Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4490/15.9T8BRG-I.S1
Nº Convencional: 3.º SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 12/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O habeas corpus, previsto no art. 31.º, n.º 1, da CRP como direito fundamental contra o abuso de poder, constitui uma providência expedita e urgente de garantia privilegiada do direito à liberdade consagrado nos art. 27.º e 28.º da CRP. A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27.º da CRP, sem lei ou contra a lei.

II - O direito à liberdade consagrado e garantido no art. 27.º da CRP, que se inspira diretamente no art. 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), é o direito à liberdade física, de “ir e vir”, à liberdade ambulatória ou de locomoção, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço.

III - Ocupando um lugar central nos direitos fundamentais que protegem a segurança física de uma pessoa numa sociedade democrática, este direito visa proteger a liberdade física da pessoa contra a detenção e contra a prisão arbitrária ou abusiva, conferindo o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos expressa e excecionalmente previstos na lei, que deve reunir os necessários requisitos de certeza e previsibilidade, e com os procedimentos legalmente previstos, nomeadamente quanto à garantia de apreciação e controlo judicial e aos prazos de duração, como tem sido repetidamente afirmado em jurisprudência firme do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).

IV - O habeas corpus constitui um meio de tutela que abrange qualquer forma de privação ilegal da liberdade, isto é, qualquer forma de privação da liberdade não admitida pelo art. 27.º da CRP e pelo art. 5.º da CEDH, aqui se incluindo a privação de liberdade de um menor por sujeição a medida de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado [na formulação do art. 27.º, n.º 3, al. e), da CRP] ou a detenção de um menor feita com o propósito de o educar sob vigilância [na formulação do art. 5.º, n.º 1, al. d), da CEDH], no seu interesse, independentemente de ser suspeita da prática de facto qualificado como crime ou de ser uma criança em risco.

V - O âmbito de proteção abrange a privação total e a privação parcial da liberdade, que não se confunde com as restrições ao direito de deslocação, garantido pelo art. 44.º da CRP e pelo art. 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH, que comporta a liberdade de movimento da pessoa de um lugar para outro, devendo ter-se em conta que as diferenças entre estas e outras restrições de movimento suficientemente graves suscetíveis de cair na previsão do art. 5.º se traduzem numa diferença de grau ou intensidade e não de natureza ou substância (como tem sublinhado a jurisprudência do TEDH).

VI - Embora o regime do habeas corpus se encontre estabelecido nos art. 220.º a 224.º do CPP, no capítulo referente aos «modos de impugnação» das medidas de coação, uma interpretação conforme à Constituição obriga a conferir-lhe um âmbito de proteção que extravasa esse âmbito, de modo a abranger todos os casos que se inscrevem no art. 27.º da CRP, incluindo todos os casos de detenção, a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado e o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico.

VII - É assim que, pressupondo e conferindo à «prisão» um sentido próprio – que, para efeitos de habeas corpus (art. 222.º do CPP), não pode limitar-se a compreender a pena de prisão e a medida de coação de prisão preventiva –, este STJ vem assumindo competência para apreciação de petições de habeas corpus quando a privação da liberdade é imposta por decisão judicial, aqui se incluindo casos de execução da pena acessória de expulsão logo que cumpridos dois terços da pena de prisão, de permanência, por decisão judicial, em centro de instalação temporária para execução da medida de expulsão, de internamento compulsivo e de aplicação de medidas de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo, em particular da medida de acolhimento residencial.

VIII - Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das al. do n.º 2 do art. 222.º do CPP, de enumeração taxativa; o STJ apenas tem de verificar se ocorre uma situação de «prisão» e (a) se a «prisão», em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a «prisão» se encontra motivada por facto que a admite ou (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

IX - A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, não se destina a apreciar o mérito de decisões judiciais nem a sua execução nem alegados factos ilícitos que lhes possam dizer respeito; trata-se, em qualquer caso, de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção e reação, de acordo com o estabelecido nas leis do processo, ou de matérias a averiguar em processo próprio, no caso de alegados ilícitos criminais, de acordo com as regras do processo penal.

X - As medidas de promoção e proteção de apoio junto dos pais e de confiança a pessoa idónea, previstas no art. 35.º da LPCJP, que podem ser aplicadas pelo tribunal a título cautelar como sucedeu neste caso, fundadas nos art. 67.º, 68.º e 69.º da CRP, visam, nomeadamente, afastar o perigo em que estes se encontram e proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral (art. 34.º da LPCJP), contribuindo também para a formação e realização de cidadãos livres.

XI - A violação ou omissão do cumprimento das responsabilidades parentais pode constituir motivo que legitima a intervenção para promoção e proteção, nos termos do art. 3.º da LPCJP, mediante o exercício, por outrem, dos poderes e deveres que integram essas responsabilidades, devendo as questões que lhe digam respeito, em caso de conflito, nomeadamente as que possam estar relacionadas com limitações ao exercício de direitos, próprias das decorrentes do exercício das responsabilidades parentais, ser objeto de apreciação e decisão no âmbito do correspondente processo, nos termos legalmente previstos (art. 77.º e ss.., nomeadamente).

XII - Nenhuma destas medidas de promoção e proteção visa, nem a sua aplicação visou, privar, total ou parcialmente, a liberdade à criança ou ao jovem a que é aplicada, isto é, aplicar uma medida de «prisão» na aceção do art. 222.º do CPP.

XIII - Não se verificando uma situação de «prisão», no sentido que lhe é conferida para efeitos de habeas corpus, não há que averiguar da existência de qualquer dos fundamentos indicados no n.º 2 do art. 222.º do CPP.

XIV - Em consequência do que deve concluir-se que o pedido carece manifestamente de fundamento, devendo ser indeferido [art. 223.º, n.º 4, al. a), do CPP].

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. A senhora Dra. AA vem, ao abrigo do artigo 31.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, apresentar petição de habeas corpus a favor da menor BB, com identificação nos autos, nos seguintes termos (transcrição):

“Dos factos:

1. A requerente e o seu irmão gémeo, CC têm 16 anos de idade, completados no passado dia ....

2. Desde o falecimento da sua mãe e até ao passado dia 3 de novembro, a requerente e o seu irmão, residiam com o seu padrasto - DD, na casa de família sita na Travessa ..., ..., ....

3. Os progenitores da requerente divorciaram-se em .../2016, tendo esta e o seu irmão ficado entregues à guarda e cuidados da mãe, ficando estabelecido um regime de visitas ao pai.

4. No contexto do casamento dos seus progenitores, a requerente o irmão desta e a mãe foram vítimas de violência doméstica, crime pelo qual o progenitor veio a ser condenado por sentença de judicial no âmbito do processo º350/15.... – J... – ..., a dois anos e meio de pena de prisão suspensa nos seus efeitos pelo período de dois anos, bem como sujeito a medida de afastamento da vítima e proibição de contactos com esta pelo mesmo período.

5. Nessa condenatória, no ponto 30 da sua fundamentação, consta que «A intervenção da CPCJ ..., desencadeada pelos factos que deram origem aos presentes autos, tem-se revelado infrutífera face à escassa colaboração do arguido, tendo o processo de promoção e proteção sido remetido para a Instância Central ... –Secção Família e Menores».

6. A requerente e o seu irmão tiveram perfeita noção da violência psicológica exercida pelo progenitor contra a falecida mãe, durante o casamento.

7. Conforme consta desse processo de Promoção e Proteção de Menores, um relatório da CPCJ, de 18.04.2016, refere que “as crianças foram ouvidas e mostraram pouca recetividade em estar na presença do pai”.

8. Mercê da violência doméstica que presenciaram e cujos efeitos sentiram, a requerente e o seu irmão desenvolveram grande insegurança e medo em relação ao progenitor o que veio a condicionar os contactos com este, que com o passar dos anos veio a ser quase inexistente ou muito diminuto.

9. A requerente BB já não mantinha quaisquer contactos com o pai desde há alguns anos.

10. O irmão da requerente CC apenas contactava esporadicamente o progenitor.

11. Sucede que no dia ... de Agosto último, a mãe dos requerentes faleceu, vítima de doença prolongada.

12. Preocupada com o destino dos filhos e prevenindo a sua proteção, a falecida deixou testamento de cujo teor consta, em síntese, que por sua morte nomeia tutor dos filhos o seu companheiro à data – DD, ao qual atribuí a administração dos bens que deixa aos filhos, com exclusão expressa da administração do pai destes, irmã germana e companheiro desta. Mais deixa ao seu companheiro o usufruto da casa de morada de família para aí residir com os filhos desta.

13. Na sequência da morte da sua mãe a requerente e o seu irmão mantiveram-se a viver na sua casa, na companhia e com o apoio do padrasto e uma empregada.

14. Com a morte da mãe da Requerente, o progenitor veio pedir a guarda desta e do irmão, o que terá determinado a reabertura do Processo de Promoção e Proteção –Processo nº 4490/15.9T8BRG – Juiz ... – Juízo de Família e Menores de ....

