Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | CARMONA DA MOTA | ||
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Nº do Documento: | SJ200205160010975 | ||
Data do Acordão: | 05/16/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 9324/01 | ||
Data: | 12/05/2001 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Sumário : | |||
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Decisão Texto Integral: | Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: Arguido/recorrente: A 1. OS FACTOS Em Mar00, o arguido e B acordaram verbalmente na venda àquele de um prédio deste, sendo o preço a pagar, no final do ano, aquando da realização da escritura. Entre o arguido e o outro ocorreram algumas trocas de palavras menos amigáveis em situações em que ambos se mostravam alcoolizados. Após tais trocas de palavras entre o arguido e o outro, este, por mais do que uma vez, disse a sua mulher, ao chegar a casa, que o arguido lhe tinha dito que "lhe fazia o mesmo que tinha feito ao outro" e que "se algum dia eu aparecer morto, quem me matou foi o Pirata", alcunha pela qual o arguido é conhecido. No dia 22Ago00, à noite, no interior do estabelecimento comercial do arguido, denominado "Café ....", sito na Feteira, Horta, juntaram-se várias pessoas que ali estiveram a cantar à desgarrada. Cerca das 00:15, quando no estabelecimento apenas se achavam B e o arguido, este, que se achava embriagado, empunhou um pau com cerca de 70 cm de comprimento e com ele desferiu várias pancadas na cabeça e face do outro, que se achava numa situação de etilismo agudo, fazendo-o sangrar abundantemente. Em consequência de tais pancadas, B desmaiou. Com o objectivo de fazer desaparecer o corpo, o arguido muniu-se das chaves da viatura Renault Clio LQ, propriedade do ofendido, que este tinha no bolso. De seguida arrastou-o pelo chão e colocou-o, inanimado, na bagageira do veículo. Sentou-se ao volante da viatura e conduziu-o até ao local conhecido por Ponta Furada, sito em Laginha, Feteira, Horta, onde a parou fora da estrada. Saiu da viatura e, sempre com B na bagageira , empurrou-o em direcção a um precipício ali existente, só não tendo a viatura caído ao mar por ter ficado presa numa reentrância da rocha existente no local, em posição tal que era impossível alguém sair pela porta da frente do lado do condutor sem cair no precipício. Surgiu então no local uma viatura policial, pelo que o arguido se deitou à frente do carro em posição fetal, fingindo-se desmaiado. A viatura de B encontrava-se na altura destravada, desengatada e com as portas trancadas, com excepção da do lado da frente, do lado do condutor, encontrando-se os vidros também todos fechados. Como consequência directa e necessária das pancadas desferidas pelo arguido com o pau, B sofreu ferida inciso-contusa na região frontal à direita, ferida incisa no punho e equimose e sinais de contusão na região periorbitária esquerda e face esquerda, com amnésia temporal do que se passou o arguido ao arrastar o ofendido pelo chão provocou-lhe edemaciação nas nádegas e no flanco direito. Tais lesões demandaram, para cura completa, um período de trinta dias de doença, com incapacidade para o trabalho, apresentando ainda hoje amnésia quanto àquele momento da sua vida. O arguido, que agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pretendia tirar a vida a B, objectivo que só não logrou alcançar por razões alheias á sua vontade. Tem a 4.ª classe como habilitações literárias, vive com a mulher e três filhos com as idades de 24, 18 e 12 anos, sendo que só o mais novo estuda. Habitam num pré-fabricado, a mulher trabalha a dias e o arguido aufere um rendimento mensal variável que pode ascender a 600000 escudos. O arguido não tem antecedentes criminais e confessou parcialmente os factos. O arguido, ao empurrar a viatura do demandante no lugar conhecido por Ponte Furada e fazê-la embater numa reentrância ali existente na rocha, raspou os guarda-lamas dianteiro e traseiro e amolgou a chapa. A reparação destes danos, no montante de 40320 escudos, foi suportada pelo demandante. Este, que vivia com a mulher e dois filhos menores, era uma pessoa fisicamente saudável, conhecido e respeitado no meio em que está inserido. Após a agressão perpetrada pelo arguido, B, devido às dores que sentia, não se podia deitar e dormia sentado. À data dos factos o ofendido encontrava-se de férias, findas as quais regressou ao trabalho. O demandante, que era pessoa despreocupada e sem especiais cuidados com a segurança da casa, a partir da data dos factos passou a viver com receio pela sua integridade física e da família, sentimento que se atenuou com a prisão preventiva do arguido. Após os factos, o demandante e seus familiares passaram a verificar se todas as janelas e portas estavam fechadas e insistia frequentemente com a mulher para que verificasse se tudo estava fechado. Até à prisão do arguido, a PSP local efectuou rondas regulares pela casa do demandante durante a noite. Antes dos factos, o demandante saía com frequência para conviver com os amigos, o que deixou de fazer após o dia 22Ago00, permanecendo quase sempre em casa. O demandante possuía uma lavoura com sete cabeças de gado bovino, das quais ele próprio cuidava, que lhe tinham sido deixadas pelo pai e pelas quais possuía grande estima. Para tanto deslocava-se sozinho para os matos e terrenos onde o gado se encontrava a pastar, locais ermos e pouco frequentados. Após os factos, por medo de se deslocar medo, vendeu o gado, o que lhe causou mágoa. 2. A CONDENAÇÃO Com base nestes factos, o tribunal colectivo da Horta (1), em 12Jul01, condenou A, como autor de um crime tentado de homicídio qualificado, na pena de 8,5 anos de prisão. 