Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.1.
O Tribunal Colectivo do 4º Juízo da Póvoa do Varzim (proc. n.º 381/03.4 GAPVZ) condenou o arguido AMF na pena de 40 dias de multa à taxa diária de 5 €, como autor de 1 crime de ofensas à integridade física simples do art. 143º nº 1 do C. Penal; na pena de 3 anos de prisão, como autor de 1 crime de ofensas à integridade física grave do art. 144º al. d) do C. Penal; na pena de 15 anos de prisão, como autor de 1 crime de homicídio qualificado dos art.ºs 131º e 132º n.ºs 1 e 2 als d) e g) do C. Penal; na pena de 180 dias de multa a 5 euros por dia, como autor de 1 crime de detenção de arma de defesa do art. 6º n.º 1 da Lei n.º 22/97 de 27 de Junho, na redacção dada pela Lei n.º 98/01 de 25 de Agosto; e na pena de 40 dias de multa a 5 euros por dia, como autor de 1 crime de detenção ilegal de arma proibida do art. 275º n.ºs 1 de 3 do C Penal.
Em cúmulo jurídico foi condenado na pena unitária de 16 anos de prisão e 230 dias de multa a 5 € por dia.
Em relação aos pedidos cíveis deduzidos, foi o arguido condenado a pagar:
Á ofendida MMFF, o valor global de € 18 033.60; à viúva: JJF, casada que foi com a vítima - JLBF, o montante de € 11.0000; a JFF, o montante de € 8.000; a MAMGF, o valor de € 8.000; ao Centro Hospitalar Póvoa de Varzim/Vila do Conde, os serviços de assistência médica que prestou à ofendida - MMFF, no valor de € 96.00; ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social, durante o tempo em que esteve incapacitada para exercer a sua actividade profissional (1 de Setembro de 2003 e 26 de Fevereiro de 2004), o montante de € 1556,70; e ainda aos mesmos requerentes (do pedido de indemnização cível), os respectivos juros de mora vencidos desde a notificação para contestar o pedido de indemnização e vincendos até integral pagamento, à taxa anual de 4%, absolvendo o mesmo arguido do demais pedido de indemnização cível formulado pelos requerentes.
1.3.
Inconformados recorreram para a Relação do Porto (proc. n.º 633/05): o arguido, o Ministério Publico e ainda os assistentes (relativamente à parte cível).
Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 11.5.2005, decidiu julgar improcedentes os recursos interpostos quer pelo arguido quer pelo Ministério Público e em consequência manter o acórdão recorrido na parte criminal e julgar parcialmente procedente o recurso dos demandantes cíveis, mantendo as demais indemnizações fixadas no acórdão recorrido. Assim, condenou o arguido a pagar:
Á ofendida MMFF, o valor global de € 21.783, 60; à viúva: JJF, casada que foi com a vítima - JLBF, o montante de € 14.750; a JFF, o montante de € 11.750; a MAMGF, o valor de € 11.750; ao Centro Hospitalar Póvoa de Varzim/Vila do Conde, os serviços de assistência médica que prestou à ofendida - MMFF, no valor de € 96.00; ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social, durante o tempo em que esteve incapacitada para exercer a sua actividade profissional (1 de Setembro de 2003 e 26 de Fevereiro de 2004), o montante de € 1556,70; e ainda aos mesmos requerentes (do pedido de indemnização cível), os respectivos juros de mora vencidos desde a notificação para contestar o pedido de indemnização e vincendos até integral pagamento, à taxa anual de 4%, absolvendo o mesmo arguido do demais pedido de indemnização cível formulado pelos requerentes.
1.3.
Ainda inconformado, recorre para este Tribunal o arguido, que requereu alegações escritas (fls. 287), suscitando as seguintes questões:
- Qualificação jurídica: homicídio simples ou qualificado;
- Medida concreta da pena.
Respondeu detalhadamente o Ministério Público junto da Relação, que se pronunciou pelo improvimento do recurso e os assistentes, que concluíram que se fará justiça, mantendo-se a pena aplicada, que não violou qualquer disposição legal.
2.
Neste Supremo Tribunal de Justiça teve vista o Ministério Público.
Fixado o prazo para alegações escritas, vieram as mesmas a ser apresentadas.
Nelas, o recorrente continua a pedir a desqualificação do crime de homicídio para homicídio simples e sua condenação na pena única situada entre 8 e 10 anos de prisão efectiva.
E concluiu, para tanto:
1) O Acórdão recorrido violou o disposto no art. 132° n° 2 alínea d) e g) do Cód. Penal
2) O homicídio qualificado é uma forma agravada do homicídio simples.
3) Segundo o artigo 132° do Código Penal o homicídio é qualificado quando praticado com uma especial censurabilidade ou perversidade, fazendo este normativo apelo a um tipo especial de culpa.
4) As circunstâncias qualificadoras do normativo, por não serem elementos do tipo, mas da culpa, não são de funcionamento automático.
5) A conduta do arguido não foi dotada de especial perversidade ou especial censurabilidade, tal como resulta da análise de toda a matéria fáctica.
6) Da globalidade dos factos apurados pelo tribunal infere-se que o arguido agiu, primeiro, em defesa da sua mãe, e que na sequência da discussão gerada com o tio, se precipitaram umas coisas atrás das outras, sempre num ambiente de grande conflitualidade, amplificado ainda pelo facto da casa do tio ser contígua à dos pais e ainda daquele andar a dizer no café que lhe havia de fazer a «vida negra» (facto que foi testemunhado em tribunal por duas pessoas, e para o qual o Ac. de 1 instância chama a atenção na sua Motivação - fls. 11, 50 §) . E, de facto,
7) O estado de ânimo do arguido que a sentença revela é de desagrado, exaltação e irritação, ou seja, o arguido, no continuum que se gerou desde os insultos à sua mãe até ao fatídico acontecimento, foi progressivamente ficando cada vez mais alterado, mais perturbado, como soe dizer-se mais «fora de si».
8) Foi, portanto, num manifesto estado de exaltação que o arguido agiu, naquele fatídico momento, de que tanto se arrepende.
9) Mas não foi motivado por egoísmo extremo, ódio ou desprezo em relação à vítima, por um motivo fútil, no sentido de insignificante, gratuito, repugnante ou «baixo», nem por um desvio da sua personalidade, em termos de perversidade, nem por um primitivismo despido de quaisquer valores ético-sociais.
10) Foi por ser bom filho, amigo dos seus pais, nomeadamente da mãe, que o arguido se viu envolvido num conflito a que sempre esteve alheio, sendo de realçar que a sua personalidade não é de uma pessoa que leve uma vida desconforme ao direito.
11) Se as coisas evoluíram da forma como evoluíram, foi por contribuição do próprio ambiente social e familiar do arguido e da vítima, pois o arguido, encontrando-se a viver com os pais, não se conseguia distanciar do conflito, e, como o tribunal refere, até no café ouvia recados do tio, que dizia lhe havia de fazer a vida negra.
12) Apesar do crime cometido ter sido doloso e grave, a conduta do arguido não foi especialmente censurável ou dotada de especial perversidade.
13) É pois de excluir, no nosso modesto entendimento, a qualificação do crime de homicídio por não se revelar especialmente censurável ou perversa a conduta do arguido, como entende a qualificada Jurisprudência supra citada.
E,
14) Também porque, como ressalta da matéria provada, analisada na sua globalidade e contexto, não existiu motivo fútil (circunstância qualificadora prevista na al. d) do 132°), nem o meio utilizado foi especialmente perigoso (circunstância qualificadora prevista na al. g) do 132°), tal como esse requisito é interpretado pela Doutrina e Jurisprudência dominantes.
15) É, pelo exposto, de excluir a qualificação jurídico-penal do crime de homicídio qualificado praticado pelo arguido.
16) O arguido, ao tirar a vida à vítima JLBF, praticou um crime de homicídio previsto e punido no artigo 131° do Código Penal.