15. No âmbito desse processo foram a requerente e o seu irmão ouvidos, sem beneficiarem do aconselhamento de um advogado, tendo logo nessa diligência judicial ouvido que “agora que a mãe tinha morrido, tinham de ir viver com o pai”.

16. Nem a requerente, nem o seu irmão se conformaram em momento algum em viver com o seu progenitor, tanto na casa deste, como na sua casa de família.

17. Até porque, além da requerente não manter qualquer relação afetiva com o seu progenitor, a verdade é que tem medo deste.

18. Acrescente-se ainda que tanto a requerente, como o seu irmão, foram pressionados, tanto pelas técnicas da segurança social, como pelo Tribunal a quo a aceitar viver com o seu progenitor, sob pena de poderem vir a ser institucionalizados.

19. É neste contexto que, no passado dia 2 de Novembro, cerca das 18.45h, a requerente e o seu irmão foram surpreendidos com a presença à sua porta de duas técnicas da segurança social e militares da GNR.

20. O padrasto dos jovens foi informado pelas técnicas da S.S. que estavam ali por ordem do tribunal de família e menores para retirar os jovens de casa e conduzi-los a casa de pessoa idónea.

21. Exibiram para o efeito um mandado de busca e condução, esclarecendo que se necessário fosse podiam entrar na habitação, casa de família, para retirar os jovens.

22. O referido mandado judicial determinava que os jovens fossem conduzidos a casa da Sra. EE.

23. Nesse dia, face à recusa da requerente e seu irmão em abandonar a sua casa e atendendo ao estado de perturbação e sofrimento em que ficaram, vestidos de pijama, com os seus cães ao colo, as técnicas desistiram de os forçar a acompanhá-la.

24. No dia seguinte – 3 de Novembro, as mesmas técnicas compareceram na escola dos jovens para fazer cumprir o mandado de condução, o que veio a suceder, tendo estes sido contudo entregues ao progenitor!

25. Para o efeito, como preparação para a retirada, as técnicas instruíram a direcção da escola para retirar os jovens da sala de aula e levá-los para uma sala onde sem qualquer explicação ficaram a aguardar a chegada das técnicas durante várias horas.

26. Logo que foram levados à presença da Directora, esta ordenou que a requerente e o seu irmão lhe entregassem os telemóveis, ao que estes obedeceram.

27. Da mesma forma foram os colegas das duas turmas da requerente obrigados pela Diretora a entregar os telemóveis, para evitar que estes comunicassem com alguém.

28. A requerente e o seu irmão, assustados e intimidados com todo este procedimento, obedeceram e acompanharam as técnicas da segurança social.

29. Contudo, nesse mesmo dia foram conduzidos a casa do seu progenitor e a este entregues tendo-lhes sido dito apenas que era “uma ordem do Juiz”, isto apesar de o mandado judicial determinar que era para condução a casa da Sra. EE.

30. Em nenhum momento foi exibida, entregue ou sequer explicada a decisão judicial à requerente e seu irmão.

31. Uma vez em casa do pai, com o qual não mantinham qualquer laço afectivo ou relação desde há seis anos, a requerente e o seu irmão foram impedidos de sair por ordem deste.

32. A requerente BB, vendo-se presa tal como o irmão nesta situação que não compreendiam, durante a tarde do dia 3/11, fez um apelo na rede social Facebook com o seguinte teor: “Boa tarde, eu e o meu irmão precisamos da vossa ajuda, estamos presos na casa do nosso pai, fomos obrigados a estar aqui segundo uma suposta ordem de tribunal, contra a nossa vontade, nem à escola pudemos ir, peço a vossa ajuda urgentemente por favor!!! “

33. A referida publicação foi amplamente partilhada e difundida nas redes sociais e foi objecto de cobertura noticiosa por vários órgãos de comunicação social, designadamente ..., ... entre outros.

34. No mesmo dia, tendo chegado ao conhecimento do progenitor da requerente a notícia do apelo desta, confrontou-a com esse facto de forma violenta, agredindo a requerente e intimidando-os.

35. Nesse contexto, o progenitor da requerente tentou tirar à força o seu telemóvel, agredindo-a fisicamente.

36. Essa agressão só parou com a rápida intervenção do seu irmão CC.

37. Ainda no contexto deste incidente a requerente e o seu irmão foram sujeitos a maus-tratos verbais e psicológicos graves, por parte do progenitor e irmã germana.

38. A requerente BB gravou o incidente como forma de se protegerem.

39. Ao que a requerente sabe, foi chamada a intervir a equipa técnica da segurança social, a qual também os recriminou, perguntando-lhes se queriam acabar numa instituição.

40. O estado da requerente ficou de tal forma afectado que motivou a intervenção do INEM e da GNR.

41. Nessa noite ainda, a requerente foi conduzida a casa da aludida pessoa idónea, EE, que esta reconheceu como um casal amigo dos seus pais, com quem não mantinham contacto há anos.

42.Como se não bastasse, foi a requerente separada do seu irmão gémeo, que permaneceu casa do progenitor.

43. Essa separação, pela primeira vez na vida de ambos, causou na requerente um verdadeiro sentimento de pânico e impotência que a levou a expôr o seu estado ao psicólogo que a acompanhava.

44.Tal situação também preocupou o técnico de saúde mental, Dr. FF, que por sua iniciativa contactou o Tribunal a quo e a Segurança Social de ....

45. O que, pensa-se, poderá ter determinado que o seu irmão gémeo fosse colocado junto de si à confiança de EE, onde se encontram atualmente.

46. Desde que aí se encontram, a requerente e seu irmão estão impedidos de se deslocar livremente, de contactar com quaisquer pessoas, em especial com o padrasto e empregada doméstica, bem como de falar deste assunto com terceiros.

47. A proibição de contactos é tal que a requerente e o seu irmão estão impedidos de manter o acompanhamento psicológico de que beneficiavam desde o falecimento da sua mãe, com o psicólogo, Dr. FF.

48. São conduzidos diariamente por um membro do casal, ou pelo progenitor ao colégio que frequentam, de onde estão proibidos de sair sem ser acompanhados por aqueles.

49. Os poucos dias em que foram autorizados a sair sozinhos do colégio foi com instruções expressas para se dirigirem à estação de comboios a cerca de 500 metros do colégio para irem para casa.

50. O casal a quem estão entregues os irmãos fomenta as visitas do progenitor a sua casa, contra a vontade da requerente que se vê obrigada a conviver com este.

51. A requerente BB, no passado dia 11/11, conseguiu ter permissão para sair do colégio com uma amiga e um amigo para almoçar com a condição de aceitar que o pai a fosse buscar no fim de almoço para a levar a uma entrevista na segurança social.

52. Nesse dia a Requerente contactou a advogada signatária, pedindo-lhe ajuda.

53. Esta foi ao encontro da requerente onde se encontrava a almoçar e respondeu às suas dúvidas, esclarecendo-a dos seus direitos.

54. Nessa ocasião a requerente pediu à referida advogada para a representar, assinando procuração para o efeito nesse dia.

55. Durante esse encontro a requerente relatou toda a situação a que ela e o irmão se encontram sujeitos desde o passado dia 2/11.

56. Em face dessa informação, por entender que estavam a ser violados os mais elementares direitos fundamentais da requerente e seu irmão, a mandatária acompanhou a requerente à PSP onde esta manifestou o desejo de apresentar queixa, o que fez.

57. De seguida, a requerente, por se encontrar já há sete dias com uma infeção urinária sem que ninguém a tivesse levado ao médico, pediu ainda à sua mandatária para a acompanhar ao hospital para ser vista.

58. A requerente foi atendida no Hospital ... (...), onde, além das queixas de saúde, relatou as circunstâncias em que se encontrava.

59. Por se tratar de uma questão social, foi encaminhada para o Hospital ..., no que a mandatária a acompanhou.

60. Entretanto, a requerente havia enviado uma mensagem ao pai a dizer que ia ao médico por estar doente, bem como ao irmão, e que telefonaria no fim.

61. Uma vez no Hospital público, a requerente foi atendida por duas pediatras que lhe pediram para relatar as suas queixas, o que ficou a constar dos registos hospitalares.

62. A requerente foi manifestando ao longo do dia, designadamente na PSP e no Hospital, que tinha receio profundo de voltar para casa do casal pelo que lhe pudessem dizer ou fazer por ter apresentado queixa.

63. Em face deste receio, e recusa da requerente em voltar para casa, a sua mandatária informou as médicas que ia chamar a tia paterna e madrinha da requerente, para a acompanhar.

64. A tia da requerente de imediato se apresentou no hospital, ficando esta na sua companhia enquanto era atendida em consulta.