3. O RECURSO PARA A RELAÇÃO 3.1. Inconformado, o arguido recorreu em 27Jul01 à Relação de Lisboa, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a sua condenação, pela prática de um crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º do CP, suspendendo-se a execução da pena: Não se pode condenar o arguido com base em simples presunções, que não são meios de prova, mas simples meios lógicos ou mentais. As presunções de culpa tem de considerar-se banidas em processo penal, face ao disposto no art. 32.2 da CRP. O arguido foi condenado por ter tentado lançar ao mar um conterrâneo amigo seu, inconsciente, na impossibilidade de se defender, pretendendo tirar-lhe a vida, tentando desfazer-se do corpo da vítima, não sabendo se estava viva ou morta. O tribunal concede que o arguido agrediu o ofendido com um pau, causador de lesões, relevando esta confissão para apuramento da verdade dos factos, atenta a fragilidade da prova. A despeito dessa fragilidade, o tribunal colectivo condenou o arguido. Imputa-lhe, ainda, especial censurabilidade na sua conduta porque se quis desfazer do corpo da vítima, independentemente de saber se o ofendido estava vivo ou morto. Admitindo o tribunal que o ofendido estava inconsciente não releva uma eventual morte aparente da vítima nem o sentido de uma eventual intenção de desaparecimento do corpo nestas condições. O tribunal não curou de saber quais as circunstâncias que despoletaram a agressão e se com esta conduta o arguido pretendeu tirar a vida ao ofendido. Os dois antagonistas estavam alcoolizados, questionando-se a sua imputabilidade. O ofendido não questiona nas suas declarações uma eventual contenda com agressões mútuas, só eles sabendo quem agrediu quem e em primeiro lugar. O ofendido, com o seu depoimento, é a melhor prova de que não houve qualquer intenção de matar, pois que se dava bem com o arguido com quem teve duas brigas, mas nada de significativo. E tal depoimento não é compaginável com a relevância que o tribunal dá às declarações da esposa do ofendido segundo o qual o arguido ameaçara o ofendido, dizendo àquela o ofendido que "se algum dia eu aparecer morto, quem me matou foi o Pirata". O tribunal concede que o pau usado na agressão traduz um acréscimo de perigo à vítima sem traduzir especial perversidade ou censurabilidade. Só que em circunstâncias de agressões mútuas (cadeira contra pau), a perigosidade só pode ser neutralizada a este nível, indiferentemente do que aconteceria em desproporção de meios. No calor da disputa bate-se no sítio do corpo que possa neutralizar o antagonista sem o querer matar, sendo que os dois antagonistas eram dois amigos desavindos, eles próprios em excesso de álcool. O tribunal não fundamentou em qualquer razão alicerçada em prova inequívoca que contrarie a não intenção de matar, até porque ninguém assistiu às agressões mútuas. No que respeita à intenção de se querer desfazer do corpo não está provado que alguém tenha visto o arguido fugir à frente do carro e simular um estado de inconsciência, relevando facto de o arguido estar sob a influência do álcool e como tal com a capacidade de discernimento diminuída. E mesmo que tal não sucedesse, o arguido teria a intenção de se desfazer de um cadáver e não de pessoa viva. O tribunal não conseguir tipificar especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente, nos termos do n.º 2 do art. 132.º do CP. O arguido suscita desde já a inconstitucionalidade material do art. 132.2 do CP, se o tribunal de recurso sufragar este entendimento por se verificar em tal caso violação do princípio "nullum crimen sine lege" O tribunal inobservou o espírito da norma do art. 127.º, do CPP, uma vez que para fundamentar a condenação do recorrente só pode lançar mão de uma prova indirecta, que não conduz à condenação do arguido. Em caso de dúvida deve lançar-se mão do princípio " in dubio pro reo", sendo que o texto da decisão recorrida enferma dos vícios previstos nas al.s a) e c), do n.º 2, do art. 410.º do CPP. É nula a sentença que não contenha a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal - art. 379.º, a), do CPP -, requisito ao qual o tribunal não atendeu quando sustenta que o arguido tinha plena consciência de que agiu no sentido de se desfazer do corpo da vítima, independentemente de saber se estava morta ou viva. 3.2. A Relação de Lisboa (2), em 5Dez01, manteve a qualificação jurídico-criminal dos factos provados mas reduziu a pena a sete anos de prisão: A falta de fundamentação do acórdão recorrido. O arguido aponta ao acórdão recorrido a nulidade por falta de fundamentação, porque não indica os meio de prova que levaram o tribunal a concluir que o arguido tinha plena consciência de que agiu no sentido de se desfazer do corpo da vítima independentemente de saber se estava ou não morta. Como observa o juiz Franz Matscher, a necessidade de motivar a decisão é uma das exigências do direito a um processo equitativo, consagrado no art. 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito, com tutela na Constituição - art. 208.º n.º 1, da CRP -, deixando aquela à lei ordinária os mecanismos adequados à realização do modo mais perfeito possível dos pressupostos da necessidade de fundamentação, com tradução no art. 374.º do CPP. Ao fulminar de nula a decisão que conheça do mérito da causa, tal preceito vem ao encontro da necessidade de se realizar um processo justo, sendo no quadro do direito a um processo equitativo que a doutrina tem tratado a exigência de motivação. O conteúdo do dever de motivação não pode abdicar de um leque de compreensíveis manifestações: o interessado tem o direito a ser persuadido de que se fez justiça e que os meios articulados foram examinados pelo julgador e a uma enumeração dos pontos de facto e de direito sobre os quais se edifica a decisão de modo a permitir-lhe a avaliação das probabilidades de sucesso dos recursos. Neste sentido se tem orientado a nossa jurisprudência quando interpreta a exigência de fundamentação expressa no art. 374.2 do CPP, com o alcance de não poder prescindir-se da enunciação do raciocínio, do processo lógico, que levou o juiz a decidir numa dada direcção em ordem a poder concluir-se que a sua actuação não procede de arbítrio e de discricionariedade, de puro e insustentável capricho. Por outro lado, essa exigência legal tem um limite no sentido de não poder ser imposto ao julgador que exponha todo o raciocínio lógico que se encontra na base da sua convicção de dar como provado um certo facto, mas apenas os bastantes que levem a concluir que se examinaram as provas e que na decisão o tribunal obedeceu a um mecanismo lógico e racional, não a um processo cego e avesso à realização da justiça. Os termos da lei - n.º 2 do art. 374.