17) Deverão ser tidas em devida conta as muitas atenuantes que resultaram provadas na audiência de discussão e julgamento, nomeadamente o facto do arguido ter confessado e colaborado com a Justiça; ter sido em defesa da mãe, com quem tinha uma ligação afectiva muito forte, que se viu envolvido numa guerra familiar a que estava alheio; de ser primário; jovem; uma pessoa normalmente calma, respeitada e muito bem considerada socialmente; e fundamentalmente, ter-se mostrado arrependido.
18) O douto Acórdão recorrido não considerou na medida da pena aplicada a circunstância de existir a atenuação especial prevista no artigo 72°, n° 2 al. c) do Cód. Penal, como se verifica a fls. 33, linhas 8 e 9 daquele.
19) O douto Acórdão recorrido violou, por isso, o disposto nos artigos 40°, nos 1 e 2, 71°, n°s 1 e 2, 72°, n°s 1 e 2 al. c), 131°, 132°, todos do Código Penal.
20) A pena concreta, atendendo à atenuação geral e especial que decorre da matéria provada e ao princípio e fim da ressocialização, ínsito na legislação penal, que não pode ser posto de parte, deverá ser aplicada ao arguido uma pena de prisão efectiva que deve situar-se entre os 8 anos e meio e o máximo de dez anos, em cúmulo jurídico.
Nas suas alegações, concluiu o Ministério Público neste Tribunal:
1ª - Improcedendo as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação quanto à pretendida desqualificação do crime de homicídio voluntário,
2ª - Salvo no que diz respeito à agravação do crime nos termos da al. g) do n.° 2 do art.° 132.° do C. Penal,
3ª Inexistem razões para atenuar extraordinariamente a pena a impor ao arguido pelo crime de homicídio voluntário qualificado nos termos dos n°s 1 e 2, al. d) do art.° 132.° do C. Penal, mas,
4.° - Face ao condicionalismo que, exterior aos tipos legais, depõe em beneficio do arguido, de conceder será que alguma redução possa sofrer tal pena parcelar e bem assim a unitária por forma a situarem-se a primeira mais próxima do limite mínimo da respectiva moldura abstracta e a última à volta dos 14 anos de prisão.
Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.
E conhecendo.
2.1.
Comecemos por relembrar a matéria de facto tida por provada pelas instâncias.
I - O arguido é sobrinho da vítima - JLBF, identificado a fls.53 e primo da ofendida - MMFF, identificada a fls. 39. Esta, por seu turno, é filha da referida vítima.
II - O arguido, era emigrante na Suiça, há cerca de 13 anos e, no mês de Agosto de 2003, como aliás, o vinha fazendo todos os anos, veio passar férias a Portugal. Nesse mês, ficou a habitar a casa de seus pais, sita na Rua Nova de Casal do Monte, nº 53, em Argivai, Póvoa de Varzim, casa essa contígua à das vítimas.
III - Há muitos anos que as relações familiares entre os pais do arguido, e a vítima - JLBF - eram muito conflituosas, com discussões e insultos, recíprocos.
IV - No dia 16 de Agosto de 2003, cerca das 16 horas e 15 minutos, na via pública, em Argivai, Póvoa de Varzim, na frente da casa dos pais do arguido, a vítima (JLBF), proferiu algumas expressões em voz alta dirigidas à mãe do arguido.
V - Desagradado com isso, o arguido saiu à Rua, dirigiu-se à vítima JLBF e discutiram ambos. Mas a certa altura, o JLBF (vítima) com a bengala que trazia consigo tentou e conseguiu dar com ela no arguido, sem contudo lhe causar ferimentos. Este, porém, sacou-lhe a bengala, e com ela desferiu-lhe duas pancadas que atingiram a vítima (JLBF) na região da cabeça e empurrando-o ainda, contra um muro ali existente.
VI - Por via disso, a vítima (JLBF), sofreu além de dores, hematoma na região parietal direita, lesão esta que lhe determinou, como consequência necessária e directa, 8 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho, conforme resulta do relatório de exame médico de fls. 163 e 164, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
VII - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de molestar fisicamente a vítima JLBF, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
VIII - Em virtude destes factos, o JLBF apresentou queixa contra o arguido na G.N.R. desta cidade no dia 18-8-03.
IX - No dia 20-8-03, o arguido foi notificado por aquela entidade policial para, no âmbito do processo a que aquela queixa deu origem, prestar declarações.
X - O arguido exaltado com tal situação, cerca das 13 horas e 30 minutos daquele dia, deparou com a ofendida MMFF - junto à residência dela e, exibindo a referida convocatória disse que se o JLBF (vítima) não retirasse a queixa iam ter aborrecimentos.
XI - No dia seguinte - 21-8-03 - cerca das 10 horas e 30 minutos, depois ter prestado declarações, no âmbito do referido processo no posto da G.N.R. desta cidade, o arguido foi a casa de uma sua irmã, situada a cerca de dois quilómetros da residência dos seus pais.
XII - A dado momento, viu passar na via pública, junto da porta da residência da sua irmã, a ofendida MMFF, conduzindo o seu (dela) veículo automóvel da marca Renault, modelo Clio, de cor vermelha, de matrícula XB, no qual transportava no banco da frente, ao lado do condutor, a vítima JLBF (seu pai).
XIII - O arguido tentou atravessar a Rua para se colocar em frente do carro da MMFF com o objectivo de fazer parar a viatura, mas a mesma (MMFF) receando, acelerou o veículo.
XIV - O arguido sentindo-se muito irritado, resolveu mover-lhe perseguição. Introduziu-se então no seu veículo automóvel de matrícula BE, da marca Toyota, modelo Celica, de cor vermelha e, conduzindo-o, foi no encalço deles, alcançando-os a cerca de um km, de distância, na Rua Viriato Barbosa, na Urbanização Sopete, em Argivai, Póvoa de Varzim.
XV - Empunhando a pistola-automática de alarme, de marca Tanfoglio, de modelo GT 28, sem série visível, de origem italiana, adaptada para arma de fogo de calibre 6,35mm Browning, de cano, com o comprimento aproximado de 61 mm, descrita e examinada a fls. 240 a 245, que possuía guardada na consola de apoio de braços da referida viatura, fez dois disparos, com a referida arma, quando se encontrava próximo do veículo da MMFF, mas ainda por detrás deste.
XVI - Em seguida o arguido iniciou a ultrapassagem àquele carro (MMFF), fazendo, mais um ou dois disparos, em direcção do mesmo veículo.
XVII - um dos tiros disparados nestas circunstâncias partiu o vidro da janela da porta do condutor (MMFF) do Renaul Clio, atingindo a vítima MMFF, na face posterior do ombro esquerdo, que então conduzia a citada viatura e que, por isso, de imediato a imobilizou.
XVIII - O arguido parou também o seu veículo (Toyo Toyota), mas à frente do Renault Clio (MMFF), para que este não pudesse prosseguir a marcha. Saiu do seu veículo, com a referida pistola que de novo empunhou, dirigiu -se ao lugar do pendura daquele mesmo veículo (Renault), onde se encontrava a vítima JLBF.
XIX - Então, o arguido posicionou-se a uma distância entre dois a três metros dessa viatura (MMFF), e visando atingir mortalmente a vítima (JLBF), efectuou mais dois disparos, com a mesma arma, na direcção daquele (JLBF) que, para além de partirem (disparos) o vidro da janela da porta do seu lado (JLBF), um dos projécteis atingiu-o no braço direito e o outro seguiu uma trajectória da frente para trás, da esquerda para a direita e de cima para baixo da caixa torácica da mesma vítima.
XX - Depois destes últimos disparos, o arguido introduziu-se na sua viatura, percorreu com a mesma alguns metros em direcção a esta cidade.
XXI - Fez depois inversão de marcha, regressou ao local onde se encontrava o Renault Clio e as vítimas, abrandou a marcha, seguindo de imediato, em direcção a Argivai (residência dos seus pais).
