Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1465
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: CONTRATO DE MANDATO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
NORMA IMPERATIVA
Nº do Documento: SJ200707050014656
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
A norma constante da alínea d) do art.1161º do Código Civil que estipula a obrigação do mandatário prestar contas do mandato ao mandante pode ser afastada por convenção entre as partes, não tendo, assim, natureza imperativa.
Decisão Texto Integral:

AA intentou acção especial de prestação de contas contra BB, pedindo que este apresentasse as contas em 30 dias, contas essas referentes ao mandato que a autora lhe conferiu, ou contestar a acção.
Alegou, como fundamento, em síntese, que outorgou ao R., em 6.6.02, uma procuração na qual conferiu poderes para vender a fracção predial, designada pela letra “V”, do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial da Amadora, sob o nº ....., seu bem próprio, que o réu vendeu pelo preço de € 132.680,24 que recebeu, e não lhe prestou contas do negócio realizado.
O réu contestou alegando, em resumo, aceitar a passagem da procuração em causa, ter o casal constituído pela autora e seu então marido, a partir de fins do ano de 2001 e começos de 2002, entrado num período de dificuldades económicas, tendo aquele casal contraído junto do réu uma dívida, proveniente da venda por este de um automóvel, acabando todos por acordar na venda do referido imóvel, tendo o réu procedido ao pagamento da importância acordada através do preço do veículo em dívida e da entrega de automóveis e de dinheiro à autora e marido, pelo que na emissão da procuração em causa foi consignado que o réu ficava dispensado de prestar contas.
Conclui não se verificar a existência da obrigação de prestar as contas pedidas, o que requer se conclua.
Respondeu a autora, alegando que a cláusula de dispensa de prestação de contas é nula por indeterminação do objecto e por ser ofensiva dos bons costumes e consubstanciar uma situação de manifesto locupletamento do réu à custa da autora, por aquele ter induzido em erro esta, dolosamente, ao fazer depender a boa execução do mandato de uma minuta que ele próprio redigiu e entregou à autora para copiar dizendo que devia ser assim como fora redigida porque ele trabalhava no ramo da compra e venda de imóveis há muitos anos e tinha experiência no assunto, não se apercebendo a autora, na altura, qual era o alcance de todas as declarações da mesma dado o ambiente ruidoso em que foi redigida, sobre o balcão de um cartório notarial cheio de gente, nem alguma vez receou segundas intenções do réu, porque este era amigo pessoal do seu marido. Se a autora quisesse atribuir à procuração o significado de uma “venda” dos seus direitos ao procurador, então teria declarado que a mesma era passada no interesse do mandatário, o que não aconteceu. Mais acrescentou que agora compreendia que o réu agiu em conluio com o seu marido de forma a locupletarem-se ambos à custa do seu património.
Em seguida a autora impugna o recebimento e a sua intervenção nos negócios do réu e do seu marido, quanto aos veículos e ao dinheiro referido como pago pelo réu.
Para apuramento da verificação da obrigação de prestar as custas, seguiu o processo a forma ordinária, nos termos do art. 1014º-A, nº 3, parte final do Cód. de Proc. Civil, e foi saneado o processo, organizada a matéria assente e a base instrutória, realizando-se audiência de discussão e julgamento, com decisão da matéria de facto, sendo proferida sentença que concluiu existir a obrigação do réu de prestar contas.
Inconformado com esta decisão apelou o réu, tendo a Relação de Lisboa julgado improcedente este recurso.
Mais uma vez inconformado, veio o réu interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado as conclusões seguintes:
I: O Douto Acórdão recorrido viola o preceituado no nº 3 do artº 1.014º-A, porquanto, tendo o R. contestado a obrigação de prestar contas, tal matéria tinha que ser apreciada previamente, e, só depois de se decidir da procedência ou improcedência de tal excepção, é que se poderia passar - se tal fosse o caso - à apreciação de contas.

II: As contas já foram apreciadas, conforme consta do Despacho Saneador e da Resposta aos Quesitos (pois apreciando-se a existência ou inexistência dos actos representativos de pagamentos, inerentemente apreciam-se os pagamentos a eles inerentes) pelo que se encontraria desprovida de qualquer nexo a decisão constante da Sentença e que ordena que o R. preste as contas que já foram prestadas e apreciadas pelo Tribunal.

