Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15/22.8TRLSB.S2
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO DA SILVA DIAS
Descritores: RECURSO ORDINÁRIO
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
ABUSO DE PODER
Data do Acordão: 06/19/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. Não merece censura a análise feita na decisão instrutória sob recurso relativa à forma como decorreu a conferência de progenitores, ainda que se possa discordar e/ou mesmo discutir em sede disciplinar (a que a assistente refere ter recorrido) os métodos utilizados pela arguida/magistrada, para dirigir aquele ato judicial a que presidia, naquele contexto “ruidoso” em que tudo se passou, em espaço limitado (no gabinete), sendo certo que, de todo o modo, isso não significa que, essa forma de atuar (designadamente quando se dirigia aos intervenientes na diligência, considerando igualmente a atitude destes ao longo daquele ato e forma como tudo se ia desenrolando) constitua a prática de um ato criminalmente relevante ou a ameaça da prática de qualquer ato que visasse prejudicar a assistente (não havendo indício de a arguida pretender de alguma forma prejudicar a menor).

II. De todo o modo, incumbe destacar que os Magistrados, nomeadamente quando dirigem atos processuais (como é o caso das conferências de progenitores), devem dirigir-se aos respetivos intervenientes com urbanidade, respeito, educação e, obviamente, quando se dirigem às partes ou sujeitos processuais envolvidos (no caso aos progenitores) devem observar ainda v.g. o princípio da igualdade em todas as suas vertentes, sem fazer qualquer tipo de discriminação, tendo em atenção o disposto no art. 4.º da Convenção de Istambul, a que Portugal aderiu e está vinculado. A forma menos urbana ou mais autoritária, de tratar um dos progenitores (no caso a progenitora que, não era estrangeira e não precisava de interprete para se fazer entender, que fazia frequentes interrupções) ou o tom de voz mais alto usado para conduzir a diligência, coloca a questão dessa solução adotada não ser a mais adequada ao caso, mas essa matéria só podia ser avaliado em termos disciplinares, não chegando contudo para integrar a prática de qualquer crime, designadamente, o tipo objetivo do crime de abuso de poder nos exatos termos em que lhe foi imputado no RAI, que delimita o objeto da instrução.

III. Não se pode extrair da referida diligência processual (conferência de progenitores) realizada em ........2018, o mínimo de indícios que a arguida, no exercício das suas funções, tivesse atuado no sentido de prejudicar a assistente, antes resultando que o que foi feito visou satisfazer o interesse da menor e o seu livre desenvolvimento, assegurando a convivência com ambos os progenitores, sendo no que respeita ao pai, uma aproximação e convívio gradual, sem fiscalização da mãe. O facto da mãe não concordar com tal decisão da Srª Juiz que presidiu a essa conferência de progenitores, nas circunstâncias e contexto em que tudo se passou, com todos os antecedentes conhecidos no processo e apensos, não significa que aquela Magistrada, aqui arguida, tenha feito um mau uso ou se tenha desviado dos poderes funcionais que lhe estavam confiados, nem tão pouco revela que tivesse atuado com excesso ou abuso dos poderes que lhe estavam confiados ou com desrespeito das formalidades que tinha de cumprir por força da lei.

IV. Posteriormente, por intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de C… (CPCJ de C…), a que a arguida é alheia, a mãe da menor aceitou e assinou um acordo de promoção e proteção com aplicação de medida cautelar de apoio junto dos pais, na pessoa do pai, por um período de 3 meses, com a finalidade de salvaguardar o bem-estar da menor e promover vínculos e laços afetivos com a família paterna. Nesse acordo, assinado pela mãe em ........2019, foi aceite por esta que a jovem iria para a ... com o pai, ali vivendo com ele pelo referido período de tempo, o que veio a suceder.

V. Foi para regularizar aquela situação de facto em que a menor/jovem se encontrava (na ..., a quem tinha sido entregue ao pai, com quem estava a residir, na sequência da medida cautelar de apoio junto do pai) ainda em ..., que a arguida em ........2019 proferiu o despacho de alteração provisória ao abrigo do art. 28.º do RGPTC, das responsabilidades parentais da jovem, tendo em atenção a promoção de ........2019. Portanto, ao contrário do que a recorrente refere, não se pode falar numa “reversão da guarda” ou que com o despacho proferido em ........2019, a arguida violou (abusando ou fazendo um mau uso) (dos) os seus deveres funcionais, designadamente, com intenção de prejudicar a assistente, mãe da menor, não havendo, sequer, indício algum da arguida ter obtido qualquer benefício para si ou para outrem.

VI. O facto da mãe da jovem menor não se conformar igualmente com essa decisão de ........2019 também não significa que então a mesma decisão foi proferida em benefício do pai da jovem, com quem a mesma se encontrava de facto na ..., na sequência do dito acordo de ambos os progenitores. Da divergência da progenitora em relação às decisões tomadas pelas Srª. Juiz não resulta que esteja indiciada a prática do imputado crime de abuso de poderes p. e p. no art. 382.º do CP, tal como configurado pela assistente no RAI.

VII. Quanto ao recurso interposto pela progenitora dessa decisão proferida em ........2019, verifica-se que o despacho que admitiu o recurso foi proferido no mesmo dia em que o processo foi concluso à juíza (em ........2019), aqui arguida, daí não se extraindo qualquer responsabilidade na demora da sua tramitação. Ao contrário do que a assistente alega no RAI não ficou demonstrado, nem está minimamente indiciado que a arguida tivesse ordenado que o recurso apenas subisse em ........2020 (nem a arguida tinha qualquer poder de reter o recurso ou de dar tal ordem aos funcionários). Também o facto de anteriormente a arguida ter referido que um eventual recurso da sua decisão (como bem diz o Sr. PGA) «“não teria efeito suspensivo dessa decisão, mas meramente devolutivo, não pode ser qualificado sequer como qualquer espécie de “ameaça”, pois que é resultante das normas legais aplicáveis.»

VIII. Da prova existente nos autos, não resulta que perante os dados concretos existentes no processo, mesmo depois de ter sido proferida aquela decisão provisória de ........2019 (que conformou a situação de facto já existente), apesar das demais informações que vieram a ser conhecidas no processo, a arguida tivesse por finalidade outros fins que não fossem os de garantir o superior interesse da criança (não havendo qualquer evidência que com a sua atuação se tivesse desviado dos seus poderes funcionais ou deles tivesse abusado para obter benefícios e/ou tivesse agido com intenção de causar prejuízos à mesma menor ou à assistente).

IX. Analisada assim toda a prova existente nos autos, podemos concluir que não há indícios da prática pela arguida do crime de abuso de poder p. e p. no art. 382.º do CP que lhe era imputado no RAI, uma vez que não há quaisquer indícios que permitam considerar preenchidos os respetivos tipos objetivo e subjetivo.

X. Quanto a eventual responsabilidade disciplinar, que a recorrente refere ter recorrido, terá de ser apreciada no local/foro próprio, que é o competente para o efeito e que não se confunde com responsabilidade criminal.

Decisão Texto Integral:
*

Proc. n.º 15/22.8TRLSB.S2

Recurso

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

I.i. A assistente AA notificada da decisão do TRL de ........2024, de não pronúncia de BB, juíza de direito no Juízo de Família e Menores do Tribunal de ... e, consequente arquivamento dos autos, veio interpor recurso para o STJ, apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem sombreados, negritos e/ou sublinhados):

1- Não obstante o respeito que as decisões judiciais, sempre e em qualquer circunstância merecem, vem o presente recurso interposto da douta Decisão Instrutória, por não se conformar a Assistente com a mesma e que decidiu não pronunciar a arguida e, em consequência, determinou o arquivamento do autos por “Analisada toda a matéria de facto imputada como suporte do crime, verifica-se que, de per se, considerando apenas o respectivo elemento literal, não tem suporte para preencher o elemento típico da intenção de causar prejuízo.”

2 - A Assistente deu entrada da presente participação criminal a ... de ... de 2019 tendo a mesma sido notificada da decisão instrutória que determinou o arquivamento dos Autos de ... de ... de 2024, por comunicação da secretaria expedida a ... de ... de 2024.

