Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
35/21.0YGLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
PROVA INDICIÁRIA
JUÍZ DESEMBARGADOR
DIREITO AO SILÊNCIO
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA AUTO-INCRIMINAÇÃO
Data do Acordão: 09/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I -    É de confirmar a não pronúncia, na ausência de comprovação indiciária dos factos que relevam para os tipos subjectivos dos crimes imputados.

II -   O dolo não se presume, mesmo o genérico e em qualquer das modalidades do art. 14.º do CP, assim sucedendo mais impressivamente até nos casos em que o tipo de ilícito exige um dolo específico, quando impõe determinados elementos para além do dolo (entendendo-se aqui este como dolo genérico), quando integra um elemento subjectivo especial.

III - A falsificação e o abuso de poder exigem um elemento subjectivo especial que pressupõe a demonstração de determinados factos: a intenção de causação de prejuízo a outra pessoa ou ao Estado e/ou de uma intenção de obtenção de benefício ilegítimo, a falsificação; a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, o abuso de poder. Para estes crimes se considerarem realizados nunca bastaria a prova do dolo genérico (o saber e querer todos os factos do tipo objectivo), nada permitindo aqui concluir, em concreto, por uma intenção do arguido assim direccionada.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. Por decisão instrutória de 30 de Março de 2022, foi proferido despacho de não pronúncia do arguido AA, relativamente a dois crimes de denegação de justiça e prevaricação, dos arts. 14.º, n.º 1, 2, 3 e 4, 26.º, 66.º, n.º 1, al. a), 67.º, 68.º, 369.º, n.º 1, 2, 3 e 4, e 386.º, n.º 1 e 3, do CP, de dois crimes de abuso de poder, dos arts. 14.º, 26.º, 66.º, 67.º, 68.º, 382.º e 386.º, n.º 1, 2, 3 e 4, do CP, e de um crime de falsificação de documentos, dos arts. 14.º, 26.º, 255.º e 256.º, n.º 1, al. d), 3 e 4, do CP, crimes que lhe haviam sido imputados no requerimento de abertura de instrução do assistente BB. A abertura de instrução fora requerida por este, na decorrência do despacho de arquivamento do inquérito proferido a 3 de Novembro de 2021.

Inconformado com a decidida “não pronúncia”, interpôs o assistente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1.ª Vem o Assistente BB apresentar recurso à decisão instrutória de NÃO PRÓNUNCIA proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça em 30.03.2022, que decidiu não levar a julgamento o Sr. Dr. Juiz Desembargador AA.

2.ª O presente recurso existe por se entender que a decisão de 30.03.2022 não se encontra, uma vez que os autos contêm matéria indiciária suficiente para que seja proferida uma decisão de pronúncia nos exactos termos descritos pela acusação.

3.ª A decisão instrutória partiu do pressuposto errado de que, se o trânsito em julgado do arguido CC (arguido no proc. 1420/11....) tem por referência a data de 27.01.2020, então a do BB também pode ter – o que não é correcto.

4.ª Sucede que, quando foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação em 13.01.2020, o BB apresentou recurso ao S.T.J., que veio a ser não admitido, dessa decisão de não admissão reclamou nos termos do art.º 405.º do C.P.P., e de seguida ao Tribunal Constitucional. Todos estes actos de recurso ao S.T.J. e reclamações não foram praticados pelo arguido CC, mas sim pelos arguidos DD, EE e BB.

5.ª O BB entendia que, pese embora a pena fosse de 8 anos, como anteriormente era de 8 anos e 6 meses, aquela redução ocorrida na Relação permitia – por não haver uma confirmação integral do acórdão de 1.ª Instância – um recurso ao S.T.J. sobre matéria de direito.

6.ª Falece a argumentação/fundamentação da decisão instrutória quando se refere que, o Exmo. P.G.A. do Tribunal da Relação, em relação ao BB, promoveu no sentido de se comunicar, se deferida a pretensão, ao Tribunal Constitucional o trânsito em julgado, pois que na verdade essa promoção do Exmo. P.G.A. quanto ao BB, referia expressamente que o trânsito em julgado, a entender-se que ocorreu, nunca poderia ser em data anterior a Setembro de 2020.

7.ª O que significa que, se o BB tinha suscitado as prescrições em Junho de 2020, e dessa decisão de Junho de 2020 recorreu, um hipotético trânsito em julgado parcial/condicional com efeitos a Setembro de 2020 nunca provocaria a inutilidade dos recursos das prescrições no Tribunal Constitucional.

8.ª É precisamente pela referência expressa que o Exmo. P.G.A. fez a Setembro de 2020 que se concluiu que, com essa promoção, ainda que errada (face aos nãos trânsitos declarados anteriormente), a mesma não prejudicava os recursos das prescrições ao Tribunal Constitucional.

9.ª Porque, se quanto aos arguidos DD e EE o trânsito em julgado dos autos 1420/11.... têm como data o dia 06.07.2020, a data do trânsito em julgado do BB nunca poderá ser anterior àquela, uma vez que os actos praticados pelos três arguidos foram idênticos e a defensora dos três arguidos no Proc. n.º 1420/11.... é a mesma.

10.ª Além do mais, o aqui assistente invocou as prescrições dos crimes de falsificação em Junho de 2020, o DD e EE não invocaram porque não foram condenados por tais crimes de falsificação, e nessa medida o BB interpôs mais recursos sobre as prescrições (direito que não assistia aos arguidos EE e DD), nomeadamente da interpretação normativa sobre a contagem dos prazos de prescrição/suspensão nos termos do art.º 120.º do Código Penal.

11.ª Por essas razões, se o trânsito em julgado daqueles é, como efectivamente é, a 06.07.2020, nunca o trânsito em julgado do BB poderá ser anterior a esta data de 06.07.2020, mas sim, sempre posterior.

12.ª A decisão instrutória ao fundamentar com a situação processual do CC muito errou, porque quanto ao arguido CC pode considerar-se a data de trânsito em julgado a 27.01.2020, mas quanto ao aqui recorrente nunca poderia considerar-se essa data, pelas razões supra descritas, encontrando-se os dois arguidos em situações processuais totalmente diferentes.

13.ª Na verdade, na promoção do Exmo. P.G.A. do Tribunal da Relação ... datada de 16 de Maio de 2021 no que diz respeito ao CC, o próprio Ministério Público afirma taxativamente que a situação do BB não era similar à do CC, e porquanto, em relação ao CC já havia trânsito em julgado, nada promovendo relativamente ao BB naquela data (promoção de 16.05.2021), embora tenha consignado expressamente que o recurso do CC não devia ser admitido porque a situação processual do BB é diferente da do CC.

14.ª Aliás, o despacho judicial do Sr. Desembargador, aqui arguido, datado de 21.06.2021, sobre o CC, refere que “este [arguido CC] não tem pois a ver com aquela decisão, sendo-lhe completamente lateral.”, declarando o trânsito em julgado em 27.01.2020 em relação ao CC.

15.ª Cabia ao Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da instrução, analisar o acerto ou desacerto das decisões que se encontram nos presentes autos e referidas na Acusação, uma vez que, para aferição de responsabilidade criminal torna-se necessário aferir essa legalidade ou ilegalidade. O que acontece é que essa aferição não tem valor de decisão para efeitos internos do Proc. n.º 1420/11...., o que não interfere com o poder de analisar o acerto e desacerto das decisões, caso contrário, seria impossível um qualquer Sr. Magistrado ser julgado e condenado por decisões ilegais que proferisse – bastava manter-se este entendimento de que o desacerto das referidas decisões e com isso ninguém podia ser julgado/condenado por crimes de denegação de justiça e abuso de poder.

16.ª Nessa medida, deve ser revogada a decisão de não pronúncia, concluindo-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem o poder de analisar o acerto ou desacerto das decisões judiciais referidas na acusação.

17.ª Por outro lado, não é correcta a referência extensamente efectuada na decisão instrutória de que os entendimentos proferidos pelo Sr. Juiz Desembargador AA em relação ao trânsito em julgado têm acolhimento na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

18.ª Ocorre uma contradição insanável na decisão de 30.03.2022, ora se dizendo que o S.T.J. não analisa o acerto ou desacerto das decisões, ora referindo, a fls. 35, que o despacho de 14.07.2021 “justifica de uma forma que nos parece clara a razão e o entendimento ali perfilhado”. Ou seja, aqui já se analisou uma hipotética “assertividade”.

19.ª Sucede que, a questão aqui não se coloca nesse prisma angular mas sim nas anteriores decisões que já existiam nos autos sobre o não trânsito declarado judicialmente, tornando-se evidente que o arguido não podia passar ignorar e alterar, contrariando, as decisões proferidas pelo Colega Dr. FF uma vez que toda a matéria das prescrições não se encontrava ainda devidamente resolvida nos respectivos recursos (como, aliás, ainda não está).

20.ª Pelo que, seguindo este raciocínio, que é o juridicamente correcto, não cabia ao S.T.J. fundamentar no sentido de que o entendimento proferido pelo arguido tem acolhimento na jurisprudência do S.T.J..

21.ª Ficou demonstrado na Decisão Instrutória que, afinal, contrariamente ao invocado pelo arguido, sempre existiram despachos que declaravam o não trânsito em julgado quanto ao BB.

22.ª Contudo, verifica-se que a decisão instrutória também ignorou propositadamente a importante parte do despacho de 14.07.2021 em que o arguido afirma que os apensos M, N e O não diziam respeito ao BB, quando na verdade, conforme resulta das certidões juntas aos autos na fase instrutória junto do Supremo Tribunal de Justiça, tais apensos M, N e O dizem respeito apenas e só ao BB, pelo que, também por aqui se impunha – como se impõe – uma decisão de pronúncia da acusação deduzida – o que se requer.

23.ª Sustenta ainda o Supremo Tribunal de Justiça que o Acórdão datado de 24.04.2012 do Desembargador Vieira Lamim citado pelo arguido no despacho de 14.07.2021 é um acórdão diferente do invocado e citado pelo Assistente.

24.ª O despacho de 14.07.2021 não refere o número do processo do acórdão citado, nem tão pouco o seu apenso. Ora, o S.T.J. na decisão instrutória proferida, a fls. 37 e 38, invoca que os acórdãos citados pelo arguido e pelo Assistente são acórdãos diferentes.

25.ª Refere-se na Decisão Instrutória que são acórdãos proferidos no mesmo exacto dia, pelo mesmo Sr. Juiz Desembargador Vieira Lamim, no mesmo exacto processo, mas o acórdão citado pelo arguido no despacho de 14.07.2021 refere-se ao apenso “U” do processo 712/00.9JFLSB, e que o acórdão plasmado na acusação deduzida pelo Assistente se refere ao apenso “T” desse mesmo processo 712/00.9JFLS, prolatado, como se disse, no mesmo exacto dia 24.04.2012 e pelo mesmo ... Vieira Lamim.

26.ª A verdade é que o Assistente, ao referir nos pontos n.ºs 48 e seguintes da Acusação, que devem ser dados como indiciariamente demonstrados, demonstra que o Sr. Juiz arguido tinha conhecimento que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa do ... Vieira Lamim preconizava o contrário do que o arguido decidiu no despacho de 14.07.2021, e no ponto n.º 50.º da Acusação mais refere o assistente que, “a decidir-se em consonância com o Acórdão da Relação de Lisboa do ... Vieira Lamim, nunca teria decidido remeter à 1.ª Instância para cumprimento da pena de prisão aplicada ao Assistente”.

27.ª Refere ainda a decisão instrutória que esses acórdãos, seja o do apenso “U” ou do apenso “T” do ... Vieira Lamim são decisões discutíveis e criticáveis, que não são fontes de direito nem jurisprudência obrigatória, mas a verdade é que o arguidos sabia da existência desses acórdãos, mas para fundamentar a data do trânsito em julgado a 27.01.2020 (que sabia não poder ocorrer por força das decisões anteriores), e para dar um aspecto de legalidade e isenção àquele despacho de 14.07.2021, invocou trechos do acórdão do ... Vieira Lamim, bem sabendo que, se tivesse efectivamente dito que nos apensos M, N, e O do Proc. n.º 1420/11.... diziam respeito, de facto, ao BB, não poderia existir declaração de trânsito em julgado nem a podia declarar em respeito aos despachos transitados em julgado sobre esta matéria e em relação ao próprio BB ou, a existir um trânsito parcial/condicional, nunca poderia ser em data anterior a 06.07.2020 (trânsito dos arguidos DD e EE), ou, como promovia o Exmo. P.G.A. em data posterior a Setembro de 2020.

28.ª Tendo conhecimento, como tinha o arguido, de que no Proc. n.º 1420/11...., quanto ao BB havia decisões que declaravam o não trânsito em julgado, não podia ter declarado, no despacho de 05.08.2021 enviado ao Supremo Tribunal de Justiça, ao apenso de recusa deduzido, que o acórdão já estava transitado em julgado há mais de um ano e 6 meses – pelo que, quanto a esta parte, estão indiciariamente preenchidos os elementos objectivos e subjectivos em relação aos crimes imputados sobre o despacho de 05.08.2021, contrariando-se a decisão instrutória datada de 30.03.2022.

29.ª O Sr. Juiz Desembargador arguido nos autos não prestou declarações na Instrução, não prestou declarações no inquérito, pelo que não se pode concluir, na falta de declarações do mesmo, que nada tem contra o Assistente.

30.ª Das declarações do Assistente só se pode concluir que o assistente não tem nada pessoal contra o Exmo. Sr. Desembargador, mas não se pode concluir que as palavras do Assistente demonstrem, por si só, que este nada tem contra o BB.

31.ª No decurso dos autos está demonstrada que a intenção do arguido era declarar o trânsito em julgado retroactivamente com o propósito de provocar inutilidades supervenientes da lide de todos os recursos sobre as prescrições dos crimes de falsificação, e isso provoca um prejuízo na esfera do assistente bem como na esfera do próprio Estado, não se podendo aceitar que um Sr. Magistrado, com meros despachos que contrariam anteriores decisões no próprio processo, provoquem a inutilidade de recursos interpostos pelo acolá arguido, que procura que lhe seja dada razão e sejam declarados prescritos os crimes e com isso, muito provavelmente, não tenha que cumprir pena de prisão efectiva.

32.ª A intenção do arguido AA reside em evitar-se, a todo o custo, que o BB alcance o sucesso dos recursos, provocando a inutilidade dos mesmos, e a expressão usada no despacho datado de 14.07.2021 de que qualquer decisão favorável tem esse efeito nos autos, o mesmo sabe que, se o Tribunal Constitucional souber que o acórdão está transitado com efeitos retroactivos a 27.01.2020, os recursos apresentados relativos a prescrição suscitada em Junho de 2020 deixam de ser analisados pelo T.C. – o que era e é a sua intenção.

33.ª Só assim se justifica e se compreendem todos os actos levados a cabo no Proc. n.º 1420/11.... espelhados na acusação deduzida, e é através desse conjunto de actos (não é um acto isolado) que se percebe, pelas regras da experiência, que o aqui arguido, tinha intenção de o fazer, sabia e tinha consciência das consequências jurídicas para o BB e ainda assim, tal como relatado na acusação, prosseguiu os seus objectivos.

34.ª Foram assim violados e mal interpretados os factos e indícios explanados nos autos processuais e detalhados na acusação deduzida e que, sendo correctamente analisados, devidamente conjugados, concluir-se-á que o arguido agiu no modo descrito na acusação, nunca podia ter sido declarado o trânsito em julgado sobre o referido BB com efeitos a 27 de Janeiro de 2020, estando preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos de todos os crimes imputados na acusação, mais se referindo que, em relação aos pontos n.º 59 e 60 da Acusação, ainda que não lhes tenha sido imputado qualquer crime, são factos com relevância            processual       no desenrolar dos acontecimentos e no correcto enquadramento de todos os factos.

TERMOS EM QUE, DANDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA REVOGAR A DECISÃO DE NÃO PRONÚNCIA DATADA DE 30.03.2022, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE PRONUNCIE PARA JULGAMENTO O ARGUIDO AA POR TODOS OS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO E DECLARE, ENTRE O MAIS, O SEGUINTE:

A) COMPETE AO S.T.J. APRECIAR O ACERTO OU DESACERTO DAS DECISÕES JUDICIAIS DESCRITAS NA ACUSAÇÃO, EMBORA A DECISÃO DO S.T.J. NÃO TENHA FORÇA JURIDICA NO PROCESSO ONDE TAIS DECISÕES FORAM PROFERIDAS;

B) SE UM ARGUIDO NÃO PRESTOU DECLARAÇÕES, NÃO SE PODE CONCLUIR, SEM MAIS, QUE O MESMO NADA TEM CONTRA O BB, PORQUANTO SE ESTE NÃO TEM NADA PESSOAL CONTRA O JUIZ, ISSO NÃO SIGNIFICA QUE O CONTRÁRIO OCORRA.

C) QUANDO O P.G.A. JUNTO DA RELAÇÃO ... PROMOVEU O TRÂNSITO EM JULGADO COM REFERÊNCIA A SETEMBRO DE 2020, FÊ-LO POR TER SIDO ABERTA VISTA AO M.P. POR ORDEM DO ARGUIDO, E ESSA DATA DE TRÂNSITO EM JULGADO PROMOVIDO NÃO AFECTAVA A UTILIDADE DOS RECURSOS INTERPOSTOS AO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, SENDO DISTINTAS E INCOMPARÁVEIS AS ATITUDES DO EXMO. P.G.A. COM AS DO ARGUIDO;


D) O ARGUIDO BASEOU TODA A SUA ACTUAÇÃO QUERENDO FAZER ACREDITAR QUE RELATIVAMENTE AO BB NUNCA EXISTIRAM QUAISQUER DECISÕES EM RELAÇÃO AO NÃO TRÂNSITO EM JULGADO, MAS A REALIDADE É QUE OS APENSOS M, N, E O DIZIAM RESPEITO APENAS E SÓ AO BB E AO NÃO TRÂNSITO QUANTO A SI.

E) PELO QUE, TAIS DESPACHOS JUDICIAIS AFINAL EXISTIAM, O ARGUIDO SABIA QUE EXISTIAM E NO EXERCICÍO DAS SUAS FUNÇÕES TUDO FEZ PARA DISTORCER A VERDADE PROCESSUAL, O QUE QUIS E CONSEGUIU, SABENDO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE DAS SUAS CONDUTAS e que sobre essa concreta matéria estava esgotado o poder jurisdicional do Tribunal da Relação, o que ignorou.

F) OS DESPACHOS JUDICIAIS PROFERIDOS PELO ANTERIOR JUIZ ... DR. FF FORAM PACÍFICOS E O MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO NUNCA DELES RECLAMOU OU RECORREU.

G) O NÃO TRÂNSITO EM JULGADO RELATIVAMENTE AO BB ATÉ QUE FOSSEM DECIDIDAS TODAS AS QUESTÕES EM RECURSO SOBRE OS CRIMES DE FALSIFICAÇÃO FOI JUDICIALMENTE DECLARADO DE FORMA CLARA, PELO QUE O ARGUIDO NÃO PODIA TER AGIDO CONTRA O DIREITO, COMO AGIU, ABRINDO VISTA AO M.P. E DE SEGUIDA DECLARANDO, POR DECISÃO DE 14.07.2021, O TRÂNSITO EM JULGADO COM EFEITOS A 27.01.2020..”

O Ministério Público respondeu desenvolvidamente ao recurso, concluindo:

“1 - A decisão recorrida comporta uma exaustiva, criteriosa e acertada análise de facto e de direito da situação vertente, no que se refere aos despachos de 14/07/2021 e 05/08/2021 proferidos pelo arguido AA no processo em que é arguido/condenado o ora assistente/recorrente BB.