III: Tendo sido elaborado Despacho Saneador, Audiência de Discussão e Julgamento e proferida uma Sentença com o teor de “O R. preste contas”, forçosamente seguir-se-ão novo Despacho Saneador, nova Audiência de Julgamento e nova Sentença, o que viola o disposto nos artigos 510º nº 1, 658º e seguintes, e 513º e seguintes, todos do C.P.C.

IV: Só existe o dever de prestar contas quando o mandatário administra bens do mandante, e, no caso em apreço, a procuração destinou-se a consubstanciar um negócio entre mandante e mandatário, autorizando o mandatário a vender a fracção autónoma, a quem, pelo preço, e condições que o mandatário entendesse por convenientes, recebendo o preço, e dele dando quitação, podendo ser ele, mandatário o adquirente, e dispensando-o de prestar contas de tal venda.

V: A prestação de contas não é devida pois a procuração conferida pela mandante ao mandatário não foi considerada nula, nem ferida de vícios de vontade – tanto assim é que não se considerou nula a venda efectuada mediante o uso de tal procuração.

VI: A procuração contém a clausula de “dispensa de prestação de contas”, pelo que esta declaração unilateral da mandante tornou-se “perfeita” com a recepção , e uso da mesma, pelo mandatário, e não tendo a mesma sido revogada, tem que ser considerada válida, quer por consubstanciar a formalização de um negócio, quer como uma remissão de dívida, quer por ser uma quitação, quer mesmo por ser uma doação – termos em que o Douto Acórdão recorrido viola o preceituado nos artigos 123º, 217º, artº 219º, 224º nº1, nº 1 do artº 787º, 863º e 940º todos do C.C..

VII: O Douto Acórdão recorrido viola o disposto no artº 262º do C.C., dado que a procuração é um acto unilateral, sendo permitidas todas as estipulações que o mandante entender por convenientes, não se tratando, “in casu” de um mandato, segundo a definição contida no artº 1.157º do C.C., dado que o ora Apelante não se obrigou, perante a mandante, a praticar quaisquer actos.

Nestes termos, e nos demais de Direito, e sempre com o mui Douto Suprimento de V. Exas., deve dar-se provimento ao presente recurso, em conformidade com as presentes alegações, decidindo-se que o Recorrente não tem que prestar contas e, bem assim, considerando-se nulo tudo o processado nos autos que correram os seus termos na 1ª Instância, a partir do Despacho Saneador, inclusivé, revogando-se, assim, o Douto Acórdão recorrido. Assim se fazendo, JUSTIÇA !

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, a que se referirão todas as disposições a citar sem indicação de origem - , o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Das conclusões do aqui recorrente se vê que este, para conhecer neste recurso, levanta as seguintes questões:

A) Tendo o réu na sua contestação impugnado a obrigação de prestar as contas pedidas, não podiam estas serem apreciadas como foram, sem que antes se decidisse sobre a verificação da referida obrigação ?
B) A decisão da 1ª instância viola o disposto nos arts. 510º, nº 1, 513º e 658º, porque permite dois despachos saneadores, duas audiências de julgamento e duas sentenças num mesmo processo.
C) O réu não tem a obrigação de prestar contas em face da cláusula inserida na procuração passada pela autora em que dispensou o réu de as prestar, cláusula essa que não é nula, nem ferida de vícios de vontade ?
D) A procuração em causa, sendo um acto unilateral, não reveste a natureza contratual de um mandato definido no art. 1157º do Cód. Civil?

