Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
889/21.0T8EVR.E1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL
Sumário :

I- À luz da decisão do TJUE de 16 de fevereiro de 2023, no processo C-675/21, sendo a atividade de segurança privada uma atividade que repousa fundamentalmente sobre a mão de obra, inexiste transmissão de estabelecimento quando uma empresa deixa de prestar serviços de vigilância e segurança junto de determinado cliente, na sequência de adjudicação (por este) de tais serviços a outra empresa, sem que para esta tenha transitado daquela qualquer trabalhador ou quaisquer outros recursos, competências ou instrumentos organizatórios, suscetíveis de consubstanciar uma “unidade económica”;

II- Para efeitos da transmissão de empresa ou estabelecimento regulada no artigo 285.º, do CT, apenas releva a “unidade económica” que para o adquirente seja transferida por parte do transmitente.

III- Justifica-se a intervenção deste Supremo Tribunal, com o escopo de contribuir para uma melhor aplicação do direito, quando uma questão jurídica suscitou elevada litigiosidade, adotando a jurisprudência critérios divergentes para a sua solução, em especial quando os fundamentos decisórios acolhidos no acórdão recorrido divergem, nos seus aspetos nucleares, dos do Tribunal de Justiça da União Europeia e da jurisprudência estabilizada do STJ.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 889/21.0T8EVR.E1.S2 (revista excecional)


MBM/ RP/JG


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA demandou STRONG CHARON – Soluções de Segurança, S.A., e ESPECIAL 1 – Segurança Privada, S.A., pedindo:


a) Que seja declarado transmitido ou não transmitido, pela 1.ª Ré à 2.ª Ré, o contrato individual de trabalho celebrado pelo Autor, que exerceu as funções de vigilante na Herdade ..., sob as ordens e direção da 1.ª Ré, até 01.01.2021;


b) Que seja declarada a ilicitude do despedimento do Autor, com a consequente reintegração do mesmo nos quadros da 1.ª Ré ou da 2.ª Ré, ou, subsidiariamente, no pagamento de uma indemnização em valor não inferior a € 16.730,00;


c) Que a 1.ª ou a 2.ª Ré sejam condenadas a pagar ao Autor as retribuições que deixou de auferir desde Janeiro de 2021 até ao trânsito em julgado da presente ação, proporcionais de subsídio de Natal de 2021, proporcionais de férias e proporcionais de subsídio de férias;


d) Que a 1.ª ou a 2.ª Ré sejam condenadas a pagar ao Autor a quantia de € 1.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais;


e) Bem como juros de mora vencidos e vincendos, sobre todas as quantias peticionadas.


2. Na 1ª instância, a ação foi julgada parcialmente procedente, tendo sido decidido, nomeadamente; a) declarar que a posição de empregador no contrato de trabalho em causa se transmitiu da 1ª para a 2ª R.; b) absolver a 1.ª R. do pedido.


3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Évora (TRE) confirmou a decisão recorrida.


4. A 2ª R. veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a), b) e c), do CPC.


5. A. 1ª R. contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade da revista.


6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso.


7. Está em causa a questão de saber se o recurso de revista excecional deve ser admitido.


E decidindo.


II.


8. Com relevância para a decisão do recurso de revista, foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:


1. A 1.ª Ré Strong Charon e a 2.ª Ré Especial 1 são sociedades comerciais que se dedicam à prestação de serviços de segurança privada.


[…]


4. Em Junho de 2018, na sequência de um processo de fusão, o Autor foi integrado pela 1.ª Ré Strong Charon como seu trabalhador, mantendo todos os direitos regalias e demais características e condições emergentes do escrito de contrato de trabalho acima referenciado.


5. […] [A] 1.ª Ré Strong Charon e a sociedade P..., S.A. acordaram na prestação de serviços de vigilância por parte da primeira […].


6. Os serviços acordados consistiam em assegurar durante 24 horas por dia quatro vigilantes, em regime de turnos rotativos e alternados, nas instalações da Herdade ... […].


7. Desde data não concretamente apurada […] e até 31 de Dezembro de 2020, exerceram as suas funções de vigilantes, por conta, sob as ordens e autoridade da 1.ª Ré Strong Charon, nas instalações da Herdade ...: (i) o Autor AA, (ii) BB (iii) CC e (iv) DD.


[…]


9. Desde data não posterior a 1 de Janeiro de 2020, os serviços acima descritos passaram a ser supervisionados diretamente pelo responsável do cliente EE, o qual transmitia aos vigilantes da 1.ª Ré algumas instruções de serviço a ser realizado nas referidas instalações.