2 – Nenhuma censura suscitando a decisão instrutória de não pronúncia prolatada nos autos, deverá ser a mesma mantida e, consequentemente, julgado improcedente o recurso interposto pelo assistente BB.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral ... emitiu parecer, reiterando a resposta ao recurso. O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. A decisão recorrida é a seguinte:

“Decisão instrutória

1. Iniciaram-se os presentes autos com duas queixas apresentada por BB contra AA, Juiz Desembargador em exercício de funções no Tribunal da Relação... ambas reportadas aos autos que correm termos sob o n.° 1420/11.... na secção criminal do Tribunal da Relação ... e imputando-lhe a prática, em concurso efectivo, de crimes de denegação de justiça e prevaricação, abuso de poder e falsificação de documentos, p.p. pelos art°s 30°, n° 1, 369°, n°s 1 a 4, 382° e 256°, n°s 1, ai. d), 3 e 4, todos do Código Penal.

Em apertada síntese, o denunciante imputava ao denunciado, na I.ª queixa apresentada, que o Proc. 1420/11.... passou, a partir de 2021, a ter como titular o denunciado; que este proferiu, em 14/7/2021, um despacho no qual consignou que a decisão condenatória do arguido BB transitou em julgado, com efeitos reportados a 27 de Janeiro de 2020, e ordenou a remessa dos autos à l.ª instância para cumprimento pelo arguido da pena que lhe foi aplicada, apesar de, em seu entendimento, não se poder considerar transitada a decisão, em função de recursos pendentes; na 2.ª queixa, afirma o denunciante que, em 5/8/2021, o denunciado proferiu um despacho onde, confrontado com um incidente de recusa por aquele suscitado, na resposta a que alude o art. 45.° n.° 3 do CPP referiu que o denunciante "fazia tudo para não ser cumprida a decisão final, quanto a si já transitada há mais de um ano e seis meses " que "a partir de 14 de Julho passou a ser o arguido a assinar os requerimentos porque a sua advogada. Sr.ª Dr.ª GG deixou de o fazer", factos que não corresponderão à verdade.

Desenvolvidas as diligências tidas por necessárias e admitida que foi a constituição como assistente do denunciante (8/10/2021), o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento.

Não se conformado com tal decisão e no uso das faculdades que legalmente lhe são atribuídas, o assistente requereu a abertura da instrução nos termos do artigo 287. ° do Código de Processo Penal, reiterando a factualidade já denunciada, pedindo, a final a condenação do arguido "pela prática de

-     2 crimes de denegação de justiça e prevaricação, p.p. pelos art.°s 14.°, n.°$ 1,2, 3 e 4, 26°, 66° n.° 1 ai. a), 67°, 68°, 369.°, n.°s l, 2,3,4 e 386.°, n.°s 1 e 3 do Código Penal (pelos dois despachos datados de 14.07.2021 e 05.08.2021);

-      2 crimes de abuso de poder, p.p. pelos art°s 14°, 26.°, 66°, 67°, 68°, 382°, 386.°, n.°s 1, 2, 3 e 4 do Código Penal, pelos despachos proferidos em 14.07.2021 e 05.08.2021;

-      1 crime de falsificação de documentos, p.p. pelos art°s 14°, 26° e 255°, 256° n.°s 1 alínea d),3 e4 do Código Penal;

-      incorre ainda na pena acessória de proibição do exercício de função, nos termos do art.° 66.° n° 1 alínea a), 67° e 68.° do Código Penal".

2.    Foi proferida decisão a declarar aberta a fase processual de instrução.

3.    Foi realizado debate instrutório com observância dos legais formalismos.

4.     O Tribunal é competente.

Não existem nulidades, ou quaisquer questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

5.    Pede o assistente o julgamento do arguido em tribunal colectivo, imputando-lhe a prática dos seguintes factos (transcrição):

"1.° O denunciante/assistente BB é arguido no processo n.° 1420/11...., que correu os seus termos na fase de recurso junto do Tribunal da Relação... vindo anteriormente do Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Central Criminal - Juiz ....

2.° Por acórdão do Tribunal da Relação ... proferido  nos  autos processuais referidos no ponto n.° 1 desta acusação, datado de 30 de Setembro de 2019, os Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Dr. FF e o aqui arguido Dr. AA deram provimento parcial ao recurso do assistente, reduzindo a pena de prisão para 8 (oito) anos de prisão.

3.° O Juiz Desembargador ... do processo era o Dr. FF, sendo o seu ... o Dr. AA.

4.° Alguns arguidos daqueles autos 1420/11...., incluindo o aqui assistente, suscitaram a nulidade do acórdão proferido em 30.09.2019 e em 13 de Janeiro de 2020 foi proferido novo acórdão, assinado pelo Dr. FF (...) e Dr. AA (...) mantendo-se o acórdão de 30.09.2019.

5.° O assistente, através do seu advogado de então, apresentou tempestivamente um recurso ao Supremo Tribunal de Justiça sobre o acórdão de 13.01.2020, recurso que viria a ser não admitido. Na sequência dessa não admissão, apresentou a competente reclamação ao abrigo do art.° 405.° do C.P.P. ao Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, reagiu ao acórdão de 13.01.2020.

6.° Em Março de 2020 deu-se início ao período pandémico em Portugal e, em geral, a nível mundial, tendo sido suspensos, em Portugal, todos os prazos processuais em curso por força da Lei n.° l-A/2020, de 19 de Março, nomeadamente os dos presentes autos - processo que àquela data não tinha arguidos presos e não era considerado urgente.

7° Após o término da suspensão dos prazos (Lei n.° 16/2020, de 29 de Maio) o aqui assistente foi notificado da decisão do S.T.J. que indeferiu a reclamação e apresentou um recurso ao Tribunal Constitucional sobre a não admissão do recurso ordinário ao Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que até àquela data os prazos processuais estavam suspensos por força da Lei.

8.° O acórdão ainda não tinha transitado em julgado, uma vez que ainda estava a ser decidida/notificada a decisão sobre a reclamação apresentada, pelo que, no caso do assistente, o acórdão nunca poderia considerar-se transitado em julgado em Janeiro de 2020 (nem sequer mencionaremos o dia)

- neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 03.12.2014, processo n.° 2218/10.9TBVIS.C2 com o seguinte sumário:

Proferida uma decisão, ainda que legalmente irrecorrível para o tribunal superior, a mesma não pode considerar-se transitada em julgado na data da sua notificação, pois a mesma, independentemente de não ser susceptível de recurso ordinário, pode ser objecto de reclamação. A decisão, ainda que irrecorrível, só pode considerar-se fixada na ordem jurídica depois de também já não ser susceptível de reclamação. E para não o ser, terá que decorrer o respectivo prazo legal para eventualmente se reclamar.

9.° O BB solicitou, a 8 de Junho de 2020 junto do Tribunal da Relação ... a prescrição dos crimes de falsificação de documentos, uma vez que, sendo de 5 anos o prazo de prescrição dos crimes de falsificação de documentos (art.° 118.° n.° 1 alínea c) do Código Penal) acrescidos de metade (mais dois anos e seis meses nos termos do art.° 121.° n.° 3 do CP), o assistente, pugnava pelo entendimento/interpretação de que o prazo de suspensão do procedimento criminal descrito no art.° 120.° n.° 2 do CP. não se aplicava/não se aplica aos autos uma vez que o assistente havia sido prontamente notificado da acusação quando estava detido em prisão preventiva, ancorando a sua pretensão numa declaração de voto vencido de um Acórdão do Tribunal da Relação ... e ainda num acórdão do Tribunal da Relação ..., este último que invocou no requerimento, e o voto de vencido que invocou nos recursos que se lhe seguiram.

10.° O requerimento onde suscitou a prescrição deu entrada nos autos em 08.06.2020, mereceu promoção do Ministério Público em 12.06.2020.

11.° Na promoção de 12.06.2020 nunca o Sr. Procurador do Ministério Público referiu que o acórdão do assistente tinha transitado ou que se deveria considerar transitado.

Note-se que, fê-lo em relação a outros arguidos, e não o fez quanto ao aqui assistente porque sabia que, à data da suscitação da prescrição, não estava transitado.

12.° Tal requerimento de 08.06.2020 veio a ser indeferido pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador ... Dr. FF, despacho esse datado de 19.06.2020 e nesse despacho judicial, entre o mais, concluiu-se não estarem prescritos os crimes de falsificação de documentos, tendo-se declarado não inconstitucional a interpretação normativa do art.º 120.° do Código Penal.

13.° O assistente, não concordando com o teor desse despacho judicial que indeferiu a prescrição dos crimes de falsificação, apresentou o competente recurso ao Supremo Tribunal de Justiça e, paralelamente, e por cautela, um recurso  ao Tribunal Constitucional no prazo de 10 dias, caso se viesse a entender que não cabia recurso ordinário ao S.T.J. e teria sim de se ter apresentado o recurso ao T.C., estando, assim, cumpridos os prazos para ambos os recursos.

14.° O recurso apresentado ao S.T.J. sobre o despacho que indeferiu as prescrições não foi admitido pelo Juiz Desembargador Dr. FF, com o fundamento de que os recursos das prescrições não estavam/estão taxativamente previstos no art.° 400.° do Código Processo Penal.

15.° Desse despacho foi apresentada pelo arguido a competente Reclamação, ao abrigo do disposto no art.° 405.° do C.P.P. ao Supremo Tribunal de Justiça, que viria a ser indeferida e mantida a decisão de não admissão.

16.° O assistente apresentou então um recurso ao Tribunal Constitucional sobre esta decisão do S.T.J. em relação à não admissão de tal recurso ordinário (do despacho que indeferiu a invocação das prescrições), que veio a ser mantido (despacho de não admissão) pelo Tribunal Constitucional, ficando por apreciar o recurso interposto ao Tribunal Constitucional apresentado em 10 dias após a prolação do despacho de 19.06.2020 sobre a interpretação do art.° 120.° do CP..

17.° O assistente, após a prolação do Acórdão do Tribunal Constitucional que manteve a não admissão do recurso junto do S.T.J., apresentou novo recurso, em 10 dias, junto do Tribunal da Relação... a subir ao Tribunal Constitucional, sobre o referido despacho de 19.06.2020 que declarou não inconstitucional a interpretação normativa do art.° 120.° do Código Penal (suspensão do prazo de prescrição), uma vez que, depois de definida a impossibilidade de recurso ordinário ao S.T.J., tinha 10 dias para suscitar o recurso ao T.C, o que veio a fazer, por elementar cautela. Isto, caso se considerasse que, o primeiro recurso interposto em 10 dias deveria ter sido interposto nos 10 dias após sair a última decisão que confirmasse não ser possível recorrer ao S.T.J. de forma ordinária.

18.° No despacho judicial proferido em 11 de Setembro de 2020, o Sr. Juiz Desembargador Dr. FF consignava que não havia trânsito em julgado quanto ao assistente, tendo feito constar o seguinte:

" apenas não se encontra definida a situação dos seguintes arguidos: - (2) HH, por estar pendente o recurso por ele interposto para o Tribunal Constitucional, visando o acórdão desta Relação de 30-09-2019, ainda não admitido, o que será feito após estabilização de todas as decisões de não admissão dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça do mesmo acórdão (cf. despacho de 05-06-2020, com a ref.a 6995589); - (9) BB, uma vez que ainda estão pendentes as reclamações contra os despachos de não admissão dos recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, relativos ao acórdão desta Relação de 30-09-2029 (apenso A) e ao despacho que indeferiu o requerimento de declaração de prescrição do procedimento criminal relativamente aos crimes de falsificação de documento (apenso K), bem como está pendente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.

19.° O teor deste despacho e dos outros, que se encontram juntos aos autos, eram todos do conhecimento do Exmos. Sr. Juiz Dr. AA, uma vez que passou a ser o juiz titular dos autos em 2021.

20.° Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Dr. AA que nos Apensos M, N e O dos autos 1420/11...., por decisões proferidas em 09.09.2020 ficou decidido pelo anterior Juiz Titular dos autos, Dr. FF que, quanto ao ali arguido BB  "considerando  que ainda se  encontram pendentes as reclamações dos despachos de não admissão de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça (apenso A), ainda não devolvido do STJ, e K), bem como o recurso para o Tribunal Constitucional apresentados pelo ora recorrente, razão pela qual em relação a ele ainda não transitou em julgado a decisão, não fazendo sentido nem devendo, a nosso ver, cindir a condenação pelos crimes não abrangidos por tais recursos."

Os referidos despachos nestes apensos, e no caso do aqui assistente tinham força no processo principal.

21.° O recurso interposto ao Tribunal Constitucional sobre as prescrições dos crimes de falsificação apenas foi admitido em 11 de Maio de 2021, já pelo Dr. Juiz AA, aqui arguido, recurso admitido com efeito suspensivo - porquanto os prazos processuais voltaram a estar suspensos pela Lei n.° 4-B/2021, de 1 de Fevereiro.

22.° No decorrer do ano de 2021, e por força das movimentações de magistrados, o Dr. FF, que até aí era o Juiz ... Titular dos autos, deixou de o ser, tendo passado o processo para a titularidade do Juiz ... Dr. AA, agora na qualidade de Juiz Titular dos Autos.

23.° Os prazos processuais, como se disse, estiveram suspensos novamente em 2021 por força de Lei n.° 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, o que atrasou a admissão do recurso ao Tribunal Constitucional sobre as prescrições, o que, de modo algum, poderá ser imputável ao aqui assistente.

24.° Já no despacho judicial datado de 02.07.2020, o Sr. Juiz Desembargador Dr. FF mandou notificar as partes processuais (excluindo o aqui assistente) sobre a promoção do Ministério Público de 30.06.2020, onde se promovia o trânsito em julgado relativamente a vários arguidos dos autos, mas não o trânsito em julgado do BB  (para o  que  aqui importa em termos  acusatórios  e  correcta contextualização).

25.° Porém, e uma vez que o acórdão continuava sem estar transitado em julgado, no início do ano 2021, o assistente suscitou nova prescrição do procedimento criminal junto do Tribunal da Relação... e sobre este segundo pedido de prescrição recaiu novo despacho, onde ficou decidido que o poder jurisdicional do Tribunal da Relação sobre essa matéria estava esgotado.

26.° O assistente, não concordando com tal decisão/fundamentação, até porque a prescrição do procedimento criminal é algo que ocorre a todo o tempo (o que a semana passada não estava prescrito esta semana pode já estar), apresentou novo recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, recurso que veio a ser não admitido, apresentou a competente reclamação ao Sr. Presidente do S.T.J., que manteve a decisão de não admissão, e foi apresentado recurso ao Tribunal Constitucional (sobre a não admissão), que, desta vez, ao contrário do que sucedeu com o primeiro, já foi admitido, com subida imediata e de efeito suspensivo, datado de 16 de Março de 2021 e sobre o qual se aguardava decisão do Tribunal Constitucional.

27.° Ora, o assistente ficou a aguardar que o Tribunal Constitucional viesse a proferir as respectivas decisões em dois recursos:

a) o recurso sobre a interpretação normativa do art.° 120.° do Código Penal na interpretação dada pelo Tribunal da Relação na decisão judicial datada de 19.06.2020

e;

b) o recurso sobre a interpretação da irrecorribilidade ao S.T.J. sobre o segundo pedido de prescrição suscitado no início de 2021.

28.° Sucede que,

Por   despacho  judicial  datado   de  21.06.2021,   proferido   pelo  Exmo.   Sr.  Juiz Desembargador, este declarou o trânsito em julgado em relação ao arguido CC, e na parte final desse mesmo despacho, sem que nada o fizesse prever, ordenou   "2- arguido  BB  -   ao  MP",   ou  seja,  o  Exmo.   Sr.  Juiz Desembargador, por seu próprio impulso processual, mandou abrir Vista ao Ministério Público para se pronunciar sobre o "arguido BB".

29.° Nesta data de 21.06.2021 não se deu nenhum novo acontecimento para que o Exmo. Sr. Juiz Desembargador tivesse efectuado/provocado este impulso processual, nenhuma novidade havia por parte dos recursos admitidos com efeito suspensivo junto do Tribunal Constitucional.

30.° O Ministério Público junto do Tribunal da Relação emitiu uma promoção onde promoveu que o trânsito em julgado terá ocorrido quanto ao arguido BB pelo menos em 7 de Setembro de 2020 (07.09.2020).

31.° Isto porque, o trânsito em julgado em relação aos arguidos DD e EE (ambos arguidos nos autos 1420/11....) tinha sido declarado com efeitos a 06.07.2020, pelo que, considerando esta data, nunca a data do trânsito em julgado para o aqui assistente poderia ser anterior a esta data de 06.07.2020, mas sempre posterior.

32.° O assistente foi notificado da promoção  do Ministério Público assinada electronicamente em 27.06.2021 por II, Procurador-Geral, à qual foi dada resposta, explicitando, entre o mais, que por despachos judiciais proferidos nos Apensos M, N e O, que são apensos que dizem respeito apenas ao BB, foi declarado judicialmente que em relação a este "não transitou em julgado a decisão", e que essas decisões são datadas de 09.09.2020.

33.° Nesses despachos judiciais ficou decidido, em conjugação com outros despachos judiciais do processo principal, nomeadamente o despacho de 13.11.2020 que, até os recursos interpostos pelo BB estarem decididos, inclusive os recursos ao Tribunal Constitucional sobre as prescrições dos crimes, não estava transitada em julgado a decisão quanto a este.

34.° O Ministério Público não interpôs nenhum recurso judicial, nem pedido de reforma ou reclamação de nenhum dos despachos que declararam anteriormente o "não trânsito" em relação ao BB - tendo esses despachos transitados pacificamente em julgado no que a essas matérias diz respeito.

35.° Aliás, o Ministério Público nunca se opôs ou manifestou em sentido contrário, e nunca promoveu nesse sentido. A primeira promoção que fez a 27.06.2021 sobre o trânsito em julgado do BB só aconteceu por ter sido impulsionada pelo próprio Sr. Juiz Desembargador, na parte final do despacho de 21.06.2021.

36.° Porém, por despacho judicial proferido em 14 de Julho de 2021, o arguido, Exmo. Sr. Dr. AA, veio a decidir que o acórdão estava transitado, em relação ao aqui assistente, com efeitos a 27 de Janeiro de 2020, aí fazendo constar, entre o mais, o seguinte:

"contrariamente ao que refere o arguido BB, no despacho de 9/9/2020 nunca se decidiu que o recurso quando ao arguido BB não tinha transitado"; "também não se disse que não havia decisão final transitada"; "deve entender-se que o acórdão sobre a decisão final transitou já em 27/1/2020 - tendo em conta a data da respectiva notificação e o prazo geral de 10 dias para qualquer nova arguição".

37.° Mais  ordenou  nesse   despacho  de  14.07.2021   que  fossem  efectuadas  as comunicações nos termos promovidos, nomeadamente que fosse comunicado ao Tribunal Constitucional, com referência ao Apenso X, esta declaração de trânsito em julgado com efeitos a 27 de Janeiro de 2020.

38.° Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que, tendo o assistente suscitado a prescrição dos crimes de falsificação de documentos na data de 08.06.2020, que mereceu despacho judicial de indeferimento em 19.06.2020, relativamente ao qual foi interposto recurso e já admitido com efeito suspensivo junto do Tribunal Constitucional desde 11 de Maio de 2021,com a declaração de trânsito em julgado do acórdão com efeitos a 27 de Janeiro de 2020, provocaria a inutilidade superveniente da apreciação daqueles recursos no Tribunal Constitucional.

39.° Porque, se o acórdão estivesse transitado em julgado com efeitos a 27 de Janeiro de 2020, os pedidos de prescrição de falsificação e respectivos recursos, apresentados em data posterior a essa, ficariam totalmente sem efeito, uma vez que depois de transitada a condenação, deixa de se poder falar em prescrição de crimes e só se poderia vir a falar - o que não é o caso - de prescrição de penas.

40.° Isto mesmo foi suscitado pelo Procurador-Geral do Ministério Público na promoção de 30.06.2021, quando disse "com efeito, o trânsito em julgado faz cessar o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, começando a decorrer o prazo de prescrição da pena - Cf. Art.° 122° n.° 2 do Código Penal".

