeitos. [17] Em caso, por ex., do seu comportamento ter consistido tão só no não cumprimento do dever de colaboração (n.º 2, alínea i)), não repugnará admitir que se possa chegar a tal conclusão.
|