65. Subitamente, irromperam no local onde a requerente se encontrava a ser atendida, o casal acompanhado da GNR.

66. Na presença da requerente, em grande agitação e exaltação, ordenaram à sua tia que se fosse imediatamente embora porque eles é que eram os responsáveis por ela.

67. A requerente, assustada e cheia de dores, foi sujeita à presença do casal e da GNR, ao mesmo tempo que era injuriada de “mentirosa”, ameaçada “com internamento numa instituição”, recriminada por estar no hospital.

68. A requerente viu deste modo a sua privacidade e intimidade invadida durante uma consulta médica.

69. Efectuados os exames, foi confirmado que a requerente sofria de uma infeção urinária tendo sido medicada com antibiótico.

70. A requerente, com toda esta situação, foi acometida de fortes dores de cabeça, tendo implorado às médicas que a atenderam para ficar no hospital.

71. Todavia, apesar dos esforços destas para proteger a requerente, as médicas foram instruídas, via telefone, por uma técnica da segurança social de ... que a requerente tinha de ser entregue imediatamente ao casal.

72. A requerente foi portanto obrigada a regressar a casa do casal, onde se encontra com o irmão até ao dia de hoje.

73. No dia 12 de novembro, antes de conduzir a requerente ao colégio, esta foi obrigada a entregar o seu telemóvel à Sra. EE.

74. Ficou portanto a requerente BB sem acesso ao telemóvel e impedida de contactar com todas e quaisquer pessoas, incluindo a sua mandatária.

75. Encontra-se a requerente e seu irmão, desde a aplicação da medida de entrega ao casal, proibidos de contactar o padrasto, a empregada doméstica, tios paternos, o psicólogo e quaisquer pessoas, especialmente a sua mandatária.

76. Desde o dia 3/11, estão impedidos de sair à rua sozinhos e limitados ao percurso entre a casa e o colégio, sempre acompanhados por um dos elementos do casal.

77. Desde esse dia, que à requerente e seu irmão não lhes é permitido falar ao telefone sem a presença de um dos membros do casal, tendo-lhes sido dito que não podem comunicar de nenhuma forma com as pessoas citadas, ou quaisquer outras, incluindo através das redes sociais.

78. Simultaneamente, enquanto se encontram no colégio, a requerente e o seu irmão são vigiados permanentemente, segundo sabem, por instruções das técnicas da segurança social.

79. Desde a referida data que os irmãos não são livres sequer de se deslocar ao café em frente do colégio.

80. Acresce que, sempre que a requerente e o seu irmão são levados para serem ouvidos na segurança social ou no tribunal, só são informados no dia e hora, poucos minutos antes dessas diligências, o que os impede de serem acompanhados por pessoa da sua confiança, como é seu direito.

81. Ainda no dia 25 de novembro a requerente foi levada à segurança social de ..., onde esteve a ser interrogada durante cerca de duas horas, sem a presença de um advogado ou pessoa da sua confiança, onde a questionaram até sobre conversas que teve com a sua falecida mãe.

82. A requerente e o seu irmão têm condições económicas para poder viver na sua casa de família, contratar uma cuidadora e aí beneficiarem de medida de apoio para autonomia de vida, a qual, no caso, se resume a apoio psicológico (que já tinham antes da intervenção do Tribunal a quo e foi suspenso), e doméstico para a organização das tarefas de casa.

83. A requerente e o irmão são jovens educados, bons alunos e sempre tiveram um comportamento exemplar.

84. Inexiste, no processo de promoção e proteção ou na realidade, qualquer facto ou indício que permita concluir que a requerente e o seu irmão estavam em perigo aquando da intervenção judicial.

85. Na verdade, a saúde e bem estar físico e mental da requerente e o seu irmão estão em perigo actualmente desde a intervenção judicial.

86. A requerente vive num estado de receio e ansiedade permanentes que afectam sua estabilidade psíquica e emocional, com reflexos no aproveitamento escolar.

87. O ambiente de receio e constrangimento é tal que a requerente sofreu de uma infeção urinária durante uma semana e, perante a indiferença da Srª EE, não teve coragem de insistir para a levarem ao médico.

88. A limitação da liberdade da requerente é tal que, inclusive, lhe limitam o contacto com o seu irmão gémeo, fiscalizando as conversas, evitando que estes tenham momentos a sós.

89. A requerente e o seu irmão gémeo são obrigados a participar em “conversas”, com o casal, nas quais sempre lhes é comunicado que se não aceitarem a presente situação serão enviados para uma instituição.

90. As conversas acabam sempre em torno do progenitor, exercendo o casal pressão sobre os irmãos para aceitarem viver com ele.

91. Em resultado destas conversas e pressões, o irmão da requerente tem vindo a isolar-se cada vez mais, mostrando-se profundamente perturbado e frágil, o que preocupa muito a requerente.

92. A requerente e o seu irmão estão privados da mais elementar liberdade de locomoção e movimentos e privados dos cuidados a que têm direito, em especial do apoio psicológico que mantinham desde o falecimento da mãe, sentindo-se como se de criminosos se tratassem.

Do Direito,

1. A Requerente vem, nos termos do preceituado no artigo 31º nº2 da nossa Lei Fundamental, apresentar a presente providência de habeas corpus.

2. A presente providência apresenta uma natureza extraordinária e urgente destinada a assegurar o direito à liberdade enquanto direito constitucionalmente garantido (artigos 27º e 31º, ambos da CRP).

3. A medida de promoção e proteção de confiança a pessoa idónea, tal como foi decretada e está a ser aplicada no âmbito do Processo de Promoção e Proteção nº 4490/15.... (Juiz ..., do Juízo de Família e menores de ...), nos termos do disposto no artigo 35º nº 1 al. c) da Lei nº 147/99 de 1 de setembro, é ilegal.

4. Sob pena de violação do princípio da igualdade (art.º 13.º da CRP), é de aplicar o regime do habeas corpus previsto no art.º 222.º do CPP ao caso da medida cautelar de confiança a pessoa idónea, decidida no âmbito de um processo de promoção e proteção e, por consequência, a todas as decisões aí tomadas que restrinjam a liberdade da requerente e do seu jovem irmão.

5. Acresce que está consagrado no art. 37.º, al. d) da Convenção dos Direitos da Criança: “A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre tal matéria”.

6. Já os Regimes do Processo Tutelar Cível e a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo representam a concretização dos mecanismos de proteção efetiva dos direitos das crianças, que derivam da sua condição de pessoa humana e que estão contidos na Convenção Universal dos Direitos das Crianças.

7. O critério do Superior Interesse da Criança deverá traduzir-se sempre num conjunto de ações e procedimentos que visem garantir um desenvolvimento integral e uma vida digna à criança, bem como as condições materiais e afetivas que lhe permitam viver plenamente e alcançar o máximo de bem-estar possível.

8. O que in casu não se está a verificar, pois no entendimento da requerente, a medida tomada pelo Tribunal a quo não tem em conta a vontade expressa, os direitos e interesses legalmente protegidos desta e do seu irmão gémeo.

9. Se dúvidas pudessem existir, o requerimento apresentado pela Requerente nesses autos esclarece que discorda da decisão do Tribunal a quo em a colocar na casa da Sra EE.

10. Tendo a requerente já 16 anos, idade em que é natural possuir já, não só um considerável grau de discernimento, mas ainda uma vontade própria, torna-se necessário, com vista à indispensável aferição de qual será o seu superior interesse, conhecer e respeitar a sua real vontade quanto ao seu projeto de vida e as consequências que para uma jovem com o seu passado recente e idade poderão advir desta ruptura.

11. Dando a lei preferência a soluções que mantenham a criança dentro do círculo da sua “família natural”, a decisão tomada pelo Tribunal a quo não é de todo no interesse superior da requerente e do seu irmão gémeo.

12. Porquanto a decisão desse Tribunal comporta a separação da requerente e seu irmão tanto do núcleo familiar e afetivo que existia (ex-companheiro da sua falecida mãe, a sua empregada GG, os tios paternos - HH e II), como da sua casa de família, dos animais de estimação, do seu técnico de saúde mental (Dr. FF), e amizades.

13. Ora, a medida aplicada determinou que a requerente e seu irmão, com 16 anos de idade, se encontram privados de liberdade, sendo obrigados a permanecer numa casa que não é a sua, na companhia de estranhos, causando-lhes sentimentos de revolta, receio, de real abandono por quem a requerente nutre afeto.

14. A requerente e o seu irmão estão privados dos seus mais elementares direitos fundamentais, situação que configura autêntica tortura a tortura psicológica e sequestro.

15. A medida aplicada, nos moldes em que tem vindo a ser executada, assume um carácter punitivo, traduzindo-se numa total limitação da liberdade de movimentos e contactos, justificando a presente providência de habeas corpus.

16. Cumpre ainda salientar que o facto de uma medida não ter uma finalidade punitiva não constitui automaticamente condição para a inadmissibilidade de um pedido de habeas corpus.