41.° Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, que, ao declarar então o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020, assim que o Tribunal Constitucional recebesse essa informação, os recursos em causa naquele Tribunal ficariam, desde logo, sem efeito, e o assistente teria que ser preso para cumprimento dos 8 anos de prisão, sem nunca mais poder discutir juridicamente as prescrições dos crimes de falsificação, não lhe dando hipótese de saber se os crimes estavam ou não prescritos por força de um juízo de inconstitucionalidade e que, em caso de prescrição, a pena única de 8 anos seria reformulada, podendo converter-se em pena de prisão suspensa na sua execução, atendendo ao elevado número de crimes prescritos e ao muito tempo percorrido após os factos com boa conduta do agente (juízo a efectuar no novo cúmulo jurídico em caso de prescrição dos crimes de falsificação de documentos).

42.° Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, que, se em 08.06.2020 o acórdão não estava transitado em julgado, e de facto não estava, jamais poderia declarar, como declarou, o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020.

43.° Assim, o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, ao ter declarado no despacho de 14.07.2021 o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020, mesmo depois da promoção do Ministério Público no sentido de que, a existir trânsito em julgado, a data nunca poderia ser anterior a 07.09.2020, e para além dos requerimentos e respostas do aqui assistente nesse sentido, agindo no exercício de funções, actuando de forma livre e consciente, sabendo que estava a decidir contrariamente ao direito e à verdade processual, mais sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei penal como crime, não se absteve e decidiu, ainda assim, decretar que o trânsito em julgado era com efeitos a 27.01.2020.

44.° Mais sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que estava a decidir contrariamente a outros despachos judiciais proferidos anteriormente pelo Sr. Juiz Desembargador Dr. FF, para o que foi devidamente alertado pelo aqui assistente, e que entendeu ignorar na medida em que continuou a persistir na data do trânsito em julgado relativamente a este em 27.01.2020, com intenção de com tal declaração de trânsito nesta concreta data, os recursos sobre as prescrições dos crimes de falsificação de documentos poderem ficar sem efeito (inutilidade superveniente da lide), o que era seu propósito, pois se não fosse, nunca teria declarado como transitado em julgado com efeitos a 27.01.2020, bem sabendo que nessa data não estava transitado, nem estava transitado em data anterior a 08.06.2020.

45.° Ainda assim, sabendo que não estava transitado na data de 08.06.2020, declarou, na decisão judicial por si proferida, assinada electronicamente e datada de 14.07.2021, que o trânsito em julgado quanto ao aqui assistente tinha efeitos a 27.01.2020, ordenando que tal fosse comunicado ao Tribunal Constitucional nos termos promovidos, bem sabendo que este Tribunal, assim que souber/soubesse que o trânsito em julgado era anterior ao pedido de declaração de prescrição dos crimes, iria originar uma inutilidade superveniente da lide, o que era seu propósito, de modo a prejudicar o conhecimento daquela questão e, em consequência, prejudicar o aqui assistente.

46.° O Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, a decidir de acordo com os ditames legais, face aos vários despachos proferidos nos autos, nunca poderia decretar o trânsito em julgado com data anterior ao trânsito em julgado do último acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional que decidiu não admitir o recurso interposto ao Supremo Tribunal de Justiça sobre a não admissão do recurso ordinário interposto sobre o acórdão datado de 13.01.2020.

47.° O Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, sabia que, se o arguido suscitou a prescrição em 08.06.2020 e nessa data não estava transitado em julgado (que não estava), ao declarar o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020 estava a decidir contrariamente ao direito e à verdade processual, decisão que tomou e comunicou e a violar deveres inerentes às suas funções.

48.° Mais sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que, ao ter citado no despacho judicial de 14.07.2021 o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, do Relator Vieira Lamim, datado de 24 de Abril de 2012, que esse exacto acórdão tinha decidido, num caso idêntico em que tinham sido suscitadas prescrições de crimes antes do trânsito em julgado do acórdão, que enquanto os recursos sobre as prescrições não estivessem decididos, a pena de prisão efectiva era inexequível.

49.° Não obstante, entendeu decidir contrariamente ao Acórdão que havia invocado, o que leva a concluir, que apenas o invocou para dar um aspecto de legalidade ao despacho de 14.07.2021, bem sabendo que a decisão que estava a acabar de proferir ia em sentido contrário ao decidido naquele aresto.

50.° Sabia o arguido que, a decidir-se em consonância com o Acórdão da Relação de Lisboa do Relator Vieira Lamim, nunca teria decidido remeter à 1.ª Instância para cumprimento da pena de prisão aplicada ao aqui assistente/ pois tinha perfeito conhecimento que se encontravam pendentes recursos sobre a prescrição de crimes de falsificação.

51.° Tal acórdão, para o que aqui importa em termos de comparação dos casos, referiu o seguinte:

"Por outro lado, pretendendo-se com a execução da pena de prisão a satisfação das necessidades  de  prevenção  e  a  reintegração   do  condenado  na  sociedade,  é importante que este inicie esse cumprimento sem dúvidas sobre a medida exacta e modo de execução da pena que tem a cumprir, o que não acontecerá enquanto tiver a expectativa de obter a declaração de extinção do procedimento criminal, por prescrição, em relação a crimes cujas penas foram integradas no cúmulo jurídico que fixou a sua pena em dois anos de prisão efectiva.

Assim, apesar do trânsito em julgado da decisão condenatória, deve a mesma considerar-se inexequível até ao trânsito da decisão relativa à prescrição suscitada pelo arguido, em apreciação no apenso "U", destes autos."

52.° Não podia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, desconhecer que as suas condutas eram e são proibidas e punidas por lei como crime e podia vir a ser responsabilizado criminalmente e até disciplinarmente.

53.° O Exmo.  Sr.  Juiz Desembargador,  aqui arguido, agiu sempre de forma deliberada, intencional e consciente, no exercício de funções enquanto Juiz, sabendo que actuava contra o direito e a realização de justiça, violando deveres inerentes às suas funções, mais sabendo que estava a prejudicar a verdade dos autos, bem como estava a prejudicar o cidadão BB, na medida em que, iria provocar a inutilidade superveniente da lide nos recursos interpostos legitimamente sobre as prescrições, e que tais recursos ao Tribunal Constitucional eram um direito do assistente uma vez que, aquando da suscitação da prescrição de crimes, o acórdão final não estava transitado em julgado quanto a si.

54.° Após a prolação da decisão de 14.07.2021, onde o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, decidiu que o trânsito em julgado era com efeitos a 27.01.2021, o assistente apressou-se a suscitar um pedido de reforma desse despacho.

55.° Paralelamente, o assistente apresentou um incidente de recusa contra o Dr. AA, participação disciplinar ao Conselho Superior da Magistratura e participação Criminal ao Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, onde relatou em cada uma das queixas e dos incidentes, os factos que estavam a ocorrer.

56.° O Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, por despacho judicial datado de 5 de Agosto de 2021, nos autos 1420/11...., como resposta no apenso de incidente ao Supremo Tribunal de Justiça, declarou aos Juízes Conselheiros factos inverídicos, e que o sabia serem, mas sabendo, e disso tendo consciência e intenção, que os Juízes Conselheiros iriam fazer boa fé nas informações e resposta por si prestadas, decidiu comunicar que a decisão quanto ao BB estava transitada há mais de um ano e seis meses e que o BB estava apresentar requerimentos sozinho, tendo a sua mandatária, deixado de o fazer.

57.° O Exmo. Sr. Juiz Desembargador sabia que tais informações não correspondiam à verdade, na medida em que o acórdão não estava transitado em julgado com efeitos a 27.01.2020, ou seja não estava transitado há mais de um ano e seis meses, como também sabia que não correspondia à verdade que a mandatária tivesse deixado de fazer requerimentos ou tivesse abandonado a defesa do aqui assistente, o que aliás se verificava patentemente nos autos uma vez que subscreveu/ratificou o pedido de recusa, apresentou o pedido de reforma ao despacho de 14.07.2021, elaborou uma contra resposta ao S.T.J. sobre as informações proferidas pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador naquele incidente.

58.° Porém, o arguido Dr. AA, de modo a perpetuar o que sabia estar errado, mas pretendendo dar aspecto de legalidade e de verdade, decidiu, consciente do que estava a fazer no exercício das suas funções de Magistrado Judicial, continuar a afirmar, nomeadamente através da emissão de decisões judiciais /respostas e informações, que o trânsito em julgado do BB era em data bem anterior a 08.06.2020, o que sabia ser falso, e ainda assim persistiu na sua conduta, sabendo que podia vir a ser responsabilizado criminalmente, o que ignorou.

59.° Por despacho judicial com referência 7671196, assinado electronicamente em 06.08.2021, pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, em pleno período de férias judiciais, este decidiu declarar quanto ao aqui assistente suspensos os termos do processo e prazos processuais eventualmente em curso, até que decidido o referido incidente - salvo actos processuais urgentes.

60.° O teor do despacho datado de 06.08.2021 é o seguinte: "dado que admitido o incidente de recusa apresentado pelo arguido BB contra o signatário, declaro quanto a si suspensos os termos do processo e prazos processuais eventualmente em curso, até que decidido o referido incidente - salvo actos processuais urgentes (art.° 45°/2 C.P.P.)"

61.° Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido que só o legislador poderia decretar suspensos prazos processuais em curso, não tendo competência nem poderes necessários para travar ou suspender prazos em curso, até porque os prazos processuais não se suspendem nem se podem suspender pelo facto de ter sido interposto um incidente de recusa como também não se suspendem se um juiz emitir uma decisão judicial que decida que tais prazos processuais em curso se suspendem, se essa decisão não tiver o mínimo de correspondência verbal na lei - como não tem/tinha, no caso em concreto.

62.° Como também não podia ignorar o Exmo. Sr. Juiz Desembargado que para além da suspensão de prazos previstas nas Leis "COVID", os prazos processuais só se suspendem quando está expressamente previsto em lei prévia, escrita e certa, emanada por quem tem competência para proferir leis, e desde que as mesmas tenham sido aprovadas e publicadas em Diário da República.

63.° Sabia, ainda, o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, que, ao declarar, por decisão judicial por si proferida em 6 de Agosto de 2021 suspensos os prazos processuais de prazos eventualmente em curso, originaria uma situação ilegal nos autos, nomeadamente a de provocar uma incerteza jurídica à defesa do assistente no que diz respeito à reacção judicial ao despacho de 14.07.2021 (proferido antes das férias judiciais), que ficaria sem saber, ao certo, qual o prazo de reacção àquele despacho, qual o inicio de tal prazo, o que levou a que, pela maior e mais prudente cautela processual, já se tenha suscitado o pedido de reforma logo nos primeiros 10 dias após a sua notificação (caso viesse a entender que se contava em férias), tendo-se voltado a suscitar tal pedido logo após o final das férias judiciais, caso se viesse a entender que o prazo havia iniciado em 1 de Setembro de 2021, aguardando-se um qualquer desenvolvimento nos autos para o voltar a suscitar.

64.° Cremos que seria essa intenção do Exmo. Sr. Juiz Desembargador, bem sabendo que a lei não lhe permite suspender prazos processuais em curso, de modo a poder, um dia mais tarde, declarar que o arguido teria reagido ao despacho de 14.07.2021 fora de prazo, dando como transitado tal despacho, com as demais consequências processuais que tal despacho ilegal acarretaria.

65.° Mais sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que, quando dá entrada um incidente de recusa contra um qualquer magistrado, não são os prazos processuais que se suspendem. Os art.°s 43.°, 44.°, 45.° e 46.° do Código Processo Penal não permitem nem prevêem a suspensão dos prazos processuais em curso, antes sim suspendem provisoriamente a actividade daquele juiz visado no incidente, nomeadamente refere o n.° 2 do art.° 45.° do C.P.P., que o juiz visado pratica apenas os actos processuais urgentes, o que era do conhecimento do Exmo. Sr. Juiz Desembargador, nada permitindo na lei que os prazos processuais eventualmente em curso fossem suspensos, como aquele determinou. O que deveria ocorrer, após a suscitação do pedido de reforma/ou outro, logo após as férias judiciais, seria o requerimento ter ficado nos autos para ser decidido assim que o incidente de recusa transitasse em julgado. Este seria o único procedimento correcto e legal, e que não foi cumprido.

66.° Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que, nos despachos de 14.07.2021, 05.08.2021 e 06.08.2021 estava a agir contra o direito e contra a realização da justiça, que estava a violar deveres inerentes às suas funções, que a sua conduta era proibida e punida criminalmente por lei, o que quis e conseguiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de provocar a inutilidade dos recursos sobre as prescrições dos crimes de falsificação devidamente suscitados pelo BB, quando sabia que nunca poderia declarar o trânsito em julgado da decisão com data anterior aos trânsitos em julgado do DD e EE, o que ignorou, e quis ignorar, mesmo depois de o arguido para isso ter alertado e o próprio M.P. ter promovido que, a existir trânsito, este ocorreria em 07.09.2020.

67° Sabia assim que, em consequência das suas condutas atrás descritas, prejudicava a realização da justiça e que prejudicava a obtenção de justiça reclamada pelo BB, o que quis e declarou nas decisões judiciais atrás referidas, agindo com dolo directo.

68.° Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, que, nos termos do Estatuto dos Magistrado Judicial e nos termos da Constituição da República Portuguesa, ao proferir, como foi o caso, um qualquer despacho contrário à verdade processual e à lei, estava a agir contra o Direito e contra a realização de Justiça e contra os deveres inerentes às suas funções, contra os deveres que lhe estão incumbidos por força dos Estatutos da sua profissão, que agia também contra os princípios  que  norteiam a  actividade  da Magistratura,  conforme previsto na Constituição da República Portuguesa, o que quis e conseguiu, de modo a descredibilizar também os actos processuais que o BB estava a praticar em defesa da legalidade democrática e reposição da verdade processual dentro dos auto processuais n.° 1420/11.... e seus apensos, como também no uso dos recursos e reclamações que a lei lhe confere enquanto arguido no âmbito de um processo criminal, assegurando todas as garantias de defesa previstas no Código Processo Penal, Constituição da República Portuguesa e até da Lei do Tribunal Constitucional.

69.° Ao actuar da forma descrita o Exmo. Sr. Juiz Desembargador pôs em causa, de forma séria e grave, a credibilidade jurídica das decisões judiciais proferidas pelo Tribunal da Relação, do princípio da protecção da confiança jurídica que tem cobertura constitucional, na seriedade da Justiça, dos seus Tribunais e dos Magistrados e em que os cidadãos devem confiar.

70.° Mais sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que, ao proferir o despacho de 5 de Agosto de 2021, já depois de ter tido conhecimento do incidente de recusa suscitado pelo aqui assistente, e de nesse incidente/requerimento estar anexada documentação judicial que impunha decisão diversa da que foi tomada em 14.07.2021, decidiu fazer constar falsamente de tal despacho informações e factos juridicamente relevantes mas que não correspondiam à realidade, nomeadamente ao ter dito, no despacho, que o acórdão estava transitado há mais de um ano e seis meses e que a partir de 14/07 a advogada GG deixou de assinar requerimentos, passando só o BB a fazê-lo.

71.° Sabia o arguido Dr. AA que, ao inscrever este tipo de dizeres na informação que remeteu ao Supremo Tribunal de Justiça tornava aquele documento com conteúdo falso, por ser contrário à verdade, sabia que o Supremo Tribunal de Justiça ia fazer fé pública na credibilidade do mesmo, o que quis e conseguiu, sabendo que a sua conduta era e é proibida por lei como crime e ainda assim prosseguiu com as suas condutas, pondo em causa a confiança e a fé publica que todas as decisões, documentos ou informações judiciais têm que merecer à generalidade das pessoas e ao Estado, ao sector da justiça e a todos os operadores judiciários.

72.° O arguido Dr. AA é Juiz há mais de 30 anos, segundo os Quadros do Conselho Superior da Magistratura, motivo pelo qual, com 3 décadas de experiência profissional tinha sabedoria e conhecimentos técnicos suficientes que lhe permitiam ter a certeza que não podia decidir declarar o trânsito em julgado com efeitos anteriores à data em que foi suscitada a prescrição do procedimento criminal (08.06.2020) uma vez que não estava transitado o acórdão final, sabia que ao decretar o trânsito em julgado com data anterior à data do trânsito dos arguidos DD e EE (06.07.2020) estava até a criar uma situação de desigualdade intraprocessual - além de ilegal - como também sabia fruto da sua longa experiência judicial que, ao conseguir decretar o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020, em data muito anterior à solicitação das prescrições dos crimes, o Tribunal Constitucional viria mais tarde a decretar como sem efeito os recursos interpostos por ocorrer uma inutilidade superveniente da lide, sendo que para tal, bastaria comunicar ao Tribunal Constitucional, como decidiu no despacho de 14.07.2021, junto do Apenso X (apenso do recurso da prescrição dos crimes) que o trânsito do acórdão tinha efeitos a 27.01.2020.

73.° Ao longo da sua carreira profissional enquanto Juiz de Direito, integrou Colectivos de Juízes de processos complexos e mediáticos, tais como ..., ... e ... (factos que são do conhecimento público), o que lhe permitiu, entre muitos outros, ter um conhecimento profundo sobre questões técnico-jurídicas de pendências de recursos e datas trânsitos em julgado.

74.° Sabia assim que, nos termos do art.° 628.° do Código Processo Civil, «Noção de trânsito em julgado», a decisão de 13.01.2020 só se consideraria transitada em julgado quando não fosse susceptível de qualquer tipo de recurso ou de reclamação, aliás, nos mesmos moldes que tinha decidido o seu colega Dr. FF em relação a quase todos os restantes arguidos do processo 1420/11.....

75.° O Exmo. Sr. Juiz Desembargador sabia e disso tinha conhecimento que o BB, tal como o DD e EE, tinham reagido ao acórdão do Tribunal da Relação datado de 13 de Janeiro de 2020, motivo pelo qual não se aplicava ao aqui assistente o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020.

76.° Sabia, e disso tinha perfeita consciência, que a decisão juridicamente correcta e legal a tomar no despacho de 14.07.2021 era a de, a declarar o trânsito em julgado, fazê-lo sempre em data posterior a Setembro de 2020, mais concluindo que, pese embora se considerasse transitado o acórdão, esse trânsito seria sempre condicional, sendo a pena de prisão resultante da pena única de 8 anos inexequível até que se decidissem os recursos interpostos sobre as prescrições aos quais foi atribuído o efeito suspensivo. Ao ter decidido contrariamente a isto, sabia que incorria em responsabilidade criminal.

Face a todo o exposto, incorre o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, Dr. AA, no exercício das suas funções enquanto Magistrado Judicial em funções no Tribunal da Relação... em autoria material, concurso efectivo de crimes, com dolo e intencionalmente:

2 crimes de denegação de justiça e prevaricação, previstos e punidos pelos art.°s 14.°, n.°s 1, 2, 3 e 4, 26.°, 66.° n.° 1 ai. a), 67.°, 68.°, 369.°, n.°s 1, 2, 3, 4 e 386.°, n.°s 1 e 3 do Código Penal (pelos dois despachos datados de 14.07.2021 e 05.08.2021);

2 crimes de abuso de poder, previstos e punidos pelos art.°s 14.°, 26.°, 66.°, 67.°, 68.°, 382.°, 386.°, n.°s 1, 2, 3 e 4 do Código Penal, pelos despachos proferidos em 14.07.2021 e 05.08.2021;

—> 1 crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelos art.°s 14.°, 26.° e 255.°, 256.° n.°s 1 alínea d), 3 e 4 do Código Penal;

—> incorre ainda na Pena acessória de proibição do exercício de função, nos termos do art.° 66.° n.° 1 alínea a), 67.° e 68.° do Código Penal.

(não se imputa o crime em relação ao despacho de 06.08.2021 uma vez que, de ambas as queixas apresentadas não foi levado esse facto à investigação)».

6. Dos crimes imputados:

a) O crime de denegação de justiça e prevaricação:

Dispõe-se no art° 369° do Cod. Penal: "1. O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 120 dias.

2.    Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até cinco anos.

