Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P2024
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
HOMICÍDIO QUALIFICADO
Nº do Documento: SJ200310150020243
Data do Acordão: 10/15/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J PENAFIEL
Processo no Tribunal Recurso: 843/01
Data: 02/14/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : 1. O crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132° do Código Penal, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n° l da disposição, moldado pêlos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n° 2 do artigo 132°.
2. O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos cláusula geral.
3. Porém, o que releva e está pressuposto na qualificação, é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa o homicídio qualificado.
4. A decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de í homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana.
5. Um meio particularmente perigoso: há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente.
6. Estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.
7. O meio que constitua um crime de perigo comum, a que se refere a alínea g) do artigo 132°, está relacionado com a definição dos crimes típicos de perigo comum como tal enunciados, previstos e classificados na sistemática do Código Penal: os crimes previstos nos artigos 272° a 286° especialmente, o incêndio, a explosão, e outras condutas especialmente perigosas, ou danos em instalações.
8. A "frieza de ânimo" deve entender-se como um estado ou uma atitude interna do agente, que manifesta forte insensibilidade e pensado domínio sobre o desvalor da acção, praticando o facto sem qualquer sentimento de inibição ou de apreensão de carácter perante o sofrimento da vítima.
9. A "frieza de ânimo" revela e manifesta-se na preparação e na racionalização da execução e na crua ausência de sensibilidade perante as consequências para a vítima e o sofrimento desta, e traduz uma deficiência de carácter, com manifestações acentuadamente desvaliosas na composição e revelação da personalidade do agente.
10. A reflexão sobre os meios empregados ou a persistência na intenção constituem, por seu lado, refracções da insensibilidade que está presente na frieza de ânimo e manifestam-se numa acção do agente do facto que foi pensada, reflectida, ponderada, e em que se revela tenacidade de propósito.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", identificado no processo, foi acusado pelo Ministério Público pela prática, em concurso real, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22°, 23°, n°s l e 2, 131° e 132, n.° l, e 2, alínea g), todos do Código Penal, de dois crimes de detenção ilegal de arma, pp. e pp. pelo artigo 6° da Lei nº 22/97, de 27 de Junho, e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148°, n°l, do Código Penal.

Efectuado o julgamento, o Tribunal Colectivo do 1º Juízo da comarca de Penafiel julgou a acusação procedente, e condenou o arguido como autor de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131°, 22, 23º e 74° do Código Penal, na pena de quatro anos e seis meses de prisão; de um crime de ofensas corporais negligentes, p. e p. pelo art. 148°, n.° l, do Código Penal, na pena de quatro meses de prisão, e de dois crimes de detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo artigo 6° da Lei 22/97, de 27 de Junho, na pena de sete meses de prisão, por cada um; em cúmulo jurídico o Tribunal condenou o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
Foram também julgados procedentes pedidos de indemnização civil formulados, tendo o tribunal condenado o arguido a pagar várias quantias a título de indemnização.

2. Não se conformando com o decidido em matéria penal, a assistente B interpôs recurso para o Supremo Tribunal, que motivou e terminou com a formulação das seguintes conclusões:
I. O acórdão recorrido condenou o arguido, entre outros crimes aferidos em concurso, como autor de um crime de homicídio simples na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.°, 23.° e 131° do Código Penal;

II. O arguido havia sido acusado como autor de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.°, 23.°, nºs 1 e 2, 131.°, 132.°, n.° 1, 2, g), todos do Código Penal (CP).

III. A assistente, no respectivo requerimento para a sua constituição processual, sustentou que o arguido se tinha constituído autor material do crime de homicídio qualificado, previsto e punido no art. 132.°, n.° 1, e, dentro do respectivo n.° 2, pela sua alínea i), na forma tentada, nos termos dos arts. 22.° e segs., do CP.