3 - Salvo o sempre devido respeito por melhor entendimento, a referida decisão instrutória desconsidera todos os elementos de prova carreados para os Autos em sede de inquérito, replicando em diversas passagens o anterior despacho de rejeição da Abertura de Instrução.

4 - Quanto o cerne da questão no caso sub judice, certo é que não obstante os elementos que, objectivamente haviam sido identificados do requerimento de abertura de instrução como indiciadores da prática dos factos, os mesmos foram desconsiderados ou confundidos com elementos externos aos factos denunciados, como importará sublinhar e reter.

5 - Na “IV – Apreciação”, a Decisão Instrutória analisa os elementos do tipo de crime em crise – crime de abuso de poder – tendo em conta que pode ocorrer pelo exercício abusivo de um poder ou pela violação de deveres inerentes à função e por acção ou omissão.

6 - No primeiro caso, as suas três situações admissíveis (por se exceder os limites da competência funcional, em razão da natureza do acto, da hierarquia, do lugar e do tempo; por desrespeito a formalidades legais essenciais ou violação de lei; por desvio de poder – que consiste no uso de poderes conferidos para fim que não correspondam ao exercício do cargo, o que só ocorrem face ao uso de poderes discricionários e só é relevante enquanto exercício abusivo quando o interesse público é preterido em razão de prossecução de interesses privados).

7 - No segundo caso, a violação de deveres funcionais, gerais ou específico, - refere - será residual, por reporte a outros normativos que a prevêem – tais como a violação dos deveres de isenção no âmbito do crime de favorecimento pessoal, de recusa de cooperação, de sigilo e de zelo.

8 - Sem prejuízo da necessidade (ou não) de alteração da qualificação jurídica que poderá ou não ocorrer tendo em conta os factos concretamente imputados, importa aferir se dos Autos resultam indícios da eventual prática do referido ilícito, em qualquer uma das suas vertentes.

9 - Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-05-2022 no Processo 218/20.0PBBGC.G1 em que foi Relatora a Senhora Desembargadora Dra. MARIA TERESA COIMBRA “I - O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente em reacção a decisão de arquivamento por parte do Ministério Público, reveste a natureza jurídica de uma acusação em sentido material, desempenhando uma função idêntica à da acusação formal. II - No entanto, uma vez que a lei admite que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mesmo que nele não se perceba a forma tradicional de uma acusação, não deverá ser rejeitado se contiver a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, sempre que possível, o lugar, o tempo, a motivação da prática, o grau de participação do agente, outras circunstâncias relevantes para a aplicação da sanção e as disposições legais aplicáveis.(…)”

10 - Efectivamente, quaisquer deficiências verificadas, designadamente na narração do elemento objectivo ou subjectivo, poderão ser adequadamente supridas através de recurso aos mecanismos que permitem a alteração não substancial dos factos – artigos 303.º e 358.º do CPP podendo também vir a ser precisados, apurados, esmiuçados, alguns dos factos narrados.

11 - Ora, ao contrário do vertido na apreciação da douta decisão instrutória, importa considerar que a jovem CC não era – infelizmente – uma adolescente normal, no sentido em que a mesma tinha sido diagnosticada por diversos Especialistas e sempre no mesmo sentido – conforme resulta evidente de fls., na Certidão do Processo de Regulação das Responsabilidades e seus Apensos.

12 - Todos os exames clínicos carreados para aqueles Autos (nestes juntos pela Certidão de fls) demonstram que a Mãe – através da sua Il. Mandatária, tinha tido o cuidado de transmitir ao Tribunal a situação sensível em que a filha se encontrava, de resto com prescrição de medicação conforme resulta de fls.

13 - Seguida, à data, pela ... DD, Médica Pedopsiquiátrica que assinalou – nos seus diversos relatórios – a conclusão de Sindrome ... e de ... (...), a par de lesão frontal direita, o que viria a ser confirmado por avaliação neurológica e neuropsicológica (Conforme documentos 1 a 11 que ora se juntam por facilidade de consulta).

14 - Acresce que, como igualmente comunicado pela Mãe na Diligência (e atente-se a importância de num curto período de tempo se transmitir a informação basilar que permitirá ao Julgador formar a sua convicção face à falta de elementos) a Criança havia sido submetida a intervenção cirúrgica complexa – para cirurgia maxilo-facial bem como à colocação de aparelho ortodôntico e, apenas por isso se justificando eventuais interrupções para transmitir tais informações quando era sugerido determinadas hipóteses que pudessem ser contra-indicadas.

15 - Por outro lado, nunca – em ... – a menor teria tentado colocar termo à sua vida – até porque acompanhada há vários anos e medicada para minimizar as características inerentes ao seu diagnóstico, sendo-lhe, à chegada à ..., suspendida toda a medicação – facto que igualmente foi comunicado ao Tribunal Português conforme consta dos Autos a fls.

16 - E é precisamente tal interrupção que espoleta na jovem CC todos os problemas que viriam a conduzir ao final trágico. Problemas que não obstante prontamente comunicados ao Tribunal Português – conforme certidão de fls, sem que tenham sido tidos em consideração.

17 - Acresce que – tal como resulta da prova documental e ao contrário do injustamente referido relativamente ao pedido do aumento na pensão de alimentos que seria para uso próprio da Mãe – tais valores seriam apenas para custear as despesas medicas - compatível com a prova documental das intervenções cirúrgicas, colocação de aparelhos ortodônticos, acompanhamento pedopsiquiátrico e respectivos exames neurológicos que – sabemos, e temos obrigação de saber – são dispendiosos e que não se aconselham ser efectuados no SNS tendo em conta os tempos de espera muitas vezes de anos que não se coadunam com a urgência dos tratamentos e preocupações de uma Mãe (um Pai).

18 - A simples preocupação daquela Mãe era a de salvar a sua Filha, porque a conhecia bem, porque conhecia o Pai, naquele momento um homem incapaz de saber tratá-la e protegê-la mas que o Tribunal Português considerou “(…) a mesma (a diligência) visou adequar a vida da jovem aos seus interesses de convívio saudável e livre com o pai, de modo a promover a aproximação entre ambos, o que sendo benéfico para a filha seguramente era benéfico para a mãe (…)” .

19 - Repare-se que foram diversos os peritos que conheceram de perto a situação – conforme resulta dos Autos e que haviam já transmitido ao Tribunal – assim o Dr. EE - muito pessimista quanto ao temperamento e comportamento do Pai da CC.

- A Directora do Colégio ..., a qual elaborou relatório sobre a brutalidade do comportamento do Sr. FF (Pai), dizendo que ele não respeitava a família, o País e a escola da filha.

20 - Efectivamente, a menor não teve qualquer tratamento na ..., em ..., sendo apenas dado chá de Camomila e comprimidos para dormir, e aguardando por qualquer despacho do Tribunal Português que lhe permitisse retornar – nesse sentido GG – neste sentido o relatório da instituição

21 - Não se trata aqui – nos presentes Autos e ao contrário do referido em diversas passagens da decisão instrutória como “Foi isto que foi explicado à mãe, mas ela não quis perceber; e é isto que, cinco anos e uma horrível tragédia depois, revela não ter percebido, continuando a centrar exclusivamente no prejuízo dos seus interesses pessoais (…)” – da luta de uma Mãe pelos seus interesses [económicos] mas sim sentimentais.

22 - Não se tratava ali da luta de uma Mãe pelos seus interesses [económicos] –e sem prejuízo de, no futuro – como será de ter em consideração - que além dos danos próprios da vítima, há que reconhecer a produção directa de danos na esfera jurídica de terceiros, designadamente a Assistente e sua Mãe, sendo estes divisíveis em danos não patrimoniais, prescreve o nº2 do art. 496.º do Código Civil, já que que na falta de cônjuge e descendentes tem direito a indemnização os ascendentes, o que seria o caso da ofendida Assistente, quer danos patrimoniais, como eventuais apoios que a Filha poderia, em termos materiais, vir a prestar para as despesas do agregado familiar, nos termos do nº3 do art. 495.º do Código Civil.

23 - O que há-de ser reconhecido – em quaisquer dos casos – era a existência de uma real preocupação da Mãe, com quem a menor sempre tinha habitado – pelo bem estar de uma criança doente, medicada e que precisava de acompanhamento constante e que – nesta diligência – via – como viu – a menor a ser-lhe “arrancada” sem que se atendesse às suas preocupações.