3.     Se, no caso do n° 2, resultar privação da liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.

4.     Na pena prevista no número anterior incorre o funcionário que, sendo para tal competente, ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal, ou omitir ordená-la ou executá-la nos termos da lei.

5.     No caso referido no número anterior, se o facto for praticado com negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa".

Estamos perante um crime contra a realização da justiça, onde o bem jurídico tutelado é "a realização da justiça, na sua vertente da integridade dos órgãos de administração de justiça (tribunais em sentido amplo, incluindo os juízes, os magistrados do MP, os funcionários judiciais e os jurados) e dos órgãos de colaboração na administração da justiça (polícias) e, concomitantemente, os interesses individuais do visado pelo ato ilegal do funcionário" (Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal", 3a ed., 1158.), e que tem por elementos constitutivos "a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar a agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém" - Ac. STJ de 12/7/2012, Proc. 4/11.8TRLSB.S1 (Acessível, como os demais relativamente aos quais não for indicada a fonte, em www.dgsi.pt.).

O tipo subjectivo do crime em apreço apenas se satisfaz com o dolo directo ou o dolo necessário (fora a situação prevista no n° 5 do art° 369° do CP), não sendo admissível o dolo eventual (Neste sentido aponta, de forma unânime, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça - cfr., a título meramente exemplificativo os Acs. de 7/2/2018, Proc. 29/16.7TRLSB.S1, de 20/11/2014, Proc. 7/14.0TAVRS.S1 e de 12/7/2012, Proc. 4/11.8TRLSB.S1.): "(...) exigindo a lei portuguesa que o funcionário actue conscientemente, as situações recondutíveis à dolosidade eventual, isto é, aquelas em que o agente representando a realização do facto como possível conforma-se com a sua realização (cf Art. 14°, n° 3) não se encontram abrangidas pela norma incriminadora, o mesmo é dizer, não são puníveis" - Medina de Seiça, "Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial", T. III, 619 (Para Paulo Pinto de Albuquerque (op. cit, 1159), contudo, «o tipo subjetivo só admite o dolo direto, em face da exigência típica resultante da expressão "conscientemente" (tendo sido este o propósito da comissão de revisão do CP de 1966 (...))».).

b) O crime de abuso de poder:

Dispõe-se no art. 382.° do Cod. Penal:

"O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".

Estamos perante um crime cometido no exercício de funções públicas, cujo bem jurídico tutelado consiste na autoridade e credibilidade da administração do Estado (Neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, "Comentário Conimbricense ...", T. III, 774. Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., 1215, identifica o bem jurídico protegido pela incriminação como "a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário (...) e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa".).

O tipo objectivo de ilícito traduz-se no abuso de poderes ou na violação de deveres por banda do funcionário, sendo certo que, numa e noutra situação, os poderes e deveres terão de ser inerentes à sua função.

Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, sendo certo que o agente terá que actuar com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, o mesmo preenche-se com o dolo, que "supõe a consciência e vontade por parte do agente de exercer uma função pública abusando dos poderes, ou violando os deveres a ela inerentes, bem como o conhecimento do carácter ilegítimo da vantagem ou do prejuízo pretendidos"(Paula Ribeiro de Faria, op. cit. 780. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., 1215: "O tipo subjetivo admite qualquer modalidade do dolo. O tipo inclui ainda um elemento subjetivo adicional: a intenção de obter, para si ou para outra pessoa física ou coletiva, privada ou pública (excluindo o Estado), benefício patrimonial ou não patrimonial ilegítimo, ou causar prejuízo patrimonial ou não patrimonial a outra pessoa física ou coletiva (...)".

c) O crime de falsificação de documentos:

Dispõe-se no art° 256° do Cod. Penal:

 "1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a)     Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b)    Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c)     Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d)    Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e)     Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f)         Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2  - A tentativa é punível.

3  - Se os factos referidos no n.° 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.°, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

4  - Se os factos referidos nos n.os 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos".

Os bens jurídicos tutelados pela incriminação são "a segurança e a credibilidade na força probatória de documento destinado ao tráfico jurídico" (Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., 931. No mesmo sentido, cfr. Helena Moniz, "Comentário Conimbricense ...",1.11,679/680).

O tipo objectivo de ilícito traduz-se no fabrico de um documento, na modificação de documento pré-existente, na integração em documento de uma assinatura de terceiro, na declaração de facto falso juridicamente relevante, na integração em documento de uma declaração distinta da efectivamente prestada ou na circulação de documento falso (Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., 932).

Como explica Helena Moniz (Op. cit., 682), "integra-se no acto de fabricar um documento a falsificação intelectual em que o documento, isto é, a declaração documentada, idónea a provar um facto juridicamente relevante, é distinta da declaração realizada". De outro lado, e no que concerne à falsificação ou alteração de documento pré-existente, estamos perante aquilo "que é designado por falsificação material. Nestes casos verifica-se uma falsificação posterior do documento, mediante uma alteração do documento". No que respeita à ai. c) do preceito citado, estamos perante um documento "cujo conteúdo pode ser verídico (...) no entanto, o documento não é autêntico, a declaração não foi proferida pela pessoa que o escrito apresenta". A narração de facto falso juridicamente relevante "é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica". Por fim, o uso de documento falso "apenas é punido no caso de se tratar de uso de documento por pessoa distinta da que falsificou"'.

No que concerne ao tipo sujectivo, estamos perante um crime intencional, "exiginão-se que o agente actue com intenção de causar um prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo", como tal se entendendo "toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação"(Helena Moniz, op. cit, 685).

Esta "intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo" e que vulgarmente é analisada em sede de dolo específico, constitui um elemento subjectivo especial deste tipo de crime, que acresce ao dolo entendido como elemento subjectivo geral.

7. Análise crítica:

Importa, agora, apurar se os indícios existentes nos autos, conjugados com os elementos recolhidos no âmbito da instrução, são suficientes para sustentar um despacho de pronúncia.

Como afirma Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. III, 2a edição, pág. 129), "no Código Processual vigente, a instrução tem um duplo sentido: fase processual do processo preliminar e actividade de comprovação da acusação em ordem à decisão sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento. (...) O art° 286°, n° 1, indica expressamente como fim da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento», (itálico do texto).

Nos termos do estatuído no art° 308°, n° 1 do Código de Processo Penal «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».

Exige-se, assim, da parte do julgador, a formulação de um juízo de probabilidade, por forma a legitimar a sujeição do arguido a julgamento.

Para tanto, torna-se necessário que da análise dos elementos constantes dos autos, designadamente os resultantes das diligências probatórias realizadas, resultem indícios suficientes da prática pelo arguido de factos susceptíveis de o fazer incorrer em responsabilidade criminal.

Por expressa remissão do n° 2 do artigo 308.°, para o artigo 283.°, n° 2, ambos do CPP, «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança».

E aqui chegados, cumpre analisar a prova reunida em sede de inquérito e de instrução.

A) O despacho proferido pelo arguido em 14/7/2021:

É o seguinte, o teor de tal despacho:

“Façamos, pois, uma breve resenha processual da actividade processual relativa a este arguido. Assim:

-  por Acórdão de 1ª instância de 13/12/2017, foi o arguido BB condenado na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;

-   por Acórdão desta Relação de 30/9/2019, foi tal pena reduzida para 8 (oito) anos de prisão;

-  o arguido pretendeu recorrer para o STJ, recurso que não foi admitido, pelo que o arguido reclamou deste despacho, formando-se o apenso A, de Reclamação;

-   esta Reclamação foi indeferida por decisão de 18/3/20, tendo desta decisão o mesmo arguido interposto recurso para o TC, que não foi admitido por despacho de 2/7/20;

-   em 8/6/2020, logo antes deste despacho e do trânsito do Acórdão final, o arguido faz um primeiro requerimento invocando a prescrição do procedimento criminal neste Tribunal da Relação, quanto a alguns dos crimes cujas penas foram incluídas no cúmulo e, assim, na pena única;

-  entretanto, em 11/6/20 o arguido apresenta recurso do Acórdão final proferido para o Tribunal Constitucional;

-  em 19/6/20 é proferido despacho neste Tribunal da Relação em que, de entre o mais, não se admite o seu recurso para o Tribunal Constitucional e se indefere o requerimento de prescrição do procedimento criminal, quanto a alguns dos crimes;

-   em 23/6/20, o arguido BB interpõe recurso para o TC do despacho que lhe indeferiu a declaração de prescrição;

-  e, em 6/7/20, recorre também do mesmo despacho para o STJ;

-    por despacho de 13/7/20 proferido neste Tribunal, não foi admitido o recurso para o STJ do referido despacho que negou a prescrição e sobrestou-se na admissão do recurso para o TC, até que estabilizada a situação quanto à não admissão do recurso para o STJ;

-   em 6/1/21, o mesmo arguido interpõe de novo recurso para o TC sobre a matéria da prescrição, alegando ter sido indeferida a reclamação pendente sobre a não admissão do recurso para o STJ;

-   em 27/1/21, apresenta novo requerimento sobre prescrição quanto a alguns dos crimes, que se entendeu apenas reproduzir o anterior;

-   por despacho de 15/2/21, não se conheceu do novo requerimento sobre prescrição do arguido, porquanto a essa matéria estar esgotado o poder jurisdicional do Tribunal; e quanto ao recurso para o TC sobre o 1º despacho de prescrição, mandou-se aguardar pela descida do apenso K de Reclamação;

-   em 21/2/21, logo o mesmo arguido interpõe recurso sobre este segundo despacho de prescrição para o TC;

-  e, em 23/2/21, apresenta recurso sobre a mesma temática, para o STJ;

-   por despacho de 26/2/21, não é admitido este recurso sobre o 2º despacho sobre prescrição, para o STJ; e mandou-se aperfeiçoar o recurso de 21/2, para o TC;

-  depois de aperfeiçoado este, por despacho de 5/3/21, sobrestou-se também na admissão deste recurso para o TC, uma vez que pendente reclamação do arguido quanto à não admissão do recurso para o STJ, apresentada em 1/3/21 e que deu lugar à criação do apenso V;

-   por despacho de 11/5/21, foi admitido o recurso sobre o 1º despacho de prescrição para o TC, uma vez que já remetido o apenso K de Reclamação, constando-se que foi indeferida a Reclamação sobre a não admissão de recurso, quanto ao primeiro despacho sobre prescrição. Este, o já longo e sobressaltado caminho percorrido nos autos, quanto ao arguido BB.

Efectivamente, neste caso e ao contrário do que sucedeu quanto ao arguido CC, o arguido BB fez o 1º requerimento sobre prescrição, quando ainda não tinha transitado o Acórdão da decisão final - o dito requerimento data de 8/6/2020 e a Reclamação para o STJ, dada a não admissão do recurso da decisão final data de 18/3/2020, mas só em 2/7/2020 - data posterior a 8/6/2020 - não foi, na dita Reclamação admitido o recurso da decisão de 18/3/2020 (indeferimento do recurso da Reclamação para o TC).

Mas isso não determina solução diferente da assumida no despacho de 21/6/2021 (...), que declarou o transito do Acórdão condenatório, quanto ao arguido CC.

É que, em ambos os casos se está perante requerimentos posteriores à decisão final e que nada têm a ver com ela. Tratam-se, sim, de novas questões laterais suscitadas pelos arguidos.

Ou seja: o Acórdão condenatório não pode mais ser posto em causa, apenas não tendo ainda solução definitiva dois requerimentos posteriores à decisão final do arguido, relativo à prescrição do procedimento criminal.

Estes nada têm, pois, a ver com aquela decisão, sendo-lhes completamente laterais (...).

Se por via de requerimentos  posteriores sobre  prescrição do  procedimento criminal pudessem os sujeitos processuais atrasar, por via lateral, a data do trânsito da decisão final, estaria encontrado o meio de as decisões nunca transitarem - bastaria repeti-los de quando em vez, repetindo depois recursos e reclamações.

Os referidos requerimentos continuam a ter efeito útil pois, caso algum venha a ser declarado procedente a final, isso continuaria a poder determinar a restituição do arguido à liberdade".

E depois de citar, em abono do seu entendimento, um trecho do Ac. RL de 24/4/2012, acrescenta:

"Como bem disse o Dignmº PGA, a decisão final nestes autos tem quase dois anos (data de 30/9/2019) e o próprio arguido já interpôs um recurso para fixação de jurisprudência (Apenso M) e dois por ofensa a jurisprudência fixada (Apensos N e O).

Tratam-se, ambos, de recursos extraordinários previstos nos artºs 437º e 446º CPP e que só podem ser interpostos 30 (trinta) dias após o trânsito da decisão final. O que só pode querer dizer, que o próprio arguido BB considera a decisão final também como transitada, quanto a si.

O arguido BB opôs-se ao deferimento do promovido, com base sobretudo em dois tipos de argumentos:

-    estarem pendentes recursos do arguido, admitidos com efeito suspensivo;

-   o despacho proferido em 9/9/2020, em que se não declarou o trânsito do acórdão, quanto ao arguido BB e seu efeito preclusivo, em termos de caso julgado.

Quanto ao primeiro dos argumentos:

O recorrente BB tem, de momento, pendentes:

-   recurso para o Tribunal Constitucional sobre o 1º despacho que indeferiu a declaração de prescrição do procedimento criminal, admitido por despacho de 11/5/21, após chegado o apenso K e admitido com efeito suspensivo;

-    reclamação contra o despacho que não admitiu o 2º despacho sobre prescrição, pendente desde 1/3/2021, sem efeito suspensivo declarado (Apenso V);

-   recurso para o TC em cuja admissão se sobresteve, aguardando estabilização da decisão na reclamação anteriormente referida, quanto ao 2º despacho de prescrição - despacho de 5/3/2021.

Assim, só o primeiro recurso referido tem atribuído efeito suspensivo. Ora, como se sabe, os recursos podem ter efeito suspensivo quanto à marcha do processo ou quanto ao teor da decisão proferida. Naturalmente que estando em causa recursos sobre decisões posteriores à decisão final e porque a partir daí não há qualquer tramitação processual prevista, o efeito atribuído só pode referir-se à decisão proferida - de indeferimento de declaração da prescrição. Isto só quer dizer que esta decisão não pode, desde já, ser executada, não podendo pois nunca referir-se a uma tramitação processual que lhe é anterior e está finda. No que se refere à Reclamação pendente, a lei processual penal não lhes confere qualquer efeito suspensivo, pelo que o mesmo não foi atribuído.

Quanto ao terceiro recurso, ainda nem sequer foi admitido, pelo que não atribuído qualquer efeito à interposição do recurso.

Este primeiro foco da defesa do arguido BB improcede, assim. No que se refere ao segundo:

Contrariamente ao que refere o arguido BB, no despacho de 9/9/2020 nunca se decidiu que o recurso quanto ao arguido BB não tinha transitado.

Com efeito, apenas se referiu que a situação processual do arguido BB não se encontrava definida, nada se dizendo quanto a "caso julgado" e não se tendo determinado, desde logo, a extração de certidão por declaração de trânsito em julgado. Mas também não se disse que não havia decisão final transitada. Pelo contrário e perfunctoriamente se referiu, que é vasta a Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores em declarar, em casos afins, o "caso julgado sob condição resolutiva, condicional ou «rebus sics stantibus», citando-se aliás variada jurisprudência - a que acresce o Acórdão da Relação de Lisboa, já citado neste despacho e que versa, exactamente sobre a questão em debate nos autos.

Não ocorreu, pois, qualquer decisão contraditória com a presente declaração de trânsito condicional.

Aliás, a expressão transcrita pelo arguido BB no sentido de que, por ora, não se declarava o trânsito do Acórdão final referia-se não a si, mas aos arguidos DD e JJ - e apenas, porque o MP não se lhes tinha referido, na sua promoção. Por isso, aliás, se mandou abrir nova vista, quanto a estes arguidos.

Assim, e ao contrário do argumentado pelo arguido BB, nada obsta em termos de caso julgado e seu efeito preclusivo, à declaração neste momento de trânsito julgado quanto a si, em termos condicionais.

(...)

Assim, datando a   última   decisão  sobre   o   recurso   da   decisão  final   de   13/1/2020 (desatendimento de nulidades e reclamações) e não sendo o mesmo suscetível de recurso ordinário, deve entender-se que o Acórdão sobre a decisão final transitou já em 27/1/2020 - tendo em conta a data da respetiva notificação e o prazo geral de 10 (dez) dias, para qualquer nova arguição.

O que determina se declare o trânsito da decisão final proferida nestes autos, também quanto ao arguido BB, sem prejuízo de se agir em conformidade caso algum dos dois requerimentos do arguido sobre prescrição vier a ser declarado procedente - "caso julgado condicional".

Notifique.

Transitado, extraia certidão com cópias do Acórdão proferido em 1ª instância de 13/12/2017, do Acórdão deste Tribunal da Relação de 30/9/2019, do Acórdão também deste Tribunal de 13/1/2020 (que indeferiu pedidos de declaração de nulidades e reclamações) e deste despacho e remeta à 1.ª instância, para cumprimento pelo arguido BB da pena que lhe foi aplicada e mais decorrências legais.

Comunique, nos termos promovidos".

Ora,

Entende o assistente como contrária à lei a declaração constante deste despacho de que o acórdão proferido no TR..., proferido no Proc. 1420/11...., transitara em julgado em 27/1/2020.

Não cabe nesta decisão instrutória, como é evidente e dispensa grandes considerações, aferir do acerto ou desacerto do despacho em causa, mas tão somente apurar se existem indícios de que nele tenha sido proferida, conscientemente, decisão contra direito.

Porém,

Historiando as vicissitudes do processo, afirma-se nesse despacho, em suma, que nada obstava, "em termos de caso julgado e seu efeito preclusivo, à declaração neste momento de trânsito em julgado quanto a si, em termos condicionais". E acrescenta-se: "Assim, datando a última decisão sobre o recurso da decisão final de 13/1/2020 (desatendimento de nulidades e reclamações) e não sendo o mesmo susceptível de recurso ordinário, deve entender-se que o Acórdão sobre a decisão final transitou já em 27/1/2020 -tendo em conta a data da respetiva notificação e o prazo geral de 10 (dez) dias, para qualquer nova arguição. O que determina se declare o trânsito da decisão final proferida nestes autos, também quanto ao arguido BB, sem prejuízo de se agir em conformidade caso algum dos dois requerimentos do arguido sobre prescrição vier a ser declarado procedente -«caso julgado condicional»".

É esta a decisão que o assistente entende como tendo sido proferida contra direito pelo arguido, com a consciência de que assim era.

E isto porque, como afirma, existia nos autos um despacho anterior, proferido em 9/9/2020 pelo anterior titular dos autos na RELAÇÃO ..., Juiz Desembargador FF, no qual o mesmo teria afirmado o não trânsito, nessa data, do acórdão condenatório, relativamente a si, ora assistente; como, de outro lado, porque havia interposto um recurso para o Tribunal Constitucional do despacho que indeferira a arguida prescrição de crimes de falsificação, o qual havia sido admitido pelo ora arguido, com efeito suspensivo; depois, porque no início do ano 2021, o assistente suscitou nova prescrição do procedimento criminal junto do Tribunal da Relação .../ e sobre este segundo pedido de prescrição recaiu novo despacho, considerando esgotado o poder jurisdicional nesta matéria/ sendo que, não concordando com o mesmo, recorreu para o Tribunal Constitucional, recurso que foi admitido.

Porém,

- No despacho de 9/9/2020, assim entendeu o seu então titular, Dr. FF:

"Considerando que ainda se encontram pendentes as reclamações dos despachos de não admissão de recursos para o ST} (...) bem como o recurso para o TC, apresentados pelo ora recorrente, razão pela qual em relação a ele ainda não transitou em julgado a decisão, não fazendo sentido nem se devendo, a nosso ver, cindir a condenação pelos crimes não abrangidos por tais recursos, por ora, aguardem os autos que tal venha a ocorrer, após o que deverá ser aberta nova conclusão no presente apenso de Recurso para Fixação de Jurisprudência".

Este despacho foi proferido no âmbito de um recurso para fixação de jurisprudência que, por força do estatuído no art° 438°, n° 1 do CPP, deve ser interposto no prazo de 30 dias, contados sobre o trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido).