IV. Em face dos factos provados no acórdão recorrido, evidencia-se que a conduta do arguido é especialmente perversa e censurável sob o ponto de vista da culpa precipitada na sua conduta, pelo que deve aplicar-se o art. 132.°, em vez do art. 131.° aplicado pelo Tribunal recorrido;

V. A conduta do arguido subsume-se nos comportamentos exemplificativamente padronizados nas alíneas g), i), e até c), do art. 132.°, n.° 2;

VI. Por seu turno, participa da estrutura de desvalor e da ideia condutora agravante de outras alíneas do n.° 2 do art. 132.°, como sejam as alíneas. a), c), e d), do art. 132.°, n.° 2;

VIL Por isso, o comportamento provado do arguido, feito de um lastro acumulado do preenchimento, nuns casos, e de subsunção valorativa, noutros, de várias alíneas do art. 132.°, n.° 2, concorre para a densificação do desvalor axiológico-normativo e teleológico da cláusula geral do art.132º, n.° 1;

VIII. Assim, a conduta do arguido, verificada na sua globalidade, revela inequivocamente a especial perversidade ou censurabilidade do agente, demandada pelo artigo 132.°, n.° 1;

IX Está-se, portanto, perante um caso de não aplicação correcta dos critérios normativos de desvalor da conduta do arguido em face da factualidade apurada, pelo que pode o Tribunal ad quem sanar tal vício de direito, alterando a qualificação feita pelo Tribunal recorrido;

X. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos. 132.°, nºs 1 e 2, alíneas. g) e i), do CP;

XI. Deve considerar-se que o arguido praticou um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.°, 23.°, 132.°, nºs 1, 2, alíneas g) e i), do CP;

XII. Face à alteração de qualificação acima referida de homicídio simples na forma tentada para um crime de homicídio qualificado na forma tentada, deve ser aplicada a pena concreta que se mostre justa em função da culpa do arguido e satisfaça as necessidades de prevenção geral e especial em crimes desta natureza;

XIII. Atendendo, em particular;
a) à conduta anterior do arguido;
b) ao elevado grau de ilicitude do facto e de dolo do agente;
c) ao modo de execução, bem como os fins e os motivos que o determinaram;
d) às consequências do crime;
e) ao facto de a vítima não ter contribuído para a ocorrência do facto (sendo este apenas da responsabilidade do arguido);
f) à ausência de qualquer arrependimento; a pena concreta deve situar-se bem acima do meio da moldura penal abstracta aplicável, não devendo, contudo, ser inferior a 11 anos de prisão, para depois ser submetida a cúmulo;

XIV. Caso se considere que a decisão deve ser mantida no que à qualificação do crime se refere, entende-se que deve ser substancialmente agravada a medida concreta da pena aplicada pelo Tribunal a quo;

XV. O acórdão recorrido, ao aplicar a pena, antes de cúmulo, de 4 anos e 6 meses de prisão para o homicídio simples tentado, violou o preceituado no art. 71º do CP;

XVI. Atendendo a todos os elementos que já foram referidos nas conclusões XII e XIII, nomeadamente para operatividade dos critérios do art. 71.°, nºs 1 e 2 (nas suas diversas alíneas), no caso de se manter a qualificação em crise, a pena concreta deve situar-se bem acima do meio da moldura penal abstracta aplicável, não devendo, contudo, ser inferior a 8 anos de prisão, para depois ser submetida a cúmulo.

A recorrente pede, assim, que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se e modificando-se o acórdão recorrido no sentido pretendido.
O Ministério Público junto do tribunal recorrido, respondendo à motivação, entende que o recurso não merece provimento.

3. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta considera que nada obsta ao conhecimento do recurso no que se refere à questão da qualificação, mas entende que falta legitimidade à assistente para suscitar a discussão sobre a medida da pena, nos termos referidos nas conclusões 14ª a 16º.

4. Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo decidir.
Como se referiu, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta suscitou a questão prévia da não admissibilidade do recurso da assistente na parte, subsidiária, delimitada nas conclusões 14ª a 16ª, em que discute apenas a medida concreta da pena aplicada.
A recorrente, respondendo à questão prévia suscitada, invoca o seu interesse em agir, consubstanciado na própria pretensão de agravação da pena, já que a medida da pena «faz toda a diferença» para o que a recorrente entende ser a «justa punição do arguido», e para o seu interesse em beneficiar de um tempo mais dilatado de privação da liberdade do arguido.
Como foi decidido no assento 8/99, deste Supremo Tribunal, publicado no "Diário da República", Iª Série A, de 10 de Agosto, "o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir".