17. Neste sentido veja-se o que foi consagrado no art. 31.º, da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, e posteriores alterações), onde apesar de as medidas aplicadas ao abrigo desta lei terem por finalidade “contribu[ir] para assegurar ou reestabelecer o equilíbrio psíquico dos indivíduos, para favorecer o desenvolvimento das capacidades envolvidas na construção da personalidade e para promover a sua integração crítica no meio social em que vive”.

18. Também para José Lobo Moutinho, "A liberdade é um momento absolutamente decisivo e essencial - para não dizer, o próprio e constitutivo modo de ser - da pessoa humana (Ac. n° 607/03: "exigência ôntica"), que lhe empresta aquela dignidade em que encontra o seu fundamento granítico a ordem jurídica (e, antes de mais, jurídico-constitucional) portuguesa.”

19. A alínea d) do art.º 37.º da Convenção Sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21.9.1990, dispõe igualmente que: “A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre a matéria”.

20. Importa ainda chamar a atenção dos Venerandos Conselheiros que nas audições judiciais da requerente e do seu irmão, estes sentiram-se sempre coagidos e intimidados, pelo Tribunal a quo, e ainda assim nunca exprimiram o seu consentimento ou acordo na aplicação da medida de confiança a pessoa idónea ou de entrega ao progenitor biológico.

21. Se dúvidas existirem, estas ficarão esclarecidas com a simples audição das gravações dessas diligências.

22. Na verdade, na óptica da requerente, o Tribunal a quo tomou previamente uma decisão, destinando-se a sua atuação posterior a fundamentá-la, e não a procurar assegurar o superior interesse da requerente e do seu irmão!

23. O que na modesta opinião da requerente enquadra ainda uma situação de abuso de poder.

24. Aliás, ainda na modesta opinião da requerente, a medida de confiança a pessoa idónea não passa de uma tentativa camuflada, para pressionar e intimidar a requerente e o seu irmão a aceitarem viver com o progenitor!

25. E nesse sentido, veja-se como foi cumprido o mandado de condução no primeiro dia!

26. Assim e atento ao disposto ao disposto no Artigo n.º 31.º da CRP, a forma como foi determinada e tem vindo a ser aplicada a medida de confiança a pessoa idónea, nos termos expostos, traduz-se numa violação intolerável do direito da requerente e seu irmão à liberdade, contra a sua vontade expressa e sem fundamento que a justifique, pelo que requer seja tal medida declarada inconstitucional e ordenada a sua imediata restituição à liberdade, com eventual aplicação de medida de acompanhamento proporcional e adequada a garantir o Superior Interesse da requerente e seu irmão.

Nestes termos:

Requer a Vossas Excelências, ao abrigo do disposto no artigo 222º do CPP, seja ordenada a imediata apresentação judicial da requerente, deferindo-se a final o pedido e revogando-se a decisão que ordena a aplicação da medida de promoção e proteção em questão.”

2. Da informação prestada pelo Senhor Juiz do processo, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sobre as condições em que foi efectuada e se mantém a alegada privação da liberdade, consta o seguinte (transcrição):

«(…) apresentada petição de habeas corpus, a ser a mesma admitida, cumpre prestar informação sobre as condições em que foram aplicadas as medidas de promoção e protecção aos jovens BB e CC, nascidos a .../.../2005.

A 11.6.2021 foi o processo de promoção e protecção arquivado porquanto os jovens BB e CC não estavam expostos a uma situação de perigo. Lê-se no despacho respectivo que:

“Resulta do relatório social junto em 17/05/2020 que, pese embora o regime convivial entre pai e filhos não seja tão regular e em períodos muito prolongados como o progenitor desejaria, já se alcançaram ganhos significativos, nomeadamente com contacto diário (telefónico e/ou pessoal), refeições em conjunto em datas festivas, convívios em casa do pai, acompanhamento do CC aos treinos de futebol e mesmo no aumento da capacidade de diálogo e comunicação entre os progenitores.

A progenitora, na actualidade, assume a sensibilização dos jovens para comunicarem e conviverem mais regularmente com o pai.”

Em 3.9.2021 a Segurança Social dá nota nos autos do falecimento da progenitora dos jovens e da necessidade de averiguar com quem os mesmos estão pois que o pai foi impedido de estar com os mesmos por GG e um indivíduo que, após, foi identificado como sendo DD, pessoa que até à data era desconhecido, inclusive pela Segurança Social.

Em sequência, com vista a apurar a real situação dos jovens foi ordenada a reabertura do processo e ordenada a elaboração de relatório pela Segurança Social.

A 27.9.2021, após audição da técnica gestora do caso, dos jovens, do progenitor, de DD e de GG foi obtido o seguinte acordo para aplicação das seguintes medidas de promoção e protecção:

1. Medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar na pessoa do pai - art.º 35.º, nº. 1, al. a) da LPCJP;

2. Medida de promoção e proteção de confiança a pessoa idónea, a executar na pessoa da D. GG - art.º 35.º, nº. 1, al. c) da LPCJP;

3. Prazo de duração da medida: 03 (três) meses;

4. Obrigações durante a execução da medida:

5. O progenitor e a D. GG, comprometem-se a cumprir as orientações por parte da técnica da ATT, gestora do processo;

6. À D. GG, competirá o exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos de vida corrente dos jovens, nomeadamente, ficando a mesma a residir em casa dos jovens e a cargo de quem fica a satisfação das suas necessidades domésticas (alimentação, cuidar da roupa, cumprimento de hora de dormir e de acordar, etc.);

7. O progenitor exercerá as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida dos filhos, procedendo a todas as conduções e acompanhamentos dos jovens (levar e buscar à escola, atividades extracurriculares, festas, etc.);

8. O Sr. DD, compromete-se, de imediato, a deixar de residir na casa onde os jovens moram.

A 6.10.2021 foi informado pela Segurança Social que GG e DD retiraram o acordo que haviam dado a 27.9.2021, razão pela qual foi necessário rever as medidas protectivas aplicadas, na sequência do que foram feitas as diligências tidas por necessárias com vista à definição da situação dos jovens.

A 2.11.2021 foram os jovens, mais uma vez, ouvidos e numa decisão onde se dá nota de várias perplexidades constatadas foi decido que:

“1. Os jovens CC e BB, ficam sujeitos:

- À medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar na pessoa do pai - art.º 35.º, nº. 1, al. a) da LPCJP;

- À medida de promoção e proteção de confiança a pessoa idónea, a executar na pessoa de EE - art.º 35.º, nº. 1, al. c) da LPCJP;

2 - Prazo de duração da medida: 03 (três) meses;

3- Obrigações durante a execução da medida:

- O progenitor e EE, comprometem-se a cumprir as orientações por parte da técnica da ATT, gestora do processo;

- A EE competirá o exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos de vida corrente dos jovens, nomeadamente, ficando os mesmos a residir em desta e a cargo de quem fica a satisfação das suas necessidades domésticas (alimentação, cuidar da roupa, cumprimento de hora de dormir e de acordar, etc.);

- O progenitor exercerá as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida dos filhos, procedendo a todas as conduções e acompanhamentos dos jovens (levar e buscar à escola, atividades extracurriculares, festas, etc.);

Esta decisão foi comunicada aos jovens e da mesma ficaram eles cientes.

Mercê da actuação de GG e de DD que acolheram os jovens na casa que era da mãe destes e relativamente á qual, agora, incide um usufruto vitalício constituído a favor deste DD, por testamento feito 48h antes da mãe dos jovens morrer, foi necessário fazer conduzir os jovens a casa de EE.

Tal só ocorreu no dia 3.11.2021 porquanto após este Tribunal ter constatado o número de pessoas que se encontravam a rodear os jovens em casa que foi da mãe deles teve-se por bem suspender a execução da condução e concretizá-la posteriormente, o que ocorreu.

A situação dos jovens tem sido acompanhada em permanência por este Tribunal, tendo a jovem BB sido, inclusivamente, ouvida no dia 30.11.2021, data em que reiterou a confiança na patrona nomeada.

Do teor do processo - autos da GNR, informações do INEM, auto da PSP, informações clínicas da jovem BB, relatórios da Segurança Social, testamentos, escritura de permuta feita duas semanas antes do decesso da mãe dos jovens, declarações dos jovens - por ora, não se tem constatado a corroboração do alegado na petição de habeas corpus, bem distintamente (desde a alegada situação anterior à morte da mãe - posterior ao divórcio - até ao presente, sendo que foram BB e CC que escolheram, voluntariamente, ficar em casa do pai, o que foi corroborado por BB quando ouvida sobre tal questão; passando pela situação relatada na petição relativa ao sucedido no dia 11.11.2021).

Antes sim, vislumbram-se perplexidades e contradições que estão a ser apuradas e às quais o Tribunal está atento e não as deixará de continuar a fazer notar (tendo já sido feitas comunicações às entidades competentes para averiguar factos que possam ter relevância criminal e outras, quiçá, daí, as imputações de coacção, intimidação e abuso de poder).