24 - O que há-de ser reconhecido – em qualquer dos casos – é que não obstante o respeito que todas as decisões judiciais merecem – aqui – como ali – as decisões tomadas o foram sem que a real situação da menor fosse atendida, confundindo-se a preocupação da Mãe Assistente e ora recorrente – com o exercício desprendido e exclusivo dos seus interesses pessoais – o que não se aceita nem pode aceitar.

25 - A HH nunca tinha estado com o Pai na ..., não sabia falar alemão, chegou à ... e viu-lhe retirada a medicação, o que a levou a destabilizar a sua situação clinica e a empurrou para uma instituição médica onde permaneceu sem medicação.

26 - Assim, é injusta a Apreciação da, aliás douta, decisão Instrutória quando refere que “(…) Manifestamente o que estava em causa não era o interesse da mãe, mas o interesse da filha na continuidade do tratamento (…)” quando a Mãe sabia, e o Tribunal Português sabia, que tal tratamento tinha sido interrompido e que todos apelavam ao retorno da menor a Portugal.

27 - Será, pois, injusta a Apreciação da, aliás douta, decisão Instrutória quando refere que “o interesse da mãe no bem-estar da filha incluía, ou devia incluir numa perspectiva objectiva de experiência comum, a sua recuperação clínica (…)” quando se fala de uma criança fora da sua zona de conforto – ..., rodeada de pessoas que não falam a sua língua mas sim Alemão, e cuja terapêutica fixada pela sua médica e confirmada pelo Hospital... havia sido – logo à chegada, retirada.

28 - Mas é mais injusto ainda, no que à aliás douta Apreciação se cuida, todas as referências ali impressas e que poderão, induzir em erro quem não conheça o processo de Regulação e seus apensos, e que desenham a assistente como um monstro que apenas pensa em si e não no superior interesse da criança quando alertou naquela diligência – ora posta em crise – para todos os riscos que uma aproximação do outro progenitor – não supervisionada por si enquanto principal cuidadora – poderiam trazer para a frágil vida da CC.

29 - E foi precisamente quanto a tal que a Mãe se referiu durante toda a diligência e que – na apreciação da decisão instrutória que se alheia dos factos objectivos imputados no Requerimento de Abertura de Instrução – para a caracterizar como alguém que apenas pretende dinheiro e afastar o Pai da vida da filha “(…) A assistente bateu-se unicamente por dois objectivos: maior pensão por parte do pai e exclusão deste de contactos com a filha que fossem além do simples telefonema, o que deixa sem suporte a ora alegada preocupação sobre o risco de vida da filha (…).” – o que não é correcto e não se aceita nem pode aceitar conforme o supra exposto.

30 - Por outro lado, com tal Apreciação deixou de ser apreciada em concreto e sem mais, os factos que objectivamente foram alegados do Requerimento de Abertura de Instrução e que, removidas que fossem tais “apreciações”, ficariam por analisar, como ficaram.

31 - A participação apresentada trata de factos susceptíveis de integrar, em abstracto, crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art. 382.º do Código Penal.

32 - Decorre do citado preceito que “O funcionário que, (…), abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

33 - Ora, verifica-se sme estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime, uma vez que decorre do citado art. 382.º que incorre na prática de tal crime o funcionário - Que abusar de poderes ou violar deveres inerentes à sua função - Com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

34 - Com a referida conduta, e i - com recurso aos poderes de que estava investida, a denunciada procedeu à reversão da guarda, atribuindo-a ao Pai da Menor CC, ii - e, em violação dos deveres inerentes à sua função reteve o recurso interposto pelo período de um ano, iii - Tendo, antes de praticar tais condutas, assumido perante os presentes na Conferência de Pais que o poderia fazer

35 - Tal como sumariado no Ac. TRC de 27-11-2013 : “1. O crime de abuso de poder constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; 2. O crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais. Mas, com um elemento nuclear: o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.”

36 - Em concreto no âmbito do processo 2704/15.4... e apensos, em concreto, em Apenso de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, pelo Apenso A, teve lugar conferência de Pais a ... de ... de 2018.

37 - Tendo a referida diligência sido gravada digitalmente através do sistema H@bilus Media Studio, conforme suporte digital de fls., estando presentes na referida diligência, entre outras, a anterior mandatária da Denunciante, Sra. Dra. II e a escrivã auxiliar JJ.

38 - A arguida vem a proferir em ... decisão que inverte a guarda (Conf.fls), sendo que a Assistente, através da sua Mandatária, faz dar entrada a ... de ... de 2019 de recurso quanto à referida decisão (Conf. fls)

39 - Ora, não obstante ser admitido o referido recurso por despacho de ... de ... de 2019, que ordena seja autuado por apenso, a Denunciada apenas viria a ordenar a sua subida do mesmo um ano depois, a ... de ... de 2020 (Conf. Fls dos Autos)

40 - Apenas a denunciada tinha o poder para ordenar a subida do recurso interposto pela mandatária da denunciante, tendo – em prejuízo da posição processual da mesma – retido indevidamente o recurso interposto pelo período de um ano.

41 - Com a referida conduta, e sme, a Denunciada quis e conseguiu prejudicar a Denunciante, tal como havia comunicado na referida Diligência de ..., e não obstante as comunicações da CPCJ e da homologa alemã, viria a reverter a guarda por despacho de ... de ... de 2019, e – face à interposição de recurso, viria a retê-lo por um ano.

42 - Com a referida conduta, a Denunciada prejudicou a Denunciante, retirando-lhe a guarda da Filha, como havia referido na Conferência e, manteve a referida decisão – não obstante comunicações juntas aos Autos pela entidade homologa à CPCJ, nomeadamente de ... de ... de 2020, alertando para a situação grave da menor retirada do seu ambiente familiar em ..., com tentativas de suicídio.

43 - E foi pela arguida referido naquela diligência de ... de ... de 2018, aos 48 minutos “diz-se tantas coisas e depois caímos em contradição. E ate pode haver, seguramente, e isto até está a ser gravado e não tenho problemas com o que digo e até podem vir futuramente a fazer queixa de mim onde quiserem mas as pessoas dizem tanta coisa que depois caem em contradição e depois até pode existir coisas que correspondem à verdade, só que a informação é tanta, tão contraditória que é muito difícil depois já nós acreditarmos. É como Pedro e o Lobo. É a mesma coisa.” Referido acto continuo aos 58 minutos "eu não estou a pedir a opinião dela, eu estou a mandar! Isto é uma decisão judicial que ela tem de cumprir.”

44 - Durante a referida diligência e ao longo de mais de 1 hora e 40 minutos a denunciada dirigiu-se à denunciante falando mais alto, e ameaçando com “daqui a bocado está num processo de promoção e protecção” “Oh AA, vai responder ao que lhe perguntei?!”, “Ela pode inclusivamente ir morar para a ... – chama-se reversão da guarda”, referido aos 35 minutos “Eu até vou fingir que não estou a entender”.

45 - Na mesma diligência a Mma. Juiz denunciada acusa a Denunciante de “Está no caminho de uma alienação [parental]”, dirigindo-se depois ao Pai da menor “Mas agora eu preciso que o Pai me diga o que quer fazer hoje, que tenho de agilizar isto um bocadinho” e dirigindo-se de novo para a Denunciante, aos 56 minutos: “E que eu saiba que a senhora está nas redondezas. Garanto que há uma reversão da guarda e que ela vai já para a ....”

46 - E quando a Denunciante tenta justificar a sua preocupação, a Denunciada, em viva voz refere “Não me diga mais nada. Que eu saiba que a senhora o está a fazer.”

47 - Ora, verifica-se que, salvo o sempre devido respeito por melhor opinião, que não tem razão a Mma Juiz Desembargadora quando no seu despacho refere que “(…) “Analisada toda a matéria de facto imputada como suporte do crime, verifica-se que, de per se, considerando apenas o respectivo elemento literal, não tem suporte para preencher o elemento típico da intenção de causar prejuízo (…)”

48 - Ao contrário do referido na Decisão Instrutória, verifica-se, pois, a prática, pelo agente, de comportamento que integra o elemento subjectivo do tipo de crime de abuso de poder, sendo que durante a referida diligência, é deixado claro que a Denunciante pode ser prejudicada com a decisão de reversão da guarda sendo que, caso tal sucede (como viria a suceder) eventual recurso seria meramente devolutivo e o tempo para eventual decisão tornaria o mesmo inútil.