º do CPP - não impõem "uma pormenorização excessiva ou desproporcionada" (exposição tanto quanto possível, diz a lei), antes devendo a sentença conter aquele mínimo de referências que persuadam os interessados de que se fez justiça e lhe possibilitem avaliar as probabilidades de recurso, do mesmo modo que possibilite ao tribunal sindicar a decisão, designadamente apreciar os meios de impugnação apresentados. Neste sentido, a sentença assume-se mais como uma arte de bem julgar do que um trabalho científico ou doutrinário, escreve Lopes Rocha, A Motivação da Sentença, Documentação e Direito Comparado, BMJ, Separata, ed. de Fevereiro de 1999, 106. A extensão de tal dever não tem que ser "épica", sem embargo de dever permitir ao destinatário da decisão e ao público em geral apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal e tal sentença. Deste modo se compreende e aceita a jurisprudência do STJ que não impõe que na fundamentação se extractem os depoimentos e conteúdo dos restantes meios probatórios, já que a fundamentação se não confunde com a redução a escrito da prova, exigência que a lei não impõe, transformando a oralidade em documentação - BMJ 488, 272. A sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e dos meios de prova, deve conter os elementos, que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substracto lógico e racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em dado sentido - STJ 13/2/92, CJ I 1992, 36. Só assim o tribunal de recurso pode fundar uma merecida decisão de direito numa não menos merecida decisão de facto. O caso dos autos é exemplar: a fundamentação cumpre-se no acórdão em toda a amplitude, na medida em que se explanam os meios de prova de que o tribunal se socorreu - declarações do arguido, do ofendido, demandante cível, testemunhas, fotografias e exames periciais e médicos -, seu conteúdo, de resto amplamente pormenorizado, nele se procede ao exame crítico das provas, que o mesmo é dizer à acreditação de umas e à rejeição de outras, explanando-se as razões por que umas são elegíveis, credíveis e outras o não são, ficando assim conhecido todo o processo lógico, coerente, de que o tribunal se socorreu para firmar a convicção probatória no sentido de atribuir, convictamente, a autoria dos factos ao arguido. Por demais conhecido é que um estádio subjectivo, como o propósito de desfazer-se do corpo da vítima, viva (para lhe dar a morte) ou morta, por isso mesmo, e sobretudo se não admitido pelo agente, e que faz parte da volição criminosa, se extrai do conjunto global dos factos assentes que, inequivocamente, o revelem, essa sendo a única forma de não deixar impune um comportamento criminoso, apelando a critérios de normalidade da vida, " id quod plerumque accidit", como em relação à intenção criminosa, ao dolo, se decidiu já - BMJ 47-188, 111-284, 156-264 e 236-69. E outra não pode ser a intenção a depreender de alguém, como o arguido, que de data anterior aos factos não mantinha uma relação já de si amistosa como o ofendido e que, em estado de embriaguez, o agride com um pau, deixando-o inconsciente, e que, de seguida, se apropria das chaves do veículo propriedade do ofendido, em cuja bagageira o fecha, para depois conduzir tal veículo, a coberto da noite, empurrando-o em direcção a um precipício, dando para o mar, onde se não despenha apenas porque uma reentrância de uma rocha o sustém, evitando a morte certa do ofendido e apresentando-se o evento letal, apenas interrompido pela presença da reentrância daquela rocha, como consequência directa da descrita conduta. Esta mesma ilação se firma a partir do simulacro de agressão do arguido, que, fingindo-se inconsciente, sem o estar ou sequer ter sido alvo de qualquer agressão, se lança ao solo, à frente do veículo, à aproximação de viatura policial. Complementarmente concorre o receio manifestado pelo queixoso à esposa de, em caso de ser vítima de agressão, de morte mesmo, tal facto seria atribuível ao arguido. A versão do próprio arguido, de tão inverosímil que é, ao alegar que fora o próprio ofendido a rogar-lhe que o conduzisse a sua casa, no porta bagagens, sentado, postura de todo inviável, para não sujar a sua viatura de sangue, desencadeia um efeito reflexo ao cidadão comum de absoluta incredibilidade. Só, pois, com uma notável, e inaceitável, dose de fuga à percepção da realidade, em manifesto desprezo pelas regras da experiência da vida, em valoração dos factos, desculpabilizante da responsabilidade do arguido, poderia enveredar-se pelo propósito propugnado pelo arguido de limitar a sua responsabilidade ao crime de ofensas corporais simples. Em direito penal , ao contrário do direito civil, não vigora, atenta a diferente natureza dos interesses a proteger, a indivisibilidade da confissão, podendo o tribunal aceitar parte dos factos confessados, desfavoravelmente, pelo arguido, e desprezar os restantes, na versão favorável ao arguido, se outra for a convicção adquirida. O arguido enfatiza o facto de se achar embriagado para excluir a intenção, que diz não fundamentada, de se desfazer do corpo da vítima, como, até, para fundar a aplicação do princípio "in dubio pro reo". Vejamos. O simples facto de se ingerir bebidas alcoólicas, quer intencional quer negligentemente, não retira sempre a consciência ao agente da materialidade do acto, sendo que a embriaguez, no quadro do art. 20.º do CP , pode fundamentar uma declaração de inimputabilidade penal quando concorra uma doença mental grave, não acidental, que o agente não domina, sem tal lhe ser censurável e tenha no momento do acto, sensivelmente diminuída a capacidade de avaliação do facto ou se determinar de acordo com tal avaliação, além de poder tipicizar o crime previsto no art. 295.º do CP - STJ 29/3/00, BMJ 495-124. Ao tribunal recorrido não se suscitou a prática dos factos numa situação de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, carecendo este tribunal de meios para se lhe sobrepor. Vem arguida a violação do princípio " in dubio pro reo" pelo tribunal recorrido, com fonte nesse estado do arguido de influenciado pelo álcool. O princípio pode ser sindicado pelo tribunal superior sempre que, confluindo uma situação de dúvida na decisão se haja decidido em desfavor do arguido, ou, quando tal situação não concorrendo, possa descortinar-se essa dúvida do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é quando é verificável erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410. 2.c do CPP. A decisão recorrida não evidencia que o tribunal recorrido haja caído num estado de dúvida sobre questão pertinente ao núcleo essencial decisório e apesar disso haja concluído desfavoravelmente contra o arguido. Pelo contrário, os termos categóricos da decisão refutam qualquer estado dúvida. E dos termos do contexto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não resulta esse vício decisório de erro notório (BMJ 471-88), que é de lógica jurídica, flagrante, evidente, do qual o cidadão comum facilmente se dá conta, impeditivo, por isso, de se conhecer do mérito da causa, que conduziria, não se declarando, a uma decisão arbitrária, ilógica e irracional, justificando, por isso, que o tribunal superior altere, oficiosamente, a matéria de facto, nos termos do art. 431.