Da audição da referida jovem resulta inequívoco que a mesma não tem consciência do teor, conteúdo, significado e consequências do que ao processo chega, alegadamente, em seu nome. Nem tão pouco que o descrito na petição de habeas corpus tenha respaldo factual, caso em que este Tribunal, de imediato, actuaria.

Os jovens BB e CC estão assistidos por patronos, nomeados pelo Tribunal nos termos do art.º 103.º da LPCJP, o que é do conhecimento da senhora advogada signatária da petição de habeas corpus (a qual terá acompanhado JJ e II - a referida tia paterna e madrinha - enquanto advogada destes, e perante a Segurança Social, no âmbito do presente processo); sendo que os jovens, não tendo capacidade de exercício de direitos (cfr. artigos 122.º e 123.º do C.Civil) e considerando o disposto no art.º 12.º, n.º 2, in fine da Convenção sobre os direitos da criança, e os artigos 12.º, 13.º e 22.º da Lei n.º 130/2015 de 4 de Setembro, o direito a serem acompanhados por advogado é concretizado através da Lei do apoio judiciário, com a nomeação oficiosa (e aleatória) de patrono.

O acompanhamento psicológico, por via do Tribunal, de forma a garantir a estabilidade dos jovens e imparcialidade de tal actuação, está a ser diligenciado.

3. O processo encontra-se instruído com documentação da ata de declarações e de audição de 27 de setembro de 2021, da conferência a que se refere o artigo 110.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) e da decisão judicial, da mesma data, que aplicou medidas de promoção e proteção; da ata de declarações de 20 de outubro de 2021 e do despacho judicial, da mesma data, que ordenou a notificação do Ministério Público e dos advogados para se pronunciarem sobre a alteração das medidas anteriormente fixadas; da ata de audição de 2 de novembro de 2021; da decisão, da mesma data, que alterou as medidas; e da ata de audição dos jovens, de 30 de novembro de 2021.

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. Fundamentação

5. O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição da República consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais privativas do direito à liberdade.

O habeas corpus, que pode ser requerido pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade, consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344).

Nos termos do artigo 27.º, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena ou de aplicação judicial de medida de segurança privativas da liberdade. Exceptua-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional, em que se incluem (a) a detenção em flagrante delito, (b) a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, (c) a prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão, (d) a prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente, (e) a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente, (f) a detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente, (g) a detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários e (h) o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.

A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional (como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.).

6. O artigo 27.º da Constituição inspira-se diretamente no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e em outros textos internacionais (assim, Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit. p. 299), como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos e que conferem força normativa à Declaração Universal dos Direitos do Homem, a que a Constituição submete a interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais (artigo 16.º, n.º 2).

O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição é o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar (Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 478 e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 471/2001, DR II,  n.º 163, de 17.07.2002), o direito à liberdade de movimentos, de “ir e vir”, à liberdade ambulatória ou de locomoção (Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit. p. 300).

O direito à liberdade consagrado e garantido neste preceito constitucional e no artigo 5.º da CEDH visa proteger o direito à liberdade física da pessoa contra a detenção e contra a prisão arbitrária ou abusiva, que ocupa um lugar central nos direitos fundamentais que protegem a segurança física de uma pessoa numa sociedade democrática [como resulta de jurisprudência estabelecida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) desde o acórdão Engel e outros c. Países Baixos, de 8.6.1976, § 58; por todos, o acórdão MacKay c. Reino Unido, 3.10.2016, § 30], conferindo o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos expressa e excecionalmente previstos na lei, que deve reunir os necessários requisitos de certeza e previsibilidade, e com os procedimentos legalmente previstos, nomeadamente quanto à garantia de apreciação e controlo judicial e aos prazos de duração (por todos, do TEDH, o acórdão Del Río Prada c. Espanha, de 21.10.2013, § 125).

O artigo 5.º, n.º 4, da CEDH, segundo o qual “qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal” constitui a disposição de habeas corpus da Convenção (Guide on Article 5 of the European Convention on Human Rights, European Court of Human Rights, www.echr.coe.int/documents/guide_art_5_eng.pdf), oferecendo uma garantia fundamental, que, na sua essência, se traduz no direito de revisão judicial da detenção (TEDH, acórdão Rakevich c. Rússia, 28.10.2003, § 43).

7. A tutela constitucional do direito à direito à liberdade não se limita ao artigo 27.º da Constituição, resultando também do artigo 28.º, que contém regulamentação específica da privação da liberdade no âmbito do processo penal, incluindo a detenção e a prisão preventiva [artigo 27.º, n.º 3 al. a) e b)], aplicável aos casos de detenção e prisão para efeitos de expulsão e extradição [artigo 27.º, n.º 3, al. c)] e do artigo 31.º, que garante o habeas corpus como meio de tutela que abrange qualquer forma de privação ilegal da liberdade, isto é, qualquer forma de privação da liberdade não admitida pelo artigo 27.º, aqui se incluindo, como anteriormente se referiu, a privação de liberdade de um menor por sujeição a medida de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretada pelo tribunal judicial competente, pelo tempo e condições que a lei determinar [artigo 27.º, n.º 3, al. e)].

A admissibilidade da privação da liberdade de um menor para efeitos de “educação sob vigilância” encontra-se prevista na al. d) do n.º 1 do artigo 5.º da CEDH, que dispõe que “ninguém pode ser privado da sua liberdade”, “salvo” no caso de, “de acordo com o procedimento legal”, “se tratar da detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância, ou da sua detenção legal com o fim de o fazer comparecer perante a autoridade competente”. Interpretando esta disposição, vem a jurisprudência do TEDH estabelecendo que ela autoriza a privação da liberdade no próprio interesse da criança, independentemente de ser suspeita da prática de facto qualificado como crime ou de ser uma “criança em risco” (acórdão D.L. c. Bulgária, de 19.5.2016, §  71) e que a “vigilância” pretendida com a “detenção” compreende muitos aspetos do exercício dos “direitos parentais” para benefício e proteção da criança (acórdãos P. e S. c. Polónia,, de 30.10.2012, § 147, Ichin e Outros c. Ucrânia, de 31.12.2010, § 39, e D.G. c. Irlanda, de 16.5.2002, § 80).

8. O âmbito de proteção do artigo 27.º da Constituição, tal como o do artigo 5.º da CEDH, abrange a privação total e a privação parcial da liberdade, por autoridade pública, que não se confunde com as restrições ao direito de deslocação, garantido pelo artigo 44.º, que comporta a liberdade de movimento da pessoa de um lugar para outro, enquanto corolário do direito à liberdade (artigo 27.º) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 632) e pelo artigo 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH. Sublinha a jurisprudência do TEDH, a este propósito, que o artigo 5.º da CEDH contempla a liberdade física da pessoa, com a finalidade de assegurar que ninguém pode ser arbitrariamente privado dessa liberdade, não as meras restrições de liberdade de movimento, pela autoridade pública, autorizadas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 2.º do Protocolo n.º 4, insistindo, todavia, em que a diferença entre estas e outras restrições de movimento  suficientemente graves suscetíveis de cair na previsão do artigo 5.º se traduz numa diferença de grau ou intensidade e não de natureza ou substância (por todos, o acórdão Tommaso c. Itália, de 23.2.2017, § 80).

Pronunciando-se sobre a distinção entre privação total e privação parcial da liberdade, o Tribunal Constitucional, usou a seguinte formulação, de inspiração germânica: “A mera limitação de liberdade (Freiheitsbeschränkung) existe quando alguém é impedido, contra a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível ou de permanecer num certo espaço. A liberdade de movimentação não é, assim, em contraposição à privação da liberdade, subtraída, mas apenas limitada numa certa direcção (cfr. Grundgesetz, Kommentar, § 104, 6 e 12). A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida). A limitação ou restrição da liberdade (que não implique a sua privação) concretiza-se através de uma perturbação periférica daquele direito mantendo-se, no entanto, a possibilidade de exercício das faculdades fundamentais que o integram.” (acórdãos n.º 479/94, DR I-A, n.º 195, de 24.08.1994, 185/96, DR I-A, n.º 75, de 28.03.1996, e 83/01, de 05.03.2001, em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).

A privação parcial da liberdade, na expressão de Jorge Miranda/Rui Medeiros (loc. cit. p. 303, citando também estes acórdãos), traduz-se “numa forma de impedimento coactivo à deslocação da pessoa de ou para o lugar que lhe seria jurídica e facticamente acessível”.

O que, em todo o caso, deve ser sublinhado, é que, no que releva para efeitos do artigo 27.º, a privação total ou parcial da liberdade seja resultado de ação de uma autoridade pública.