49 - Nesse sentido, e aos sessenta minutos a arguida refere "O recurso é meramente devolutivo. Sabe o que é que quer dizer? Que ela vai, depois a Relação decide.” “A sua postura a partir de hoje vai mudar. Acabou a conversa!”

50 - A Assistente, através da sua Mandatária, faz dar entrada a ... de ... de 2019 de recurso quanto à referida decisão, e não obstante ser admitido o referido recurso por despacho de ... de ... de 2019, que ordena seja autuado por apenso, a Denunciada apenas viria a ordenar a sua subida do mesmo um ano depois, a ... de ... de 2020.

51 - Apenas a denunciada tinha o poder para ordenar a subida do recurso interposto pela mandatária da denunciante, tendo – em prejuízo da posição processual da mesma – retido indevidamente o recurso interposto pelo período de um ano.

52 - Com a referida conduta, a Denunciada prejudicou a Denunciante, retirando-lhe a guarda da Filha, (o que necessariamente terá de ser considerado como elemento típico do crime “prejuízo a outra pessoa”) como havia referido na Conferência e, a denunciada manteve a referida decisão – não obstante comunicações juntas aos Autos pela entidade homologa à CPCJ, nomeadamente de 13 e ... de ... de 2020, alertando para a situação grave da menor retirada do seu ambiente familiar em Portugal, com tentativas de suicídio.

53 - No caso sub judice, está sobejamente demonstrada a existência de indícios suficientes para que a arguida possa ser submetida a julgamento, tendo em conta os factos objectivos carreados para os autos aliados à prova documental existente e – naturalmente – com a prova testemunhal que – na devida sede – poderá permitir pela verificação (ou não) da prática do crime em causa.

Termina pedindo que o Recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja revogada a decisão de não pronúncia e ordenado o prosseguimento dos autos, protestando juntar 31 documentos.

I.ii. A recorrente enviou pelo correio em ........2024 os documentos que protestou juntar no recurso, junção essa que foi notificada ao Ministério Público e à mandatária da arguida.

II. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1. A intervenção da arguida, enquanto juíza titular do processo de regulação de responsabilidades parentais, foi sempre pautada em conformidade com os seus poderes funcionais e em respeito dos deveres inerentes às suas funções, nomeadamente na salvaguarda e proteção do superior interesse da criança.

2. A reversão da guarda decidida não se apresenta como descabida ou desalinhada com os elementos constantes do processo e encontra-se fundamentada em conformidade com o entendimento que o tribunal fez da melhor salvaguarda do superior interesse da criança.

3. Não existem indícios que com tal decisão a arguida quisesse auferir um benefício ilegítimo, beneficiar outrem, ou, ainda, de prejudicar alguém.

4. Não ocorre qualquer retensão do recurso pela arguida, pois que tal gestão processual cabe exclusivamente à secção.

Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso e confirmada a decisão instrutória recorrida.

III. Na resposta ao recurso e à junção dos documentos a arguida alega em síntese (transcrição sem negritos):

A) Nos termos do n.º 1 do artigo 165.º do CPP, “O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.” pelo que os documentos juntos pela recorrente com as alegações não podem ser considerados, devendo ser desentranhados dos autos;

B) Na sequência da decisão que rejeitou o RAI, considerou o Supremo Tribunal de Justiça que “O RAI satisfaz os requisitos da descrição fatual do n° 2. Tanto no objetivo como no subjetivo. No art. 26° do RAI a assistente afirma que “Com a referida conduta, e smo, a Denunciada quis e conseguiu prejudicar a Denunciante.” E, depois de salientar o abuso de poderes ou a violação de deveres e a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, como elementos típicos integrantes do artigo 382° do CP, no artigo 30°, adita que “Com a referida conduta, a Denunciada prejudicou a Denunciante, retirando-lhe a guarda da Filha, como havido referido na Conferência”. E no artigo 34° acrescenta que “No caso em apreço, está em causa a conduta de uma Juiz de Família e Menores que interferiu por ser Juiz titular do processo, no sentido de prejudicar a Denunciante revertendo a guarda, num processo de Alteração das Responsabilidades Parentais e num Recurso sobre uma decisão sua impedindo que o mesmo subisse pelo que estão indiciados os elementos objectivos e subjectivos do tipo.” e, consequentemente, revogou a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que rejeitara o requerimento de abertura de instrução;

C) Estando em causa a matéria alegada em sede de RAI, a descrição feita em sede de alegações de recurso em tudo aquilo que extravase o âmbito do RAI – e que foi objecto de apreciação na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa – não pode ser considerada;

D) Circunscrevendo-nos ao que está em causa, o pretenso abuso de poder tem como fundamento a reversão da guarda da menor e a retenção do recurso, invocando a recorrente nesse domínio que a arguida “com recurso aos poderes de que estava investida (…) procedeu à reversão da guarda, atribuindo-a ao Pai da Menor CC”, “em violação dos deveres inerentes à sua função reteve o recurso interposto pelo período de um ano” e “tendo, antes de praticar tais condutas, assumido perante os presentes na Conferência de Pais que o poderia fazer”;

E) Dispõe o art.º 382.º do CP que “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”

F) Está subjacente ao crime de abuso de poder que o funcionário que se encontra investido em determinados poderes inerentes à função os utiliza, com determinada intenção específica, para um fim desviante;

G) Para além da difamatória alegação segundo a qual a arguida reteve o recurso durante um ano, a recorrente sustenta a sua imputação no facto de a arguida ter determinado a reversão da guarda;

H) Fá-lo sem dizer qual a norma jurídica que, no exercício da sua função de magistrada judicial, foi violada pela arguida e qual o dever funcional que foi violado;

I) Se, como refere a recorrente, a reversão da guarda foi decidida com recurso aos poderes de que estava investida, importaria que fosse esclarecido qual o fundamento para se afirmar que a decisão ultrapassou ou extravasou os limites conferidos por lei;

J) O despacho, proferido em ........2019, que alterou provisoriamente a guarda, atribuindo‑a ao pai, na sequência da promoção do MP, teve como exclusivo propósito conformar a situação de facto – já que a menor se encontrava na ... à guarda do pai desde ... por força da aplicação de uma medida de proteção por parte da CPCJ – com o processo tutelar cível que tinha fixado uma guarda mãe em ordem a que não houvesse divergência entre o acordo a que os pais chegaram e o que constava dos autos pelo que, nos termos do art.º 28.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, foi alterado provisoriamente o regime - para guarda pai – para assegurar a necessária coerência;

K) Como resulta da decisão que rejeitou o RAI e da decisão de não pronúncia – “o despacho que admitiu o recurso foi prolatado no preciso dia em que o processo foi concluso à Juíza, pelo que não lhe é imputável qualquer demora na tramitação do recurso.”;

L) A alegação segundo a qual a arguida reteve a subida do recurso durante um ano é fruto de desconhecimento grave ou de grave difamação razão pela qual não pode ser considerada;

M) A recorrente não teve intenção nem causou prejuízo à recorrente;

N) Tendo em consideração que a alegação da recorrente se baseia em dois comportamentos – um inexistente, a retenção do recurso – e outro sustentado na lei e no contexto dos poderes funcionais da arguida – a reversão da guarda – é despropositada a alegação segundo a qual, antes de praticar tais condutas assumiu que o poderia fazer;

O) Da leitura do RAI e, agora, das alegações de recurso nenhum facto foi alegado – para além de ter sido tomada uma decisão com a qual discordou e, por isso, dela recorreu - que suporte o alegado prejuízo da recorrente;

P) Não se se mostra preenchido quer o tipo objectivo – pois não existiu a violação pelo funcionário de qualquer dever inerente às funções em que está investido e não teve qualquer actuação contrária aos deveres da função – quer o tipo subjectivo – já que não houve qualquer intenção de causar prejuízo a outra pessoa;

Q) A decisão recorrida não enferma de qualquer vício razão pela qual não é merecedora de qualquer censura.

Termina defendendo o não provimento do recurso da assistente e a consequente confirmação da decisão recorrida.