º do CPP. O vício em causa postula indevidamente uma "conclusão sobre o significado da prova contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito de factos relevantes para a decisão de direito" (STJ 20/10/99, BMJ 490-69), demandando correcção do decidido. O acórdão recorrido, compulsados os seus termos contextuais, não incorre em qualquer erro notório na apreciação da prova, só apreensível a partir do texto da decisão impugnada. igualmente não é visível nele ofensa ao princípio "in dubio pro reo", associado ao culpa, violado se o juiz, não convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, dita, apesar de tudo, uma sentença condenatória. Esta mostra-se devidamente fundamentada, revelando e reconstruindo, passo a passo, todo o processo lógico-racional que o julgador percorreu. Todo o esforço decisório em que o tribunal se empenhou para convencer que a decisão condenatória proferida procede de uma análise séria, ponderada e equilibrada de todo o material probatório, globalmente valorado, segundo as regras da experiência comum, disponibilizado em audiência de julgamento. Tem isto a ver com a ofensa apontada pelo arguido ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP). A tarefa de comprovacão judicial requer um aturado conjunto de regras ou princípios tendentes a neutralizar o perigo do arbítrio, "servindo de terapia contra a desordem", possibilitando ao julgador converter na objectividade do juízo a sua subjectividade, com os seus corredores de pré-juízos, de acomodações mentais à praxis e ao hábito, mecanismos de incertezas ao nível do campo de consciência e humanas retracções. Por isso o princípio, objecto de um longo aperfeiçoamento doutrinário, comporta o sentido, usualmente declarado, de que a convicção probatória, livre, não se confunde com a simples apreciação arbitrária das provas, com a mera impressão deixada no espirito do julgador pelos diversos meios de prova. A prova livre tem como pressupostos valorativos critérios de experiência comum e de lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. A liberdade com que o julgador decide não se confunde com arbitrariedade, nela interferindo, inevitavelmente, factores subjectivos relacionados com a experiência de vida do juiz, seu modo de conceber o mundo, a sua cultura, sentimentos e concepções morais, mas temperados por regras de experiência, que são índices corrigíveis daquela subjectividade e pessoalismo, definindo conexões de relevância, orientando caminhos de investigação e de solução, oferecendo probabilidades de os acontecimentos a fixar terem ocorrido sem margem de ostensivo erro. Sem perder de vista está o facto de o julgador lidar com elementos humanos, falíveis, uns pela deficiente apreensão que fazem da realidade, outros pela sua intencional deformação, acrescendo, ainda, uma dilação temporal entre os factos e o acto de decidir, que fazem do acto de julgar não isento de erros - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 104. Não se nos afigura, contudo, que o decidido envolva qualquer atropelo, àquele princípio, que seja fruto de um qualquer censurável capricho do julgador, desatento à realidade das coisas, à margem da lógica e do bom senso na correcta valoração do elenco probatório, pese embora a prova que desfilou perante a audiência não ter sido perante esta Relação, ao qual está vedado sindicá-la, por não ter sido impugnada nos termos dos art.s 431.º e 412.3 do CPP, além de que não visíveis quaisquer das anomalias previstas no art. 410.2 do CPP. Também resulta que a condenação do arguido não repousa em quaisquer presunções de culpa, antes em provas reais, devidamente valoradas, convincentes de que a decisão procede de uma correcta inteligibilidade dos factos, sem motivo para alteração, arredando, sem esforço, a configuração categorial de ofensas corporais. O arguido controverte a qualificação jurídica por que o tribunal enveredou ao qualificar o crime como de homicídio tentado qualificado, pelo concurso de circunstâncias não expressamente previstas no art. 132.2 do CP, que no entendimento daquele são reveladoras de especial censurabilidade do agente, em divergência da acusação pública que configurara a circunstância enumerada na al. g) do n.º 2 daquele preceito. O nosso CP segue um processo de enumeração, não exclusivamente taxativa, das circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente, ao deixar na mão do julgador alguns critérios que, escapando à enumeração legal, permitem a aplicação do n.º 1 do art. 132.º, fundando a agravação do crime face ao tipo geral sobre o qual se edifica. Em tais casos, a conclusão a extrair, ainda, é a de que a morte foi criada em condições de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com valores reinantes na sociedade; a supressão da vida representa um reacção inaceitável. Essa a razão da adopção da técnica dos exemplos-padrão, assente naquela especial censurabilidade e perversidade referidas no art. 132..2, agravando a culpa, como é pacífico na jurisprudência e na doutrina - cfr., além do mais, o Comentário ao Código Penal Conimbricense, I, 27. O pensamento do legislador foi o de imputar à especial censurabilidade "aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas" e à especial perversidade aquelas em que o especial juízo de culpa se "fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas", na opinião de Teresa Serra, Homicídio Qualificado, 62. Ao lado dos elementos constitutivos da culpa agravada, definidos no n.º 2 do art. 132. do CP, funcionam outros, sempre que deles, também, a responsabilidade penal surja densificada, derivando da sua prática "uma imagem global do facto agravada "- cfr. op. cit., ao invés do Código suíço, onde se restringe a uma enumeração apenas exemplificativa, conferindo-se ao julgador maior maleabilidade na definição das circunstâncias fundantes da exasperação da responsabilidade criminal. O arguido, se bem entendemos o seu pensamento, defende que a adopção de uma causa de agravação da responsabilidade do homicida além das previstas expressamente no art. 132.º do CP integra violação do princípio constitucional "nullum crimen sine lege". O CP, no seu art. 1.º, consagra o princípio da legalidade na aplicação das reacções criminais, com previsão constitucional no art. 29.