XXII - Seguidamente foram as vítimas JLBF e MMFF transportadas, numa ambulância do I.N.E.M que entretanto foi chamada ao local, ao Hospital desta cidade, onde apenas a MMFF recebeu tratamento uma vez que o JLBF já ali entrou sem vida.
XXIII - Em consequência dos disparos que atingiram as vítimas (MMFF e JLBF), estas sofreram: a MMFF, para além de dores, ferida perfurante na face posterior do ombro esquerdo, que foi causa directa e necessária de, pelo menos, 240 dias de doença com igual tempo de incapacidade para o trabalho (cfr. relatórios de exames médicos de fls. 166, 167 e 292 a 295);
XXIV - O JLBF (também em consequência dos disparos) sofreu as lesões constantes do relatório da autópsia de fls. 148 a 159, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, sendo que, das lesões traumáticas ali descritas, resultou, como efeito directo e necessário, a sua morte.
XXV - Cerca de 20 minutos depois, do arguido se encontrar na residência dos seus pais acima referida, foi aí localizado por elementos da G.N.R. que para ali se deslocaram.
XXVI - Essa força policial procedeu então à detenção do arguido, bem como à apreensão do seu veículo e da referida arma, que ainda tinha uma munição na câmara e outra no respectivo carregador, com capacidade para 8 munições, sendo aquelas de calibre 6, 35 mm. Browning, da marca Geco e de origem alemã (cfr. relatório de exame de fls. 240 a 245).
XXVII - No local dos disparos foram também apreendidas pela G.N.R. três cápsulas deflagradas, do referido calibre e marca. No interior do veículo do arguido, sob o banco da frente do passageiro, foi igualmente encontrada e apreendida uma cápsula deflagrada do mesmo calibre e marca, que foram deflagradas pela referida pistola Tanfoglio apreendida ao arguido (cfr. relatório de exame de fls.,. 240 a 245),
XXVIII - Também no interior da viatura Renault Clio das vítimas, foi encontrado entre o assento e o encosto do banco do condutor, um projéctil de calibre 6,35 mm, muito deformado na sua zona ogival, provavelmente devido a embate em superfície polida, não evidenciando perda significativa da massa, com o peso aproximado de 3, 20 grs.
XXIX - Tal projéctil apresentava impresso um estriado muito irregular, indiciando ser de sentido dextrógiro, sendo visível apenas uma pequena parte de estriado que face às características físicas que ostenta, se constitui como um elemento proveniente de uma munição da marca G.F.L/Fiochi, de origem italiana ou Geco, de origem alemã, e que foi disparada pela mesma pistola Tanfoglio apreendida ao arguido (cfr. relatório de exame de fls. 240 a 245).
XXX - Neste veículo foram também recolhidos, no banco da frente do lado direito, pequenos fragmentos de vidros partidos com vestígios supostamente hemáticos, que foram analisados conforme resulta do relatório de Genética e Biologia Forense junto a fls. 288 a 291, igualmente aqui dado por reproduzido.
XXXI - A pesquisa de sangue efectuada em pequenas partículas colhidas nas manchas existentes naqueles fragmentos de vidro foi positiva, e as características genéticas do DNA extraído destas manchas são idênticas às características genéticas do DNA extraído do sangue do cadáver de JLBF.
XXXII - No interior do veículo do arguido, examinado a fls. 143 e avaliado a fls. 144, foi encontrada e apreendida uma lata de Spray de cores preta e prateada, com difusor e gancho de lapela de cor preta, com indicação no rótulo" BIG BOSS" Self Defence, CS 8%", sendo o princípio activo do Spray o segundo clorobenzalmalononitrilo ou gás, substância lacrimogénea que apresenta propriedades irritantes, particularmente para os olhos, mucosas, pele e vias respiratórias, mas que não é vesicante, asfixiante nem corrosiva.
XXXIII - O gáz CS quando aplicado prejudica as funções vitais, configurando uma substância tóxica - cfr. Relatório de exame de fls. 97 e 98, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XXXIV - O arguido depois de fazer dois disparos, com a referida arma, quando se encontrava próximo do veículo da MMFF (mas ainda por detrás deste), iniciou a ultrapassagem aquele mesmo veículo (MMFF), fazendo, mais um ou dois disparos e, por circunstâncias não concretamente apuradas, um disparo (tiro) partiu o vidro da janela da porta do condutor (MMFF) do Renaul Clio, atingindo a vítima MMFF, na face posterior do ombro esquerdo, que então conduzia a citada viatura, admitiu a possibilidade de, ao efectuar esses mesmos disparos estando a ofendida MMFF, com o veículo em andamento, lhe causar ofensa à integridade física grave, provocando-lhe perigo para a própria vida, atendendo, ainda, a zona do corpo que fora atingida (face posterior do ombro esquerdo).
XXXV - O arguido conhecia perfeitamente as potencialidades letais da arma que utilizou e ao disparar sobre a vítima JLBF nas condições descritas, teve intenção de lhe tirar a vida, ao visar atingir -lhe sobretudo o tórax, como aconteceu, ciente de que tal parte do corpo alberga órgãos vitais.
XXXVI - O arguido sabia que tais circunstâncias constituiriam condições adequadas a provocar-lhe inevitavelmente a morte, o que quis e veio a conseguir.
XXXVII - O arguido não era titular de qualquer licença em relação à dita arma de fogo, considerada de defesa pelo artigo 1. nº1 al. b) da Lei 22/97, de 27 de Junho e cujas características conhecia, sabia que a mesma não se encontrava manifestada nem registada e que a sua detenção e uso eram proibidas e punidos por lei.
XXXVIII - Tinha também conhecimento das características tóxicas da substância do Spry que trazia consigo no seu veículo continha e se destinava a projectar e que tal também não era permitido por lei.
XXXIX - O arguido agiu sempre voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas violavam preceitos legais.
XL - O arguido é de modesta situação económica, solteiro, o filho mais novo de sete irmãos, quando regressava de férias a Portugal, duas vezes por ano, uma em Agosto e outra pelo Natal, vivia com os pais, com quem mantinha uma relação de grande amizade e ligação afectiva, e a quem auxiliava nas despesas do lar. Mostra-se arrependido.
XLI - A vítima - JLBF, era tio do arguido, vivendo numa casa que confronta, pelo poente com a casa dos pais daquele (arguido).
XLII - No período contemporâneo à existência da primeira desavença pessoal com ele, a vítima JLBF fez constar num café onde o arguido frequentava, que nunca mais regressava à Suiça, porque ia instaurar um processo-crime na Polícia e no Tribunal.
XLIII - O arguido é uma pessoa respeitada no meio social onde se insere, bastante calmo e não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
XLIV - A ofendida MMFF deu entrada nos serviços do Hospital -Centro Hospital Póvoa de Varzim/ Vila do Conde, onde lhe foram prestadas as assistências médicas discriminadas nas facturas juntas aos autos a fls. 341 e 342, cujo conteúdo que aqui se dá reproduzido, no valor de € 96,00, montante que não foi pago à entidade prestadora de tais serviços.
XLV - JJF, casada que foi com a vítima - JLBF; MMFF, solteira, maior; JFF, solteiro, maior; MAMGF, casada que foi com AFF, falecido em 19 de Agosto de 1999, todas filhas do falecido; JIGF menor, de 16 anos; e JMGF, menor, de 10 anos, de idade, todos filhos daquela MAMGF, aqui representados por esta -
XLVI - A vítima JLBF era diabético e tinha enormes dificuldades visuais e usava bengala para cegos. Era uma pessoa querida e estimada pelos seus familiares atrás identificados, os quais todos sofreram com a perda do seu ente querido, uma fortíssima angústia e dor moral
XLVII - A ofendida - MMFF - em consequência directa e necessária dos ferimentos infligidos pelo arguido, sofreu dores e 240 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
XLVIII - Também, em consequência dos disparos do arguido no veículo automóvel da marca Renault, modelo Clio, de cor vermelha, de matrícula XB, pertencente à ofendida - MMFF - esta ficou com os estragos discriminados no orçamento junto a fls. 385 dos autos, cujo teor que aqui se dá por reproduzido, no valor de € 190,00;
XLIX - Em tratamentos clínicos, medicamentos, deslocações, a ofendida - MMFF despendeu € 400,00;
L - A ofendida - MMFF, em função da agressão de que foi vítima e de haver assistido à morte do seu pai, sofreu pânico, dores e incómodos.