Mas antes vejamos os factos que as instâncias deram como provados e que são os seguintes:
1. Pela apresentação n° ..de 20/04/89 encontrava-se inscrito a favor da AA o direito de propriedade sobre a fracção autónoma “V” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n° .....
2. A A . casou com CC em 02/05/97, sem convenção antenupcial.
3. A A . adquiriu a fracção referida em data anterior à da celebração do casamento com CC.
4. Por documento denominado de "Contrato-Promessa de Compra e Venda", datado de 17/05/02, no qual constam como primeiro outorgante a A, autorizada pelo marido, e segundos outorgantes BB casado com DD, a primeira declarou que ". . .promete vender aos segundos outorgantes e estes prometem comprar àqueles, livre de quaisquer ónus ou encargos...", a fracção autónoma identificada no ponto 1 (A), pelo preço de € 127.692,26, constando da cláusula 5ª que a escritura de compra e venda do contrato prometido deveria "ter lugar no prazo máximo de 90 dias (noventa dias) contados da data da assinatura do presente contrato".
Este documento encontra-se assinado pela A., por CC, BB e DD, tendo as assinaturas sido objecto de reconhecimento presencial.
5. Por documento datado de 06/06/02 a AA constitui seu procurador o R. BB conferindo-lhe "...todos os necessários poderes para em meu nome, primeiro rescindir o contrato de promessa com eficácia real celebrado por escritura pública de 4 de Junho de 2002 (. . .). Segundo vender a quem entender, podendo ele ser o comprador pelo preço e demais cláusulas e condições que entender convenientes a minha referida fracção autónoma acima descrita, podendo o mandatário receber o preço e dar quitação, com dispensa de prestação de contas. . .", constando desse documento a declaração subscrita por CC do seguinte teor: "Declaro que autorizo a minha mulher AA para a prática dos actos contidos na presente procuração".
A letra e assinatura da A. e de CC foram presencialmente reconhecidas pelo Notário.
6. Na escritura pública denominada de "Rescisão de Contrato", datada de 12/06/02, lavrada no 10° Cartório Notarial de Sintra, outorgada pelo R, na qualidade de procurador da A - mediante utilização da procuração referida no ponto 5 (E)) -, e por DD, separada judicialmente de pessoas e bens daquele, declararam que: ". . . por escritura de 4/6/2002, foi outorgado contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, sem tradição do bem, em que foram contraentes a representada AA como promitente-vendedora e a segunda outorgante DD como promitente-compradora tal promessa respeitava à fracção autónoma designada pela letra "V"correspondente ao 5° andar do prédio urbano descrito na 2a Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n° ... e inscrito na matriz sob o artigo 397 . ..
. . .Pela presente escritura, nas qualidades em que outorgam, a representada AA com o consentimento do cônjuge e a segunda outorgante DD rescindem aquele contrato promessa..." (F)).
7. Por escritura pública datada de 12/06/02, lavrada no 1 ° Cartório Notarial de Sintra, o R, na qualidade de procurador da A, com consentimento do cônjuge, vendeu pelo preço de € 132.680,24, que declarou já ter recebido, a referida fracção à sociedade "EE, LDA, , representada por FF e GG, na qualidade de gerentes.
8. O R recebeu a quantia de € 132.680,24 referente ao preço pelo qual vendeu a fracção à Sociedade "EE, LDA." (H»).
9. O R. ainda não prestou contas à A. relativamente à actividade desenvolvida no uso dos poderes conferidos pela procuração datada de 06/06/02, à "Rescisão de contrato", referida no ponto 6 (F) e à venda da fracção, pelo preço de € 132.680,24, referida no ponto 8 (H»).
10. Por documento datado de 28/05/02 a A. AA constitui seu procurador o . BB conferindo-lhe ", , .todos os necessários poderes para em meu nome vender a quem entender, podendo ele ser o comprador pelo preço, demais cláusulas e condições que entender, a minha fracção autónoma sita na Praceta do Comércio, n° ..- ..°- e, Urbanização da Quinta ......., Alfragide, na Amadora, inscrita na matriz predial sob o artigo 397 e descrita na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n° ...-V (.o,) podendo o mandatário receber o preço, dar quitação, com dispensa de prestação de contas, assinar contratos de promessa de compra venda com ou sem eficácia real ( , . . ), assinar a respectiva escritura de contrato promessa com eficácia real e de Compra e venda, nos termos e cláusulas e condições que tive por convenientes, . .", constando desse documento a declaração subscrita por CC do seguinte teor: "Declaro que autorizo a minha mulher AA para a prática dos actos contidos na presente procuração".