º, n.s 1, 3 e 4, que se ramifica em três outros princípios: a) o da legalidade na definição dos crimes de dos pressupostos das medidas de segurança, segundo o qual só a lei pode definir o que são crimes e os pressupostos das medidas de segurança, bem como estabelecer penas e medidas de segurança (nullum crimen sine lege); b) o da tipicidade, implicando que a própria lei deva indicar de forma muito clara e suficiente os factos em que se desdobra o tipo legal ou os pressupostos definidores de medidas de segurança, e c) o da não retroactividade da lei penal, no sentido de que a lei nova não se aplica a factos já ocorridos, nem mesmo puni-los mais severamente do que a lei anterior, nem mesmo dar-lhe relevância para fins de aplicação de medida de segurança ou seu tratamento mais gravoso. O princípio da legalidade não se mostra violado quando a lei define como circunstâncias agravativas da culpa as que pontualmente indica como outras, porque a definição dos pressupostos do crime e sua punição ainda cabe na formulação legal de "outras" no enunciado legal, pese embora o tipo aberto de culpa, aí previsto, que permite não deixar de fora formas de cometimento do crime e sua punição, o que a enumeração taxativa não consentiria. Trata-se de uma formulação com afloramentos noutros preceitos legais, que combina a fixidez de conceitos com uma certa elasticidade, que, ainda assim, não comporta incertezas ou risco de arbitrariedade. A questão da conformidade do enunciado legal ao princípio da legalidade já foi objecto de tratamento doutrinário, concluindo-se pela inteira compatibilidade com aquele dogma, com função de garantia da lei penal, designadamente "com a exigência da máxima determinação da lei e do princípio da analogia em direito penal", com a obrigação da lei penal especificar suficientemente os pressupostos do tipo - Figueiredo Dias, Comentário cit., 28 e Teresa Serra, op. cit., 127. Escreve esta que "na medida em que a enumeração exemplificativa concretiza e determina o critério generalizador e o critério generalizador delimita a enumeração exemplificativa, numa interacção decisiva entre as duas partes do preceito do art. 132.º, a técnica dos exemplos-padrão conduz a um resultado inteiramente novo", compatível com aquele princípio. Não pode, pois, dizer-se que na mera exemplificação das causas de agravação do homicídio, vai uma abstracta configuração, uma fórmula conceptual ilimitada, por isso que perigosa aos direitos, liberdades e garantias, do tipo legal, abandonando o agente do crime a uma qualquer forma inacessível de controle do julgador. Somos chegados ao momento da qualificação jurídico-penal a atribuir ao complexo factual provado, após o julgamento. Assim, num relato sintético, o arguido, que já tivera um desentendimento com o queixoso, achando-se a sós com B, no interior do seu estabelecimento de café, à noite, muniu-se de um pau e desferiu-lhe várias pancadas no corpo, designadamente na cabeça e no punho, causais de doença por 30 dias, com incapacidade para o trabalho, além de amnésia temporal, que ainda hoje perdura. Arrastando, depois, o ofendido, inanimado, introduziu-o no porta bagagens da viatura deste, fechando-o no porta-bagagens. Arguido e ofendido achavam-se etilizados, sendo o último em estado agudo e sangrando em abundância. O arguido, ao volante do veículo do ofendido, conduziu-o até ao sítio de Ponta Furada, onde a parou fora da estrada. Mantendo o ofendido no interior do porta bagagens, fechado, o arguido, servindo-se da sua força muscular, empurrou o veículo na direcção de um precipício ali existente, só não tendo caído ao mar porque o veículo ficou preso numa reentrância de uma rocha. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pretendendo, com tal atitude, "tirar a vida a B, objectivo que só não logrou por razões alheias à sua vontade". Perante este intocável factualismo, dúvidas não há de que o arguido quis atentar contra a vida do ofendido, só não lha suprimindo por razões alheias à sua vontade, por o veículo ter ficado preso por uma reentrância de uma rocha, impedindo a sua queda pelo precipício, no mar, e a morte, inevitável, do ofendido, com o que os actos praticados revestem a natureza de actos de execução, constitutivos de tentativa punível, segundo o art. 22.º do CP, de um crime de homicídio. Ao valorar a agressão, que à partida, atento o modo de execução (com um pau) , não passaria de um mero crime de ofensas corporais, o arguido não leva em consideração a imagem global do facto, ficando, apenas, por uma visão parcelar do itinerário criminoso, havendo que integrá-lo no conjunto dos graves actos praticados. Resta, agora, indagar se esses actos de execução descritos revelam já uma especial censurabilidade, porque se a resposta for afirmativa o agente deve ser punido como autor de um crime qualificado, tentado, com o qual a tentativa é compatível, suposta aquela especial censurabilidade. Afigura-se-nos que, tal como o colectivo se pronunciou, a resposta é afirmativa. O arguido, não se bastando com a agressão a um ébrio, em crise aguda de etilismo, em situação já de si de manifesta inferioridade física, no intuito de lhe retirar a vida arrasta-o e fecha-o no porta bagagens do veículo da própria vítima, do qual se apodera, sai da estrada, empurrando, depois, o veículo, com a sua própria força, para um precipício, só a reentrância numa rocha, que prendeu o carro, danificando-o, impedindo que se despenhasse no mar, seguindo-se aí invariavelmente a morte do ofendido, como desejava. Acresce que simulou uma agressão, fingindo-se inconsciente no intuito indisfarçável de se esquivar a responsabilidade penal. As circunstâncias anteriores e concomitantes da execução do crime, numa valoração global, fornecem uma imagem do facto altamente negativa, reveladora de uma certa insensibilidade e frieza da parte do arguido, a partir do modo pensado como concebeu causar a morte do ofendido, além de profundo desrespeito pela vida humana, um mais em termos de culpa que acresce à culpa simples, a justificar a sua punibilidade pelo crime em referência, não se descortinando o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - art. 410.2.a do CPP, pois os factos provados permitem, com segurança, uma decisão do facto ilícito, quer na objectividade, quer subjectividade (BMJ 484-250). Pugnando pela subsunção dos factos ao crime de ofensas corporais simples, na sua implicitude o arguido não aceita a pena imposta no acórdão recorrido. Na obra Direito Penal - Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 1996, 120, Figueiredo Dias e Costa Andrade sustentam que em teoria penal toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; ela é delimitada no seu máximo pela inultrapassável pela medida da culpa, que aquelas necessidades jamais podem exceder. Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é definido pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. Dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é definida em função de exigências de prevenção especial, em regra de ressocialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. As penas têm um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, aplicadas com a função de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e, em última análise a defesa do próprio ordenamento jurídico - STJ 11/6/97, recurso 362/97. A pena é definida em função da culpa e prevenção, nos termos do art. 71.º do CP, jogando-se, ainda, as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele, exemplificadas no n.º 2, de tal preceito. O agente agiu com dolo directo, a forma mais grave de culpa. O modo de execução do crime (planeado ao pormenor, estruturado de forma a passar impune), as circunstâncias que o rodearam, os efeitos pessoais advindos ao ofendido (com perturbação emocional, assaltado como passou a estar por medo e insegurança pessoal, só tranquilizando com a prisão preventiva do arguido, indo ao ponto de abandonar a criação de gado que pastoreava em zonas ermas) e a amnésia do facto, ainda persistente, conferem um elevado grau de ilicitude. As exigências de prevenção geral ou de intimidação são prementes, atenta a frequente prática de crimes contra a vida, em nada compatíveis com uma apregoada, mas de duvidosa existência, sociedade de brandos costumes. As necessidades de prevenção especial, de ressocialização, de garantia de retorno ao tecido social ferido em condições de assegurar a não reincidência, de emenda cívica, são igualmente elevadas, apesar do bom comportamento anterior do arguido, socialmente integrado, havido por pessoa séria e trabalhadora, conformando-se com os padrões socialmente correntes, pois nada justificava um tão reprovável comportamento. Em favor do arguido concorre o não ter antecedentes criminais, ser havido como pessoa séria e trabalhadora, a confissão parcial, profícua para a descoberta da verdade dos factos, e achar-se sob o efeito do álcool, mas sem lhe restringir a capacidade de querer e entender, de algum modo mitigadora do juízo de culpa (STJ 13/12/95, recurso 0486664), pelo que, numa moldura penal abstracta de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, nos termos dos art.s 22.º, 23.º 73.1 a) e b ), 132. 1 e 2 do CP , atendendo aos critérios de individualização da pena, se julga, para punição da muito grave conduta do arguido, mais justa a pena de 7 (sete) anos de prisão. 4. O RECURSO PARA O STJ 4.1. Ainda irresignado, o arguido (3) recorreu em 7Jan02 ao Supremo Tribunal de Justiça, pedindo «uma pena adequada, pela não verificação da censurabilidade que é sustentada no acórdão»: O tribunal a quo não especificou quais foram os critérios que fundaram uma alteração da dosimetria penal. Contemplou algumas das contradições contidas na sentença condenatória, quais sejam a relativa ao facto de o arguido se encontrar etilizado e tal circunstância não ter restringido a capacidade de querer e entender ao ponto de este arguido planear o crime ao pormenor. Outrossim, o facto de o ofendido ter avisado a sua esposa para o perigo de ser eventualmente morto pelo arguido, e tal receio não constituir motivo bastante para se afastar dele, tendo com este relações normais de negócio de âmbito agrícola, frequentar o seu café e confraternizar com ele até à bebedeira. Finalmente, reconhece o ofendido que se dava bem com o arguido, embora admitindo que com ele teve duas brigas, mas nada de significativo. O acórdão ora em recurso não escalpeliza uma das conclusões da sentença da 1.ª Instância, relativa à hipótese de o arguido estar convencido de que lançaria no mar um cadáver. Perfilhando esta tese do tribunal de 1.ª Instância, está-se perante a hipótese de o arguido tentar matar o ofendido, convencido de que este já estava morto. Ora, é impossível a verificação do resultado morte, porque o objecto do facto do crime de homicídio pressupõe a existência de uma pessoa viva. Assim, a impossibilidade do resultado "morte" resulta não do meio utilizado e que até podia ser apto (despenhamento no mar), mas resultante da inexistência do objecto essencial à consumação do crime. Sendo impossível, em termos objectivos, a verificação do resultado porque não existe o objecto essencial à consumação. Está-se assim perante uma tentativa impossível de homicídio, punível ou não punível, tudo depende de ser manifesta ou não manifesta a inexistência do objecto essencial à consumação. Dadas as relações de amizade, pontuadas por escaramuças, entre os dois antagonistas, também os dados da experiência comum fazem prefigurar uma situação em que o arguido se quis desfazer do corpo da vítima, sendo que a sentença condenatória deu como provado que o arguido "arrastou a vítima para a viatura, inanimada". De todo o modo provado está nos autos que alguém tenha visto o arguido fugir para a frente do carro e simular um estado de inconsciência para se querer desfazer do corpo da vítima (vivo ou morto). O texto decisório padece do vício contido nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410° do CPP. E inobservou a aplicação do princípio "in dubio pro reo" em face da insuficiência de prova produzida em audiência de discussão e julgamento do tribunal de 1.ª Instância. 4.2. Na sua resposta de 20Fev02, o MP (4) pronunciou pela rejeição do recurso, ante a sua manifesta improcedência: Este é um dos exemplos do que é recorrer por recorrer face à inatacabilidade do acórdão . Não só porque do texto do mesmo não resulta qualquer dos vícios do art. 410° do CPP (e como é sabido tais vícios têm que resultar intrinsecamente do texto) mas também porque o acórdão está mais do que fundamentado no que respeita à medida da pena , como se vê de fls. 439 a 442. De qualquer modo, mais uma vez importa dizer que, como é por demais sabido, o recurso para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo visa exclusivamente o reexame de matéria de direito nos termos do art. 432.d do CPP, isto sem prejuízo de oficiosamente esse mais alto tribunal poder conhecer dos vícios do art. 410° do CPP (art. 434°), vícios esses que têm que resultar da própria decisão recorrida já que aquela possibilidade existe apenas como "remédio " para poder suprir eventuais erros grosseiros. Assim, não se compreende nem se aceita que se recorra para o STJ, invocando aqueles vícios numa tentativa de fazer com que este tribunal superior reaprecie "com tal fundamento" a matéria de facto já fixada e esgotada. Ou seja, pretende-se um 3.