A recorrente, no caso e como resulta da sua resposta, não invoca um específico interesse em agir que não seja consubstanciado na própria pretensão de agravação da pena e na «justa punição do arguido».

Porém, a alteração e fundamentação para uma pena mais grave não pode representar uma satisfação, ou até a consideração dos interesses privados da vítima, pois a medida da pena não constitui uma alteração à posição processual assumida pela assistente, uma vez que o arguido, que não recorreu, continuará a ser condenado, e o Ministério Público, titular da acção penal, conformou-se com a medida da pena.

Mas, sendo assim, a decisão que fixou a medida da pena aplicada ao arguido não foi proferida contra a assistente, nem esta, de qualquer modo, invoca um concreto interesse em agir, próprio e diverso da mera pretensão de agravação da pena, e que traduza mais do que uma mera posição pessoal sobre a medida da «justa punição do arguido».

5. O Tribunal Colectivo considerou provados os seguintes factos:
O arguido e a assistente B, contraíram casamento católico no dia 31 de Julho de 1988, que veio a ser dissolvido por divórcio decretado em 15 de Março de 2001;
A vida conjugal de ambos era marcada por agressões físicas do arguido à assistente;

Situação que piorou após ter sido decretado o divórcio, dado que o arguido procurava e perseguia a assistente insultando-a e ameaçando-a que a matava, apontando-lhe para o efeito uma arma de fogo; tais factos deram origem aos inquéritos nºs 515/01 e 530/01 que correram os seus termos pelos serviços do M. P. do Tribunal de Penafiel, e posteriormente aos processos comuns nºs 351/01.7GBPNF e 358/01.4GBPNF, sendo que o primeiro dos referidos processos foi já decidido com transito em julgado, tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime continuado de ameaças, p. e p. pelo artigo 153°, n.° l e 2, com referência ao artigo 30° do CP;

No dia l de Agosto de 2001, no verso de um assento de nascimento de um seu filho com a assistente e de uma factura da Brisa, documentos que se encontram juntos a fls. 6 e 50, o arguido pelo seu próprio punho escreveu que por ter descoberto com quem a sua ex-mulher tinha alegadamente um relacionamento amoroso, situação que para si era imperdoável, preferia matá-la, deixando estes escritos no seu quarto;

De seguida dirigiu-se ao salão de cabeleireira onde a assistente trabalhava e quando esta, cerca das 12.00h, após uma curta saída, regressava ao estabelecimento, quando se encontrava junto à porta da entrada, surgiu-lhe o arguido saído de trás de um veiculo que aí se encontrava estacionado, dizendo-lhe que precisava de falar com ela;

O arguido munido de uma arma de fogo - pistola de funcionamento semiautomático - na mão direita, que não foi possível apreender e examinar, aproximou-se até menos de um metro da assistente e disse-lhe " benze-te que eu vou-te matar", dizendo-lhe a assistente para ter calma que mais tarde falaria com ele, ao que ele retorquiu: "não quero mais conversa contigo; tenho que te matar";

Acto contínuo, o arguido pretendendo tirar a vida à assistente, a menos de um metro de distância desta, levantou o braço e efectuou um disparo que a atingiu na hemi-face esquerda, área malar, pondo-se rapidamente em fuga;

A assistente foi de imediato transportada ao Hospital de Penafiel e daí transferida para o Hospital de S. João do Porto, onde foi submetida de urgência a uma intervenção cirúrgica;

O projéctil, cuja cápsula deflagrada de calibre 6,35mm Browning, apreendida e examinada no relatório pericial de fls. 116 e segs., teve um trajecto de cima para baixo, vindo a alojar-se na região cervical junto à carótida, onde ainda se encontra;

Em consequência do disparo com que foi atingida, a assistente sofreu as lesões descritas a fls. 199, 205, 241 a 243, que de forma directa e necessária lhe determinaram 126 dias de doença, com impossibilidade para o trabalho;