E se assim é, então o não trânsito do acórdão àquela data seria tudo menos pacífico: ao menos para quem interpôs o recurso, o acórdão estaria transitado (esse é um pressuposto de admissibilidade do mesmo). De outro lado, ao referir crimes abrangidos e não abrangidos pelos recursos interpostos para o STJ e para o TC (sobre cujos despachos de não admissão teriam sido interpostas as competentes reclamações), o Exm° Desembargador que proferiu esse despacho abre margem para dúvidas. Dúvidas que, aliás, se não existissem/ teriam determinado a não admissão -imediata - do recurso para fixação de jurisprudência, posto que não verificado um dos pressupostos formais previstos na lei (dedução nos 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido).

Por outro lado, o Exm° Juiz Desembargador aqui arguido, no seu despacho de 14/7/2021, justifica de uma forma que nos parece clara (concorde-se, ou não, com ela) a razão para o entendimento que perfilhou. Comparando a situação do ora assistente com a do arguido CC, afirma:

"(...) em ambos os casos se está perante requerimentos posteriores à decisão final e que nada têm a ver com eia. Tratam-se, sim, de novas questões laterais suscitadas pelos arguidos. Ou seja: o Acórdão condenatório não pode mais ser posto em causa, apenas não tendo ainda solução definitiva dois requerimentos posteriores à decisão final do arguido, relativo a prescrição do procedimento criminal.

Estes nada têm, pois, a ver com aquela decisão, sendo-lhes completamente laterais (...). Se por via de requerimentos posteriores sobre prescrição do procedimento criminal pudessem os sujeitos processuais atrasar, por via lateral, a data do trânsito da decisão final, estaria encontrado o meio de as decisões nunca transitarem - bastaria repeti-los de quando em vez, repetindo depois recursos e reclamações.

Os referidos requerimentos continuam a ter efeito útil pois, caso algum venha a ser declarado procedente a final, isso continuaria a poder determinar a restituição do arguido à liberdade".

Trata-se de um entendimento que, salvo o devido respeito por melhor opinião, não pode ser considerado como contrário à lei, "contra direito".

Na óptica do Exm° Desembargador, aliás já retratada no seu despacho de 21/6/2021 em abordagem à situação processual do arguido CC, conhecidas as nulidades do acórdão do TR... arguidas em requerimento formulado no prazo legal de 10 dias, transitado fica aquele aresto, porquanto o mesmo não admitia recurso. E, colocada entretanto uma questão relativa à eventual prescrição de alguns crimes por cuja autoria o arguido havia sido condenado, tal questão é "lateral" à decisão final, não impedindo o trânsito em julgado do acórdão final.

Este entendimento, aliás, é idêntico ao assumido pelo Exm° PGA no TR... que, na promoção de 27/6/2020, havia referido:

"Se dúvidas havia, com esta decisão definitivou-se o acórdão desta Relação de 30-09-2019, o que não se pode considerar, salvo melhor opinião, abalado pelas sucessivas arguições da prescrição do procedimento criminal que o arguido vem deduzindo, sendo certo que, em todo o caso, a primeira arguição foi, há muito - cf. Apenso K - recusada, por despacho de 19/6/2020 (...) proferido nesta Relação, a propósito do qual veio a ser indeferido o requerimento de interposição de recurso, com sufrágio na decisão de indeferimento da interposta reclamação (...) sobre o que veio também a ser interposto recurso, de que o Tribunal Constitucional não tomou conhecimento (...).

Viria também o arguido a reeditar, já em 27-01-2021 (...) novo episódio de arguição da prescrição, dando origem a nova «via-sacra» processual e recursóría - cf. Apenso V - com o que vem paralisando a execução da decisão.

Ora, tendo soçobrado qualquer viabilidade de impugnação do acórdão desta Relação, que operou a confirmação «in mellius» da decisão da primeira instância, o que foi também reconhecido nas mais Altas instâncias, não é por o arguido vir enxertando requerimentos a arguir prescrições que a definitividade do decidido se altera, sob pena de estar encontrada a maneira de qualquer decisão nunca transitar em julgado, bastando, para tanto, que o arguido interponha inadmissíveis recursos e vá deduzindo sucessivos incidentes de prescrição, sobre os quais vá também recorrendo, quer para o Supremo Tribunal de Justiça, quer, depois, para o Tribunal Constitucional - não se olvidará que o acórdão desta Relação, que conheceu do recurso, foi proferido há quase dois anos" (subi. nosso).

E, de algum modo, é este também o entendimento do Ac. RL de 24/4/2012, citado pelo arguido no seu despacho de 14/7/2021: «O facto de estar -pendente a apreciação de uma questão processual, que pode levar à anulação do julgamento, não significa que a questão relativa ã responsabilidade penal do arguido, decidida nesse julgamento, não se possa ter como definitivamente assente. Considerando a referida noção de trânsito em julgado, com cariz provisório e resolúvel, nada obsta ao reconhecimento do trânsito em julgado de sentença condenatória, apesar da pendência de questão relativa a prescrição suscitada em relação a crimes que integram o cúmulo jurídico que determinou a aplicação de uma pena única de prisão, ou outras questões a decidir no traslado a que se refere o n° 4, do citado art. 720.

A questão da prescrição em relação a crimes que integram o cúmulo jurídico é autónoma da decisão condenatória, não prejudicando o trânsito desta, nos termos referidos, nem determinando qualquer inconstitucionalidade, uma vez que está assegurada a possibilidade de garantir efeito útil ao que vier as ser decidido quanto à prescrição».

A este propósito, permita-se-nos o esclarecimento daquilo que nos parece ser um equívoco:

Nos art°s 48° a 51° do seu RAI, afirma o assistente que o Exm° Desembargador ora arguido citou um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, relatado pelo Des. Vieira Lamim, datado de 24/4/2012, onde se decidiu em sentido exactamente oposto ao por si acolhido, sendo que só o invocou "para dar um aspecto de legalidade" ao seu despacho.

Na realidade, o acórdão citado pelo arguido no seu despacho não é o mesmo que se mostra referido pelo assistente. Apesar de ambos relatados pelo mesmo Exm° Desembargador e prolatados no mesmo dia, referem-se a processos diferentes (ou melhor, apreciam recursos interpostos de decisões diferentes): o citado pelo arguido foi proferido no Proc. 712/00.9JFLSB-U.L1-5 e o referido pelo assistente foi proferido no Proc. 712/00.9JFLSB-T.L1-5.

Apesar da irrelevância dos factos em questão para a decisão a proferir, a verdade é que o arguido não citou o acórdão referido pelo assistente, mas um outro, diferente (embora relatado no mesmo dia, pelo mesmo Desembargador). E a irrelevância decorre, naturalmente, do facto de em ambos os casos se tratar de acórdãos proferidos sobre determinadas questões de direito, acórdãos que não são fonte de direito nem determinam jurisprudência de acolhimento obrigatório, antes se traduzindo em meras decisões judiciais, a acatar no âmbito dos processos onde foram proferidas mas que, fora deles, são criticáveis e discutíveis como todas as demais (aliás, no recurso a que se refere o assistente, o Ministério Público, aí recorrente, defendia posição oposta à que viria a ser sufragada no aresto, sem que daí se possa concluir que o magistrado do MP terá promovido " conscientemente e contra direito").

Afirma o assistente, ainda, que interposto recurso do acórdão para o STJ, bem como reclamação do despacho que o não admitiu e, posteriormente, recurso para o Tribunal Constitucional do despacho que indeferira a reclamação, o acórdão do TR... nunca poderia ter transitado em 27/1/2021, dado que todos esses actos processuais são posteriores.

Sem cuidar, mais uma vez e porque não é este o local próprio para tanto, de saber do acerto ou desacerto da decisão proferida pelo Exm° Desembargador ora arguido, a verdade é que o entendimento contrário, por ele seguido, tem acolhimento na jurisprudência deste Supremo Tribunal, como se pode ver, entre outros, no Ac. STJ de 9/12/2021, Proc. 441/11.8JDLSB.P1-C.S1, relatado pelo aqui signatário, onde se pode ler:

 "Na verdade (Aqui citando o Ac. STJ de 29/10/2020, proferido no Proc. 441/11.8JDLSB.P1-B.S1), «ainda que a arguida tenha apresentado recurso para o ST} que não foi admitido, não se pode entender que esta interposição impeça o trânsito em julgado do acórdão. É que nos termos do art. 628.°, do CPC, ex vi art. 4.°, do CPP, "a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação". Não é pelo facto de, após o último acórdão que indeferiu a arguição de nulidades do primeiro, ter interposto recurso do acórdão da relação (...) e de ter sido proferido despacho de não admissibilidade, do qual reclamou para o Supremo Tribunal de justiça, que se pode considerar que o trânsito em julgado apenas ocorreu em momento posterior. Na verdade, se assim fosse estava aberta uma nova via para prolongar, ou seja, alterar, os prazos legalmente estabelecidos» - Ac. STJ de 22/9/2016, Proc. 43/10.6ZRPRT.P1-D.S1, rei. Cons. Helena Moniz.

No mesmo sentido viria a pronunciar-se este Supremo Tribunal, no seu Ac. de 26/11/2020, Proc. 775/18.0T9LRA.C1-B.S1: "A decisão do STJ sobre a reclamação (apresentada ao abrigo do disposto no art. 405°, do CPP) do despacho que não admitiu o recurso não tem qualquer reflexo no trânsito em julgado do acórdão da Relação, tanto mais que se decidiu pela irrecorribilidade daquele; além de que aquela reclamação constitui uma reclamação da decisão que não admite o recurso, e não uma reclamação do acórdão da Relação do qual se pretendia recorrer".

E ainda no mesmo sentido se pronunciou este Tribunal, no Ac. STJ de 11/3/2021, Proc. 130/14.1PDPRT.P1.S1, rel. Cons. Margarida Blasco: "VIII - O STJ, a propósito do recurso para fixação de jurisprudência, ou de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, densificou o conceito de trânsito em julgado, para efeito de contagem do prazo de interposição de tais recursos. Conforme jurisprudência uniforme deste ST, uma decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 628°, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.°, do CPP). Atendendo aos relevantes efeitos associados ao trânsito em julgado [como seja, a exequibilidade da decisão (artigo 467°, n.° 1, do CPP), o prazo para interposição de recursos extraordinários (artigos 438°, n.° 1 e 446°, n.° 1, ambos do CPP), ou momento a partir do qual se inicia os prazos de contagem de prescrição da pena (artigo 122°, n.° 2, do CP), bem como, os institutos do caso julgado ou ne bis in idem], o mesmo desempenha uma relevante função de acautelamento da segurança jurídica. É, justamente, a previsibilidade, estabilidade e segurança, no firmamento da data do trânsito em julgado, que o STJ tem invocado para decidir que a reclamação apresentada ao abrigo do disposto no artigo 405.°, do CPP do despacho que não admitiu o recurso não tem qualquer reflexo no trânsito em julgado do acórdão da Relação, pois que, a decisão do presidente do Supremo que indefere a reclamação da decisão que não admite o recurso limita-se a declarar e confirmar a «insusceptibilidade» do recurso, a qual, ao nível do trânsito do acórdão recorrido, se deverá reportar ao momento em que o recurso já não é legalmente possível. Isto é, o acórdão transitou «logo que», no caso, se esgotou a possibilidade de recorrer por a lei não admitir recurso". IX - Num plano mais lato, o que se sustenta é que no caso em que o recurso não é admissível para o STJ, a decisão transita a partir do momento em que já não é possível reagir processualmente à mesma, estabilizando-se o decidido, pelo que, no caso de decisões que não admitam recurso, o trânsito verifica-se findo o prazo para arguição de nulidades ou apresentação de pedido de correcção (arts. 379.°, 380.° e 425.°, n.° 4, do CPP), ou seja, o prazo-regra de 10 dias fixado no n.° 1 do art 105.° do CPP, em caso de não arguição ou de não apresentação de pedido de correcção" e, em caso de arguição, após o trânsito da decisão que conhece da arguição, data a partir do qual se inicia a contagem do prazo dos recursos extraordinários que pressupõe o trânsito em julgado. Deste modo, impede-se a abertura de uma nova via para prolongar, ou seja, alterar, os prazos legalmente estabelecidos".

Mais uma vez (e enfatizando/ para que não restem dúvidas): não está em causa, neste momento, apreciar da bondade (ou falta dela) da decisão proferida pelo Exm° Desembargador aqui arguido em 14/7/2021; apenas se afirma e realça que se não trata de decisão contra direito.

É que, como se afirma no Ac. STJ de 17/9/2014, Proc. 89/13.2TRPRT.S1, "III -O agir contra direito abrange, em primeiro lugar, o conjunto de normas vigentes na ordem jurídica positiva, independentemente da sua origem ou modo de revelação, tenham cunho material ou processual, natureza pública ou privada, de criação estadual ou não, como também princípios jurídicos não directa ou expressamente consignados em normas positivadas, mas que delas decorrem e gozam de força cogente, como o princípio in dubio pro reo ou a proibição do ventre contra factum proprium. IV -Agir contra direito significa a contradição da decisão com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes, mas tal contradição só por si nada mais significa do que a existência dum erro de direito, a justificar a alteração do decidido. V - A nota delimitadora deste crime é a consciência de tal contradição de agir contra o direito, ou seja, é o assumir da violação dos deveres profissionais em função de outras razões. VI - Se a aplicação de uma norma não se circunscreve à pura subsunção de uma fattispecie unívoca, mas se espalha por diversas vias juridicamente admissíveis de acordo com os cânones da metodologia jurídica, muitas vezes sancionadas pela doutrina e pelas mais altas instâncias judiciais, a escolha de uma delas pelo concreto aplicador conforma, em princípio, uma solução de acordo com o direito".

Por outras palavras: "se a decisão tomada se incluía no possível âmbito hermenêutico do preceito aplicado, ela já não se mostra contra direito; pelo contrário, expressa uma solução de direito, por conseguinte refractária à censura normativa da presente incriminação"(Do texto do mesmo Ac. STJ de 17/9/2014).

No mesmo sentido, o STJ já decidiu, no seu Ac. de 2/7/2012, Proc. 4/11.8TRLSB.S1:

"VI - Por outro lado, não é a prática de qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.° 1 do art. 369° do CP; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorrectamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça".

E isto porque, como se refere no Ac. deste STJ de 20/11/2014, Proc. 7/14.0TAVRS:

" No descortinar da actuação prevaricadora do juiz ou de denegação de justiça deve-se usar de um crivo exigente até porque, a ser diferente, ou seja se todas vezes que o destinatário da decisão dela discorde, seja porque se não se aplicou a lei, se seguiu interpretação errónea na sua aplicação, se praticou um acto ou deixou de praticar, os Magistrados Judiciais ou do M.°P.° incorressem num crime de prevaricação estava descoberto o processo expedito de paralisar o desempenho do poder judicial, a bel prazer do interessado, pelos factores inibitórios que criaria aos magistrados, a todo o momento temerosos de sobre eles incidir a espada da lei, paralisando-se a administração da justiça, com gravíssimas, intoleráveis e perigosas consequências individuais e comunitárias, não se dispensando, por isso mesmo, para tipicização da acção penal a presença de um grave desvio funcional por parte do Magistrado pondo em causa a imagem da justiça e os interesses de terceiro.

Significativo o pensamento de Eduardo la Couture, citado no proémio da Lei Uniforme sobre o Cheque, comentada por Abel Delgado e Filomena Delgado, segundo o qual no dia em que o juiz acorde assediado por esse supracitado temor, o poder judicial esboroar-se-á sem apelo nem agravo; no dia em que tal suceder nenhum cidadão poderá mais sair à rua em sossego. Por isso que se consagra no EMJ, como princípio, a irresponsabilidade dos juízes pelas suas decisões, tanto ao nível penal, cível ou disciplinar, salvos casos previstos na lei - art.° 5° e se delimitam no seu n.° 3 as condições em que pode ser exercida a responsabilidade civil contra eles.

O crime de prevaricação e denegação de justiça é, desde o direito romano, a acusação mais grave que se pode lançar sobre o juiz, a quem cabe, por missão, aplicar a lei, decidir em conformidade com ela, atribuindo a cada o que lhe cabe, sem ninguém lesar ("suum cuique tribuere et neminem non laedere") e que, então, se desvia dessa obrigação estatutária, legalmente consagrada, e visando, com a incriminação no art.° 369°, do CP, assegurar o interesse da realização da justiça, a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos da administração judiciária.

A lesão daquele interesse emana de "dentro" do sistema, por via da violação dos deveres impostos ao funcionário ou juiz, da metódica jurídica, funcionando, por isso, a estatuição da responsabilidade criminal do juiz como um dos "mais importantes correlatos e contrapesos" da independência e irresponsabilidade judiciais, assim comentou Medina de Seiça, in Comentário Conimbricense do Código Penal, III, 610 e 615, na esteira de Rudolphi. Convergem no descritivo típico do art.° 369.°, do CP, n.° 1, especialidades tanto ao nível objectivo como subjectivo, daquele elemento fazendo parte comportamentos activos e omissivos contra o direito manifestando uma actuação forte ao nível volitivo, traduzida na vontade e consciência desse específico proceder contra o direito objectivo, agravada se for acompanhada de dolo específico, na forma de uma especial intenção de prejudicar ou beneficiar alguém - n.° 2.

Agir contra o direito é, à luz de uma concepção objectiva, reinante, o agir, em primeiro lugar, contra as normas jurídicas instituídas, vigentes na ordem jurídica positiva, abrangendo-se, ainda, os princípios jurídicos não directa ou expressamente englobados em normas positivadas, mas que delas derivem de forma imperativa, cogente, ainda na expressão do aludido comentador, op.cit, pág. 611 - como, por ex.°, o "in dubio pro reo". O crime ê, pois, doloso, directo ou necessário, sendo de excluir, atenta a referência, à actuação conscientemente e contra o direito, do funcionário ou magistrado, o dolo eventual, embora a imputação subjectiva também possa revestir a forma de negligência grosseira - n.° 5. O acto de promoção, condução ou decisão em sede de inquérito, processo jurisdicional, de contraordenação ou disciplinar, só possui dignidade penal, integrando o crime de denegação de justiça ou prevaricação, quando, antes de mais, seja o fruto de uma vontade dirigida a falsear a justiça, do arbítrio e da ilegalidade, preordenada a um resultado contradizendo o direito instituído, comentam Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal, II, 1163".

E é essa "vontade dirigida a falsear a justiça", essa consciência de agir contra direito que, no caso em apreço, os indícios recolhidos não sustentam minimamente.

Estamos perante um entendimento jurisprudencial, criticável e discutível (como todos); os autos não evidenciam, porém, que tal entendimento viole de forma ostensiva, manifesta, qualquer disposição legal nem, muito menos, que o Exm° Desembargador ora arguido tenha agido com consciência dessa violação.

Afirma ainda o assistente, no seu requerimento de abertura de instrução, que com o despacho proferido em 14/7/2021 cometeu o arguido, também, um crime de abuso de poder, p.p. pelo art° 382° do Cod. Penal (No termo do articulado que elaborou, escreveu que "incorre o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, Dr. AA, no exercício das suas funções enquanto Magistrado Judicial em funções no Tribunal da Relação... em autoria material, concurso efectivo de crimes, com dolo e intencionalmente: 2 crimes de denegação de justiça e prevaricação, previstos e punidos pelos art.°s 14.°, n.°s 1,2, 3 e 4, 26.°, 66.° n.° 1 al. a), 67.°, 68.°, 369.°, n.°s 1, 2, 3, 4 e 386.°, n.°s 1 e 3 do Código Penal (pelos dois despachos datados de 14.07.2021 e 05.08.2021)”).