LI - A ofendida - MMFF- é beneficiária nº 132 076 308 do Instituto de Solidariedade e Segurança Social. Esta instituição pagou - lhe, durante o tempo em que esteve incapacitada para o trabalho (no período compreendido entre 1 de Setembro de 2003 e 26 de Fevereiro de 2004, sem alta, o montante de € 1.556,70 (1.396,20 + 160,50 de subsídio de Natal).
LII - A vítima - JLBF era beneficiário da Segurança Social Portuguesa com o nº 109422790.
Factos não provados
A) O arguido com uma pistola de pequenas dimensões, proferiu a ameaça: " caso o JLBF não retirasse a queixa, a mataria a ela (ofendida - MMFF), bem como quem estivesse com ele, o que originou de seguida insultos e agressões físicas entre eles e os restantes familiares em conflito;
B) o arguido, quando se encontrava perto da casa da sua irmão e passou por si a sua prima, conduzindo o veículo automóvel tenha simulado atirar com qualquer objecto e a MMFF apercebendo-se disso, com medo, acelerou o andamento da viatura.
C) o arguido ficou convencido que com a prestação do TIR não se podia ausentar para a Suiça
D) os demais factos indicados na acusação e na contestação:
2.2.
Homicídio qualificado simples?
Sustenta o recorrente que foram violadas as als d) e g) do art. 132° n° 2 do C. Penal, não existindo motivo fútil nem sendo o meio utilizado especialmente perigoso (conclusões 1 e 14), que não são de funcionamento automático (conclusão 4), sendo que a conduta do arguido não foi dotada de especial perversidade ou especial censurabilidade, como resulta da matéria fáctica (conclusão 5), pelo que não se verifica o crime de homicídio qualificado (conclusões 2, 3, 15 e 16)
Apesar do crime cometido ter sido doloso e grave, a sua conduta - defende - não foi especialmente censurável dotada de especial perversidade (conclusão 12)
Escreve-se, a propósito, na decisão recorrida:
«Relativamente agora à invocada violação do disposto nas alíneas g) e i) do artigo 132º do mesmo Código no sentido do arguido ser condenado apenas pelo crime de homicídio previsto no artigo 131º do citado Código, vejamos antes de mais o que dispõe o referido preceito legal no seu nº 1: " Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de 12 a 25 anos."
No n.º 2 do mesmo preceito legal são enumeradas, a título exemplificativo, nas diversas alíneas circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade as quais não são taxativas e não constituem elementos do tipo do crime. O legislador poderia até não as exemplificar, tratando-se apenas de índices reveladores da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Concedendo-se ao julgador toda a maleabilidade ou seja dando-lhe a possibilidade de mesmo verificando-se qualquer uma destas circunstâncias não considerar verificado o crime de homicídio qualificado ou considerar verificado o crime qualificado mesmo que não se verifique qualquer das circunstâncias enunciadas nas alíneas do nº 2 do citado artigo, caso o comportamento do agente por outras razões ou na sua globalidade revelar a sua censurabilidade ou perversidade.
O que qualifica o crime de homicídio é a especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias especiais em que a morte se produziu, não operando automaticamente as circunstancias previstas, por forma não taxativa no n.2 do artigo 132º do C.P., sendo indispensável determinar se as circunstâncias do caso concreto preenchem ou não o elemento qualificante da especial censurabilidade ou perversidade e justificam uma sanção dentro da moldura incriminadora do homicídio qualificado (neste sentido Ac. do STJ de 11 de Dezembro de 1997, BMJ 472, p. 154).
Aliás o recorrente arguido também concorda que a aplicação destas circunstâncias não é automática e invoca que o mesmo agiu em defesa da mãe, em estado de exaltação, não tendo ainda o arguido agido por motivo fútil (pois até no café ouvia recados do tio que lhe havia de fazer a vida negra) nem o meio utilizado foi especialmente perigoso.
Neste último aspecto relativo ao meio utilizado não se revelar especialmente perigoso se pronunciou de acordo com o ora recorrente o Exm.º Procurado Geral - Adjunto no seu douto parecer.
A doutrina tem entendido que os meios usados para matar já são normalmente perigosos pelo que só devem ser considerados particularmente perigosos quando o meio "revele uma perigosidade muito superior ao à normal nos meios usados para matar" e ainda " se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente", pretendendo assim evitar que todo o homicídio doloso seja qualificado (Comentário Conimbricense do C. Penal, T. I, pag. 37, ed. 1999).
A aplicação desta alínea, aliás como das outras deve ser determinada com todo o rigor e casuísticamente. É que entendemos que se por um lado como bem defende a doutrina e alguma jurisprudência não se devem qualificar todos os homicídios dolosos só porque foram utilizados meios perigosos, mesmo muito perigosos normalmente aptos para matar, por outro lado também não se deve afastar tal qualificativa só porque foi usado um meio vulgarmente usado para matar (facas, pistolas, espingardas, revólveres ou vulgares instrumentos contundentes), sob pena de se cair no erro de não se qualificar o homicídio porque foi usado um meio que não pode ser considerado perigoso apenas pela sua vulgaridade e independentemente das circunstâncias ou do modo como que foi usado.
Na análise da particular perigosidade do meio empregue deve se atender à maior dificuldade de defesa em que se coloca a vítima e ao modo como foi praticado o homicídio. No caso dos autos a utilização de uma pistola de alarme adaptada a arma de fogo de calibre 6,35 mm Browning, de cano com o comprimento de 61 cm disparada o em direcção à vítima que era quase invisual, que estava dentro de um veículo a 2 ou 3 metros deste já imobilizado por acção do arguido em que a condutora do mesmo já havia sido previamente atingida e ferida por outro disparo, deve ser entendido como meio particularmente perigoso perante a ausência de qualquer possibilidade defesa da vítima encontrando-se verificada neste caso a especial censurabilidade. (neste sentido Ac. do STJ de 6/6/01. proc. n.º1174/01, 3ª, SASTJ, n.º 52,43).
Pelo que é de manter a qualificação efectuada no acórdão recorrido, sendo certo ainda que perante a existência de jurisprudência noutro sentido sempre diremos que no caso presente mesmo que assim não se entendesse sempre o homicídio seria qualificado pelo disposto na alínea d) do n.º 2 do citado preceito legal.
Contrariamente à tese defendida pelo recorrente existe motivo fútil no caso dos autos, não se conseguindo afastar o mesmo como pretende o recorrente justificando o seu comportamento por ser bom filho ou amigo dos pais ou por se ver envolvido num conflito familiar ao qual era alheio, como refere nas alegações. Mesmo aceitando-se que o arguido agiu por causa do conflito familiar existente e mesmo olvidando-se a ameaça antes efectuada no sentido da vítima desistir da queixa crime contra si apresentada, o motivo neste caso continua a ser fútil porque não só é notavelmente desproporcionado ou inadequado do ponto de vista do homem médio e em relação ao crime (neste sentido Ac. STJ de 6/6/90, CJ 3/19) como tal modo de actuação se baseia num motivo sem valor, irrelevante ou insignificante. Digamos que é vulgar que existam conflitos entre várias pessoas da mesma família que até no caso dos autos são vizinhos, que o arguido não tenha gostado das palavras que o seu tio dirigiu à sua mãe, mas daí a persegui-lo até à morte, volvidos já cinco dias sobre a referida actuação da vítima e sendo certo ainda que logo nesse dia já teriam até discutido e se envolvido e o arguido ofendido o seu tio corporalmente, é já injustificável demonstrando profundo desprezo pela vida humana. Perante os factos provados neste caso o observador comum fica incapaz de entender as motivações do agente uma vez que o motivo não tem valor é irrelevante ou insignificante ou seja é fútil.