° grau de jurisdição em matéria de facto, o que é por demais incompreensível e incomportável. E este é mais um desses recursos, a cuja proliferação importa pôr cobro, não conhecendo dos mesmos por manifesta improcedência. 4.3. No STJ, a hierarquia do MP (5) voltou a pronunciar-se - em parecer, a que o arguido/respondente não respondeu, de 22Mar02 - pela rejeição do recurso, que «visa novamente e apenas questões de facto e vícios previstos no art. 410.2 do CPP, que não estão no âmbito do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça». 5. QUESTÃO PRÉVIA 5.1. O tribunal colectivo considerou provado que «no dia 22Ago00, (...) cerca das 00:15, quando no estabelecimento apenas se achavam B e o arguido, este, que se achava embriagado, empunhou um pau com cerca de 70 cm de comprimento e com ele desferiu várias pancadas na cabeça e face do outro, que se achava numa situação de etilismo agudo, fazendo-o sangrar abundantemente. Em consequência de tais pancadas, B desmaiou. Com o objectivo de fazer desaparecer o corpo, o arguido arrastou-o pelo chão e colocou-o, inanimado, na bagageira do veículo do ofendido (...). De seguida, sentou-se ao volante da viatura e conduziu-o até ao local conhecido por Ponta Furada, onde a parou fora da estrada. Saiu da viatura e, sempre com B na bagageira, empurrou-o em direcção a um precipício ali existente, só não tendo a viatura caído ao mar por ter ficado presa numa reentrância da rocha existente no local (...). Como consequência directa e necessária das pancadas desferidas pelo arguido com o pau, B sofreu ferida inciso-contusa na região frontal à direita, ferida incisa no punho e equimose e sinais de contusão na região periorbitária esquerda e face esquerda, com amnésia temporal do que se passou o arguido ao arrastar o ofendido pelo chão provocou-lhe edemaciação nas nádegas e no flanco direito (...). 5.2. E, ainda, que «o arguido, que agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pretendia tirar a vida a B, objectivo que só não logrou alcançar por razões alheias à sua vontade (...)» 5.3. Todavia, a descrição dos factos - ao desvendar que «o arguido pretendia tirar a vida a B» - não é suficientemente explícita quanto à intenção/finalidade daquele quando «das pancadas desferidas com o pau». E tanto não é que, enquanto o tribunal colectivo parece reportar essa intenção homicida ao momento da agressão à paulada (6), já a Relação parece remetê-la para o momento, ulterior, do despenhamento da vítima dentro do seu carro («dúvidas não há de que o arguido quis atentar contra a vida do ofendido, só não lha suprimindo por razões alheias à sua vontade, por o veículo ter ficado preso por uma reentrância de uma rocha, impedindo a sua queda pelo precipício, no mar, e a morte, inevitável, do ofendido»). 5.4. O próprio tribunal colectivo confessou (cfr. fls. 428) não lhe ter sido «possível» apurar se «o arguido, depois de ter agredido o ofendido, pretendeu fazê-lo desaparecer porque ele já se encontrava morto ou para concluir o acto de matar». 5.5. Aliás, a indefinição com que o tribunal colectivo descreveu os «factos provados», permite configurar, a propósito não duas mas quatro hipóteses alternativas: I. ou o arguido agrediu o adversário, à paulada, na intenção de o matar e, supondo-o morto quando o viu «a sangrar abundantemente» e «inanimado», decidiu desfazer-se do «corpo» (supostamente já «cadáver»), lançando-o, ao mar, dentro do carro; II. ou agrediu-o à paulada na intenção pura e simples de o ofender corporalmente e, ao supô-lo morto quando o viu inanimado, decidiu desfazer-se do «cadáver», lançando-o ao mar; III. ou agrediu-o à paulada na simples intenção de o ofender corporalmente, mas, ao vê-lo desmaiado, decidiu matá-lo, lançando-o ao mar dentro da bagageira do carro deste; IV. ou, decidido a matá-lo desde que começou a agredi-lo à paulada, aproveitou o seu desmaio para o lançar ao mar, assim «concluindo o seu acto de matar». 5.6. Na primeira, estar-se-ia diante, porventura, (7) de um crime de homicídio tentado (art.s 131.º, 22.º e 23.º do CP) e - por se tratar de tentativa impossível punível (8) - de um crime de profanação tentada de cadáver (art.s 254.1.a e 2, 22.º e 23.º do CP). 5.7. Na segunda, o arguido teria cometido, além de um crime de profanação tentada de cadáver p. p. art.s 254.1.a e 2, 22.º e 23.º do CP, um crime de ofensa simples à integridade física (art. 143.1 do CP) (9). Ou, se «ofendeu o corpo de outra pessoa por forma a provocar-lhe perigo para a vida», «um crime de «ofensa grave à integridade física» (art. 144.d). 5.8. Na terceira hipótese, o arguido teria cometido, além de um crime de ofensa simples à integridade física (art. 143.1 do CP) (10), um crime de homicídio qualificado (art. 132.a, g e f do CP) (11). 5.9. E só na última hipótese é que - como concluíram as instâncias (se bem que a partir de pressupostos de facto, ainda que não explícitos, não inteiramente coincidentes) - seria de homicídio qualificado o (único) crime cometido pelo arguido. 5.10. No entanto, a hipótese de facto que permitiria esta configuração típica - a de que o arguido, decidido a matar o vizinho desde que começou a agredi-lo à paulada, aproveitou o seu desmaio para o lançar ao mar, assim concluindo o seu acto de matar - não seria a que, ante o non liquet com que o tribunal colectivo se defrontou depois de se interrogar sobre se «o arguido, depois de ter agredido o ofendido, pretendeu fazê-lo desaparecer porque ele já se encontrava supostamente morto ou para concluir o acto de matar», lhe imporia o princípio processual penal in dubio pro reo (corolário do princípio constitucional da presunção de inocência). 5.11. É certo que só se teria imposto às instâncias o recurso ao «in dubio pro reo» - corolário do princípio constitucional da presunção de inocência - se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, tivesse conduzido - e o tribunal colectivo proclamou-o expressamente - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível». O "in dubio pro reo", com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador». Ora, se «verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório»; se «para levar a cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que apelidaremos de razoável»; se «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»; se «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível»; se «não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável ("a doubt for which reasons can be given")»; se «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida»; se «pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais»; e se «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir ‘pro reo’, tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal», então, nos casos em que as regras da experiência, a razoabilidade (««a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não há - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface de que a «face» é a «livre convicção» da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização») - cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. 