Como acima referimos, este tipo legal de crime pressupõe, quanto ao tipo subjectivo de ilícito, uma actuação dolosa, que supõe a consciência e vontade por parte do agente de exercer uma função pública abusando dos poderes, ou violando os deveres a ela inerentes, bem como o conhecimento do carácter ilegítimo da vantagem ou do prejuízo pretendidos e, para além disso, que o agente actue com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

Afírma-se no Ac. STJ de 23/1/2008, Proc. 07P4279, relatado pelo Cons. Henriques Gaspar:

"No crime de abuso de poder, que constitui um crime de função e, -por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.

Mas, com um elemento nuclear: o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.

Há, com efeito, tipos de crimes em que o tipo de ilícito é construído de tal forma que uma certa intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza.

A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertencendo ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo.

A intenção tipicamente requerida tem por objecto uma factualidade que não pertence ao tipo objectivo de ilícito.

Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe para além do dolo de tipo a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, "Direito Penal, Parte Geral", Tomo I, p. 329-330),

Nos delitos de intenção verificam-se elementos de atitude interna de agente, que são elementos subjectivos que caracterizam a vontade de acção, referidos à modalidade de acção, ao bem jurídico ou ao objecto da acção protegida pelo tipo; o autor persegue um resultado que tem em consideração para a realização do tipo, e deve querer causar com a sua própria conduta um resultado que vai para além do tipo objectivo (cfr. H. H. Jesheck e T. Weigend, "Derecho Penal", p. 341-342).

O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática,

A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às junções em que está investido (tenha aqui o significado que tiver) constitui o campo de delimitação da tipicidade. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função.

Mas, para além do tipo objectivo exige-se uma intenção específica, uma intenção que é tipicamente requerida, mas que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo -a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.

A integração do crime de abuso de poder, p. no artigo 382° do Código Penal, supõe, pois, por um lado, o preenchimento dos elementos do tipo objectivo (o mau uso ou uso desviante dos poderes da função), e, em conjugação, a verificação de uma intenção específica que está para além do tipo objectivo.

O preenchimento do tipo objectivo não se confunde, porém, com o erro de função ou com a prática de actos susceptíveis de revogação por uma instância de reapreciação, não sendo integrado, na inteira dimensão típica, sem a concorrência da atitude interna do agente que deve estar pressuposta como finalidade da acção.

Por isso, a verificação dos elementos do crime de abuso de poder não se situa num plano de instância alternativa de recurso ou reapreciação, mas tem de estar primeiramente dirigida à apreensão, por via de elementos externos, da atitude interna do agente que constitui a intenção específica.

Esta atitude interna, por seu lado, não pode ser lida sem o suporte de elementos externos e objectivos que a revelem e nos quais externamente se manifeste.

O contexto, como modo de interpretação da conjunção de elementos de ambiência, deve, aqui, revelar-se de particular importância.

A relação entre o agente, o resultado, e identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro constituem índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna.

Nesta perspectiva, porém, o recorrente não identifica elementos objectivos e externos que permitam revelar uma atitude interna do agente que possa traduzir a intenção específica de obter benefício próprio ou para terceiro ou de causação de prejuízo.

Desde logo, porque se não surpreendem erros de função, que para efeitos de preenchimento do tipo objectivo de abuso de poder não se confundem, como se salientou, com actos ou decisões susceptíveis de revogação, ou mesmo revogados nas instâncias próprias de reapreciação ou recurso.

 O recorrente, na motivação, centra a via de raciocínio e argumentação nos erros de procedimento ou de avaliação que, na sua perspectiva, existiriam nas decisões proferidas pela arguida.

Não é esta, porém, a aproximação típica - elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime por que o recorrente pretende a pronúncia da arguida.

No essencial, para afirmar a revelação externa da intenção específica, o recorrente limita-se a conjecturas (a arguida excluiu a publicidade de um acto «porque tinha interesse em que o seu comportamento processual não fosse controlado pelo recorrente, pelos jornalistas e pelo público em geral» por motivo de uma relação subjectiva - ponto 28 da motivação), sem suporte em qualquer facto, elemento ou circunstância em que se revele por si, ou que tenha sido deduzida ou revelada pela prova produzida.

As conjecturas do recorrente, meramente subjectivas e situadas apenas no nível dos processos de intenção, não podem valer como fundamento, que tem de ser factual objectivo e de modo a impor-se como id quod para integrar os elementos do crime que o recorrente refere.

E de todo o modo, como resulta da análise completa efectuada na decisão recorrida, a sequência de actos processuais praticados pela arguida, para além de constituírem actos e decisões aceitáveis e justificáveis na lei e na dinâmica própria da direcção do processo, não revelam nem expõem outro fim que não seja a condução do processo pela forma que nas circunstâncias parecia mais adequada" (subl. nosso).

Ora, no caso em apreço, que benefício - ilegítimo - pretenderia o arguido obter para si com a prolação do despacho de 14/7/2021 é algo que o assistente não descreve e, manifestamente, não resulta indiciado nos autos.

Entende o assistente, se bem o percebemos, que a intenção do arguido seria a de, comunicando o entendimento expresso naquele despacho ao Tribunal Constitucional, dessa forma tornar inúteis os recursos aí pendentes e que se prendiam com a eventual prescrição de alguns crimes por cuja autoria havia sido condenado. Isto é: a intenção seria a de causar prejuízo a terceiro, mais concretamente ao assistente.

Por um lado, tal comunicação é ordenada no despacho em causa, em satisfação de prévia promoção do M°P° nesse sentido.

Por outro lado, do despacho em causa não resulta minimamente indiciada tal intenção, quando é certo que nele se diz, bem distintamente e referindo-se aos requerimentos onde foi suscitada a prescrição e relativamente aos quais pendiam ainda recursos no TC, que "os referidos requerimentos continuam a ter efeito útil pois, caso algum venha a ser declarado procedente a final, isso continuaria a poder determinar a restituição do arguido à liberdade". E daí que, desde logo, se não mostrem minimamente indiciados os factos alegados nos art°s 53°, 66° a 68° do seu RAI.

Aqui chegados:

Analisando o contexto em que a decisão em causa foi proferida, haveremos que notar, desde logo, que o Exm° Desembargador ora arguido integrou o colectivo de juízes que, no Tribunal da Relação... dando parcial provimento ao recurso do ora assistente, reduziu a pena que lhe havia sido aplicada. O arguido não conhece o assistente, nunca com ele pessoalmente se relacionou, nunca com ele teve qualquer desavença ou desentendimento (o que, aliás, é referido pelo assistente nas declarações que prestou em sede de instrução).

Dito de outro modo: o assistente "não identifica elementos objectivos e externos que permitam revelar uma atitude interna do agente que possa traduzir a intenção específica de obter benefício próprio ou para terceiro ou de causação de prejuízo", sendo certo, também aqui, que as "conjecturas" do assistente são "meramente subjectivas e situadas apenas no nível dos processos de intenção, não podem valer como fundamento, que tem de ser factual, objectivo e de modo a impor-se como id quod para integrar os elementos do crime" que imputa.

E, portanto, não existem elementos factuais suficientes em ordem a imputar ao arguido a prática do crime de abuso de poder referido pelo assistente.

B) O despacho proferido pelo arguido em 5/8/2021:

No âmbito de um incidente de recusa contra si deduzido pelo ora assistente, o Exm° Desembargador ora arguido pronunciou-se sobre o mesmo, nos termos previstos no art° 45°, n° 3 do CPP, nos seguintes termos:

Os autos falam por si, quanto ao comportamento processual do arguido BB que, por requerimentos posteriores à decisão final proferida, recursos (ordinários - para o S.TJ e T.C - e extraordinários) e reclamações sucessivas, até hoje todas indeferidas, tem conseguido adiar a sua prisão de forma dilatória já por cerca de um ano e sete meses - atividade processual que vem sumariada no despacho de 14/7 (proferido nos autos principais). (...) Ora, mal andaria o Estado de Direito se também isto fosse permitido e suficiente, para afastar um Juiz da titularidade de uns Autos. 0 arguido discorda do despacho proferido e agora, mais uma vez, tudo faz para que não seja cumprida a decisão final nos mesmos, quanto a si já transitada há mais de um ano e seis meses.

De diferente, só o facto de a partir de 14/7, só o arguido assinar os seus requerimentos, uma vez que a sua advogada, Srª Drª GG, o deixou de fazer - embora o tipo de linguagem e discurso utilizados sejam os mesmos.

O que, em minha modesta opinião, contraria o disposto no artº 64º do CPP e, nomeadamente o seu nº 3. É que o acionar de um incidente de Recusa implica conhecimentos técnicos e objetividade, que o próprio arguido não consegue atingir, até por estar emocionalmente ligado à sua defesa - não podendo assim enquadrar-se nos meios de autodefesa referidos no artº 98º CPP ("exposições, memoriais e requerimentos). O requerimento apresentado contraria, pois, a obrigatoriedade de Defensor para o arguido poder participar em fases processuais dos autos e seus incidentes. (...)".

Entende o assistente que neste despacho, o arguido sustenta, mais uma vez, que o trânsito em julgado do acórdão da RELAÇÃO ... ocorreu em Janeiro de 2021 (e, daí, a referência à decisão transitada "há mais de um ano e seis meses") - de onde resultará a prática de novo crime de denegação de justiça e prevaricação.

Sobre o assunto, isto é, sobre o entendimento do Exm° Desembargador ora arguido sobre o momento do trânsito do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação... já nos pronunciámos na análise efectuada ao despacho de 14/7/2021, nada mais havendo a acrescentar, a não ser concluir como aí se concluiu: os autos não evidenciam que tal entendimento viole de forma ostensiva, manifesta, qualquer disposição legal nem, muito menos, que o Exm° Desembargador ora arguido tenha agido com consciência dessa violação.

Do mesmo modo, no que diz respeito ao crime de abuso de poder, aqui se dando por reproduzido tudo quanto a este propósito se escreveu, na análise ao despacho de 14/7/2021. E também aqui, portanto, se não descortina que benefício -ilegítimo - pretenderia o arguido obter para si com a prolação deste despacho, sendo certo que o assistente o não descreve e, manifestamente, não resulta indiciado nos autos. Como, de outro lado - e pelas razões invocadas na apreciação do despacho de 14/7/2021, que aqui se dão por reproduzidas - também nesta matéria o assistente "não identifica elementos objectivos e externos que permitam revelar uma atitude interna do agente que possa traduzir a intenção específica de obter benefício próprio ou para terceiro ou de causação de prejuízo", sendo certo que as "conjecturas" do assistente são "meramente subjectivas e situadas apenas no nível dos processos de intenção, não podem valer como fundamento, que tem de ser factual, objectivo e de modo a impor-se como id quod para integrar os elementos do crime" que imputa.

Entende, por fim, o assistente que no despacho proferido em 5/8/2021, o Exm° Desembargador ora arguido terá cometido um crime de falsificação de documento.

Se bem o entendemos, a prática de tal crime terá ocorrido por nele se ter feito constar "informações e factos juridicamente relevantes mas que não correspondiam a realidade, nomeadamente ao ter dito, no despacho, que o acórdão estava transitado há mais de um ano e seis meses e que a partir de 14/07 a advogada GG deixou de assinar requerimentos, passando só o BB a fazê-lo" (art° 70° da "peça acusatória" constante do RAI.

Quanto à questão da data do trânsito em julgado, pouco mais haverá a acrescentar: de um lado, porque está longe de se mostrar assente que o trânsito do acórdão da RELAÇÃO ... não tenha ocorrido na data referida nesse despacho; por outro, como supra referimos, o crime de falsificação de documento é um crime intencional, "exigindo-se que o agente actue com intenção de causar um prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo", como tal se entendendo "toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação"( Helena Moniz, "Comentário Conimbricense ...", 685). E também aqui e mais uma vez, não se descortina nem vêm elencados elementos objectivos e externos que permitam revelar uma atitude interna do agente reveladora da intenção específica de obter benefício próprio ou para terceiro ou de causar prejuízo ao ora assistente.

O mesmo se dirá, no que concerne ao elemento subjectivo do tipo, no que diz respeito à afirmação, constante nesse despacho, de que "de diferente, só o facto de a partir de 14/7, só o arguido assinar os seus requerimentos, uma vez que a sua advogada, Sra Dra GG, o deixou de fazer - embora o tipo de linguagem e discurso utilizado sejam os mesmos".

Quanto ao facto em si:

De um lado, sendo certo que em 21/7/2021 a ilustre mandatária do ora assistente subscreveu e dirigiu aos autos um requerimento, pedindo a "reforma" do despacho de 14/7/2021, certo é igualmente que o incidente de recusa entretanto suscitado e sobre o qual o Exm° Desembargador ora arguido se pronunciou no despacho de 5/8/2021 foi subscrito apenas pelo ora assistente, desacompanhado da sua ilustre mandatária; como o foram, aliás, a participação que dirigiu ao CSM e a queixa crime que entretanto formulou.

Do que deste último despacho resulta é a intenção, clara e expressa, de chamar a atenção do Supremo Tribunal de Justiça (onde o incidente de recusa se encontrava, para decisão) para esse facto, porquanto era entendimento do Exm° Desembargador que tal requerimento, por esse motivo, contrariava o disposto no art° 64° do CPP.

A questão não chegou a ser abordada no acórdão proferido neste STJ em 13/8/2021, no referido incidente de recusa, até porque a ilustre mandatária do ora assistente, em 10/8/2021, subscreveu e ratificou o requerimento que havia sido formulado pelo assistente.

Por fim, lendo e relendo a declaração em causa, não se descortina a relevância jurídica que o mesmo possa ter (art° 256°, n° 1, al. d) do Cod. Penal, expressamente invocado pelo assistente no seu RAI). Nem, em boa verdade, o assistente o indica. E, com efeito, aquela afirmação, aliás rematada com a expressão "embora o tipo de linguagem e discurso utilizados sejam os mesmos" (sugerindo, portanto, que se mantinha a mesma linha de actuação) não tem, que se veja, qualquer relevância jurídica, sendo manifestamente inócua e desprovida de efeito prático. E porque assim é, nunca tal declaração poderia traduzir-se na prática de um crime de falsificação de documento, como pretendido pelo assistente.

8. Em face do que se deixa exposto, é a seguinte a factualidade que se mostra indiciada e não indiciada:

Factos indiciariamente provados:

- O denunciante/assistente BB é arguido no processo n.° 1420/11...., que correu os seus termos na fase de recurso junto do Tribunal da Relação... vindo anteriormente do Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Central Criminal - Juiz .... (art° 1o RAI)

- Por acórdão do Tribunal da Relação ... proferido nos autos processuais referidos no ponto n.° 1 desta acusação, datado de 30 de Setembro de 2019, os Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Dr. FF e o aqui arguido Dr. AA deram provimento parcial ao recurso do assistente, reduzindo a pena de prisão para 8 (oito) anos de prisão. (art° 2o RAI)

- O Juiz Desembargador ... do processo era o Dr. FF, sendo o seu ... o Dr. AA. (art° 3o RAI)

- Alguns arguidos daqueles autos 1420/11...., incluindo o aqui assistente, suscitaram a nulidade do acórdão proferido em 30.09.2019 e em 13 de Janeiro de 2020 foi proferido novo acórdão, assinado pelo Dr. FF (...) e Dr. AA (...) mantendo-se o acórdão de 30.09.2019. (art° 4o RAI)

- O assistente, através do seu advogado de então, apresentou um recurso ao Supremo Tribunal de Justiça sobre o acórdão de 13.01.2020, recurso que viria a ser não admitido. Na sequência dessa não admissão, apresentou a competente reclamação ao abrigo do art.° 405.° do C.P.P. ao Supremo Tribunal de Justiça. (art° 5o RAI)

- Notificado da decisão do S.T.J. que indeferiu a reclamação, o arguido apresentou um recurso ao Tribunal Constitucional sobre a não admissão do recurso ordinário ao Supremo Tribunal de Justiça. (art° 7º RAI)

- BB solicitou, a 8 de Junho de 2020 junto do Tribunal da Relação ... a prescrição de alguns crimes de falsificação de documentos, requerimento que veio a ser indeferido por despacho de 19.06.2020. (art°s 9o - parte -10° - parte - e l2° RAI)

- O assistente, não concordando com o teor desse despacho, apresentou recurso ao Supremo Tribunal de Justiça e, paralelamente, um recurso ao Tribunal Constitucional no prazo de 10 dias, caso se viesse a entender que não cabia recurso ordinário ao S.T.J. e teria sim de se ter apresentado o recurso ao T.C. (art° 13° do RAI)

- O recurso apresentado ao S.T.J. não foi admitido e desse despacho foi apresentada Reclamação, ao abrigo do disposto no art.° 405.° do C.P.P. ao Supremo Tribunal de Justiça, que viria a ser indeferida e mantida a decisão de não admissão. (art°s 14° e 15° do RAI)

- O assistente apresentou então um recurso ao Tribunal Constitucional sobre esta decisão do S.T.J. em relação à não admissão de tal recurso ordinário (do despacho que indeferiu a invocação das prescrições), que veio a ser mantido (despacho de não admissão) pelo Tribunal Constitucional (art° 16° RAI).

-   O assistente, após a prolação do Acórdão do Tribunal Constitucional que manteve a não admissão do recurso junto do S.T.J., apresentou novo recurso, em 10 dias, junto do Tribunal da Relação... para o Tribunal Constitucional, sobre o referido despacho de 19.06.2020. (art° 17° RAI)

-   No despacho proferido em 11 de Setembro de 2020, o Sr. Juiz Desembargador Dr. FF fez constar o seguinte:

" apenas não se encontra definida a situação dos seguintes arguidos: - (2) HH, por estar pendente o recurso por ele interposto para o Tribunal Constitucional, visando o acórdão desta Relação de 30-09-2019, ainda não admitido, o que será feito após estabilização de todas as decisões de não admissão dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça do mesmo acórdão (cf. despacho de 05-06-2020, com a ref.a 6995589); - (9) BB, uma vez que ainda estão pendentes as reclamações contra os despachos de não admissão dos recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, relativos ao acórdão desta Relação de 30-09-2029 (apenso A) e ao despacho que indeferiu o requerimento de declaração de prescrição do procedimento criminal relativamente aos crimes de falsificação de documento (apenso K), bem como está pendente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional" (art° 18° RAI).

-  O teor deste despacho e dos outros, que se encontram juntos aos autos, eram todos do conhecimento do Exmos. Sr. Juiz Dr. AA, uma vez que passou a ser o juiz titular dos autos em 2021. (art° 19° RAI)

-    Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Dr. AA que nos Apensos M, N e O dos autos 1420/11...., por decisões proferidas em 09.09.2020 ficou decidido pelo anterior Juiz Titular dos autos, Dr. FF que, quanto ao ali arguido BB "considerando que ainda se encontram pendentes as reclamações dos despachos de não admissão de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça (apenso A), ainda não devolvido do STJ, e K), bem como o recurso para o Tribunal Constitucional apresentados pelo ora recorrente, razão pela qual em relação a ele ainda não transitou em julgado a decisão, não fazendo sentido nem devendo, a nosso ver, cindir a condenação pelos crimes não abrangidos por tais recursos." (art° 20° do RAI)

-  O recurso interposto ao Tribunal Constitucional sobre as prescrições dos crimes de falsificação foi admitido em 11 de Maio de 2021, já pelo Dr. Juiz AA, aqui arguido, recurso admitido com efeito suspensivo. (art° 21° RAI)

-  No decorrer do ano de 2021, o processo passou para a titularidade do Dr. AA. (art° 22° RAI)

-   No início do ano 2021, o assistente suscitou nova prescrição do procedimento criminal junto do Tribunal da Relação... e sobre este segundo pedido de prescrição recaiu novo despacho, onde ficou decidido que o poder jurisdicional do Tribunal da Relação sobre essa matéria estava esgotado. (art° 25° RAI) O assistente, não concordando com tal decisão, apresentou novo recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, recurso que veio a ser não admitido, apresentou a competente reclamação ao Sr. Presidente do S.T.J., que manteve a decisão de não admissão, e foi apresentado recurso ao Tribunal Constitucional (sobre a não admissão), que foi admitido, com subida imediata e de efeito suspensivo, datado de 16 de Março de 2021 e sobre o qual se aguardava decisão do Tribunal Constitucional. (art° 26° RAI)

-   Por despacho judicial datado de 21.06.2021, proferido pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador, este declarou o trânsito em julgado em relação ao arguido CC, e ordenou "2-arguido BB - ao MP" (art° 28° RAI).