Nestes termos mantém-se a qualificação jurídica efectuada no acórdão, perante os factos provados (perseguição, multiplicidade de disparos, completo desprezo pela vida do tio, praticamente indefeso, imobilizado no veículo) não pode o homicídio deixar de revelar-se particularmente censurável e por isso qualificado».
Merecem estas considerações concordância geral, quanto à estrutura do tipo qualificado.
Com efeito, este Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar inúmeras vezes, quer sobre o artigo 132.º do C. Penal em geral afirmando constantemente que:
- As circunstâncias contempladas no n.º 2 do art.º 132 não são taxativas nem implicam só por si a qualificação do crime. Tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa não sendo o seu funcionamento automático (Ac. de 13.2.97, proc. n.º 986/96)
- A enumeração do n.º 2 do art. 132º do C. Penal não é taxativa.
A qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do art. 132º do C. Penal. Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples. (Ac. de 21.5.97, proc. n.º 188/97)
- (2) O tipo do art.º 132, do C. Penal, (homicídio qualificado) consiste em ser a morte causada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (art.º 132, n.º 1), enumerando o n.º 2 do mesmo artigo um conjunto de circunstâncias, não taxativas, susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade. (3) Por isso, pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas diversas alíneas do n.º 2, do art. 132.º do C. Penal, e não existir especial censurabilidade ou perversidade justificativa da qualificação do homicídio e podem outras circunstâncias, diversas daquelas descritas, revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas como qualificativas. (Ac. de 10.12.97, proc. n.º 1207/97)
- O legislador utilizou no art.º 132, do CP, a chamada técnica dos exemplos-padrão, sendo as circunstâncias elencadas nas diversas alíneas do n.º 2 meros indícios não taxativos e meramente enunciativos da existência ou inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente aludida no n.º 1. É a especial censurabilidade ou perversidade do agente o fundamento da aplicação da moldura penal agravada do homicídio qualificado; e não as circunstâncias indicadas nos exemplos-padrão, que não são de funcionamento automático. (Ac. de 18.2.98, proc. n.º 1086/97)
- As circunstâncias enunciadas, a título exemplificativo, no art.º 132, n.º 2, do CP, são meros elementos da culpa, pelo que não funcionam automaticamente, mas apenas se no caso concreto revelarem especial censurabilidade ou perversidade do agente. (Ac. de 3.6.98, proc. n.º 301/98)
- As circunstâncias a que o art.º 132.º, do CP, se refere não são elementos do tipo, mas da culpa, devendo existir no momento do crime, ou preceder a sua execução. (Ac. de 8.7.98, proc. n.º 646/98)
- A verificação dos exemplos-padrão do n.º 2 do art.º 132.º, do CP, não funciona automaticamente, em termos de logo se dar por demonstrada a especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como elementos da culpa, implicam ainda um exame global dos factos de modo a chegar, ou não, àquela conclusão. (Ac. de 7.12.99, Acs STJ VII, 3, 234).
E, na verdade, do n.º 1 do art. 132.º do C. Penal, que contem uma cláusula geral, resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. É essa a matriz da agravação, de forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade, ela não ocorre.
Depois, ao lado desse critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível" (1.ª parte do corpo do n.º 2).
Mas os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: "entre outras" no segmento final do corpo do n.º 2.
De concluir, pois, que nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, que esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não se verifique qualquer daqueles indicadores (neste sentido o Ac. do STJ de 19.6.96, proc. n.º 203/96):
Finalmente, pode dizer-se que se estará perante um crime de homicídio qualificado quando a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, estando presentes vários indicadores das alíneas do n.º 2 do art. 132.º, que no seu conjunto o permitem afirmar, embora, individualmente, cada uma delas não reúna a qualidade/quantidade que justificou a sua inclusão como indicador (cfr. no mesmo sentido o Ac. de 10.10.2002, proc. n.º 2577/02-5, com o mesmo Relator):
Para afastar a especial perversidade ou censurabilidade da sua conduta, o recorrente sustenta, na sua motivação, que agiu num estado de ânimo, de desagrado, exaltação e irritação, ou seja, no continuum que se gerou desde os insultos à sua mãe até ao fatídico acontecimento, foi progressivamente ficando cada vez mais alterado, mais perturbado, mais «fora de si» (conclusão 7.ª), num manifesto estado de exaltação (conclusão 8.ª), por ser bom filho, amigo dos seus pais, nomeadamente da mãe, que o arguido se viu envolvido num conflito a que sempre esteve alheio, sendo de realçar que a sua personalidade não é de uma pessoa que leve uma vida desconforme ao direito (conclusão 10.ª).
E atribui ao ambiente e à vítima «se as coisas evoluíram da forma como evoluíram, foi por contribuição do próprio ambiente social e familiar do arguido e da vítima, pois o arguido, encontrando-se a viver com os pais, não se conseguia distanciar do conflito, e, como o tribunal refere, até no café ouvia recados do tio, que dizia lhe havia de fazer a vida negra» (conclusão 11.ª).
Mas, como bem se analisou na decisão recorrida no trecho transcrito, o conflito familiar a que se reporta desenvolvia-se em relação a sua mãe e à vítima, que moravam próximo, mas o arguido residia habitualmente na Suiça onde fora emigrante nos últimos 13 anos, só costumando passar as suas férias de Agosto em casa de seus pais.
Não foi relatado qualquer outro episódio desse conflito que tenha sido protagonizado ou mesmo só presenciado pelo arguido e que pudesse(m) ter exacerbado a agitação e ira do arguido, não está provado, pois, que o arguido estivesse envolvido nesse conflito familiar, nem que a sua mãe necessitasse de defesa perante as palavras do irmão (a vítima), nem que tal intervenção se justificasse.
Daí que a sua intervenção não se apresente como a de um bom filho, amigo dos seus pais, nomeadamente da mãe, sentimentos que apontariam antes para que contribuísse para o apaziguamento do conflito familiar.
Também não se mostra provado que tenha agido debaixo de um desenvolvimento da agitação criada por essa primeira intervenção.
O que está assente é que na tarde de 16 de Agosto de 2003, na rua, na frente da casa dos pais do arguido, a vítima (JLBF), proferiu algumas expressões em voz alta dirigidas à mãe do arguido, não se tendo apurado que tipo de palavras foram essas e que desagradado com isso, o arguido saiu e dirigiu-se à vítima JLBF e discutindo ambos. O JLBF (vítima e tio do arguido) com a bengala para cegos que usava, pois era diabético e tinha enormes dificuldades visuais, e trazia consigo, tentou e conseguiu dar com ela no arguido, sem contudo lhe causar ferimentos, mas este sacou-lhe a bengala para cegos, e com ela desferiu-lhe duas pancadas que o atingiram na região da cabeça e empurrando-o ainda, contra um muro ali existente, tendo este sofrido além de dores, hematoma na região parietal direita, com 8 dias de doença.