9. O regime do habeas corpus encontra-se estabelecido nos artigos 220.º a 224.º do CPP, no capítulo referente aos “modos de impugnação” das medidas de coação. Os artigos 220.º e 221.º regulam o habeas corpus em virtude de detenção ilegal, da competência do juiz de instrução, e os artigos 222.º a 224.º o habeas corpus em virtude de prisão ilegal, da competência do Supremo Tribunal de Justiça.

Uma interpretação conforme à Constituição obriga, porém, em conformidade com o que vem de se expor, a conferir-lhe um âmbito de proteção que extravasa o âmbito das medidas de coação – que, na sistemática do CPP, se limitariam à prisão preventiva (artigo 202.º do CPP) e à obrigação de permanência na habitação (artigo 210.º do CPP) –, de modo a abranger todos os casos que se inscrevem no artigo 27.º da Constituição, nomeadamente todos os casos de detenção, a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado e o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico.

É assim que, pressupondo e conferindo à “prisão” um sentido próprio – que, para efeitos de habeas corpus, não se pode limitar a compreender a pena de prisão e a medida de coação de prisão preventiva –, este Supremo Tribunal vem assumindo competência para apreciação de petições de habeas corpus quando a privação da liberdade é imposta por decisão judicial. Incluem-se aqui casos de execução da pena acessória de expulsão logo que cumpridos dois terços da pena de prisão (acórdão de 6.7.2019, Proc. n.º 299/17.3TXEVR-G.S1), permanência, por decisão judicial, em centro de instalação temporária para execução da medida de expulsão (acórdão de 23.05.2018, Proc. n.º 965/18.6T8FAR.S1), de internamento compulsivo (acórdão de 27.6.2019, Proc. 376/19.6T8EPS-A.S1) e de aplicação de medidas de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo, em particular da medida de acolhimento residencial (acórdãos de 18.1.2017, Proc. 3/17.6YFLSB, de 15.2.2018, Proc. 1980/17.2T8VRL-A.S1, de 4.7.2019, Proc. 2199/17.8T8PRD—F.S1, de 4.7.2019, Proc. 2349/17.4T8CSC-A, de 29.4.2020, Proc. 1604/19.3T9MFR-B.S1, de 28.8.2020, Proc. 21/230.7YFLSB.S1, de 14.1.2021, Proc. 161/11.3TMCBR-D.S1, de 2.6.2021, Proc. 2840/20.5T8STR-B.S1, e de 8.9.2021, Proc. 733/20.5T8CTB-B.S1).

10. Dispõe o artigo 222.º do CPP que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

11. Em jurisprudência constante, tem vindo este Supremo Tribunal de Justiça a considerar que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excepcional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante as ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reacção tendo por objecto actos do processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade ou atos que lhes digam respeito, ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. A providência não se destina a apreciar alegados erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade. «Os fundamentos da providência [de habeas corpus] revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação directa e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a directa, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)» [acórdão de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B.S1; assim também, entre outros, os acórdãos de 02.11.2018, proc. n.º 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, proc. n.º 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt].

Como se tem sublinhado, «[n]o âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe julgar e decidir sobre a discussão que [os actos processuais] possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo)»; na providência de habeas corpus «não [se] pode decidir sobre actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação, pois que «a medida não pode ser utilizada para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação» (acórdão de 5 de maio de 2009, proc. n.º 665/08.5JAPRT-A.S1, citado no acórdão de 26.07.2019, proc. n.º 2290/10.1TXPRT-M.S1. Assim também, reflectindo jurisprudência uniforme, entre muitos outros, os acórdãos de 21.09.2011, proc. n.º 96/11.0YFLSB, de 09.02.2012, proc. n.º 927/1999.0JDLSB-X.S1; de 06.02.2013, proc. n.º 109/11.5SVLSB.S1; de 15.02.2017, proc. 6/17.0YFLSB.S1, de 31.10.2018, proc. 663/09.1JAPRT-B.S1, em www.dgsi.pt).

A providência de habeas corpus não interfere nem é incompatível com o recurso ordinário de decisões sobre questões de natureza processual que possam afectar a situação de privação da liberdade, sendo diferentes os seus pressupostos (assim, Canotilho/Vital Moreira e Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit., e Maia Costa, comentário ao artigo 222.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2.ª ed., Almedina, 2016). A diversidade do âmbito de protecção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, numa relação de complementaridade, em que aquela providência permite preencher um espaço de protecção imediata perante a inadmissibilidade legal da prisão.

12. O pedido de habeas corpus pressupõe a actualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que este é apreciado, como também tem sido reiteradamente sublinhado (acórdão de 26.07.2019 cit. e, de entre outros, os acórdãos de 21.11.2012, proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1, 09.02.2011, proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1, de 11.02.2015, proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1, e de 17.03.2016, proc. n.º 289/16.3JABRG-A.S1, em www.dgsi.pt).

13. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se afirmou no acórdão de 22.1.2020 (proc. 4678/18.0T8LSB-B.S1, acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2021/02/criminal_sumarios-2020.pdf), o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante actualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (cfr. também, os acórdãos de 26.07.2019 cit. e de 09.01.2019, proc. n.º 589/15.0JALRA-D.S1, em www.stj.pt/wpcontent/uploads/2019/06/criminal_ sumarios_ janeiro_ 2019 .pdf).

14. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, e dos documentos juntos resulta esclarecido, em síntese, com relevância para a apreciação e decisão, que:

- Em 27.9.2021, tendo sido obtido acordo quanto a aplicação de uma medida de promoção e proteção, o juiz do processo, ao abrigo do disposto nos artigos 113.º, n.º 2 e 3, da LPCJP, homologou tal acordo, aplicando aos jovens CC e BB, ambos nascidos em .../.../2005: (a) a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar na pessoa do pai - art.º 35.º, nº. 1, al. a), da LPCJP; (b) a medida de promoção e proteção de confiança a pessoa idónea, a executar na pessoa de GG - art.º 35.º, nº. 1, al. c), da LPCJP.

- Em 2.11.2021, o juiz do processo proferiu decisão que altera a de 27.9.2021, ficando os jovens sujeitos, pelo prazo de 3 meses: (a) à medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar na pessoa do pai - art.º 35.º, nº. 1, al. a), da LPCJP; (b) à medida de promoção e proteção de confiança a pessoa idónea, a executar na pessoa de EE - art.º 35.º, nº. 1, al. c) da LPCJP, nos seguintes termos:

“I - Relatório.

São os presentes autos relativos a CC e BB, ambos nascidos a .../.../2005.

Em virtude do falecimento da progenitora dos jovens, foram aplicadas, por acordo, datado de 27.9.2021, as medidas de protecção de apoio junto dos pais, na pessoa do pai e de confiança a pessoa idónea a executar na pessoa de KK, considerando que os jovens se manteriam na casa em que sempre viveram, mas cujo usufruto foi constituído, por morte da progenitora a favor de DD.

No referido dia 27.9.2021, foi comunicado aos autos que GG retirou o seu acordo.

Em sequência foram ouvidos a Técnica que acompanha o caso, LL e MM, NN e EE; bem com os jovens.

A Digna Curadora de Menores, dando nota de toda a envolvência do presente caso e à retirada de acordo de GG e de DD, promoveu que, para além da medida de apoio junto dos pais, na pessoa do pai, aos jovens fosse aplicada a medida protectiva de confiança a pessoa idónea na pessoa de EE.

II - Fundamentação.

Os factos.

1. BB e CC, ambos nascidos a .../.../2005, são filhos de OO e de PP.

2. Por decisão de 15.3.2016 e de 3.5.2016, proferidas no processo principal, foi fixado o regime do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao CC e à BB, tendo estes ficado a residir com a progenitora, as questões de particular importância sido atribuídos a ambos os progenitores; mais foi fixado um regime de contactos e prevista a pensão de alimentos.

3. PP faleceu a .../08/2021.

4. A 3.9.2021 é dada notícia nos autos, pela Segurança Social, do falecimento da progenitora e de que foi o progenitor impedido de estar com os jovens por GG e um indivíduo, de identidade desconhecida, à data.

5. Avaliada a situação, foi constatado que os jovens estavam a viver na casa onde sempre moraram e estavam acompanhados de GG e de DD.

6. PP, através de testamento datado de 8.2.2018 declarou:

7. Nomear tutores dos jovens CC e BB, MM e marido, LL.

8. Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, OO destes e a irmã mais velha daqueles, QQ.

9. Atribuir a administração dos bens dos menores à MM e ao LL.

10. Legar a MM e a LL o usufruto, simultâneo e sucessivo, da casa de morada de família.

11. Legar aos pais o direito de uso e habitação da referida casa de morada de família.

12. Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.

13. PP, através de testamento datado de ...8.2021 (dois dias antes de falecer) declarou:

14. Nomear tutor aos filhos CC e BB, DD;

15. Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, OO destes e a irmã mais velha daqueles, QQ.