10. Para o exercício das referidas funções, os vigilantes acima identificados utilizavam um conjunto de chaves das instalações, pertencentes à cliente P..., S.A.


11. Para além do conjunto de chaves acima referido, os vigilantes utilizavam, no exercício das referidas funções, fardas, registos de relatório, uma lanterna, um sistema de rondas e pistola de picagem, que pertenciam à 1.ª Ré Strong Charon e que continham o modelo e imagem identificativos da mesma.


12. Os vigilantes acima identificados utilizavam também, no exercício das respetivas funções, uma secretária e uma cadeira, que os próprios levaram para as instalações em causa.


13. Por carta datada de 17 de Novembro de 2020, enviada pela P..., S.A. à 1.ª Ré Strong Charon, e por esta recebida, a primeira comunica à mesma que:


«(…)


A P..., S.A. vem, pela presente, informar V. Exas. da sua intenção de fazer cessar a prestação de serviços de vigilância e segurança privada.


Assim, informamos V. Exas. que deverão cessar a prestação de serviços de vigilância e segurança privada em 31 de Dezembro de 2020».


14. Por carta datada de 11 de Dezembro de 2020, enviada pela 1.ª Ré Strong Charon ao Autor, e por este recebida, a primeira comunicou ao mesmo que:


«(…)


V. Ex.ª foi devidamente informado que os serviços de vigilância prestados pela STRONG CHARON, SOLUÇÕES DE SEGURANÇA, S.A. nas instalações do cliente, foram adjudicados à Empresa de Segurança Especial 1, Segurança Privada SA, com efeito a partir do dia 1 de Janeiro de 2021.


Assim, e a partir dessa data, a C... será a entidade patronal de V. Ex.ª, conforme resulta do disposto nos art.º 285.º a 287.º do Código do Trabalho, que regulam a transmissão de empresa ou estabelecimento.


(…)».


[…]


20. Em 28 de Dezembro de 2020, na sequência de um contacto telefónico realizado pelo Autor à 2.ª Ré Especial 1, os responsáveis desta última informaram o mesmo de que não iria ocorrer qualquer transmissão de estabelecimento e que o mesmo continuava a ser trabalhador da 1.ª Ré Strong Charon.


[…]


24. A partir das 20h00m do dia 31 de Dezembro de 2020, a 2.ª Ré Especial 1 passou a prestar os referidos serviços de vigilância nas instalações da Herdade ....


25. Os serviços prestados pela 2.ª Ré Especial 1 nas instalações da Herdade ..., a partir da data e hora acima referidas, coincidem com os serviços até então prestados pela 1.ª Ré Strong Charon à referida sociedade e melhor discriminados no ponto 6., tendo a mesma ao seu serviço 4 vigilantes no referido local, igualmente organizados em regime de turnos rotativos e alternados, 24 horas por dia.


26. Nem a 1.ª Ré Strong Charon nem a 2ª Ré Especial 1 aceitaram o Autor e os demais vigilantes identificados em 7. como seus trabalhadores, a partir das 20h00m do dia 31 de Dezembro de 2020.


[…]


28. A partir das 20h00m do dia 31 de Dezembro de 2020, passaram a exercer funções de vigilantes nas instalações da Herdade ..., por conta e sob as ordens e direcção da 2.ª Ré Especial 1 os trabalhadores FF, GG, HH e II.


[…]


30. A 2.ª Ré Especial 1 não utiliza, nos serviços por si prestados na Herdade ..., fardas, impressos, bastões de ronda, alvarás ou licenças da 1.ª Ré Strong Charon.


31. Os trabalhadores da 2.ª Ré Especial 1 que exercem funções nas instalações na Herdade ... utilizam fardas e registos de relatórios fornecidas pela 2.ª Ré, com o modelo e imagem identificativos da mesma.


32. Além dos equipamentos acima referidos, os trabalhadores da 2.ª Ré Especial 1 utilizam igualmente, no âmbito das respetivas funções, o conjunto de chaves das instalações da Herdade ... acima referenciado, bem como uma secretária, cadeira, lanterna e sistema de registo de rondas/picagens próprios, tendo como local de trabalho a portaria referida em 8.


33. A 2.ª Ré Especial 1 tem métodos de trabalho próprios, códigos de conduta próprios, normas de serviço próprias e procedimentos internos próprios, diversos dos da 1.ª Ré Strong Charon.