IV. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer concordando com a posição defendida no despacho recorrido e, em síntese, apresentou as seguintes conclusões:

A - Os documentos juntos na sequência da motivação de recurso deverão ser desentranhados, por apresentados depois de finda a instrução, não podendo ser o seu conteúdo objeto de apreciação, assim como não o foram em sede do despacho recorrido acerca do qual versará a decisão aqui a proferir;

B- A decisão recorrida de não pronúncia não merece crítica, porquanto apreciou corretamente a matéria indiciada nos autos, desta não resultando a prática de qualquer crime por parte da Senhora juiz aqui arguida;

C - Magistrada que, nas decisões proferidas nos autos de alteração da regulação das responsabilidades parentais que teve a seu cargo, tomou em conta os elementos ali existentes, decidindo de acordo com o que entendeu como correto na defesa dos interesses da jovem CC;

D - Tendo até seguido, na decisão, uma situação de facto já existente;

E- Não tendo praticado, mesmo indiciariamente, o crime de abuso de poder p. e p. no artº 382º do Código Penal que lhe é imputado;

F - Muito menos com o dolo específico exigido por tal tipo de crime – o causar prejuízo;

G - Nomeadamente visando o prejuízo da assistente, mãe da menor, ao reverter a guarda desta última para o pai;

H - Pois que a guarda de uma criança ou jovem não é um direito dos seus progenitores, antes um seu dever;

I - Donde que nas decisões acerca de tal guarda o que está em causa é o interesse dos menores;

J - Não se podendo entender como decorrendo qualquer «benefício» ou «prejuízo» para os seus progenitores do que for naquele âmbito judicialmente decidido;

K - E, consequentemente, nunca pudesse sequer verificar-se no caso o que é alegado quanto a ter a magistrada arguida atuado visando o prejuízo da assistente;

L - Apenas poderia ter existido abuso de poder caso a decisão tivesse visado prejudicar a própria menor, e só neste caso;

M - O que não se mostra minimamente indiciado, nem sequer sendo alegado pela assistente.

Termina, concluindo, que é inexistente a indiciação quanto a ter a arguida, a magistrada judicial Drª. BB, praticado o crime de abuso de poder, ou qualquer outro, devendo, consequentemente, ser julgado improcedente o recurso e mantido o despacho de não pronúncia.

V. Notificada do Parecer do Sr. PGA, respondeu a assistente, a qual voltou a reafirmar parte do já alegado no recurso, pugnando pela sua procedência e consequente pronúncia da arguida.

VI. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Fundamentação

Factos

VII. Resulta dos autos, em resumo, com interesse para a presente decisão, o seguinte:

a)- o inquérito n.º 15/22.8..., a correr termos na Procuradoria-Geral Regional de Lisboa, que teve origem na denúncia apresentada por AA contra BB, Juíza de Direito, colocada no Juízo de Família e Menores de ..., ..., por factos ocorridos no âmbito do processo de alteração de regulação de responsabilidades parentais n.º 2704/15.4...-A, imputando-lhe a prática de crimes de injúria (art. 181.º do Código Penal) e de abuso de poder (art.382.º do Código Penal) foi objeto de arquivamento por despacho de ........2023, nos termos do art. 277.º, n.º 1, do CPP;

b)- a assistente AA, discordando desse arquivamento do inquérito, em ........2023 apresentou RAI, que foi rejeitado por despacho de ........2023, mas na sequência de recurso interposto, por acórdão do STJ de ........2023 foi revogado o despacho recorrido e ordenado que fosse proferido outro que admitisse a instrução, o que foi feito por despacho de ........2023;

c)- após a constituição da denunciada como arguida em ........2023 e, tendo sido realizado debate instrutório em ........2024, foi proferida decisão de não pronúncia em ........2024 do seguinte teor (transcrição sem sublinhados, nem negritos):

***

Relatório:

AA constituiu-se assistente nos autos em que é arguida BB e foi aberta da instrução.

A queixa inicial, apresentada a 03 de dezembro de 2019, relativa a factos de dia ... de ... de 2018, imputava à Juíza de Direito, a exercer funções no juízo de Família e Menores do Tribunal de ... o crime de abuso de poder e posteriormente veio a imputar, à mesma, o crime de «injúrias e difamação» (sic).

O despacho de arquivamento declarou extemporaneidade da queixa quanto ao crime de injúrias, pelo que subsistiu, na fase instrutória, a apreciação sobre a existência de indícios da prática do crime de abuso de poder.

Não havendo prova a produzir, porque a acusação deduzida tem por único reporte uma diligência de conferência de pais, cuja gravação se mostra junta aos autos procedeu-se a debata instrutório.

***

Factos a considerar:

O RAI apresentado reporta-se ao crime de abuso de poder e contem-se nos seguintes termos:

« Os presentes Autos tiveram inicio com queixa de fls, apresentada por AA contra BB, Juiz de Direito a exercer funções no Juízo de Família e Menores de ... - J4, por factos susceptíveis de integrar, em abstracto, crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art. 382. do Código Penal.

(…)

5.º No âmbito do processo 2704/15.4... e apensos, em concreto, em Apenso de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, pelo Apenso A, teve lugar conferência de Pais a ... de ... de 2018.

6.ºTendo a referida diligência sido gravada digitalmente através do sistema H@bilus Media Studio, conforme suporte digital de fls.

7º Estavam presentes na referida diligência, entre outras, a anterior mandatária da Denunciante, Sra. Dra. II e a escrivã auxiliar JJ.

8.º Na referida diligência, a denunciada - e por diversas vezes - levantou a voz à denunciante, licenciada em Estudos Anglo-Americados na ... no ..., tratando-a sem respeito por "Oh AA" (13 minutos), por oposição à forma com que tratava o Requerente, por "O Senhor" (47 minutos e 20 segundos).

9.º Ao longo de toda a conferência a Mma. Juiz denunciada manteve o tratamento referido para a Denunciante:

Ao minuto 11. "oh Sou Dona AA, isto é muito simples. Não há comparticipação. Não está prevista a comparticipação."

Ao minuto 16 e 48 segundos diz "Oh Sou-Dona AA: Isto não é uma conversa, isto é uma diligência judicial, presidida por um Juiz, com uma Senhora Procuradora, no caso a Dra. KK, que só é feita no gabinete, sem beca e as soutoras sem toga, porque é assim que se determina e porque nós não temos sala, mas é uma diligência judicial, portanto a senhora não interage comigo"

Aos 48.26 refere "sem a Mãe, sem a Mãeee!" em voz alta.

10.º Referindo ainda, aos 48 minutos "diz-se tantas coisas e depois caímos em contradição. E ate pode haver, seguramente, e isto até está a ser gravado e não tenho problemas com o que digo e até podem vir futuramente a fazer queixa de mim onde quiserem mas as pessoas dizem tanta coisa que depois caem em contradição e depois até pode existir coisas que correspondem à verdade, só que a informação é tanta, tão contraditória que é muito difícil depois já nós acreditarmos. E como Pedro e o Lobo. E a mema coisa."

11º Aos 58 minutos refere "eu não estou a pedir a opinião dela, eu estou a mandar! Isto é uma decisão judicial que ela tem de cumprir."

12.º Durante a referida diligência e ao longo de mais de 1 hora e 40 minutos a denunciada dirigiu-se à denunciante falando mais alto, e ameaçando com "daqui a bocado está num processo de promoção e protecção" "Oh AA, vai responder ao que lhe perguntei?!", "Ela pode inclusivamente ir morar para a ... chama-se reversão da guarda", referido aos 35 minutos "Eu até vou fingir que não estou a entender".

13.º Na mesma diligência a Mma. Juiz denunciada acusa a Denunciante de "Está no caminho de uma alienação parental", dirigindo-se depois Pai da menor "Mas agora eu preciso que o Pai me diga o que quer fazer hoje, que tenho de agilizar isto um bocadinho"

14.º Dirigindo-se de novo para a Denunciante, aos 56 minutos: "E que eu saiba que a senhora está na redondeza. Garanto que há uma reversão da guarda e que ela vai já para a ...."

15.º E quando a Denunciante tenta justificar a sua preocupação, a Denunciada, em viva voz refere "Não me diga mais nada. Que eu saiba que a senhora o está a fazer."