A letra e assinatura da A e de CC foram presencialmente reconhecidas pelo Notário," (J).
11. Por escritura pública denominada de "Promessa de Venda com Eficácia Real", datada de 04/06/02, outorgada pelo R. na qualidade de procurador da A. e mediante utilização de procuração outorgada por esta - referida no ponto 10 e na qualidade de segundo outo DD - casada com o réu, mas separada judicialmente de pessoas e bens, por sentença de 08/03/02 e transitada em 18/03/02- , foi declarado que "dão forma legal ao contrato-promessa de compra e venda, com eficácia real que ajustaram celebrar, nos seguintes termos:
1° A representada do primeiro outorgante, AA é dona e legítima proprietária da fracção autónoma "V" (.. .) do prédio (. . .) descrito na 2a Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n° .......
2° Que a representada do primeiro outorgante promete vender e a segunda outorgante promete comprar àquela, a identificada fracção autónoma livre de quaisquer ónus ou encargos...
4° O preço da prometida venda é de € 127.692,26 e que será pago em duas prestações, a saber:
a) Uma, de € 77.812,47, como sinal e princípio de pagamento, quantia que a promitente vendedora recebe nesta data e do que confere a respectiva quitação;
b) A segunda e última, de € 49.879,79, será paga no acto da celebração da escritura definitiva de compra e venda.
5° A escritura pública de compra e venda será celebrada no prazo máximo de 90 dias, a contar de hoje e será marcada pela segunda outorgante que deverá avisar, por carta registada com aviso de recepção, a promitente-vendedora, do dia, hora e cartório notarial onde será celebrada, com dez dias de antecedência.
7° Que à presente promessa de compra e venda os outorgantes ( . . . ) atribuem eficácia real, nos termos previstos no artigo 413° do Código Civil..." (L )».
12. A A e marido incumbiram o R de proceder à venda da referida fracção "V" (M )».
13. O marido da A, no fim de 2001 e início de 2002, debatia-se com dificuldades económicos nos seus negócios (2°).
14. O R subscreveu e entregou ao marido da A um cheque de € 7.480,00 (Esc. 1.500.000$00), datado de 27/05/02 (28°).
15. A A. acompanhada do seu marido e do R. deslocaram-se, em 28/05/02, ao 1° Cartório Notarial de Sintra, onde aquela manuscreveu e assinou a procuração referida no ponto 10 (J» (30°).
16. O R. subscreveu o cheque sacado sobre o Finibanco, à ordem da A, cuja cópia está junta a fls. 52 (31 O).
17. Este cheque é datado de 29/05/02 (32°).
18. O R. emitiu o cheque sacado sobre o Finibanco, à ordem da A, cuja cópia está junta a fls. 53 a 54 (33°).
19. Entretanto o R. conseguiu comprador para a fracção que se propusera vender, propriedade da A e referida no ponto 1 (A» (34°).
20. Para proceder a esta venda o R. já não tinha procuração da A. porque a que lhe havia sido passada, em Sintra, - ponto 10 (J) - , fora utilizada para proceder à outorga do contrato promessa com eficácia real, referido no ponto 11 (L) (35°).
21. Desta feita o R. abordou a A. para esta lhe passar uma nova procuração (36°).
22. Ao que esta aquiesceu de imediato outorgando a procuração referida no ponto 5 (E) (37°).
23. O R emitiu o cheque sacado sobre o Finibanco, à ordem da A, cuja cópia está junta a fls. 61 (38°).
24. A A. é alheia aos negócios referentes aos veículos entre o R e o marido daquela, designadamente para pagamento de parte do preço devido pela venda da fracção (50°).
25. A A. não recebeu do R o cheque n° .......... do Finibanco, nem este foi depositado na sua conta (51°).
26. A assinatura aposta no verso do cheque cuja cópia consta dos autos a fls. 47 não é da A. (52°).
27. A A. divorciou-se de CC por sentença transitada em julgado em 15.4.05.