16. Atribuir a administração dos bens dos menores a DD.

17. Constituir, a favor de DD o usufruto da sua casa de morada de família, sita na travessa ...

18. Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.

19. No dia ...8.2021(22 dias antes de falecer) PP permutou com DD um prédio urbano destinado a armazém e actividade industrial.

20. A 30.9.2021 os imóveis referidos em 11. foram avaliados em € 295.000,00 e € 50.000,00, respectivamente.

21. Por acordo datado de 27.9.2021, em virtude do falecimento da progenitora dos jovens, foram aplicadas, as medidas de protecção de apoio junto dos pais, na pessoa do pai e de confiança a pessoa idónea a executar na pessoa de GG, considerando que os jovens se manteriam na casa em que sempre viveram, mas que o usufruto foi constituído, por morte da progenitora a favor de DD.

22. Nesse mesmo acordo, DD comprometeu-se a deixar de residir na casa onde os jovens moravam com a mãe.

23. GG e DD retiraram o seu acordo à aplicação da medida de confiança a pessoa idónea.

24. GG assume um discurso inflamado em relação ao pai da BB e do CC.

(…)

O Direito.

Claramente, nos presentes autos, estamos perante uma situação de perpetuação de comportamentos que visam afastar CC e BB do seu pai.

Tal começou em vida da falecida progenitora - o presente processo é disso paradigmático - a qual, por via dos testamentos que fez, revela, claramente que queria impor essa sua vontade mesmo para além da morte.

Os motivos que levaram à abertura do presente processo em 2018 continuam a verificar-se, se bem que agora com contornos distintos e com intervenientes diferentes, em que a falecida mãe dos jovens é substituída por GG e DD.

De todos os relatórios da Segurança Social que acompanham o caso existe uma nota permanente que é a de que o progenitor tem as capacidades para exercer as responsabilidades parentais, tem adoptado uma postura correcta perante toda a situação e vê-se contraposto por uma atitude, activa, de antagonismo por parte de GG e de antagonismo (aparentemente…) passivo de DD.

Aquela, deu o acordo para cuidar das necessidades básicas dos jovens, permitindo que estes continuassem a viver na mesma casa onde sempre moraram, mas antagonizou o progenitor e retirou o seu acordo.

Este, DD, sob a capa de “respeitar a vontade da falecida” (sic)

mudou-se para a casa onde os jovens sempre moraram, que era de sua mãe e impede que o progenitor lá entre.

No meio disto tudo estão BB e CC que veem ser perpetuado o clima bélico que existia por parte da sua mãe face ao pai, nomeadamente porque GG e DD promovem o mesmo e impedem que a relação filial se desenvolva e fortaleça.

Claramente, e independentemente de existência de titulo válido, ou não, de DD para se intitular tutor, o certo é que - à semelhança da generalidade dos casos em que estão em causa os progenitores - nem este, nem GG se apresentam aptos a promoverem o afastamento do perigo a que BB e CC estão expostos - o clima de guerra aberta e hostilidade - como o potenciam.

Manifestamente concorda-se com a posição da Segurança Social e da Digna Curadora de Menores no sentido de ser necessário retirar CC e BB da presença de elementos que perturbem o seu são desenvolvimento psicoemocional, nem que para isso tenham de sair da casa onde moravam com a mãe (cujo usufruto, lembre-se, foi constituído a favor de DD; na prática a utilização da casa é de DD…até este morrer e nada o impede de por a BB e o CC de lá para fora ou colocar lá dentro quem ele bem quiser, ou impedir seja quem for, de lá entrar).

Não é esta incerteza que o Tribunal pretende para a BB e o CC.

Depois de perderem a mãe - vítima de cancro e após longo processo degenerativo - não devem os jovens ficar a cargo, em contacto, com quem não promove o seu bem-estar, passando tal, primordialmente, com a manutenção e fortalecimento da relação filial com o pai.

Não sendo possível conjugar este desiderato com a manutenção dos jovens na casa onde sempre viveram - embora tal se tenha tentado e GG e DD a tal obstaram - porque a génese do perigo lá reside enquanto DD e GG lá estiverem, num juízo de proporcionalidade, adequação e necessidade impõe-se retirá-los de tal envolvência.

E note-se que a consciência dos jovens está de tal maneira obliterada que os mesmos se prestam, quiçá de forma inconsciente, a praticar actos absolutamente impensáveis: enviar carta à CPCJ cujo conteúdo é feito com a advogada de DD quando os jovens já tinham advogado; alterarem o teor do discurso (nomeadamente quanto à questão do amigo/companheiro/com quem vive maritalmente); e apresentam-se com ideias industriadas cujo significado e alcance nem percebem (veja-se a questão do património que os jovens, pura e simplesmente, não sabem que a casa, na prática, não é deles).

O cúmulo é o facto de BB ter negado, desde sempre, que DD era, sequer, namorado da mãe, e agora, sem se aperceber, querer dar o dito pelo não dito.

Há, ainda, uma outra questão a equacionar.

Daquilo que é a matéria dada como provada a este Tribunal suscitam-se sérias dúvidas quanto ao real posicionamento de DD e de GG.

É que só estes dois é que confirmam a alegada situação de namoro, união de facto entre DD e a falecida (sendo que nem GG o faz de forma peremptória, questionando-nos nós porquê).

Todas as testemunhas inquiridas foram no sentido de que, claramente, eles, falecida e DD, não eram vistos como marido e mulher, nem como namorados.

Mas mais.

Um testamento feito 48 horas antes da mãe dos jovens falecer, no cartório, quando a mesma havia estado internada nos dias anteriores sendo que, contemporaneamente, DD e GG nem sequer deixaram os amigos ver a falecida (então podia sair de casa, às portas da morte - era cancro do que padecia - e não podia receber visitas?).

Testamento esse de teor idêntico a um já celebrado - em 2018!- a favor de amigos da falecida e com quem ela mantinha as relações até à morte (só tal não acontecendo quando foram impedidos por DD e GG).

Uma permuta feita dias antes da morte em que a falecida dá um pavilhão no valor de € 295.000,00 e recebe um apartamento no valor de € 50.000,00.

Tudo conjugado, no mínimo, levanta sérias e fundadas dúvidas sobre o posicionamento de GG e DD ou, pelo menos, quais as suas prioridades.

Tudo conjugado, claramente, impõe-se uma decisão provisória de molde a assegurar que BB e CC fiquem afastados de toda a tensão a que estão sujeitos e, ao mesmo tempo, se foquem na sedimentação da sua relação com o pai.

Numa palavra: CC e BB não podem mais ficar com quem estão, nem onde estão.

Em relação ao progenitor não se colocam dúvidas sobre a sua adequação.

Importa, isso sim, decidir quem gerirá o dia-a-dia dos jovens no sentido de satisfazer as suas necessidades básicas, com os mesmos ter alguma relação e ascendente, bem como aptidão a promover a manutenção e incremento da relação deles, jovens, com o pai.

No entender do Tribunal, das pessoas ouvidas, e na impossibilidade do primeiro casal que foi “instituído tutor” pela falecida mãe dos jovens de assumir tal papel, afigura-se-nos correcta a designação de EE.

Esta pessoa, que conhece BB e CC desde que nasceram, acompanhou, igualmente a falecida mãe dos mesmos, tendo-se apresentado como sendo capaz de promover a relação filial, desde logo porque não se antagoniza com o pai dos jovens.

Tem habitação bastante para tal, a filha é amiga da BB e tudo permite antever que, pelo menos temporariamente, seja um lugar onde os jovens se sintam longe de toda a envolvência negativa em que estão actualmente.

Não nos quedam dúvidas que CC e BB estão expostos a um perigo legitimador da intervenção estadual, o risco actual ou iminente para a segurança, saúde, formação moral, educação e desenvolvimento do menor. - cfr. art.º 3.º da LPCJP.

A envolvência de dois jovens no sentido de potenciar a degradação da relação com o respectivo pai ou mãe é, constatadamente, um dos motivos mais comuns de existência de processos de promoção e protecção.

Neste momento face ao rápido escalar da degradação da relação dos jovens com o pai, e quem a está a potenciar (as pessoas com quem os jovens estão a viver), mostra-se a urgência da necessidade da intervenção - cfr. art.º 37.º da LPCJP.