O arguido ao executar o disparo contra a ofendida quis causar-lhe a morte, que apenas não sucedeu por razões estranhas à sua vontade, designadamente a pronta assistência médica que lhe foi prestada;

A arma utilizada pelo arguido não se encontrava manifestada nem registada;
O arguido também não possuía licença para o uso e porte de arma;
O arguido agiu de forma voluntária e consciente e tinha perfeito conhecimento que o seu comportamento era proibido por lei;
O arguido é um indivíduo com tendências depressivas e sentimentos de inadequação, de inferioridade e baixa auto-estima.;
Apresentando-se como um indivíduo com um pobre componente afectivo, emocionalmente frio e de carácter neurótico;
Tem capacidade intelectual que indica estar ligeiramente abaixo da média;

O arguido respondeu e foi condenado no âmbito do processo comum n° 351/01.7GBPNF pela prática de um crime continuado de ameaças, p. e p. pelo artigo 153°, n.° l, e 2, com referência ao artigo 30° do C.P,. na pena de l ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de quatro anos;
As testemunhas de defesa, da freguesia de onde o arguido é originário, têm-no por um homem pacato, e profissional da construção civil.

6. O crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132º do Código Penal, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no nº 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º.

O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.

Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.

Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.

A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, págs. 27-28).

O modelo de construção do tipo qualificado qualificado pelo especial tipo de culpa - através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. idem, pág. 28).

A decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana.

7. A integração da actuação do arguido na definição jurídico-penal que lhe caiba há-de ser determinada pelos factos provados, os quais, no caso, sendo, como são, suficientes e isentos de vícios lógicos, constituem a inultrapassável base de decisão.

O crime de homicídio apenas pode ser qualificado e integrar o crime do artigo 132º do Código Penal se, como se referiu, a atitude do agente manifestada no facto, e medida e mediada pela valoração inscrita nas circunstâncias enunciadas na lei através dos exemplos-padrão, se apresentar especialmente censurável ou a revelar e a expor externamente especial perversidade.

Os factos provados, tal como se apresentam, não revelam uma atitude do arguido que se possa qualificar como de especial censurabilidade, particularmente por relação com a gravidade e intensa censurabilidade que se manifesta em todo o crime de homicídio em que se afecta o bem mais intensamente valioso, inerente à própria existência do género humano: a vida, como valor sobre todos os valores, inviolável, como proclama o artigo 24º, nº 1, da Constituição.

Com efeito, e começando pela alínea g) do artigo 132º, a interpretação e integração efectuada pelo acórdão recorrido não merece qualquer reparo.

O meio utilizado (arma de fogo) é perigoso pela potencialidade específica que tem para causar dano à integridade física ou à vida. A lei refere-se, porém, não apenas a meio perigoso, mas a meio particularmente perigoso. Este há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente (cfr., v. g., o acórdão do STJ, na CJ (STJ), ano VIII (2000), pág. 241).

Estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.

Saliente-se, nesta perspectiva, o essencial dos factos provados, que apenas permitem salientar que a vida conjugal do arguido e da sua ex-mulher (a assistente) foi «marcada por agressões físicas» e «ameaças»; que no dia 1 de Agosto de 2001 o arguido escreveu que, «por ter descoberto com quem a sua ex-mulher tinha alegadamente um relacionamento amoroso», o que para si era «imperdoável», «preferia matá-la»; dirigiu-se ao local de trabalho da assistente, e quando esta regressava de uma saída abordou-a «dizendo-lhe que precisava de falar com ela». Nessa ocasião, o arguido «munido de uma arma de fogo», «aproximou-se até menos de um metro da assistente», dizendo-lhe, após troca de palavras, «benze-te, que eu vou-te matar», e de aquela lhe dizer «para ter calma que mais tarde falariam», disparou a arma atingindo a assistente.

Apenas por esta descrição, os factos provados não revelam, no que respeita ao meio utilizado (uma arma de defesa), uma especial censurabilidade ou perversidade do arguido. O meio utilizado, nas circunstâncias em que o foi, perigoso como a maioria dos meios com que se praticam crimes de homicídio, não é daqueles a que a lei se quer especialmente referir com a noção de "particularmente perigoso".