Vejamos agora cada uma das concretas questões acima elencadas como objecto deste recurso.
A) Nesta primeira questão pretende o recorrente que a decisão tomada foi processualmente errada por ter apreciado as contas prestadas sem antes ter decidido da questão prévia sobre a existência ou não da obrigação de prestar contas.
Temos certa dificuldade em entender esta pretensão por o recorrente defender que foi já conhecida a questão da apreciação das contas.
Ora a decisão que está aqui em causa limita-se à matéria de existir ou não a obrigação de prestar contas e não qualquer apreciação sobre as mesmas contas apresentadas, até porque ao contrário do que diz o recorrente, as contas ainda não foram apresentadas, pois o recorrente na sua contestação alega não existir aquela obrigação e fundamenta a alegação dessa não existência, por as contas entre autora e réu referente aos vários negócios havidos em conjunto estarem já saldadas, como descreve em pormenor.
Assim, a decisão da 1ª instância limita-se a sentenciar que o réu está obrigado a prestar contas – cfr. fls. 245.
Por seu lado, o douto acórdão em recurso limita-se a manter a decisão apelada.
Daí que se não verifique a violação de qualquer norma processual.
Por isso, improcede esta pretensão.

B) Nesta segunda questão defende o recorrente que a decisão da 1ª instância violou os arts. 510º, nº 1, 513º e 658º por ter permitido haver dois despachos saneadores, dois julgamentos e duas sentenças na presente acção.
Não se vê onde está a alegada violação e a natureza anómala da situação processual decorre do disposto nos arts. 1014º-A, nº 3, parte final e 1017º, nº 1.
Com efeito, a referida anormalidade às regras gerais processuais dos artigos 510º, nº 1, 513º e 658º citados decorre da forma especial que o Código de Processo Civil instituiu para esta forma processual especial – arts. 1014º-A , nº 3, parte final e 1017º, nº 1 citados -, sendo a sua observância imposição da lei especial que naturalmente derroga as normas gerais.
Assim se não verifica a alegada violação de regra processual, com o que soçobra este fundamento do recurso.