34. A 2.ª Ré Especial 1 organizou a afetação dos seus vigilantes, elaborou mapas de horário de trabalho, planeamento de férias e substituição de trabalhadores tendo em vista o início da prestação de serviços de vigilância nas instalações do hotel Herdade ....


35. A 1.ª Ré Strong Charon não entregou à 2.ª Ré Especial 1 alvarás, licenças ou peças de uniforme para o exercício da actividade, nem quaisquer informações sobre as instalações da Herdade ....


[…]


III.


9. Em face do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, proferido a 16 de fevereiro de 2023, processo n.º C-675/21, “Strong Charon – Soluções de Segurança, SA”, contra “2..., SA, FL, impõe-se concluir no sentido da admissibilidade da revista, desde logo ao abrigo da alínea a) do sobredito art. 672º, com prejuízo da apreciação dos demais fundamentos invocados pela recorrente. Com efeito, sendo manifesta a especial relevância jurídica da questão em apreço, também é patente que a decisão recorrida se encontra desalinhada com aquela jurisprudência do Tribunal de Justiça, bem como com a orientação jurisprudencial que na matéria em causa vem sendo perfilhada por este Supremo Tribunal.


10. Como se ponderou em termos concludentes no Ac. de 08.03.2023, Proc. n.º 2442/20.6T8PRT.P1.S2, desta Secção Social:


“Não se ignora que a questão tem sido controvertida na jurisprudência portuguesa mais recente, incidindo, aliás, em grande medida sobre a transmissão de unidade económica entre empresas de segurança.


Mas uma decisão recente do Tribunal de Justiça, na sequência, aliás, de um reenvio prejudicial efetuado por este Tribunal, veio esclarecer a situação […].


Com efeito, no Acórdão proferido a 16 de fevereiro de 2023, processo n.º C-675/21, Strong Charon – Soluções de Segurança SA contra 2..., SA, FL, o Tribunal de Justiça, depois de destacar que a atividade de segurança deste tipo é uma atividade que repousa essencialmente sobre a mão-de-obra, afirmou que a identidade da entidade económica não pode nestes casos manter-se se o essencial dos efetivos, em número e competências, não foi retomado pelo novo prestador do serviço de vigilância (números 53 e 58 do Acórdão).


[…].”


Consequentemente, vem esta Secção Social julgando uniformemente: sendo a atividade de segurança privada uma atividade que repousa fundamentalmente sobre a mão de obra, inexiste transmissão de estabelecimento quando uma empresa deixa de prestar serviços de vigilância e segurança junto de determinado cliente, na sequência de adjudicação (por este) de tais serviços a outra empresa, sem que para esta tenha transitado daquela qualquer trabalhador ou quaisquer outros recursos, competências ou instrumentos organizatórios, suscetíveis de consubstanciar uma “unidade económica”; e, conexamente, que para efeitos da transmissão de empresa ou estabelecimento regulada no artigo 285.º, do CT, apenas releva a “unidade económica” que para o adquirente seja transferida por parte do transmitente (v.g. os Acs. de 13.09.2023, Proc. n.º 11821/21.0T8LSB.L1.S1 e Proc. n.º 1150/20.2T8EVR.E1.S1) .


11. In casu, também uma empresa (a 1ª R.) deixou de prestar serviços de vigilância e segurança junto de determinado cliente, na sequência de adjudicação, por este, de tais serviços de vigilância a outra empresa (a 2ª R., ora recorrente), sem que se tivesse verificado a assunção de qualquer trabalhador da anterior empresa e tão pouco qualquer transferência de bens ou equipamentos de prossecução da atividade suscetível de consubstanciar uma “unidade económica” do estabelecimento.


Justifica-se a intervenção deste Supremo Tribunal, com o escopo de contribuir para uma melhor aplicação do direito, quando uma questão jurídica suscitou elevada litigiosidade, adotando a jurisprudência critérios divergentes para a sua solução (Acs. do STJ de 15.02.2023, Proc. n.º 545/20.6T8PNF.P1.S2, e de 01.06.2023, Proc. nº 1150/20.2T8EVR.E1.S2, ambos desta 4ª Secção), em especial quando os fundamentos decisórios acolhidos no acórdão recorrido divergem, nos seus aspetos nucleares, dos do Tribunal de Justiça da União Europeia e da jurisprudência estabilizada do STJ, como manifestamente ocorre no caso em apreço.


IV.


12. Nestes termos, acorda-se em admitir a recurso de revista excecional em apreço.


Custas pela parte vencida a final.


Lisboa, 13 de dezembro de 2023


Mário Belo Morgado (Relator)


Ramalho Pinto


Júlio Manuel Vieira Gomes