16.º Durante a referida diligência, é deixado claro que a Denunciante pode ser prejudicada com a decisão de reversão da guarda sendo que, caso tal sucede (como viria a suceder) eventual recurso seria meramente devolutivo e o tempo para eventual decisão tornaria o mesmo inútil.

17.º Nesse sentido, e aos sessenta minutos refere “o recurso é meramente devolutivo. Sabe o que é que quer dizer? Que ela vai, depois a Relação decide." "A sua postura a partir de hoje vai mudar. Acabou a conversa!"

18.º Acto continuo, refere que após visitas ali agendadas, o pai poderá requerer uma semana na ... na altura da Páscoa, procedendo à alteração do regime e afastando a Mãe do acompanhamento que esta fazia à menor.

19.º Durante toda a diligência, e face à postura assumida pela denunciada, a denunciante sentiu-se incapaz de justificar os seus receios e preocupações quanto à situação de exposição de risco a que a sua filha estava a ser exposta.

20.º Acresce que. Não obstante ter referido - à 1 hora e vinte e um minutos de gravação - "Não seria melhor dizer à Mãe para sair?";• "A próxima vez que fizer alguma intervenção não solicitada, sai do meu gabinete. Não lhe volto a dizer", ordenou que constasse em acta que e "Durante a prolação do douto despacho que antecede, a requerida abandonou o gabinete. " quando a denunciante havia sido destratada publicamente, frente a todos quantos estavam presentes na referida diligência.

21.º Os referido factos causaram na denunciante receio por si e pela vida da sua filha, que viria a ser agravado quando, na sequência de internamento a ... de ... de 2019 em pedopsiquiatria, por alterações comportamentais e pensamentos sobre morte.

22.º Por despacho de ... de ... de 2019, e no âmbito do referido apenso A, viria efectivamente a ser invertida a guarda, "considerando que a CC, neste momento, reside na ..., considerando o seu superior interesse, altera-se Provisoriamente, ao abrigo do art. 28 º do RGPTC, as responsabilidades parentais da jovem nos seguintes temos:

1. A jovem CC ficará à guarda e cuidados dopai, com que residirá na ....

2. O pai exercerá, em exclusivo, as responsabilidades parentais relativamente aos actos da vida corrente e às questões de particular importância para a vida da jovem." Conf. Doc. 1

23.º A Assistente, através da sua Mandatária, faz dar entrada a ... de ... de 2019 de recurso quanto à referida decisão (Conf. Doc. 2 e 3)

24.º E, não obstante ser admitido o referido recurso por despacho de ... de ... de 2019 que ordena seja autuado por apenso, a Denunciada apenas viria a ordenar a sua subida do mesmo um ano depois, a ... de ... de 2020 (Conf. Doc. 4 e 5)

25.º Apenas a denunciada tinha o poder para ordenar a subida do recurso interposto pela mandatária da denunciante, tendo - em prejuízo da posição processual da mesma - retido indevidamente o recurso interposto pelo período de um ano.

26.º Com a referida conduta, e smo, a Denunciada quis e conseguiu prejudicar a Denunciante.

27.º Tal como havia comunicado na referida Diligência de ..., e não obstante as comunicações da CPCJ e da homologa alemã, viria a reverter a guarda por despacho de ... de ... de 2019, e — face à interposição de recurso, viria a retê-lo por um ano.

28.º Ora, verifica-se pois estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime, uma vez que decorre do citado art. 382.º que incorre na prática de tal crime o funcionário (i) Que abusar de poderes ou violar deveres inerentes à sua função (ii) Com intenção de obter, para si ou para terceiro, beneficio ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

29.º Com a referida conduta, e

(i) com recurso aos poderes de que estava investida, a denunciante procedeu à reversão da guarda, atribuindo-a ao Pai da Menor CC e,

(ii) em violação dos deveres inerentes à sua função reteve o recurso interposto pelo período de um ano

(iii) Tendo, antes de praticar tais condutas, assumido perante os presentes na Conferência de Pais que o poderia fazer

30.º Com a referida conduta, a Denunciada prejudicou a Denunciante, retirando-lhe a guarda da Filha, como havia referido na Conferência e,

A denunciada manteve a referida decisão — não obstante comunicações juntas aos Autos pela entidade homologa à CPCJs nomeadamente de ... de ... de 2020, alertando para a situação grave da menor retirada do seu ambiente familiar em ..., com tentativas de suicídio (Conf. Doc. 6 e 7)

31.º A menor viria a cometer suicídio, a ... de ... de 2020.

32.º Ora, o crime de abuso de poder configura um crime de intenção ou de resultado cortado, crimes nos quais se exige, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado que, todavia, não faz parte do tipo objectivo de ilícito.

33.ºO bem jurídico protegido através do tipo de crime de abuso de poder é a autoridade e credibilidade da administração do Estado, bem esse que é atingido quando este vê afectada a e eficácia dos seus serviços.

34.º No caso em apreço, está em causa a conduta de uma Juiz de Família e Menores que interferiu por ser Juiz titular do processo, no sentido de prejudicar a Denunciante revertendo a guarda, num processo de Alteração das Responsabilidades Parentais e num Recurso sobre uma decisão sua impedindo que o mesmo subisse, pelo que estão indiciados os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de poder.

Nestes Termos, E nos mais do Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá ser Admitido o presente Requerimento de Abertura de Instrução e ser proferido despacho de pronuncia relativamente ao crime denunciado.

1 - PROVA

Documental:

Junta: 7 Documentos, Comprovativo de pedido de AJ e comprovativo de autoliquidação de Multa 1 dia.

Já nos Autos:

- Acta de Conferência de Pais de ... de ... de 2018 no âmbito do processo 2704/15.4...-A

- CD de fls 162, com gravação da diligência de Conferência de Pais,

TESTEMUNHAS a todos os factos:

1. LL, a apresentar.

2. MM, a apresentar

3. Dra. II, Advogada com escritório (…)»

2- Sobre esta matéria, o despacho de arquivamento pronunciou-se nos seguintes termos:

« QUANTO AO EVENTUAL CRIME DE ABUSO DE PODER:

O crime de abuso de poder encontra-se previsto no artigo 382.º do Código Penal. Decorre da citada norma que incorre na prática de tal crime o funcionário:

a) que abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções;

b) com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

Para efeitos da lei penal a expressão funcionário abrange os magistrados judiciais.

Como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-11-2013 ( ):

1. - O crime de abuso de poder constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; 2. - O crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.

Mas, com um elemento nuclear: o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.

Neste crime não está em causa o erro de função ou a prática de atos suscetíveis de revogação por uma instância de recurso ou reapreciação. O seu cometimento supõe o preenchimento dos elementos objetivos do tipo, que são o mau uso ou o uso desviante dos poderes da função, e a verificação de uma intenção específica que está para além do tipo objetivo, que é a vontade do agente “de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa”.

Esta vontade é apreendida através de elementos externos e objetivos que a revelem e nos quais externamente se manifeste, como sejam a relação entre o agente, o resultado, e a identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjetiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro.

Podemos, então, dizer que a violação do poder e deveres funcionais tem de ter como finalidade a obtenção de benefício ilegítimo próprio ou alheio ou prejuízo alheio, que é percetível através de elementos externos ao agente.

Vejamos se dos factos denunciados e dos elementos probatórios recolhidos decorrem indícios da prática pelo agente – a denunciada na qualidade de funcionária decorrente da sua BB condição de magistrada judicial – dos elementos objetivos e subjetivos do tipo.

Na conformação dos factos apresentados pela denunciante o eventual crime ocorreu no âmbito da conferência de pais que teve lugar no dia ... de ... de 2018 no âmbito do processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais 2704/15.4...-A, e ao qual presidiu a denunciada.

A diligência foi objeto de gravação áudio e da qual se mostra junta cópia ao presente inquérito.

Da audição de tal gravação verifica-se que as passagens citadas pela denunciante correspondem, grosso modo, ao ocorrido.

É sabido, de modo acrescido por quem já desempenhou funções na área da jurisdição da família e menores, que as conferências de pais são, por regra, diligências que comportam um elevado grau de tensão por parte dos principais intervenientes – os progenitores. Cada um configura a sua pretensão como a solução mais adequada ao desfecho visado. A mediação das pretensões dos progenitores e a intervenção de cada um na diligência tem de ser dirigida ativamente pela autoridade judiciária que preside, visando, em última análise, obter um consenso ou, caso este não seja viável, proferindo decisão que melhor proteja o superior interesse da criança.