C) Nesta terceira questão defende o recorrente que inexiste a obrigação de prestar contas, por ter a autora dispensado o réu das mesmas na referida procuração que passou ao réu e a que se refere a obrigação de as prestar peticionada.
Mais refere o recorrente que a citada cláusula não é nula e nem está ferida de vícios de vontade.
Aqui já entramos no cerne da questão substantiva.
A presente acção tem por objecto a prestação de contas que a autora pede ao réu, baseada numa procuração que lhe passou em 6-06-2002 e na qual lhe conferiu poderes de representação para a venda de um imóvel do património próprio da autora, prédio esse que o réu vendeu com base na mesma procuração.
O réu aceitando a existência da procuração e da venda subsequente, defende-se, em resumo, dizendo que na procuração a autora o dispensou de prestar as contas. Para explicar a razão desta cláusula, o réu alegou a verificação de uma série de negócios entre ele, por um lado, e a autora e seu então marido, por outro, pelos quais foi pago àquele casal o montante acordado para o mesmo imóvel.
A douta sentença da 1ª instância em face da existência provada de uma série de negócios entre o réu, por um lado, e a autora e/ou seu marido, por outro, em que o alegado pagamento de parte ou da totalidade do valor do imóvel se provou apenas em relação ao marido da ré, mas não a esta, decidiu laconicamente ser a cláusula de dispensa de prestação de contas nula, nos termos do art. 294º do Cód. Civil, por a obrigação de as prestar fixada no art. 1161º d, al. d) do Cód. Civil constituir norma imperativa.
Esta decisão foi implicitamente confirmada pela Relação, dado que na apelação foi, de novo, levantada a mesma questão jurídica.
O art. 1161º mencionado está integrado na regulamentação do contrato de mandato.
O mesmo artigo refere-se às obrigações do mandatário e prescreve: “ O mandatário é obrigado:
a) A praticar os actos compreendido no mandato, segundo as instruções do mandante;
b) A prestar as informações que este lhe peça, relativas ao estado da gestão;
c) A comunicar ao mandante, com prontidão, a execução do mandato, ou, se o não tiver executado, a razão por que assim procedeu;
d) A prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir;
e) A entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato.”
Percorrendo a jurisprudência deste Supremo Tribunal não encontramos qualquer decisão onde o referido problema jurídico tenha sido tratado.
Também procuramos na doutrina o tratamento desta questão e apenas encontramos um comentário ao art. 1339º do Cód. Civil de 1867 - que tinha a redacção semelhante ao da citada alínea d) pois prescrevia: “ O mandatário é obrigado a dar contas exactas da sua gerência” -, comentário esse da autoria de Cunha Gonçalves no seu Tratado de Direito Civil, vol. VII, pág. 452 onde refere “…o mandante pode dispensar o mandatário da obrigação de prestar contas, dispensa que pode resultar das circunstâncias…”.
Parece-nos acertada esta opinião.
Com efeito, não descortinamos quaisquer interesses indisponíveis que estejam na base da disposição da referida al. d) que a tornem imperativa e como tal insusceptível de ser derrogada por convenção acordada entre as partes.
Estamos aqui perante a esfera meramente contratual onde o princípio da liberdade negocial tem a sua mais vasta aplicação, nos termos do art. 405º do Cód. Civil, salvo estando em causa princípios conformadores de interesse e ordem pública.
Por outro lado, as circunstâncias que poderão estar por trás de uma cláusula daquele tipo podem ser plenamente merecedoras de protecção jurídica.
A situação de facto alegada pelo réu – que, no entanto, se não provou integralmente – é de molde a fazer crer na razoabilidade da admissão da cláusula.
Com efeito, o que o réu alegou foi que sendo, além do mais, mediador de imóvel – art. 13º da contestação – e perante as necessidades prementes por parte da autora e do seu marido em obter dinheiro e a disponibilidade da autora em proceder à venda do seu imóvel, as partes acordaram no respectivo preço e em face da demora natural na venda em causa, o réu foi adiantando o respectivo preço acordado e como garantia recebeu a procuração com a dispensa de prestação de contas, a fim de o réu proceder à mesma venda com o tempo necessário e receber o dinheiro que, porém, já antecipara à autora.
Com esta ou outra análoga fundamentação, parece-nos ser de considerar que as partes têm interesse razoável na validade daquela cláusula.
De qualquer modo, não vemos, como dissemos já, quais os interesses indisponíveis que estejam na base daquela disposição legal que a torne imperativa, restringindo o princípio da liberdade contratual mencionado, e que arraste consequentemente a nulidade da cláusula em causa.
E como reforço desta argumentação, citaremos o acórdão deste Supremo Tribunal de 26-01-2206, proferido no recurso nº 2602/05 que, para uma situação equivalente, consistente na norma do art. 31º do Dec.-Lei nº 231/81 de 28/07 que prevê igual obrigação de prestação de contas para o contrato de consórcio e de associação em participação, considerou que a obrigação de prestar contas podia ser afastada por convenção entre as partes.
E a mesma doutrina fora já afirmada em assento deste Supremo de 2-02-88, publicado no D.R., I série de 15/03/88 que considerou que pela regulamentação do contrato da conta em participação constante dos arts. 224º a 229º do Cód. Comercial, o associante é obrigado a prestar contas aos associados, salvo havendo convenção em contrário.
Procede, desta forma, este fundamento do recurso.
Porém, perante este meio de defesa do réu, a autora respondeu com a arguição da nulidade da mesma cláusula com base noutros fundamentos de nulidade que perante a tomada de posição de ser a norma da al. d) mencionada imperativa, não obtiveram apreciação.
Nos termos do art. 715º, nº 2, aplicável por força do disposto no art. 726º, há que conhecer agora destas questões.
Ouvidas as partes sobre esta matéria, nos termos do art. 715º, nº 3, apenas o réu se pronunciou no sentido de improcederem os demais fundamentos alegados no sentido da invalidade da mencionada cláusula.
Constam estes fundamentos da alegação constante da resposta de fls. 71 e 72 dos autos.
Apesar de tais fundamentos não poderem ser considerados provados, por o réu não ter tido outro articulado admissível para os impugnar – arts. 502º, nº 1, 505º e 490º, a contrario - , poderão ser aqui conhecidos por serem insuficientes para a procedência da nulidade, pelo que quer se provassem quer não, sempre improcederia a consequência jurídica que deles a autora pretende: nulidade da cláusula.