Em consequência o JLBF apresentou queixa-crime contra o arguido, que foi notificado a 20-8-03, para prestar declarações. E foi isso que exaltou o arguido (ponto X da matéria de facto) que, cerca das 13h30, deparando-se com a ofendida MMFF (sua prima) junto à residência desta disse que se o JLBF (a vítima) não retirasse a queixa iam ter aborrecimentos. Depois ter prestado aquelas declarações, no dia imediato, cerca das 10h30, o arguido a cerca de 2 km da residência dos seus pais viu passar na rua a ofendida MMFF, conduzindo o seu automóvel, no qual transportava no banco da frente a vítima JLBF (seu pai) e tentou atravessar a rua para se colocar em frente daquele carro para a fazer parar a viatura, mas a MMFF receando acelerou o veículo. Sentindo-se muito irritado, o arguido resolveu mover-lhe perseguição, introduziu-se no seu automóvel e, conduzindo-o, foi no encalço deles, alcançando-os a cerca de um km, em Argivai, Póvoa de Varzim, empunhando a uma pistola-automática adaptada para arma de fogo de calibre 6,35mm de cano de 61 mm, que tinha guardada na referida viatura, fez 2 disparos quando se encontrava detrás mas próximo do veículo da MMFF e iniciou a ultrapassagem deste carro, fazendo, mais um ou dois disparos, em direcção do veículo, tendo um deles partido o vidro da janela da porta da MMFF atingindo-a na face posterior do ombro esquerdo, que conduzindo então, de imediato imobilizou o veículo.
O arguido parou também o seu veículo, mas à frente do outro, para que este não pudesse prosseguir a marcha e saiu do seu veículo empunhando a pistola dirigiu-se para o lado onde se encontrava a vítima JLBF e posicionou-se a uma distância entre 2 a 2 m e visando atingir mortalmente a vítima (JLBF), efectuou mais 2 disparos, com a mesma arma, na direcção daquele (JLBF), tendo-o um deles atingido no braço direito e o outro seguiu uma trajectória da frente para trás, da esquerda para a direita e de cima para baixo da caixa torácica da mesma vítima, tendo as lesões provocando necessariamente a morte.
Depois destes últimos disparos, o arguido introduziu-se na sua viatura e acabou por seguir em direcção à residência dos seus pais.
Provou-se ainda que no período contemporâneo à existência da primeira desavença pessoal com ele, a vítima JLBF fez constar num café onde o arguido frequentava, que nunca mais regressava à Suiça, porque ia instaurar um processo-crime na Polícia e no Tribunal, mas não se provou que o arguido tivesse ficado convencido que com a prestação do TIR não se podia ausentar para a Suiça
Da matéria de facto provada, que aqui se sintetizou, resulta que se foi a relação familiar (palavras que o tio dirigiu à mãe do arguido) que o levou a intervir junto do tio, já a restante conduta é tributária da exaltação que sentiu pelo facto de o tio, no exercício legítimo dos seus direitos como cidadão, ter apresentado queixa-crime contra o arguido pelas ofensas à integridade física sofridas, o que o levou a ameaçar que se o JLBF (a vítima) não retirasse a queixa ele e a filha iam ter aborrecimentos. E da muita irritação que sentiu quando constatou no dia seguinte que a queixa não fora retirada e não conseguiu parar o automóvel da ofendida MMFF, que seguia com o pai, moveu-lhes perseguição de automóvel e disparou 2 tiros de pistola antes de iniciar a ultrapassagem, fazendo, mais um ou dois disparos, em direcção do veículo atingindo a MMFF e imobilizados os veículo atingiu voluntariamente a 2 e 3 metros mortalmente a vítima.
Ou seja, no que aqui importa, o arguido agiu exaltado e muito irritado pelo facto de o tio se haver queixado legitimamente às autoridades e se ter dado inicio ao inquérito.
E como reagiu? Com uma perseguição implacável de automóvel, disparando tiros em andamento até conseguir imobilizar a viatura que perseguia e então verdadeiramente "fuzilar" o tio, diabético e com graves deficiências visuais, que estava indefeso no interior do automóvel, com dois tiros.
Não consentem, pois, os factos a pretensão do arguido de que tudo se deveu ao conflito familiar, mas sim à exaltação e à grande irritação que sentiu quando se apercebeu que teria de responder perante a justiça, pelo crime que lhe era imputado, apesar da ameaça que fizera para que a queixa fosse retirada.
Sem pretender afirmar, neste momento, a presença de uma ou várias circunstâncias, tais como previstas nas alíneas do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal, sempre se imporia concluir que:
- a futilidade do motivo que presidiu ao comportamento do arguido (o exercício legítimo por parte da vítima do seu direito de queixa face a uma agressão física do seu sobrinho com a bengala para cegos que usava);
- a traição e deslealdade com que desferiu o ataque (disparando totalmente de surpresa, sem qualquer aviso, com uma pistola contra a vítima que se encontra indefesa e vulnerável sentada num automóvel que acabava de ser travado ao tiro pelo arguido);
- o tipo da arma usada e a forma como o foi (a arma de fogo resultante de transformação usada de forma a não deixar qualquer hipótese à vítima e a não fazer qualquer risco ao arguido, num autêntico "fuzilamento");
- a frieza com que a conduta foi desencadeada e a reiteração, apesar da a atitude de medo da condutora do veículo e de impotência da vítima;
Conduzem à qualificação do crime de homicídio por revelarem especial perversidade e censurabilidade.
Mas, como entendeu o Tribunal a quo, verifica-se, no caso, o motivo fútil a que se refere a al. d) do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal.
Como entendeu o Tribunal a quo, verifica-se, no caso, o motivo fútil a que se refere a al. d) do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal.
Resulta desse dispositivo que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade na produção da morte, que leva à qualificação do crime, a circunstância de o agente ser determinado por motivo fútil.
Não densifica a lei o conceito de motivo fútil, pelo que importa ver a jurisprudência deste Tribunal. Tem ele decidido que para haver "motivo fútil", para os efeitos da al. c) do n. 2 do art. 132º do C Penal de 1982, não basta que a reacção do agente seja desproporcionada ao condicionalismo que a despoletou. Só o exame ponderado de todas as circunstâncias pode determinar se o agente actuou ou não por motivo insignificante, sem valor (Ac. do STJ de 25/6/87, BMJ 368-340 no mesmo sentido Acs. do STJ de 16/4/86, BMJ 56-267, de 6/3/91, AJ n.º 17).
Que motivo fútil é aquele que não tem qualquer relevo; que não pode sequer razoavelmente explicar, e muito menos de algum modo justificar, uma determinada conduta. Trata-se de um motivo notoriamente desproporcionado para ser sequer um começo de explicação para a conduta criminosa (Ac. do STJ de 22/3/90, proc. n.º 40582). «Fútil» é sinónimo de «frívolo», «sem valor»; e antónimo de «sério», «grave», «importante» (Ac. do STJ de 19/4/90, BMJ 396-253).
Motivo fútil, como tem sido referido no STJ, é o que não é motivo; é o motivo sem relevo, o que de modo algum explica o comportamento do agente, nem o torna compreensível (Acs. do STJ de 27/2/91, AJ n.º 15/16 e BMJ 404-240, de 6/3/91, AJ n.º 17, de 17/4/91, AJ n.º 18 e BMJ 396-222, de 7/7/93, proc. n.º 44606).
Motivo fútil, é o motivo perante o qual não se compreende a prática do crime, que resulta inadequado à luz dos critérios normais do homem médio (Acs. do STJ de 2/10/96, proc. n.º 46573, de 5/2/97, proc. n.º 1026/96, de 21/5/97, proc. n.º 107/97, de 22/5/97, proc. n.º 152/9, de 11/12/97, proc. n.º 1050/97, de 18/2/98, proc. n.º 1414/97, de 2/7/98, proc. n.º 37/98).
Só podem ser considerados como fúteis os motivos subjectivos (ou antecedentes psicológicos) que pela sua insignificância forem desproporcionados com a reacção homicida (Acs. do STJ de 13/02/97, proc. n.º 986/96, de 18/02/98, proc. n.º 1414/97, de 02/07/98, proc. n.º 37/98).
Sendo exacto que o "motivo fútil" se caracteriza em primeira linha pela sua desproporcionalidade com o crime praticado, haverá que reconhecer que desproporcionalidade existirá sempre entre o homicídio e qualquer razão que o motive.
Assim, algo mais terá de acrescer àquela desproporcionalidade, para que um motivo de crime possa qualificar-se de fútil.