-   O Ministério Público junto do Tribunal da Relação promoveu que fosse considerado que o trânsito em julgado teria ocorrido quanto ao arguido BB pelo menos em 7 de Setembro de 2020 (07.09.2020). (art° 30° do RAI)

-  O assistente respondeu, explicitando, entre o mais, que por despachos judiciais proferidos nos Apensos M, N e O, que são apensos que dizem respeito apenas ao BB, foi declarado judicialmente que em relação a este "não transitou em julgado a decisão", e que essas decisões são datadas de 09.09.2020. (art° 32° RAI)

-  O Ministério Público não interpôs nenhum recurso judicial, nem pedido de reforma ou reclamação de nenhum dos despachos proferidos em 9/9/2020. (art° 34° RAI)

-  Por despacho proferido em 14 de Julho de 2021, o arguido, Exmo. Sr. Dr. AA, veio a decidir que o acórdão estava transitado, em relação ao aqui assistente, com efeitos a 27 de Janeiro de 2020, aí fazendo constar, entre o mais, o seguinte:

"contrariamente ao que refere o arguido BB, no despacho de 9/9/2020 nunca se decidiu que o recurso quando ao arguido BB não tinha transitado"; "também não se disse que não havia decisão final transitada"; "deve entender-se que o acórdão sobre a decisão final transitou já em 27/1/2020 - tendo em conta a data da respectiva notificação e o prazo geral de 10 dias para qualquer nova arguição". (art° 36° RAI)

-  Mais ordenou nesse despacho de 14.07.2021 que fossem efectuadas as comunicações nos termos promovidos. (art° 37° RAI)

-   Na promoção de 30.06.2021 referiu o Sr. PGA que "com efeito, o trânsito em julgado faz cessar o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, começando a decorrer o prazo de prescrição da pena - Cf. Art.° 122° n.° 2 do Código Penal". (art° 40° RAI)

-  Após a prolação da decisão de 14.07.2021, o assistente suscitou - em 21/7/2021 - um pedido de reforma desse despacho, subscrito pela sua mandatária. (art°s 54° e 56° -parte - RAI)

-  O assistente apresentou um incidente de recusa contra o Dr. AA, participação disciplinar ao Conselho Superior da Magistratura e participação Criminal ao Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, onde relatou em cada uma das queixas e dos incidentes, os factos que estavam a ocorrer. (art° 55° RAI)

-  O Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, na pronúncia a que alude o art° 45°, n° 3 do CPP escreveu, entre o mais:

"(...) O arguido discorda do despacho proferido e agora, mais uma vez, tudo faz para que não seja cumprida a decisão final nos mesmos, quanto a si já transitada há mais de um ano e seis meses.

De diferente, só o facto de a partir de 14/7, só o arguido assinar os seus requerimentos, uma vez que a sua advogada, Sra Dra GG, o deixou de fazer - embora o tipo de linguagem e discurso utilizados sejam os mesmos". (art° 56° - parte - RAI)

- A mandatária do assistente, em 10/8/2021, subscreveu e ratificou o pedido de recusa por este formulado e após 5/8/2021 elaborou uma contra resposta ao S.T.J. sobre as informações proferidas pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador naquele incidente (art° 57° - parte - RAI).

-   O arguido Dr. AA é Juiz há mais de 30 anos (art° 72° RAI).

Factos indiciariamente não provados:

- Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que, tendo o assistente suscitado a prescrição dos crimes de falsificação de documentos na data de 08.06.2020, que mereceu despacho judicial de indeferimento em 19.06.2020, relativamente ao qual foi interposto recurso e já admitido com efeito suspensivo junto do Tribunal Constitucional desde 11 de Maio de 2021,com a declaração de trânsito em julgado do acórdão com efeitos a 27 de Janeiro de 2020, provocaria a inutilidade superveniente da apreciação daqueles recursos no Tribunal Constitucional. (art° 38° RAI)

-   Porque, se o acórdão estivesse transitado em julgado com efeitos a 27 de Janeiro de 2020, os pedidos de prescrição de falsificação e respectivos recursos, apresentados em data posterior a essa, ficariam totalmente sem efeito, uma vez que depois de transitada a condenação, deixa de se poder falar em prescrição de crimes e só se poderia vir a falar - o que não é o caso - de prescrição de penas. (art° 39° RAI)

-   Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, que, ao declarar então o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020, assim que o Tribunal Constitucional recebesse essa informação, os recursos em causa naquele Tribunal ficariam, desde logo, sem efeito, e o assistente teria que ser preso para cumprimento dos 8 anos de prisão, sem nunca mais poder discutir juridicamente as prescrições dos crimes de falsificação, não lhe dando hipótese de saber se os crimes estavam ou não prescritos por força de um juízo de inconstitucionalidade e que, em caso de prescrição, a pena única de 8 anos seria reformulada, podendo converter-se em pena de prisão suspensa na sua execução, atendendo ao elevado número de crimes prescritos e ao muito tempo percorrido após os factos com boa conduta do agente (juízo a efectuar no novo cúmulo jurídico em caso de prescrição dos crimes de falsificação de documentos). (art° 41° RAI)

-  Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, que, se em 08.06.2020 o acórdão não estava transitado em julgado, e de facto não estava, jamais poderia declarar, como declarou, o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020. (art° 42° RAI)

-   Assim, o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, ao ter declarado no despacho de 14.07.2021 o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020, mesmo depois da promoção do Ministério Público no sentido de que, a existir trânsito em julgado, a data nunca poderia ser anterior a 07.09.2020, e para além dos requerimentos e respostas do aqui assistente nesse sentido, agindo no exercício de funções, actuando de forma livre e consciente, sabendo que estava a decidir contrariamente ao direito e à verdade processual, mais sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei penal como crime, não se absteve e decidiu, ainda assim, decretar que o trânsito em julgado era com efeitos a 27.01.2020. (art° 43° RAI)

-   Mais sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que estava a decidir contrariamente a outros despachos judiciais proferidos anteriormente pelo Sr. Juiz Desembargador Dr. FF, para o que foi devidamente alertado pelo aqui assistente, e que entendeu ignorar na medida em que continuou a persistir na data do trânsito em julgado relativamente a este em 27.01.2020, com intenção de com tal declaração de trânsito nesta concreta data, os recursos sobre as prescrições dos crimes de falsificação de documentos poderem ficar sem efeito (inutilidade superveniente da lide), o que era seu propósito, pois se não fosse, nunca teria declarado como transitado em julgado com efeitos a 27.01.2020, bem sabendo que nessa data não estava transitado, nem estava transitado em data anterior a 08.06.2020. (art° 44° RAI)

-   Ainda assim, sabendo que não estava transitado na data de 08.06.2020, declarou, na decisão judicial por si proferida, assinada electronicamente e datada de 14.07.2021, que o trânsito em julgado quanto ao aqui assistente tinha efeitos a 27.01.2020, ordenando que tal fosse comunicado ao Tribunal Constitucional nos termos promovidos, bem sabendo que este Tribunal, assim que souber/soubesse que o trânsito em julgado era anterior ao pedido de declaração de prescrição dos crimes, iria originar uma inutilidade superveniente da lide, o que era seu propósito, de modo a prejudicar o conhecimento daquela questão e, em consequência, prejudicar o aqui assistente. (arr° 45° RAI)

-  O Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, a decidir de acordo com os ditames legais, face aos vários despachos proferidos nos autos, nunca poderia decretar o trânsito em julgado com data anterior ao trânsito em julgado do último acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional que decidiu não admitir o recurso interposto ao Supremo Tribunal de Justiça sobre a não admissão do recurso ordinário interposto sobre o acórdão datado de 13.01.2020. (art° 46° RAI)

-   O Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, sabia que, se o arguido suscitou a prescrição em 08.06.2020 e nessa data não estava transitado em julgado (que não estava), ao declarar o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020 estava a decidir contrariamente ao direito e à verdade processual, decisão que tomou e comunicou e a violar deveres inerentes às suas funções. (art. 47.° RAI)

-   Não podia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, desconhecer que as suas condutas eram e são proibidas e punidas por lei como crime e podia vir a ser responsabilizado criminalmente e até disciplinarmente. (art° 52° RAI)

-  O Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, agiu sempre de forma deliberada, intencional e consciente, no exercício de funções enquanto Juiz, sabendo que actuava contra o direito e a realização de justiça, violando deveres inerentes às suas funções, mais sabendo que estava a prejudicar a verdade dos autos, bem como estava a prejudicar o cidadão BB, na medida em que, iria provocar a inutilidade superveniente da lide nos recursos interpostos legitimamente sobre as prescrições, e que tais recursos ao Tribunal Constitucional eram um direito do assistente uma vez que, aquando da suscitação da prescrição de crimes, o acórdão final não estava transitado em julgado quanto a si. (art° 53° RAI)

-  O Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, por despacho judicial datado de 5 de Agosto de 2021, nos autos 1420/11...., como resposta no apenso de incidente ao Supremo Tribunal de Justiça, declarou aos Juízes Conselheiros factos inverídicos, e que o sabia serem, mas sabendo, e disso tendo consciência e intenção, que os Juízes Conselheiros iriam fazer boa fé nas informações e resposta por si prestadas, decidiu comunicar que a decisão quanto ao BB estava transitada há mais de um ano e seis meses e que o BB estava apresentar requerimentos sozinho, tendo a sua mandatária, deixado de o fazer. (art° 56° - parte -RAI)

-    O Exmo. Sr. Juiz Desembargador sabia que tais informações não correspondiam à verdade, na medida em que o acórdão não estava transitado em julgado com efeitos a 27.01.2020, ou seja, não estava transitado há mais de um ano e seis meses, como também sabia que não correspondia à verdade que a mandatária tivesse deixado de fazer requerimentos ou tivesse abandonado a defesa do aqui assistente (art° 57° -parte - RAI).

-    Porém, o arguido Dr. AA, de modo a perpetuar o que sabia estar errado, mas pretendendo dar aspecto de legalidade e de verdade, decidiu, consciente do que estava a fazer no exercício das suas funções de Magistrado Judicial, continuar a afirmar, nomeadamente através da emissão de decisões judiciais /respostas e informações, que o trânsito em julgado do BB era em data bem anterior a 08.06.2020, o que sabia ser falso, e ainda assim persistiu na sua conduta, sabendo que podia vir a ser responsabilizado criminalmente, o que ignorou. (art° 58° RAI)

-   Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que, nos despachos de 14.07.2021, 05.08.2021 estava a agir contra o direito e contra a realização da justiça, que estava a violar deveres inerentes às suas funções, que a sua conduta era proibida e punida criminalmente por lei, o que quis e conseguiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de provocar a inutilidade dos recursos sobre as prescrições dos crimes de falsificação devidamente suscitados pelo BB, quando sabia que nunca poderia declarar o trânsito em julgado da decisão com data anterior aos trânsitos em julgado do DD e EE, o que ignorou, e quis ignorar, mesmo depois de o arguido para isso ter alertado e o próprio M.P. ter promovido que, a existir trânsito, este ocorreria em 07.09.2020. (art° 66° RAI)

-   Sabia assim que, em consequência das suas condutas atrás descritas, prejudicava a realização da justiça e que prejudicava a obtenção de justiça reclamada pelo BB, o que quis e declarou nas decisões judiciais atrás referidas, agindo com dolo directo. (art° 67° RAI)

-   Sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, aqui arguido, que, nos termos do Estatuto dos Magistrado Judicial e nos termos da Constituição da República Portuguesa, ao proferir, como foi o caso, um qualquer despacho contrário à verdade processual e à lei, estava a agir contra o Direito e contra a realização de Justiça e contra os deveres inerentes às suas funções, contra os deveres que lhe estão incumbidos por força dos Estatutos da sua profissão, que agia também contra os princípios que norteiam a actividade da Magistratura, conforme previsto na Constituição da República Portuguesa, o que quis e conseguiu, de modo a descredibilizar também os actos processuais que o BB estava a praticar em defesa da legalidade democrática e reposição da verdade processual dentro dos auto processuais n.° 1420/11.... e seus apensos, como também no uso dos recursos e reclamações que a lei lhe confere enquanto arguido no âmbito de um processo criminal, assegurando todas as garantias de defesa previstas no Código Processo Penal, Constituição da República Portuguesa e até da Lei do Tribunal Constitucional. (art° 68° RAI)

-   Ao actuar da forma descrita o Exmo. Sr. Juiz Desembargador pôs em causa, de forma séria e grave, a credibilidade jurídica das decisões judiciais proferidas pelo Tribunal da Relação, do princípio da protecção da confiança jurídica que tem cobertura constitucional, na seriedade da Justiça, dos seus Tribunais e dos Magistrados e em que os cidadãos devem confiar. (art° 69° RAI)

-   Mais sabia o Exmo. Sr. Juiz Desembargador que, ao proferir o despacho de 5 de Agosto de 2021, já depois de ter tido conhecimento do incidente de recusa suscitado pelo aqui assistente, e de nesse incidente/requerimento estar anexada documentação judicial que impunha decisão diversa da que foi tomada em 14.07.2021, decidiu fazer constar falsamente de tal despacho informações e factos juridicamente relevantes mas que não correspondiam à realidade, nomeadamente ao ter dito, no despacho, que o acórdão estava transitado há mais de um ano e seis meses e que a partir de 14/07 a advogada GG deixou de assinar requerimentos, passando só o BB a fazê-lo. (art° 70° RAI)

-   Sabia o arguido Dr. AA que, ao inscrever este tipo de dizeres na informação que remeteu ao Supremo Tribunal de Justiça tornava aquele documento com conteúdo falso, por ser contrário à verdade, sabia que o Supremo Tribunal de Justiça ia fazer fé pública na credibilidade do mesmo, o que quis e conseguiu, sabendo que a sua conduta era e é proibida por lei como crime e ainda assim prosseguiu com as suas condutas, pondo em causa a confiança e a fé publica que todas as decisões, documentos ou informações judiciais têm que merecer à generalidade das pessoas e ao Estado, ao sector da justiça e a todos os operadores judiciários. (art° 71° RAI)

-  que o arguido, com 3 décadas de experiência profissional, tinha sabedoria e conhecimentos técnicos suficientes que lhe permitiam ter a certeza que não podia decidir declarar o trânsito em julgado com efeitos anteriores à data em que foi suscitada a prescrição do procedimento criminal (08.06.2020) uma vez que não estava transitado o acórdão final, sabia que ao decretar o trânsito em julgado com data anterior à data do trânsito dos arguidos DD e EE (06.07.2020) estava até a criar uma situação de desigualdade intraprocessual - além de ilegal -como também sabia fruto da sua longa experiência judicial que, ao conseguir decretar o trânsito em julgado com efeitos a 27.01.2020, em data muito anterior à solicitação das prescrições dos crimes, o Tribunal Constitucional viria mais tarde a decretar como sem efeito os recursos interpostos por ocorrer uma inutilidade superveniente da lide, sendo que para tal, bastaria comunicar ao Tribunal Constitucional, como decidiu no despacho de 14.07.2021, junto do Apenso X (apenso do recurso da prescrição dos crimes) que o trânsito do acórdão tinha efeitos a 27.01.2020. (art° 72° RAI)

- Ao longo da sua carreira profissional enquanto Juiz de Direito, integrou Colectivos de Juízes de processos complexos e mediáticos, tais como ..., ... e ... (factos que são do conhecimento público), o que lhe permitiu, entre muitos outros, ter um conhecimento profundo sobre questões técnico-jurídicas de pendências de recursos e datas trânsitos em julgado. (art° 73° RAI)

-  Ao ter decidido com o decidiu, sabia o arguido que incorria em responsabilidade criminal (art° 76° - parte - RAI).

A matéria constante dos art°s 6°, 8°, 9° (parte), 10° (parte), 11°, 23°, 24°, 27°, 29°, 31°, 33°, 35°, 48° a 51°, 74°, 75 e 76° (parte) do RAI, é conclusiva, irrelevante ou de direito, razão pela qual se lhe não responde.

A matéria constante dos art°s 59° a 65° diz respeito ao despacho proferido pelo Exm° Desembargador, ora arguido, em 6/8/2021, relativamente ao qual não foi efectuada qualquer investigação, porquanto não integrava qualquer das queixas apresentadas, o que - aliás - motivou o assistente a referir, na parte final do segmento do RAI referente aos factos imputados que "não se imputa o crime em relação ao despacho de 06.08.2021 uma vez que, de ambas as queixas apresentadas não foi levado esse facto à investigação", razão pela qual se não respondeu à mesma.

9. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 308.°, n° 1 do Código de Processo Penal, decido não pronunciar o arguido AA pela prática dos crimes imputados no requerimento de abertura de instrução (2 crimes de denegação de justiça e prevaricação, previstos e punidos pelos art.°s 14.°, n.°s 1, 2, 3 e 4, 26.°, 66.° n.° 1 al. a), 67.°, 68.°, 369.°, n.°s 1, 2, 3, 4 e 386.°, n.°s 1 e 3 do Código Penal, 2 crimes de abuso de poder, previstos e punidos pelos art.°s 14.°, 26.°, 66.°, 67.°, 68.°, 382.°, 386.°, n.°s 1, 2, 3 e 4 do Código Penal e 1 crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelos art.°s 14.°, 26.° e 255.°, 256.° n.°s 1 alínea d), 3 e 4 do Código Penal).

Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.

Notifique e DN.”


2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (arts 403.º e 412.º do CPP) a questão a decidir é a de saber se os factos a considerar como suficientemente indiciados, findo o inquérito e a instrução, tipificam os crimes do requerimento da abertura de instrução e se estes crimes são imputáveis à pessoa do arguido. Estão em causa dois crimes de denegação de justiça e prevaricação (art. 369.°, n.°s l, 2, 3, 4, do CP), dois crimes de abuso de poder (art. 382.º do CP) e um crime de falsificação de documentos (art. 256.° n.°s 1 a. d), 3 e 4 do CP).

Cumpre assim sindicar a decisão de não pronúncia, a pedido do recorrente e partindo da argumentação que desenvolve.

Duas notas iniciais se consignam: a primeira, é a de que, tratando-se de um recurso (de uma decisão de recurso), não cabe proceder de novo à (re)apreciação de todas as provas indiciárias que integram o inquérito e na instrução (no essencial, prova real: actos processuais praticados no processo em que o assistente é arguido e decisões ali proferidas), como se de uma nova decisão instrutória se tratasse, como se inexistisse uma anterior. Pois de acordo com o modelo de recurso-remédio consagrado do Código de Processo Penal, os recursos são sempre e só remédios jurídicos, que visam detectar e corrigir erros de julgamento e de decisão. Não são a repetição de fases anteriores do processo.

Não cumprindo assim, e ao que ora releva, proceder a uma reavaliação de todas as provas indiciárias, como se o colectivo que decide o recurso se devesse substituir ao Senhor Juiz de instrução, reavaliando as provas e proferindo a nova decisão instrutória, proceder-se-á a sindicância da não pronúncia, averiguando-se desde logo se, da observação desta resulta (ou não) que a decisão se justifica e fundamenta por si; concomitantemente, observar-se-á se resiste à impugnação dela efectuada pelo recorrente.

A segunda nota é a de que, detectando-se em recurso que a ambicionada decisão de pronúncia do arguido falece logo à luz de alguma das razões seguidas no despacho recorrido para não pronunciar, razão essa ali amplamente desenvolvida e sustentada com base nos indícios, então não cumpre proceder a uma reanálise total do processo, como se de um exercício académico se tratasse. A decisão judicial visa a resolução do caso prático, a sua fundamentação é a que justifica e serve a solução adoptada (de acordo com as soluções jurídicas que se perspectivaram à partida), e o recurso procede à análise da decisão recorrida sindicando-a ao nível da detecção do erro de decisão.