Segundo aquela alegação, a primeira questão levantada consiste em a cláusula em causa ser nula por indeterminação do seu objecto, por na altura da elaboração da mesma cláusula ainda não tinham ocorrido a maior parte dos factos alegados na presente acção.
Ora a cláusula em causa está inserida numa procuração passada pelo documento de fls. 10 e segs., datado de 06/06/02 no qual a A. constitui seu procurador o R. conferindo-lhe "...todos os necessários poderes para em meu nome, primeiro rescindir o contrato de promessa com eficácia real celebrado por escritura pública de 4 de Junho de 2002 (. . .). Segundo vender a quem entender, podendo ele ser o comprador pelo preço e demais cláusulas e condições que entender convenientes a minha referida fracção autónoma acima descrita, podendo o mandatário receber o preço e dar quitação, com dispensa de prestação de contas. . .", constando desse documento a declaração subscrita por CC do seguinte teor: "Declaro que autorizo a minha mulher AA para a prática dos actos contidos na presente procuração".
A letra e assinatura da A. e de CC foram presencialmente reconhecidas pelo Notário.
O art. 280º nº 1 do Cód. Civil estipula que é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja (...) indeterminável.
Ora o objecto da cláusula em causa está perfeitamente determinada, por versar a dispensa da prestação de contas decorrentes da execução da procuração ali conferida que também tem conteúdo perfeitamente determinado, ou seja, a venda de um imóvel da autora devidamente identificado.
Logo, a referida cláusula não é nula por este fundamento.
O segundo fundamento alegado pela autora consiste em a mesma cláusula ser nula por ofensiva dos bons costumes e consubstanciar uma situação de manifesto locupletamento do réu à custa da autora.
Esta alegação não contem qualquer outro fundamento fáctico de onde se pudesse descortinar a referida violação dos bons costumes.
O mencionado art. 280º, no seu nº 2 estipula que é nulo o negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bens costumes.
Esta ofensa consiste, essencialmente, em o objecto do negócio jurídico conter actos imorais, quer em si mesmo quer por repugnar à consciência moral apenas pelo nexo que se cria entre eles e a prestação da outra parte – cfr. A. Varela e P. de Lima, em anotação ao referido dispositivo no seu Cód. Civil, anotado.
Ora dado a natureza conclusiva da referida alegação, que não se deduz de outros factos alegados ou provados, não é possível concluir pela verificação da previsão legal.
Improcede, assim, também este fundamento da nulidade da cláusula em causa.
A autora ainda alega que ao inscrever a referida cláusula o réu a induziu em erro, dolosamente, ao fazer depender a boa execução do mandato de uma minuta que ele próprio redigiu e entregou à autora para copiar, tendo o réu dito nessa ocasião à autora que a procuração assim devia ser redigida porque ele já trabalhava no ramo da compra e venda de imóveis há muitos anos e tinha experiência do assunto. Mais alegou que se não apercebeu na altura qual era o alcance de todas as declarações constantes da procuração, dada a extensão da mesma e o ambiente ruidoso em que foi redigida, sobre o balcão de um cartório notarial cheio de gente, e nem alguma vez receou segundas intenções, porque o réu era amigo pessoal do seu marido.
Mais alegou que se tivesse querido atribuir à procuração o significado de uma “venda” dos seus direitos ao procurador, então teria declarado que a mesma era passada no interesse do mandatário, o que não aconteceu.
Finalmente ainda alegou a autora que agora compreende que o réu agiu em conluio com o seu marido de forma a locupletarem-se ambos à custa do seu património.
Desta alegação um pouco desordenada de factos resulta apontar-se para verificação das seguintes figuras jurídicas:
- Erro na declaração previsto no art. 247º do Cód. Civil;
- Erro sobre os motivos previsto no art. 252º do mesmo código;
- Dolo previsto no art. 253º do mesmo diploma legal.
Para a procedência da verificação do erro na declaração ou o erro sobre os motivos haveria que ter sido alegado que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro, o que não se verificou.
De igual modo, o art. 252º citado exige para a relevância deste tipo de erro que as partes hajam reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo sobre que versa o erro, o que também não foi alegado.
Finalmente, o dolo, como vício da vontade, previsto no art. 253º mencionado e no art. 254º do mesmo diploma legal exige o emprego de qualquer sugestão ou artifício com intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, ou quando tenha lugar a dissimulação, pelo declaratário ou por terceiro, do erro do declarante.
São assim requisitos desta figura jurídica: a) que o declarante esteja em erro; b) que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro; c) que o declaratário ou terceiro haja recorrido, para o efeito, a qualquer artíficio, sugestão, embuste, etc. – cfr. A.Varela e P. de Lima, em anotação ao art. 253º do seu Cód. Civil.
Ora dos factos materiais alegados pela autora – afastada a matéria de direito ou conclusiva com os mesmos alegada -, resulta que a ré escriturou e assinou uma procuração com base numa minuta que o réu redigira e lhe fornecera, contendo cláusulas de que a autora se não apercebeu o conteúdo – devido à extensão da mesma e ao ambiente de ruído em que fora escrita por estar ao balcão de um cartório notarial, cheio de gente -, sendo uma a cláusula aqui em apreço cujo conteúdo a autora não queria.
Desta factualidade resulta que a autora agiu em erro, provocado pelo seu pouco cuidado ao redigir – ou copiar – uma minuta de procuração em ambiente que lhe não permitiu a ponderação do conteúdo daquela minuta, não tendo sido alegado, porém, que tenha sido o réu que escolheu aquele ambiente para a induzir em erro ou que o seu erro tenha sido determinado pelo réu, servindo-se este de algum artifício, sugestão ou embuste, pois nada se alegou sobre o conhecimento do réu da vontade da autora em não querer o referido conteúdo da cláusula em causa.
Por isso, falece nos factos alegados o preenchimento dos requisitos de que depende a verificação do dolo, acima referidos.
Desta forma, inútil seria o prosseguimento do processo para alargar a matéria de facto àquela alegação da autora.