Esse algo mais, consiste na insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais alta, na brutal malvadez, ou traduz-se em motivos subjectivos ou antecedentes psicológicos, que pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a reacção homicida (Acs. do STJ de 12/06/97, proc. n.º 359/97 e de 17-10-2001, proc. nº 2807/01-3)
Motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo "frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida", o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática.
Sendo certo que a aludida desproporcionalidade ocorrerá sempre, com maior ou menor relevo, entre um homicídio e a razão que o haja motivado, qualquer que ela seja, alguma coisa mais deverá acrescer, em ordem a avivar a dita desproporcionalidade, e esse aditável algo terá que ver com índices subjectivos expressos ou inferíveis do conjunto da factualidade apurada ou detectáveis na sua antecedência psicológica, e que, por sua insignificância patente ou por sua evidente frivolidade, incompatíveis se mostram e inconciliáveis se alcancem com a actuação homicida.
O vector fulcral que identifica o "motivo fútil" não é pois tanto o que passe por dizer-se que, sendo ele de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva (Ac. do STJ de 4/10/2001, proc. nº 1675/01-5).
No mesmo sentido se tem pronunciado a Doutrina (Nelson Hungria, Comentário ao Código Penal Brasileiro, V, pág. 164, Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, II,3.ª Ed., pág. 66, Júlio Mirabete, Manual de Direito Penal, II, pág. 50, Comentário Conimbricense, I, pág. 32, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 11.ª Ed., pág. 443).
No caso sujeito, como se viu, o arguido que agredira o seu tio, com graves dificuldades visuais, ficou exaltado quando soube que este fizera queixa na GNR e ameaçou-o mais a uma filha que iriam ter aborrecimentos e, face à não desistência, ao avistar a vítima e sua filha de automóvel perseguiu-os e consegui deter a tiro aquele veículo, ferindo seriamente a condutora e depois dando do exterior dois tiros no seu tio que estava sentado no mesmo veículo imobilizado e impedido de seguir, à distância de 2 ou 3 m.
Não se compreende, assim, a prática do crime, que resulta inadequado à luz dos critérios normais do homem médio, o mesmo é dizer que o arguido agiu por motivo fútil (cfr. no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 9-11-2000, proc. n.º 2693/00-5, com o mesmo Relator, www.stj.pt).
Como se diz na decisão recorrida: «Digamos que é vulgar que existam conflitos entre várias pessoas da mesma família que até no caso dos autos são vizinhos, que o arguido não tenha gostado das palavras que o seu tio dirigiu à sua mãe, mas daí a persegui-lo até à morte, volvidos já cinco dias sobre a referida actuação da vítima e sendo certo ainda que logo nesse dia já teriam até discutido e se envolvido e o arguido ofendido o seu tio corporalmente, é já injustificável demonstrando profundo desprezo pela vida humana. Perante os factos provados neste caso o observador comum fica incapaz de entender as motivações do agente uma vez que o motivo não tem valor é irrelevante ou insignificante ou seja é fútil.»
A decisão recorrida também teve como verificada a al. g) do n.º 2 do art. 132.º, «utilizar um meio particularmente perigoso».
Faz, no entanto, eco das divergências que se detectam na sua análise: por um lado, não se devem qualificar todos os homicídios dolosos só porque foram utilizados meios perigosos, mesmo muito perigosos normalmente aptos para matar, como defende a doutrina e parte da jurisprudência, por outro lado também não se deve afastar tal qualificativa quando foi usado um meio vulgarmente usado para matar, como uma pistola, mas as circunstâncias da sua utilização o tornam especialmente perigoso, atendendo à maior dificuldade de defesa em que se coloca a vítima e ao modo como foi praticado o homicídio.
E, na verdade, têm-se vindo a afirmar neste Supremo Tribunal de Justiça a primeira posição, que se acompanha:
- À falta de definição legal do que seja meio particularmente perigoso, deve entender-se por tal aquele que simultaneamente revele uma perigosidade muito superior à que normalmente anda associada aos meios comuns usados para matar e seja revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (Ac. de 24.10.2001, proc. n.º 2764/01-3, Cons. Leal-Henriques);
- A utilização de tiros de chumbo de 7,5 de espingarda caçadeira de cartuchos de calibre 12 não poderá considerar-se "particularmente perigoso, pois, "não revela uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar" (Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 37). É "indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, sob pena (...) de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra de homicídio doloso" (idem) (Acs de 12/6/2003, proc. n.º 1671/03-5 e de 12/5/2005, proc. n.º 1439/05-5, Cons. Carmona da Mota).
- O facto da arma ter sido usada "à queima-roupa" é uma circunstância que não pertence à natureza da arma e que, portanto, não a torna particularmente perigosa (Ac. 10/3/2005, proc. n.º 224/05-5, Cons. Santos Carvalho);
- Na al. g) do art. 132.º a lei refere-se não apenas a meio perigoso, mas a meio particularmente perigoso, no sentido de que este há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente.
Estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão (Ac. de 5/10/2003, proc. n.º 2024/03-3, Cons. Henriques Gaspar).
Aliás, esta problemática das circunstâncias em que a arma é usada, tem sido com muita mais frequência tratada pelo Supremo Tribunal de Justiça a propósito do «meio insidioso», como se dá conta com cópia de referências jurisprudências no Ac. de 10.10.2002 deste Tribunal, proc. n.º 2577/02-5, com o mesmo Relator, e para onde se remete, mas que não foi atendido pelas instâncias (disponível em www.stj.pt).
Assim, como o meio não pode ser qualificado como especialmente perigoso na concepção que acima se enunciou, afastada fica essa qualificativa, o que, no entanto, não desqualifica, como se viu, o crime.
2.3.
Medida concreta da pena;
Sustenta o recorrente que deverão ser tidas em devida conta as atenuantes provadas em julgamento: confissão e colaboração com a Justiça; ter sido em defesa da mãe que se viu envolvido numa guerra familiar a que estava alheio; ser primário; jovem; uma pessoa normalmente calma, respeitada e muito bem considerada socialmente; e fundamentalmente, ter-se mostrado arrependido. (conclusão 17)
O que deveria ter levado à atenuação especial do art. 72.º, n° 2 al. c) do C. Penal (conclusão 18), e à aplicação de uma pena de prisão entre os 8 anos e meio e o máximo de 10 anos, em cúmulo jurídico (conclusão 20)
Escreveu-se na decisão recorrida:
«C - Da violação do disposto nos artigos 71º, 72º, 131º, 132º e 144º todos do Código Penal não sendo de aplicar pena superior a oito anos e meio de prisão ao recorrente perante a existência de atenuante especial e o fim da ressocialização.
O recorrente entende que não lhe deve ser aplicada pena superior a oito anos e meio de prisão e embora não esclareça entende-se que se tratará da pena aplicada ao crime de homicídio.
Para tanto invoca em suma que beneficia de atenuação especial e que se deve atender ao fim da ressocialização.
As atenuantes que constam dos factos provados foram tidas em conta pelo tribunal recorrido ao dosear a pena (nomeadamente a fls. 627 dos autos). De salientar pelo que atrás ficou exposto que se mantém a qualificação dos crimes de ofensas à integridade física e de homicídio, pelo que as penas abstractas aplicáveis aos crimes são já diversas daquelas que o recorrente defende. Por outro lado não resulta dos factos provados que o arguido beneficie de qualquer atenuante especial. Não se aceita que a exaltação decorrente de ter sido notificado para prestar declarações na sequência da queixa-crime apresentada contra si pelo seu tio (referida no ponto X dos factos provados) possa ser considerada atenuante especial. Nem que o mesmo agiu em estado de exaltação pelas palavras da vítima (tio) dirigidas à mãe do arguido vários dias antes de o arguido efectuar os disparos após perseguição, o que aliás não consta dos factos provados.