Toda a diligência em apreço, que como já se referiu se encontra gravada e a cuja audição integral se procedeu, decorreu no espaço do gabinete da juíza com a presença desta, da magistrada do Ministério Público, dos progenitores, dos mandatários, de uma intérprete e da oficial de justiça. Tal circunstância (um elevado número de participantes num espaço com área e disposição não adequada), aliada à referida tensão própria de tais diligências, potencia situações de intervenções espontâneas dos presentes e que exigem uma direção mais acutilante.

No caso dos autos, a denunciada, juíza de direito que presidia à diligência, no âmbito dos seus poderes de direção da diligência dirigiu-se por diversas vezes à denunciante alertando-a e/ou esclarecendo-a sobre o regime em vigor na regulação das responsabilidades parentais, os limites decisórios do tribunal em face dos pedidos formulados, a necessidade de só intervir quando para tal solicitada ou instada, a imperatividade da decisão judicial, as eventuais consequências do não cumprimento da decisão judicial, os efeitos decorrentes de eventual recurso da decisão proferida, etc.

Mas, quando ouvidas e inseridas no seu contexto – conferência de pais no âmbito de processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais – as afirmações citadas não se apresentam como visando ou como tendo por finalidade ou intuito prejudicar a progenitora, aqui denunciante, ou beneficiar o progenitor. Da audição integral da gravação e da forma como a diligência se desenvolveu, não se alcança ou vislumbra, objetivamente, qualquer mau uso ou o uso desviante dos poderes da função da juíza que presidia à diligência. É que, independentemente da maior ou menor sensibilidade ou suscetibilidade de cada um dos intervenientes, podendo uns ficar mais afetados que outros pelo tom de voz usado, a rispidez das afirmações, a necessidade de imprimir ritmo à diligência tendente a uma decisão e cumprimento da agenda do tribunal ou, até, por concordar ou discordar de concretas afirmações, como é o caso da valoração das visitas ao pai versus a pensão de alimentos, para o crime que se aprecia tais circunstâncias são inócuas.

O cerne de tal crime está, como já se referiu, no uso abusivo dos poderes que estão conferidos à denunciada ou na violação dos deveres inerente à sua função, sempre tendo como pano de fundo a intenção de se beneficiar ilegitimamente, ou a terceiro, ou causar prejuízo a outrem.

Não é o caso dos autos. A denunciada atuou em conformidade com os seus poderes funcionais e em respeito dos deveres inerentes às suas funções. Sendo que também não existe qualquer indício de se querer beneficiar ilegitimamente, ou a outrem, ou de prejudicar alguém.

Tanto assim, que, não tendo sido alcançado acordo entre os progenitores na diligência, a denunciada determinou a notificação para alegarem e juntarem prova no prazo de 15 dias, alterou provisoriamente o regime da regulação das responsabilidades parentais em vigor, fixou um regime de visitas específico e apenas para vigorar no mês de ..., uma visita a ter lugar na tarde do dia da diligência e um horário para contactos da jovem com o progenitor via Skype.

Tais decisões, como se retira da audição da diligência, visaram restabelecer os contactos da filha com o progenitor.

A não concordância ou adesão da denunciante a tais decisões não se confunde com um mau uso ou uso desviante dos poderes funcionais da denunciada, com excesso de poderes legais ou com desrespeito de formalidades essenciais.

Sendo que, não existindo qualquer elemento indiciário ou probatório que sustente a verificação dos elementos objetivos do tipo, por maioria de razão, também não se indiciam ou verificam os elementos subjetivos.

Pelo que se recolheram elementos suficientes de não se ter verificado a prática do referido crime.».

***

Procedeu-se ao debate instrutório.

Não ocorrem nulidades, questões prévias ou incidentais, designadamente prescrição do procedimento criminal, que obstem à decisão instrutória.

***

Apreciação:

A fase de instrução visa a comprovação judicial da decisão final de acusação ou arquivamento do inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento (artigo 286º/1 do Código de Processo Penal – CPP).

A lei processual penal prescreve que só poderá ser deduzida acusação se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, entendendo-se por indícios suficientes aqueles que impliquem uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança – artigo 283°/1/2 CPP.

Nesta fase processual de instrução tem-se em vista a formulação de um juízo seguro acerca da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, juízo esse que será de pronúncia ou de não pronúncia, consoante se conclua, respectivamente, pela existência da suficiência ou insuficiência de indícios da prática de factos subsumíveis a um ou mais tipos de ilícito criminal (artigo 308º/1 do CPP).

A instrução não é uma repetição dos actos de inquérito, nem a antecipação do julgamento, mas apenas uma fase de controle pelo Juiz de Instrução da verificação da existência ou inexistência de indícios suficientes da prática do crime imputado no respectivo requerimento de abertura.

No juízo que sustente a decisão de não pronúncia, e no que ao caso interessa, poderá estar em causa a insuficiência de indícios factuais que suportem a prática de determinado tipo de ilícito criminal.

No que respeita ao despacho de pronúncia, ele só é possível quando, muito embora não se dê por demonstrada a realidade dos factos, se encontre uma convicção de que é mais provável que determinado agente tenha cometido o crime imputado e de que, submetido a julgamento, exista maior probabilidade de condenação, do que da sua absolvição. Destarte, o juízo de pronúncia não se consubstancia na certeza judiciária da verificação dos factos, com a consequente condenação de determinado agente, mas antes num juízo de prognose favorável de que tal condenação virá, muito provavelmente, a ocorrer após a realização de julgamento. A exigência probatória que determina a prolação de um despacho de pronúncia radica na existência de fortes indícios da prática de um ilícito criminal, de tal modo que se gere a convicção de que existe a probabilidade de condenação.

Tal juízo de prognose favorável à existência de uma condenação, terá sempre de integrar o núcleo da decisão instrutória, sem o qual, a submissão de determinada pessoa a julgamento seria atentatória da sua dignidade (bem jurídico tutelado pelo artigo 27º da Constituição da República Portuguesa), uma vez que tal submissão não constitui um acto inócuo na esfera jurídica do sujeito processual visado

Consequentemente, o Juiz de Instrução Criminal só poderá pronunciar o arguido se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena de ou de uma medida de segurança - art. 308.°/1 CPP.

Na instrução, portanto, visa-se colocar à apreciação de um Juiz de Instrução a decisão sobre se se verificam, ou não, os pressupostos de que depende a aplicação à imputada de uma pena ou de uma medida de segurança, juízo esse que será de pronúncia ou de não pronúncia, consoante se conclua, ou não, pela suficiência de indícios da prática dos factos subsumíveis ao tipo de crime imputado no RAI e não haja obstáculos de ordem processual que impeçam a prossecução do processo até à fase do julgamento (artigo 308º/1 do CPP).

No caso em apreço, está precisamente em causa a pretensão formulada pela assistente de que a mencionada Juíza seja pronunciada pela prática de um crime de abuso de poder, consubstanciado nos factos que alega.

A questão de que coloca é precisamente a de saber se desses factos se retira a prática de actos que preencham os elementos objectivos e subjectivos do tipo a que a assistente alude.

O crime verifica-se sempre que um funcionário abuse de poderes ou viole deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, nos termos do artigo 382º do Código Penal (CP).

O crime pode ocorrer pelo exercício abusivo de um poder ou pela violação de deveres inerentes à função e por acção ou omissão.

O exercício abusivo de pode ocorre em três situações:

- por se exceder os limites da competência funcional, em razão da natureza do acto, da hierarquia, do lugar e do tempo;

- por desrespeito a formalidades legais essenciais ou violação de lei;

- por desvio de poder - que consiste no uso de poderes conferidos para fim que não correspondam ao exercício do cargo, o que só ocorrem face ao uso de poderes discricionários e só é relevante enquanto exercício abusivo quando o interesse público é preterido em razão da prossecução de interesses privados.

A violação de deveres funcionais, gerais ou específico, é residual, por reporte a outros normativos que a prevêem - tais como a violação dos deveres isenção no âmbito do crime de favorecimento pessoal (artigos 367º e 368º, do CP), de recusa de cooperação (artigo 381º/CP), de sigilo (artigo 383º/CP) e de zelo (artigo 385º/CP).