D) Finalmente resta a apreciação da questão de a cláusula em causa estar inserida numa procuração que é um acto unilateral e não integrada num contrato de mandato.
Esta questão só tinha interesse para o caso de se confirmar ser a cláusula em causa nula por violação do disposto no art. 1161º, al d) do Cód. Civil.
Porém, como acima decidimos que tal cláusula é válida em face da citada al. d), fica sem interesse apreciar esta questão, pois a validade da referida cláusula tanto se afirma sendo a mesma integrada num negócio unilateral como a procuração, como num contrato de mandato.
A confusão entre contrato de mandato e procuração vem de antes da entrada em vigor do Código Civil de 1966, conforme se pode ver exaustivamente na interessante obra de Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, denominada “ A Procuração Irrevogável “, editada pela Almedina, que vamos seguir de perto, na exposição que vamos efectuar.
Na mesma obra, é feita referência à clarividente opinião de Ferrer Correia que, além de fazer a distinção, faz uma identificação das razões que conduziram à confusão das duas figuras e expõe o modo como foi operada a distinção.
Assim sendo, hoje já não há dúvidas de que procuração e mandato são negócios jurídicos diferentes, sendo a primeira um negócio unilateral e o segundo um contrato.
A procuração limita-se a outorgar poderes de representação, enquanto o contrato de mandato, como negócio bilateral que é, não tem a ver com a referida outorga de poderes de representação, mas antes com a constituição da obrigação de alguém praticar determinados actos jurídicos por conta de outrem.
A procuração é um negócio incompleto, no dizer de Oliveira Ascenção – in Direito Civil, vol. II, pág. 273 -, querendo com a mesma exprimir a ideia de que, em princípio, a procuração encontra-se sempre integrada num negócio global, não operando de um modo independente. A mesma funciona em conjunto com uma relação jurídica que lhe está subjacente, tendo o próprio Código Civil, no seu art. 265º, nº 1, previsto a existência da relação subjacente, nomeadamente quando liga a subsistência da procuração à relação que lhe serve de base, ou quando no art. 264º nº 4 regula o recurso pelo procurador a auxiliares.
Pela procuração, o dominus outorga poderes de representação, em consequência do que os actos praticados pelo procurador no exercício desses poderes produzem efeitos jurídicos directamente na esfera daquele dominus. Apesar disso, da procuração não resulta nenhuma obrigação de o procurador exercer esses poderes e nem resulta, normalmente, qualquer indicação sobre como os deverá exercer.
No caso dos autos, a autora alega a existência de um contrato de mandato de que a procuração constitui o meio de execução.
Por seu lado, o réu aceitando a procuração, alega que a mesma é o meio de concretização de um complexo processo negocial que foi acordado entre o réu, por um lado, e a autora e seu então marido, por outro.
Os factos provados embora não sejam concludentes num ou noutro dos sentidos, apontam, porém, de alguma maneira, no sentido da verificação do contrato de mandato – cfr. facto provado sob o nº 12 acima descrito.
No entanto, quer o negócio unilateral de procuração tenha como substrato o referido contrato de mandato ou qualquer outro negócio ou acto jurídico, a consequência jurídica é sempre a mesma, da inexistência da obrigação de prestar as contas.

Pelo exposto, concede-se a revista pedida e se revoga o douto acórdão recorrido, julgado-se não existir a obrigação do réu prestar as contas aqui peticionadas.
Custas nas instâncias e na revista pela autora.

Lisboa, 5 de Julho de 2007.

João Moreira Camilo ( Relator )
António da Fonseca Ramos
Fernando Azevedo Ramos.