A pena abstracta do homicídio é de 12 a 25 anos logo jamais lhe poderia ser aplicada pena inferior a 12 anos de prisão. A pena de 15 anos aplicada pelo Tribunal recorrido a este crime não se mostra excessiva, pelo que se mantém uma vez que como claramente consta do acórdão foi aplicada com respeito pelo disposto nos artigos 71º e 72º do Código Penal, aliás o recorrente também não especifica em concreto como foram violadas tais normas. Por outro lado ao fixar as penas foi tida em consideração como do acórdão consta a própria ressocialização do arguido.
A aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do delinquente sendo que em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa.
A medida da culpa condiciona assim a própria medida da pena estabelecendo um limite inultrapassável desta.
Nos termos do disposto no artigo 71º do Código Penal deve-se atender na medida da pena a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime deponham a favor ou contra o agente.
Essas circunstâncias foram referidas no acórdão proferido na 1ª instância pelo que se considera bem doseada e adequada a pena aplicada.
No caso concreto foram devidamente aplicadas as disposições do Código Penal, artigos 71º e 72º, sendo a pena aplicada em concreto proporcionada e adequada.
Não se verifica neste caso que o Tribunal recorrido não tenha aplicado devidamente os preceitos legais a observar aquando da fixação da pena nem que a mesma se mostre fixada com violação das regras da experiência ou desproporcionada na sua quantificação, pelo que nesta parte também não pode proceder a pretensão do recorrente.
Este tribunal tem pelo exposto ajustada a pena de 15 anos de prisão que foi aplicada ao recorrente pelo Tribunal recorrido e que não excede a culpa e satisfaz as exigências de prevenção.»
Como se viu, teve-se por improcedente a pretensão do arguido quanto à desqualificação do homicídio, pelo que a impugnação da medida da pena fica reduzida à pretendida atenuação especial da pena.
E importa notar que o arguido só agora, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, é que invoca ao al. c) do n.º 2 do 72.º do C. Penal enquanto fundamento da atenuação especial. Ou seja, nessa dimensão, a questão da atenuação especial da pena (com esse fundamento) apresenta-se como uma questão nova, que não pode ser objecto de impugnação.
Na verdade, para a Relação, o arguido suscitou genericamente a atenuação especial da pena, sem identificar nenhum das diversas alíneas do n.º 2, sem indicar expressamente qual a circunstância que entendia verificar-se (cfr. conclusões 30 e 31 da motivação para a Relação), só se referindo expressamente (conclusões 19 a 21 da motivação para a Relação) o manifesto estado de exaltação e o conflito familiar. Só perante a afirmação daquele Tribunal Superior de que «não resulta dos factos provados que o arguido beneficie de qualquer atenuante especial. Não se aceita que a exaltação decorrente de ter sido notificado para prestar declarações na sequência da queixa-crime apresentada contra si pelo seu tio (referida no ponto X dos factos provados) possa ser considerada atenuante especial. Nem que o mesmo agiu em estado de exaltação pelas palavras da vítima (tio) dirigidas à mãe do arguido vários dias antes de o arguido efectuar os disparos após perseguição, o que aliás não consta dos factos provados» é avançou com a precisão (tardia) de que afinal o fundamento era o da al. c) falada.
Mas vejamos se merece censura a decisão recorrida ao afastar a atenuação especial da pena.
Dispõe o art. 72.º do C. Penal que o Tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (n.º 1), enumerando o n.º 2 diversas dessas circunstâncias, a que não se reportou inicialmente o recorrente, como se viu.
Assim se criou uma válvula de segurança para situações particulares, que foi já apresentada da seguinte forma:
"Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo "normal" de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena" [Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 302. Cfr. no mesmo sentido, a sua intervenção na Comissão Revisora (Acta n.° 8, 78-9): ora, o que na verdade aqui ocorre é uma visão integral do facto que leva o julgador a concluir por uma especial atenuação da culpa e das exigências da prevenção].
Seguiu-se neste art. 72.º o caminho de proceder a uma enumeração exemplificativa das circunstâncias atenuantes de especial valor, para se darem ao juiz critérios mais precisos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação (cfr., neste sentido Leal-Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, I, em anotação ao art. 72.º).
Assim, sem entravar a necessária liberdade do juiz, oferecem-se princípios reguladores mais sólidos e mais facilmente apreensíveis para que se verifique, em concreto, quando se deve dar relevo especial à atenuação.
As situações a que se referem as diversas alíneas do n.° 2 não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionados com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente.
Invoca o recorrente o ser primária, ter confessado e colaborado com as autoridades, ter agido em estado de manifesto estado de exaltação, envolvido, por amor filial num conflito familiar, ser primário, jovem; uma pessoa normalmente calma, respeitada e muito bem considerada socialmente; e fundamentalmente, ter-se mostrado arrependido.
Mas, como se viu e a decisão recorrida acentuou igualmente, não está provado que o arguido tenha agido no quadro que invoca, mas sim por ser recusada a sua imposição para que a vítima (seu tio) retirasse a queixa-crime, como não está provado que tenha confessado e colaborado, tendo antes sido detido pelas autoridades pouco tempo depois dos factos em casa de seus pais. Depois deve ter-se em conta que o que vem provado é somente que «é uma pessoa respeitada no meio social onde se insere, bastante calmo e não lhe são conhecidos antecedentes criminais» e que «mostra-se arrependido».
Ora, a primariedade é um dever do cidadão, que deve, não obstante, ser valorizada na determinação da medida concreta da pena, mas que, por si só, não atenua especialmente a pena.
Não há confissão atendível, o que inquina o arrependimento invocado, pois que este é tributário da interiorização do desvalor da sua conduta, o que se não verifica, pois que o arguido impugnou a qualificação quer das ofensas à integridade física, quer do homicídio
Depois, está provado que o arguido «mostra-se arrependido», expressão que, se bem que de uso frequente, é pouco precisa, se se quer significar que o arguido «está arrependido», o que não é certo no contexto da matéria de facto provada.
Mostrar-se significa exibir, patentear, dar sinais ou indícios de, manifestar, simular, aparentar, o que aponta para manifestações de arrependimento do arguido, sem o compromisso de ter essas manifestações como verdadeiramente sentidas, mas também pode significar evidenciar e revelar-se arrependido, o que aponta para a existência do próprio arrependimento. Já estar significa, sem dúvidas, achar-se em situação especial, que se verifica arrependimento por parte do arguido.
Não se vê assim circunstância que, diminuindo consideravelmente a ilicitude ou a culpa, deva levar à atenuação especial da pena.
De todo o modo, e apesar de a questão ter sido só expressamente suscitada perante este Supremo Tribunal de Justiça, sempre se dirá que estando provado que o arguido «mostra-se arrependido», nas condições já analisadas, não está presente o fundamento constante da al. c) do art. 72.º do C. Penal: «ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados».
Não só o arguido deu mostras de arrependimento, o que é bem diverso de um arrependimento sincero, como se não postula qualquer acto demonstrativo de arrependimento e, como se viu, nem sequer tal arrependimento se funda numa confissão enquanto aceitação do desvalor da conduta.
Não se vê, pois, que se mostre verificada qualquer circunstância anterior ou posterior ao crime, ou dele contemporânea, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
O que afasta a pretendida atenuação especial.
E a pretendida diminuição da medida concreta da pena (unitária) que é ancorada exclusivamente naquela atenuação especial.
No entanto, não se pode esquecer que este Supremo Tribunal de Justiça deixou cair uma das duas circunstâncias qualificativas especiais do homicídio, o que não deve deixar de ter reflexos na pena calculada para esse crime e na pena unitária sequente.
E, no quadro das considerações tecidas pelas instâncias e que se acompanham, mostra-se adequada e justa a diminuição de um ano na pena pelo crime de homicídio, que passa a 14 anos de prisão com igual reflexo na pena unitária, que é fixada em 15 anos de prisão.
3.
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência diminuir as penas parcelar referente ao crime de homicídio qualificado e à pena unitária, nos termos sobreditos, no mais confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, no decaimento com a taxa de justiça de 5 Ucs.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2005
Simas Santos,
Santos Carvalho,
Costa Mortágua.