Procedendo, então, ao exame da decisão recorrida no confronto da impugnação feita pelo recorrente (e o contributo do Ministério Público no contraditório do recurso), exercendo o Supremo os poderes de cognição nos moldes definidos para o recurso-remédio, constata-se que a decisão de não pronúncia se afigura correcta, sustentando-se amplamente por si e resistindo, sem a mínima dificuldade, à impugnação do recorrente. O que se consigna.

E a decisão instrutória apresenta-se tão rigorosa, completa e exaustiva na avaliação das provas justificativas de todos os factos seleccionados como suficientemente indiciados e não indiciados, e no tratamento jurídico que estes mereceram, que a não pronúncia é efectivamente a solução que claramente se impõe. Por tanto, bastaria até proceder agora a uma adesão aos seus fundamentos, nos termos amplamente consentidos pelo art. 425.º n.º 5 do CPP (interpretado extensivamente de modo a abranger, não apenas a sentença absolutória, como a decisão instrutória de não pronúncia).

Assim, dispensa-se, em concreto, a repetição de toda a fundamentação desenvolvida na decisão recorrida, a qual se encontra transcrita em 2. e à qual se manifesta, para todos os efeitos, total adesão. No entanto, apesar da suficiência em concreto da decisão do recurso por simples remessa para os fundamentos da não pronúncia (art. 425.º n.º 5 do CPP) - atenta a fundamentação, de facto e de direito, desmerecedora do mínimo reparo e, logo, a evidência do bem fundado da decisão -, não deixa de se proceder ao alinhamento das razões nucleares que ditam o insucesso do recurso.

Estas razões situam-se na ausência de demonstração bastante dos factos que interessam aos tipos subjectivos de todos os crimes imputados ao arguido. E relativamente a um deles (abuso de poder) ainda relativamente a um elemento do tipo objectivo (a actuação contra o direito).

Tais factos ficaram efectivamente por demonstrar, e, apesar de toda a argumentação desenvolvida pelo recorrente, eles não se logram retirar do conjunto das provas indiciárias disponíveis e valoradas, tal como bem considerou o Senhor Conselheiro juiz de instrução.

Sem a demonstração dos factos que relevam para o tipo subjectivo, inexiste a realização do tipo de crime, e, logo, não é possível a imputação (subjectiva). Atente-se na posição do Supremo sobre a dimensão do ónus de especificação e a necessária demonstração factual do tipo subjectivo, designadamente no AFJ do STJ, n.º 1/2015 (DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27),  que fixou a jurisprudência seguinte: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”. Na fundamentação do acórdão, discorreu-se longamente sobre a imprescindibilidade processual e material da narração e demonstração de todos os factos que relevam para o “elemento subjectivo”, elemento que, como se sabe, nem sequer se esgota nos factos do dolo do tipo (no caso dos crimes dolosos).

Assim, da leitura da decisão instrutória constata-se que se consideraram como suficientemente indiciados muitos dos factos narrados no requerimento de abertura de instrução do assistente e que relevavam para a realização dos tipos objectivos dos crimes que imputou, o que não sucedeu com os factos que relevavam para a realização dos tipos subjectivos (de nenhum dos três tipos de crime imputados, falhando ainda um elemento do tipo objectivo no referente ao abuso de direito).

Estes factos foram considerados como não suficientemente indiciados. E na decorrência desta ausência de indiciação subjectiva, ou seja, na ausência da base factual que importava para o dolo, proferiu-se necessariamente a decisão de não pronúncia.

Como se considerou na decisão instrutória, a propósito da análise do tipo dos crimes em apreciação, e na parte que agora mais releva, o crime de denegação de justiça e prevaricação exige um comportamento contra o direito, (…) por parte de funcionário, conscientemente assumido”. O tipo subjectivo pressupõe o dolo nas modalidades de dolo directo ou o dolo necessário, não de dolo eventual (não estando aqui em causa a modalidade “negligência grosseira”).

O crime de abuso de poder, subjectivamente, exige a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, o mesmo preenche-se com o dolo. O que implica que ao saber e querer todos os elementos do tipo objectivo, acresce uma específica intenção ou elemento especializante.

O mesmo sucede, subjectivamente, com o tipo falsificação de documentos, que exige também um dolo específico, uma "intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo".

Ora, dos indícios (factos e decisões processuais) analisados não resultou factualmente demostrada a actuação contra o direito (elemento objectivo de um dos crimes), nem os factos que interessavam ao(s) dolo(s).

No que respeita a uma actuação contra o direito, recorde-se o punctum do despacho em crise, proferido a 14/07/2021 pelo Senhor Desembargador ora arguido e em que, referindo-se a um co-arguido do ora assistente, se explicitou: “(…) Assim, datando a última decisão sobre o recurso da decisão final de 13/1/2020 (desatendimento de nulidades e reclamações) e não sendo o mesmo susceptível de recurso ordinário, deve entender-se que o Acórdão sobre a decisão final transitou já em 27/1/2020 -tendo em conta a data da respetiva notificação e o prazo geral de 10 (dez) dias, para qualquer nova arguição.

O que determina se declare o trânsito da decisão final proferida nestes autos, também quanto ao arguido BB, sem prejuízo de se agir em conformidade caso algum dos dois requerimentos do arguido sobre prescrição vier a ser declarado procedente - «caso julgado condicional»”

Recorde-se também que, ao que ora releva, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação... em 30.09.2019, dera provimento parcial ao recurso do assistente, reduzindo a pena em que fora condenado para oito anos de prisão; que o assistente suscitou a nulidade do acórdão, tendo sido e foi proferido novo acórdão em 13.01.2020, mantendo o de 30.09.2019.

Recorde-se ainda a “resenha processual da actividade processual” desenvolvida pelo assistente naquele processo, tal como consta também do despacho em crise:

“Façamos, pois, uma breve resenha processual da actividade processual relativa a este arguido.

-   por Acórdão de 1ª instância de 13/12/2017, foi o arguido BB condenado na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- por Acórdão desta Relação de 30/9/2019, foi tal pena reduzida para 8 (oito) anos de prisão;

-   o arguido pretendeu recorrer para o STJ, recurso que não foi admitido, pelo que o arguido reclamou deste despacho, formando-se o apenso A, de Reclamação;

-  esta Reclamação foi indeferida por decisão de 18/3/20, tendo desta decisão o mesmo arguido interposto recurso para o TC, que não foi admitido por despacho de 2/7/20;

-   em 8/6/2020, logo antes deste despacho e do trânsito do Acórdão final, o arguido faz um primeiro requerimento invocando a prescrição do procedimento criminal neste Tribunal da Relação, quanto a alguns dos crimes cujas penas foram incluídas no cúmulo e, assim, na pena única;

-   entretanto, em 11/6/20 o arguido apresenta recurso do Acórdão final proferido para o Tribunal Constitucional;

-   em 19/6/20 é proferido despacho neste Tribunal da Relação em que, de entre o mais, não se admite o seu recurso para o Tribunal Constitucional e se indefere o requerimento de prescrição do procedimento criminal, quanto a alguns dos crimes;

-    em 23/6/20, o arguido BB interpõe recurso para o TC do despacho que lhe indeferiu a declaração de prescrição;

-    e, em 6/7/20, recorre também do mesmo despacho para o STJ;

-   por despacho de 13/7/20 proferido neste Tribunal, não foi admitido o recurso para o STJ do referido despacho que negou a prescrição e sobrestou-se na admissão do recurso para o TC, até que estabilizada a situação quanto à não admissão do recurso para o STJ;

- em 6/1/21, o mesmo arguido interpõe de novo recurso para o TC sobre a matéria da prescrição, alegando ter sido indeferida a reclamação pendente sobre a não admissão do recurso para o STJ;

-   em 27/1/21, apresenta novo requerimento sobre prescrição quanto a alguns dos crimes, que se entendeu apenas reproduzir o anterior;

-   por despacho de 15/2/21, não se conheceu do novo requerimento sobre prescrição do arguido, porquanto a essa matéria estar esgotado o poder jurisdicional do Tribunal; e quanto ao recurso para o TC sobre o 1º despacho de prescrição, mandou-se aguardar pela descida do apenso K de Reclamação;

-  em 21/2/21, logo o mesmo arguido interpõe recurso sobre este segundo despacho de prescrição para o TC;

-   e, em 23/2/21, apresenta recurso sobre a mesma temática, para o STJ;

-   por despacho de 26/2/21, não é admitido este recurso sobre o 2º despacho sobre prescrição, para o STJ; e mandou-se aperfeiçoar o recurso de 21/2, para o TC;

-   depois de aperfeiçoado este, por despacho de 5/3/21, sobrestou-se também na admissão deste recurso para o TC, uma vez que pendente reclamação do arguido quanto à não admissão do recurso para o STJ, apresentada em 1/3/21 e que deu lugar à criação do apenso V;

-   por despacho de 11/5/21, foi admitido o recurso sobre o 1º despacho de prescrição para o TC, uma vez que já remetido o apenso K de Reclamação, constando-se que foi indeferida a Reclamação sobre a não admissão de recurso, quanto ao primeiro despacho sobre prescrição.”

Reitera o recorrente que nunca poderia ter sido proferido pelo ora arguido o despacho de 14/07/2021, por traduzir uma actuação contra o direito e, além do mais, ir contra anteriores decisões sobre um não trânsito em julgado da condenação.

No referente à ausência de demonstração de uma actuação contra o direito, a pronúncia é claríssima na sua justificação.

Defende o assistente que “cabia ao Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da instrução, analisar o acerto ou desacerto das decisões que se encontram nos presentes autos e referidas na Acusação, uma vez que, para aferição de responsabilidade criminal torna-se necessário aferir essa legalidade ou ilegalidade”.

Sucede que o Senhor Conselheiro juiz de instrução procedeu a essa análise, embora não nos (errados) termos pretendidos pelo assistente, como se de um recurso daquelas decisões e naquele processo se tratasse. Agiu, sim, nos limites consentidos num inquérito e instrução como o presente. Ou seja, onde, relativamente às decisões em crise, cumpria apenas verificar se a solução jurídica seguida pelo Senhor Desembargador arguido beneficiava de cobertura legal, apresentando-se como uma solução jurídica possível.

Nenhum dos argumentos apresentados pelo assistente põe em causa a conclusão retirada a este propósito na não pronúncia.

Relativamente ao trânsito em julgado do acórdão da Relação que confirmou a condenação do assistente, fixando-lhe a pena em oito anos de prisão, a análise de todos os factos processuais ocorridos, do direito e da jurisprudência pertinentemente convocados, encontra-se na não pronúncia. Esta é exaustiva, está transcrita em 2. e a ela se aderiu já. Inexiste qualquer actuação contra direito na decisão que ordena a certificação do trânsito em julgado da condenação do assistente, nesta vertente.

Relativamente ao segundo argumento – de que tal decisão contrariaria decisão anterior proferida no processo em sentido contrário, pelo então Senhor Desembargador titular - como o Senhor Procurador-Geral Adjunto bem contrapõe na resposta ao recurso, o recorrente alude aqui a um “despacho proferido no quadro de um recurso de fixação de jurisprudência interposto pelo ora recorrente (o que deu origem ao apenso M do processo n.º 1420/11....), circunstância que, só por si, evidencia que a questão do não trânsito em julgado era tudo menos pacífica, como, aliás, se frisa na decisão recorrida. (…) Como aí se refere, a fls. 34/35, “este despacho foi proferido no âmbito de um recurso para fixação de jurisprudência que, por força do estatuído no art. 438.º, n.º 1, do CPP, deve ser interposto no prazo de 30 dias, contados sobre o trânsito em julgado do acórdão preferida em último lugar (acórdão recorrido). E se assim é, então o não trânsito do acórdão àquela data seria tudo menos pacífico: ao menos para quem interpôs o recurso, o acórdão estaria transitado (esse é um pressuposto de admissibilidade do mesmo)”.

E na continuação: “De outro lado, ao referir crimes abrangidos e não abrangidos pelos recursos interpostos para o STJ e para o TC (sobre cujos despachos de não admissão teriam sido interpostas as competentes reclamações), o Exm° Desembargador que proferiu esse despacho abre margem para dúvidas. Dúvidas que, aliás, se não existissem/ teriam determinado a não admissão - imediata - do recurso para fixação de jurisprudência, posto que não verificado um dos pressupostos formais previstos na lei (dedução nos 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido).”

Ou seja, a questão não se apresentava como definitiva e claramente resolvida no processo de molde a impedir uma apreciação. Não se tinha formado qualquer caso julgado formal quanto a ela, o próprio recorrente usara até de um meio processual (a interposição de recurso extraordinário) que pressupunha o trânsito em julgado da decisão e, logo, a aceitação da posição seguida no despacho que agora recrimina (e incrimina) ao arguido.

Como o Senhor Procurador-Geral Adjunto disse na resposta, “no mínimo, seria tudo menos incontroversa a questão do não trânsito em julgado da decisão condenatória proferida nesses autos. E é precisamente por assim ser que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, se justifica plenamente a invocação de entendimentos semelhantes ao defendido pelo senhor magistrado arguido naquela sua decisão.

Tal decisão não é inédita, no sentido de que consagra uma solução nunca antes vista, mostra-se amplamente fundamentada, e da sustentabilidade do entendimento que a enforma, dão-nos conta, desde logo, a posição do próprio Ministério Público nesse processo, como também a jurisprudência citada na decisão recorrida: o acórdão de 24/04/2012 do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 712/00.9JFLSB-U.L1-5 (dissipada a confusão instalada com a prolação pelo mesmo relator, no mesmo dia, em dois apensos do mesmo processo principal, de dois acórdãos), e o acórdão de 09/12/2021, este do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 441/18.8JDLSB.P1-C.S1 e a demais jurisprudência desse Alto Tribunal nele citada.

Tanto basta para que se conclua, como na decisão recorrida, que, de modo algum, a decisão de 14/07/2021 em análise se pode considerar como decisão contra direito.”

No referente à demonstração indiciária dos enunciados fácticos que interessam dolo (os factos internos, respeitantes à vida psíquica do agente), ela costuma provir dos juízos conclusivos retirados de determinadas interpretações de sentido dos factos externos e visíveis (os factos do tipo objectivo).

O julgador decide sobre a factualidade interna apreciando se o agente agiu internamente da forma como poderá ter revelado externamente. Reportando-se aos factos do tipo objectivo, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, os factos integrantes do dolo resultarão daqueles. Regras de racionalidade e de lógica, de experiência comum e de normalidade social, permitirão então atribuir um certo sentido ao comportamento, de afirmação ou de negação do dolo.

Mas o dolo nunca se presume, mesmo o genérico e em qualquer das modalidades do art. 14.º do CP. E assim sucede, mais impressivamente até, nos casos em que o tipo de ilícito exige um dolo específico, quando impõe determinados elementos para além do dolo (entendendo-se aqui este como dolo genérico), quando integra um elemento subjectivo especial.

No presente caso, dois dos tipos imputados exigem esse elemento subjectivo especial, que pressupõe a demonstração de determinados factos: a intenção de causação de prejuízo a outra pessoa ou ao Estado e/ou de uma intenção de obtenção de benefício ilegítimo, a falsificação; a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, o abuso de poder.

Para estes crimes se considerarem realizados nunca bastaria a prova do dolo genérico (o saber e querer todos os factos do tipo objectivo). E os elementos especiais do tipo subjectivo ficaram factualmente por demonstrar.

Com efeito, a prova indiciária nunca consentiria a transposição de uma dúvida (séria) sobre a intenção e a específica intenção do arguido. Dúvida essa que, no mínimo, se tem de considerar como definitivamente instalada, e em grau tal que sempre imporia que o arguido beneficiasse do princípio do in dubio pro reo.

A prova indiciária não permite, em concreto, concluir pela suficiência da demonstração dos factos relativos à intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado. Nada permite concluir por uma intenção do arguido assim direccionada.

Na verdade, este é outro dos equívocos em que incorre o recorrente, o de que existiria uma repartição do ónus de prova em processo penal. Senão, releiam-se as seguintes conclusões do recurso:

O Sr. Juiz Desembargador arguido nos autos não prestou declarações na Instrução, não prestou declarações no inquérito, pelo que não se pode concluir, na falta de declarações do mesmo, que nada tem contra o Assistente.

30.ª Das declarações do Assistente só se pode concluir que o assistente não tem nada pessoal contra o Exmo. Sr. Desembargador, mas não se pode concluir que as palavras do Assistente demonstrem, por si só, que este nada tem contra o BB.”

O arguido não prestou declarações, exercendo o direito previsto no art. 61.º, n.º 1, al. d), do CPP.

O princípio nemo tenetur se ipsum accusare reconhece a todo o acusado da prática de um crime o direito ao silêncio e a não produzir prova em seu desfavor. A Constituição portuguesa, contrariamente à de outros países (como Espanha, Brasil ou EUA), não contém uma consagração expressa do direito à não auto-incriminação ou do direito ao silêncio. Mas há unanimidade no entendimento de que o nemo tenetur configura um princípio constitucional implícito (ou não escrito). A sua origem encontra-se na alteração do modelo processual penal, do inquisitório para o acusatório (ver Augusto Silva Dias, Vânia Costa Ramos, O Direito à não inculpação no processo penal e contra-ordenacional português, 2009), da mutação da posição do arguido de objecto de prova para sujeito do processo, cruzando com a problemática do ónus da prova e da ausência da sua repartição no processo penal.

AA ocupa no processo a posição de arguido. E, como tal, beneficia da presunção de inocência até à condenação transitada em julgado, (art. 32.º, n.º 2 da CRP), direito fundamental reconhecido internacionalmente. Assim, recai sempre sobre o acusador o encargo de destruir a presunção de inocência, inexistindo uma repartição do ónus da prova em processo penal, e o in dubio pro reo impõe a valoração de um non liquet em matéria de prova sempre no sentido favorável ao arguido. Arguido a quem não competia, seguramente, fazer a prova de que nada tinha contra o assistente.

Por último, recorda-se que a instrução é uma fase tematicamente vinculada. Do que se trata no presente recurso, e como se situou de início, é de julgar do bem fundado da decisão de não pronúncia, nos termos e limites que se deixaram logo expostos. E a esta concreta decisão instrutória cumpria tão só decidir se o Ministério Público arquivara bem o inquérito, já que a fase de instrução visa sempre a comprovação judicial da decisão do Ministério Público findo o inquérito (no caso, a de arquivar o inquérito - art. 286.º, n.º 1, do CPP).

Assim, o Senhor Conselheiro juiz de instrução, no exercício do controlo judicial da decisão do Ministério Público, exerceu activamente os seus poderes de direcção da instrução de um modo irrepreensivelmente compatível com a estrutura acusatória do processo, a separação de poderes, a repartição de funções, e esgotou todo o objecto de conhecimento.

Através de uma análise rigorosa e minuciosa das provas indiciárias que lhe cumpria analisar, vistas à luz de um quadro legal acertadamente convocado e explicado na sua aplicação, delas retirou as conclusões de facto que se impunha, as quais, no quadro da impugnação do recorrente, continuam a revelar-se como acertadas.

Neste contexto, e mesmo considerando que estava em causa “não a formação de uma convicção para além de toda a dúvida razoável sobre a existência de um facto e de quem foi o seu agente, mas apenas um juízo de probabilidade, em prognose, sobre se as provas reunidas, se mantidas quando confrontadas na audiência, fazem ou não supor a probabilidade da condenação” (Henriques Gaspar, As exigências da investigação no processo penal durante a fase de instrução, in Que futuro para o direito processo penal, 2009, p. 101), conclui-se necessariamente que, na ausência de comprovação indiciária dos factos que relevavam para os tipos subjectivos de todos os crimes convocados (e ainda um facto do tipo objectivo, quanto a um deles), bem decidiu o Senhor Conselheiro juiz de instrução ao não pronunciar o arguido.


3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão instrutória de não pronúncia.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s – (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).


Lisboa, 21.09.2022

           

Ana Barata Brito, relatora

Pedro Branquinho Dias, adjunto

Teresa de Almeida, adjunta