5.12. Se o tribunal colectivo ficou hesitante a respeito dos pressupostos e da intenção do arguido quando empurrou o ofendido, na bagageira do carro, para o precipício (supunha-o morto e tentou desfazer-se do cadáver? Ou, sabendo-o vivo, tentou «concluir o acto de matar»?), a Relação, se bem que sem «dúvidas de que o arguido quis atentar contra a vida do ofendido», não só não desfez essa dúvida como considerou desnecessário - por indiferente - fazê-lo. E isso porque - preocupada em «não deixar impune um comportamento criminoso» - se bastou com a «revelação», «extraída do conjunto global dos factos assentes», do «propósito» (do arguido) «de se desfazer do corpo da vítima, viva (para lhe dar a morte) ou morta (por isso mesmo)». É que - nas suas palavras - «outra não pode ser a intenção a depreender de alguém, como o arguido, que, não mantendo uma relação amistosa com o ofendido, o agride, em estado de embriaguez, com um pau, deixando-o inconsciente e, de seguida, o fecha na bagageira de um carro e o empurra e direcção a um precipício sobre o mar, onde se não despenha apenas porque uma reentrância da rocha o sustém, evitando a morte certa do ofendido». 5.13. Ou seja, à Relação - na certeza de que o arguido queria matar o adversário - pareceu-lhe desnecessário (porque juridicamente indiferente o resultado) discernir se o arguido, quando decidiu «desembaraçar-se do corpo inanimado» do outro, o supunha já cadáver ou, pelo contrário, sabendo-o ainda vivo, o fez para «acabar de» o «matar». 5.14. Mas, como já se viu, não seria (nem é) juridicamente indiferente que as coisas se tenham passado de um ou outro modo. Tanto mais que, mesmo em caso de «comprovação alternativa», deveria o tribunal, «sendo um dos crimes mais gravoso que o outro», fazer - e não fez - «uma opção minimalista» (Cristina Líbano Monteiro, ob. cit.): «Trata-se de casos nos quais o tribunal, alcançando a convicção de que o arguido cometeu um crime, não logra, no entanto, o apuramento da matéria de facto suficiente para enquadrar a conduta, sem reservas, neste ou naquele tipo legal. Com certeza plena, apenas consegue declarar que um de dois factos criminosos (em alternativa) foi praticado pelo agente. Deverá absolvê-lo, uma vez que, em rigor, não reuniu prova cabal de nenhum facto ilícito típico? (...). Trata-se, quanto a nós, de situações em que o «pro reo» não é chamado a actuar, pela simples razão de que a dúvida não contende com a legitimidade da intervenção do poder público. Condenando - isto é: dando como provada uma das condutas -, o Estado actuará legitimamente, no uso do seu jus puniendi: possui convicção suficiente sobre a matéria de facto para poder dizer «houve crime e foi este o seu autor». Existe, contudo, um limite: sendo um dos crimes mais gravoso do que o outro, o tribunal deverá fazer uma opção minimalista» 5.15. Daí que o STJ - a quem, como tribunal de revista, competiria «aplicar definitivamente o regime jurídico que julgasse adequado» (art.s 729.1 do CPC e 4.º do CPP) - se veja na contingência, ante o impasse (decorrente de «a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não poder ser alterada» - art. 729.2 do CPC), de devolver o processo à Relação para «ampliação da decisão de facto, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito» (art. 729.3). 5.16. Haverá, pois, a Relação («pelos mesmos juízes que intervieram no primeiro julgamento»), que «julgar novamente a causa» (art. 730.1). E se bem que o STJ, «por falta de elementos de facto», não possa «fixar com precisão o regime jurídico a aplicar» (art. 730.2), deverá a Relação ater-se, no âmbito do «facto», às opções enunciadas em 5.5 e circunscrever-se, quanto à correspondente decisão de direito, às soluções alternativas enunciadas em 5.6 a 5.9 (art. 730.1). 6. DECISÃO Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência para apreciar a questão prévia suscitada pelo relator no exame preliminar, determina que o processo volte à Relação de Lisboa para que, depois de ampliada a decisão de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (cfr., supra, 5.5, 5.10, 5.14 e 5.16), julgue novamente a causa em harmonia com o regime jurídico ora definido (cfr., supra, 5.6 a 5.9, 5.14 e 5.16). Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Maio de 2002 Carmona da Mota Pereira Madeira Simas Santos ----------------------------- (1) Juízes Carlos Alves Dinis, Luís Filipe Loja e Maria de Fátima Estudante (2) Desembargadores Armindo Monteiro, Dias dos Santos, José Santos Carvalho e Joaquim Barata (3) Adv. Manuel Mendes Ferreira (4) P-G Adj. Joaquim Baltazar Dias (5) P-G Adj. Graça Marques (6) «Como consequência directa e necessária das pancadas desferidas pelo arguido com o pau, B sofreu ferida (...). O arguido, que agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pretendia tirar a vida a B, objectivo que só não logrou alcançar por razões alheias à sua vontade» (7) Se os actos executivos da agressão à paulada - questão de facto a que as instâncias também não responderam - eram «idóneos a produzir o resultado típico ou, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, de natureza a fazer esperar que se lhes seguissem actos idóneos a produzir o resultado típico» (art. 22.2 do CP). (8) Porque não manifesta a «inexistência do objecto essencial à consumação do crime» (art. 23.3 do CP). (9) Ou, se «ofendeu o corpo de outra pessoa por forma a provocar-lhe perigo para a vida», «um crime de «ofensa grave à integridade física» (art. 144.d). (10) Ou, se «ofendeu o corpo de outra pessoa por forma a provocar-lhe perigo para a vida», «um crime de «ofensa grave à integridade física» (art. 144.d) (11) «E susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente (...) praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa (...); utilizar meio particularmente perigoso (...); ter em vista encobrir um outro crime (...) ou assegurar a impunidade do agente de um crime». |