8. Por isso mesmo, também não apresenta autonomia o facto de a arma com que o arguido disparou ser ilegalmente detida, mesmo que a detenção constituísse um crime que o acórdão recorrido qualifica como de perigo comum.

O meio que constitua um crime de perigo comum, a que se refere a alínea g) do artigo 132º, está manifestamente relacionado com a definição dos crimes típicos de perigo comum como tal enunciados, previstos e classificados na sistemática do Código Penal: os crimes previstos nos artigos 272º a 286º, e especialmente, o incêndio, a explosão, e outras condutas especialmente perigosas, ou danos em instalações.
A mera detenção da arma, que não tem autonomia configurativa em relação ao meio utilizado, não revela, por si e nas respectivas circunstâncias de utilização, a especial censurabilidade que se manifesta na prática de um crime de perigo comum e que está pressuposta na qualificação do crime de homicídio.

9. As circunstâncias de facto provadas também não mostram que o arguido tenha agido com "frieza de ânimo" ou "reflexão sobre os meios empregados", no sentido suposto pela alínea i) do artigo 132º como revelador de especial censurabilidade.

A "frieza de ânimo" deve entender-se como um estado ou uma atitude interna do agente, que manifesta forte insensibilidade e pensado domínio sobre o desvalor da acção, praticando o facto sem qualquer sentimento de inibição ou de apreensão de carácter perante o sofrimento da vítima. Mais do que anomia perante os valores do direito, revela e manifesta-se na preparação e na racionalização da execução e na crua ausência de sensibilidade perante as consequências para a vítima e o sofrimento desta; a "frieza de ânimo" traduz uma deficiência de carácter, com manifestações acentuadamente desvaliosas na composição e revelação da personalidade.

A reflexão sobre os meios empregados ou a persistência na intenção constituem, por seu lado, refracções da insensibilidade que está presente na frieza de ânimo. Manifestam-se numa acção do agente do facto que foi pensada, reflectida, ponderada, e em que se revela tenacidade de propósito; o agente, tendo tido no tempo precedente da acção ou na sequência plurifactual desta, oportunidade de representar o desvalor da conduta e de se deixar tocar pelos contra-estímulos das oportunidades de representação do desvalor da acção, manteve o propósito, manifestando na permanência do estado de espírito contra os valores uma personalidade que refracta uma indiferença altamente censurável em relação a valores comunitários fundamentais, a revelar, por isso, especial censurabilidade ou perversidade.

Nos factos provados, contudo, não se manifesta a existência de uma firmeza anterior de propósito, ou de reflexão na preparação do facto, tenacidade na execução ou irrevocabilidade de uma eventual decisão que possam ser indiciadores de uma forte intensidade da vontade de praticar o facto: não se manifesta, assim, a especial intensidade de culpa que está pressuposta na qualificação do homicídio.

10. Por fim, o caso sob apreciação não pode, ao contrário do que pretende a recorrente, ser assimilado analogicamente aos motivos e às condições que, mediados pelas circunstâncias referidas na alínea a) do artigo 132º, seriam susceptíveis de revelar uma particular atitude desvaliosa do agente e integrar o homicídio qualificado.

E isto não apenas ou tanto pela não integração na delimitação directa do exemplo-padrão, como pela não verificação no caso de uma atitude do arguido que ponha a descoberto uma forte insensibilidade como a que é pressuposta pela não inibição na prática do facto perante os laços muito especiais aí previstos.

11. Improcedem, assim, os motivos de impugnação da recorrente.
Termos em que, acordam neste Supremo Tribunal:

a). Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte em que a recorrente pede a alteração da qualificação;
b) Rejeitar o recurso, na parte em que a recorrente pede a agravação da pena - artigos 401º, nº 1, alínea b), e nº 2, 414º, nº 2 e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Fixa-se a taxa de justiça em 4 UCs.

Lisboa, 15 de Outubro de 2003
Henriques Gaspar
Antunes Grancho
Políbio Flor
Soreto de Barros