Enquanto se procede ao diagnóstico mais aprofundado da situação e determinação de qual o encaminhamento a seguir - o que neste momento, claramente não está definido e carece de algum tempo para concretização, incluindo a observação do comportamento dos jovens - decide-se, que aos jovens sejam aplicadas, cautelarmente, as seguintes medidas:

1. Os jovens CC e BB, ficam sujeitos:

- À medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar na pessoa do pai - art.º 35.º, nº. 1, al. a) da LPCJP;

- À medida de promoção e proteção de confiança a pessoa idónea, a executar na pessoa de EE - art.º 35.º, nº. 1, al. c) da LPCJP;

2 - Prazo de duração da medida: 03 (três) meses;

3- Obrigações durante a execução da medida:

- O progenitor e EE, comprometem-se a cumprir as orientações por parte da técnica da ATT, gestora do processo;

- A EE competirá o exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos de vida corrente dos jovens, nomeadamente, ficando os mesmos a residir em desta e a cargo de quem fica a satisfação das suas necessidades domésticas (alimentação, cuidar da roupa, cumprimento de hora de dormir e de acordar, etc.);

- O progenitor exercerá as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida dos filhos, procedendo a todas as conduções e acompanhamentos dos jovens (levar e buscar à escola, atividades extracurriculares, festas, etc.).”

15. Na extensa petição que apresenta, com narração de incidentes relacionados com a execução das medidas de promoção e proteção a que a atualmente se encontram sujeitos e outros, a requerente alega, em síntese, no que interessa à decisão:

(a) Que nem a menor BB nem o seu irmão se conformaram, em momento algum, em viver com o seu progenitor, com quem não mantém qualquer relação afetiva, tanto na casa deste, como na sua casa de família;

(b) Que foram pressionados, tanto pelas técnicas da segurança social, como pelo tribunal a aceitar viver com o seu progenitor, sob pena de poderem vir a ser institucionalizados;

(c) Que, uma vez em casa do pai foram impedidos de sair por ordem deste e que, encontrando-se atualmente à confiança de EE, estão impedidos de se deslocar livremente, de contactar com quaisquer pessoas, em especial com o padrasto e a empregada doméstica, bem como de falar deste assunto com terceiros;

(d) Que estão permanentemente vigiados e proibidos de sair do colégio que frequentam, sem ser acompanhados;

(e) Que o casal a quem estão entregues fomenta as visitas do progenitor a sua casa, contra a vontade da requerente e que se vê obrigada a conviver com este;

(f) Que, após uma ida ao hospital para uma consulta médica, a menor BB foi obrigada a regressar a casa do casal onde se encontra;

(g) Que foi obrigada a entregar o seu telemóvel à Sra. EE, ficando impedida de contactar com todas e quaisquer pessoas, incluindo a sua mandatária, não lhes sendo permitido falar ao telefone sem a presença de um dos membros do casal;

(h) Que, desde o dia 3 de novembro, os menores estão impedidos de sair à rua sozinhos e limitados ao percurso entre a casa e o colégio, sempre acompanhados por um dos elementos do casal;

(i) Que inexiste, no processo de promoção e proteção ou na realidade, qualquer facto ou indício que permita concluir que a requerente e o seu irmão estavam em perigo aquando da intervenção judicial.

Conclui dizendo que a medida de promoção e proteção de confiança a pessoa idónea, tal como foi decretada e está a ser aplicada no âmbito do processo de promoção e proteção, de que a menor BB e o seu irmão discordam, é ilegal e que, sob pena de violação do princípio da igualdade (art.º 13.º da CRP), é de aplicar o regime do habeas corpus previsto no art.º 222.º do CPP ao caso e, por consequência, a todas as decisões aí tomadas que restrinjam a liberdade da menor BB e do seu jovem irmão, pois que se encontram privados da liberdade, sendo obrigados a permanecer numa casa, foram coagidos e intimidados pelo tribunal, que agiu com abuso de poder, a forma como foi determinada e tem vindo a ser aplicada a medida de confiança a pessoa idónea se traduz numa violação intolerável do direito da menor BB e do seu irmão à liberdade, contra a sua vontade expressa e sem fundamento que a justifique.

Pelo que requer que tal medida seja declarada inconstitucional e ordenada a sua imediata restituição à liberdade, revogando-se a decisão que ordena a aplicação da medida com eventual aplicação de medida de acompanhamento proporcional e adequada a garantir o superior interesse da requerente e seu irmão.

16. Relembrando o que se disse a este respeito (supra, 11), a providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial nem se destina a apreciar o mérito de decisões judiciais nem a sua execução. Trata-se, em qualquer caso, de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção e reação, de acordo com o estabelecido na LPCJP, ou de matérias a averiguar em processo próprio, no caso de alegados ilícitos criminais, de acordo com as regras do processo penal.

Também como já se afirmou (supra, 13), o Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito desta providência, apenas tem de verificar, nos termos do disposto no artigo 222.º do CPP, se ocorre atualmente uma situação de prisão ilegal, por abuso de poder da autoridade que a determinou, e se essa ilegalidade resulta de qualquer das situações taxativamente enumeradas no n.º 2 do artigo 222.º do CPP, isto é, se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível, se se encontra motivada por facto que a admite e se estão respeitados os limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

O que, antes de mais, pelas razões anteriormente expostas (supra, 6 a 9), não sendo caso de condenação em pena de prisão, impõe que se deva verificar se a decisão do juiz aplicou medidas privativas da liberdade, colocando a menor BB e o seu irmão num determinado espaço, confinados a esse espaço e impedidos fisicamente de circular e de se movimentarem para fora desse espaço, isto é, se ocorre uma situação de privação da liberdade, total ou parcial, uma situação de “prisão”, na aceção do artigo 222.º do CPP (supra, 9), e se, sendo o caso, ocorre uma situação suscetível de preencher a previsão de qualquer das alíneas do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição, em particular da prevista na al. e) (sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado).

17. Quanto a esta questão a resposta é, necessariamente, negativa. Isto, sem prejuízo de, na linha da jurisprudência do TEDH (supra, 7 e 8) e da jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal (supra, 9), que tem como pressuposto a situação de facto e não a natureza jurídica da decisão, se admitir a possibilidade de habeas corpus relativamente a medidas de proteção e promoção que, apesar dos seus objetivos, possam implicar a privação da liberdade, como no caso de aplicação da medida de acolhimento residencial prevista e regulada nos artigos 35.º, n.º 1, al. f), e 49.º a 51.º da LPCJP, por referência ao artigo 27.º, n.º 3, al. e), da Constituição.

As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo, designadas por medidas de promoção e proteção, enumeradas no artigo 35.º da LPCJP, que podem ser aplicadas pelo tribunal a título cautelar (salvo a prevista na al. g) do n.º 1 deste preceito – confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção), como sucedeu neste caso, visam, nomeadamente, afastar o perigo em que estes se encontram e proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral (artigo 34.º da LPCJP).

A medida de apoio junto dos pais, prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP, consiste em proporcionar à criança ou jovem apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica (artigo 39.º).

A medida de confiança a pessoa idónea, prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP, consiste na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de uma pessoa que, não pertencendo à sua família, com eles tenha estabelecido relação de afetividade recíproca (artigo 43.º).

Nenhuma destas medidas visa, nem a sua aplicação visou, privar, total ou parcialmente, a liberdade à criança ou o jovem a que é aplicada, isto é, aplicar uma medida de «prisão» na aceção do artigo 222.º do CPP (supra, 9).

Fundando-se nos artigos 67.º, 68.º e 69.º da Constituição, que reconhecem o direito da família à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação das condições que permitam a realização pessoal dos seus membros, o direito dos pais e das mães à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, e o direito das crianças à proteção da sociedade e do Estado, com vista aos seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições, a previsão e aplicação destas medidas contribui também para a formação e realização de cidadãos livres.

Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens. Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida (artigo 1878 do Código Civil).

A violação ou omissão do cumprimento das responsabilidades parentais nos termos deste preceito, pode constituir motivo de perigo que legitima a intervenção para promoção e proteção, nos termos do artigo 3.º da LPCJP, para superação desse perigo, mediante o exercício, por outrem, dos poderes e deveres que integram essas responsabilidades, devendo as questões que lhe digam respeito, nomeadamente em caso de conflito, como parece ser o caso dos autos, nomeadamente as que possam estar relacionadas com limitações ao exercício de direitos, próprias das decorrentes das responsabilidades parentais, ser objeto de apreciação e decisão no âmbito do correspondente processo, nos termos legalmente previstos (artigos 77.º e segs., nomeadamente).

18. Não se verificando uma situação de “prisão”, no sentido que lhe é conferida para efeitos de habeas corpus (supra, 9), não há que averiguar e que apreciar da existência de qualquer dos fundamentos indicados no n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Em consequência do que se deve concluir-se que o pedido carece manifestamente de fundamento, devendo ser indeferido [artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP].

III. Decisão

19. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4, alínea a), do artigo 223.º do CPP, acordam os juízes da secção criminal em indeferir o pedido por falta de fundamento bastante.

Custas pela peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Nos termos do disposto no artigo 223.º, n.º 6, do CPP, vai a peticionante condenada ao pagamento da soma de 6 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de dezembro de 2021.

(assinado digitalmente)

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria da Conceição Simão Gomes (adjunta)

António Pires Henriques da Graça (Presidente da Secção)