São em qualquer das duas vertentes, elementos do tipo:

- que o funcionário abuse de poderes ou viole deveres inerentes às suas funções;

- que esse abuso vise obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

Aos actos objectivamente subsumíveis ao tipo há de corresponder o elemento subjectivo respectivo, ou seja, um dolo específico de obter benefício ou causar prejuízo, sendo relevante no caso a imputada intenção de causar prejuízo à assistente que é precisamente aquilo que esta invoca. Como a assistente refere o fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.

A assistente entende que o crime foi cometido porque a Juíza, (i) com recurso aos poderes de que estava investida procedeu à reversão da guarda da jovem, atribuindo-a ao pai da CC e, (ii) em violação dos deveres inerentes à sua função reteve o recurso interposto pelo período de um ano (iii) tendo, antes de praticar tais condutas, assumido perante os presentes, na Conferência de Pais, que o poderia fazer, sendo que com a referida conduta, prejudicou a denunciante, retirando-lhe a guarda da filha, como havia referido na Conferência, e manteve a referida decisão não obstante as comunicações juntas aos autos pela entidade homologa à CPCJ nomeadamente de ... de ... de 2020, alertando para a situação grave da menor, retirada do seu ambiente familiar em ..., com tentativas de suicídio.

A questão que se coloca, nos autos, é portanto saber se a conduta da Juíza foi determinada pela intenção de causar prejuízo à recorrente, sendo que esse prejuízo, tal como esta o define, decorre da retirada da guarda da filha, que acrescente-se desde já, foi feita enquanto medida provisória, quando a menor estava de facto entregue aos cuidados do pai na ....

Não obstante a questão decidenda se subsumir ao acima referido, vem ainda a recorrente imputar à Juíza um tratamento indigno no decurso da conferência de pais ocorrida a ... de ... de 2018.

Do que expõe nada se retira de relevante para a imputação do crime.

Contudo, a questão merece avaliação na medida em que foi insistentemente colocada em sede de participação criminal.

A diligência foi gravada e foram ouvidas a gravações juntas ao processo, entre as quais a da referida conferência.

Desde logo, pelos dados dos autos verifica-se que na dita conferência não foi feita qualquer reversão da guarda da menor para o pai, sendo que tal ocorreu apenas a .../.../2019 – portanto cerca de um ano depois.

E, sendo a reversão da guarda uma medida possível e exigível que o Tribunal a tome, quando se verificam circunstâncias de facto que a determinem, convenhamos que a alteração, só por si, é absolutamente inábil para configurar qualquer ilícito.

Ouvida a gravação da referida conferência ressalta que foi tumultuosa por várias ordens de motivos: a Juíza tem um tom de voz elevado; enquanto a Juíza falava foi insistentemente interrompida pela assistente, por exclusiva iniciativa desta, com insistências sobre as suas pretensões, a saber: o aumento da pensão do pai para além daquilo que tinha sido pedido no requerimento que estava em discussão de alteração da regulação do poder paternal e a imposição de inexistência de qualquer forma de relacionamento da menor com o pai, designadamente, por videoconferência (como estava assente em regulação anterior) e por visitas sem a sua presença; paralelamente houve diversas interrupções não solicitadas por parte de ambas as Mandatárias presentes e, a certa altura pela própria Procuradora; ao mesmo tempo que tudo isto ocorria, a tradutora tentava traduzir para o pai, de Português para Alemão, as conversas mantidas.

Perante este conjunto ruidoso (há altura em que falam três pessoas ao mesmo tempo), as sucessivas explicações dadas sobre o objecto e limites da conferência e a insistente interrupção pela recorrente do decurso da diligência no sentido de fazer prevalecer as suas pretensões, momentos houve em que a Juíza aumentou o tom de voz, tanto no que concerne às pretensões da assistente como do pai, o que se justifica claramente pela necessidade de fazer cessar os impedimentos ao avanço dos trabalhos naquilo que se mostrava pertinente para os objectivos a alcançar. Podendo ser questionável se a solução adoptada é a mais adequada não é questionável se ela consista na prática de qualquer ilícito penal, sendo que não nos compete avaliar a questão disciplinar que, como decorre dos autos, a recorrente pôs à consideração do órgão competente.

Diga-se, no entanto, que no decurso da gravação percebe-se que:

- já tinha havido diligências anteriores com a assistente, em que tinham sido apresentados argumentos para determinadas outras pretensões, contraditórios entre si e com as declarações da menor, tal como estavam a ser apresentados naquela altura. Foi nesta sequência que foi referido o que consta do ponto 10 do RAI;

- a determinada altura a Juíza passou a tratar a denunciante pelo nome, depois de a ter tratado por Srª Drª, enquanto se referia ao pai da menos por “senhor”;

- paralelamente, a ora assistente dirigiu-se sempre à Juíza, interrompendo-a como entendeu, sem sequer a interpelar pessoalmente, chegando mesmo a chamar a sua atenção por «olhe (…)»;

- a Juíza explicou, com cuidado, a que se destinava a conferência, tentou encontrar um ponto de encontro entre as pretensões pecuniárias da assistente e do pai e um acordo para os contactos, via Skype e pessoalmente, com o pai, o que não conseguiu, pelo que referiu que iam ser notificados para alegar por escrito, o que não impediu que a denunciante mantivesse uma atitude de interrupção permanente, argumentando na prossecução dos seus objectivos e arranjando obstáculos à medida que iam sendo propostas soluções que não correspondessem às suas exigências. Por exemplo, quando a Juíza estava a tentar promover um jantar naquele mesmo dia com o pai - sendo que o pai, residente na ..., se encontrava em ... - a menor, que segundo a assistente momentos antes referiu nunca saía de casa ou saía sempre acompanhada pela mãe, passou imediatamente, na versão da assistente, a ter um jantar de Halloween com as amigas; a mãe exigiu estar presente nos contactos da jovem com o pai mas como lhe foi dito que seriam só entre os dois, afirmou que então teria que se manter nas redondezas; perante a possibilidade de a menor vir a visitar o pai na ..., a mãe afirmou que iria com ela para a ...; porque a mãe queria acabar com as conversas entre pai e filha por via Skype e lhe foi dito que se tinham que manter porque era a forma de manter uma ligação visual entre ambos, justificou-se dizendo a filha não queria, por ter vergonha de enfrentar o pai porque estava forte e tinha aparelho nos dentes, quando a jovem tinha referido que queria a manutenção dessas conversas e encontros;

- a assistente referiu que a filha sofria de doença do foro mental e tinha instabilidade emocional; gritava durante noite, a ponto de haver queixas dos vizinhos, afirmando que ela própria chegou a chamar a polícia para a controlar;

- a assistente recusou, tanto quanto pode, responder às perguntas directas que lhe foram feitas (por exemplo, sobre os seus rendimentos: «não tenho feito contas ultimamente», o que mereceu a resposta «vou fazer de conta que não estou a entender» ); aceitar qualquer argumentação quanto à necessidade de a menor (de 13 anos) manter um relacionamento com o pai (por videochamada ou presencial, sem a sua presença); fez o possível para retardar os horários desses contactos com versões diferentes da mesma realidade (por exemplo, a menor, numa primeira versão, terminava as aulas às 5h30-6h, depois terminava às 5h30 mas queria manter-se na escola até às 6h, depois não podia estar só com o pai porque tinha medo da natureza das conversas porque o pai lhe perguntava em que dia tinha nascido o Prof. NN e o pai não se manifestou quando a filha disse que queria ir à ...);

- a assistente foi chamada à atenção, por diversas vezes, para não interromper, não entrar em diálogo paralelo com a Juíza, o que nunca acatou;

- perante a postura da mãe, a própria Procuradora advertiu-a que considerava que ela estava no caminho de uma alienação parental, com prejuízo para a saúde da menor, e que se não alterasse a sua postura iria promover uma medida de promoção e protecção por considerar que «esta jovem está em perigo» e «o perigo vem da mãe». No seguimento a Juíza insistiu na possibilidade de vir a ser aplicada a medida que a Procuradora anunciara, e afirmou parte do que está escrito em 12 do RAI. Porque a mãe percebeu o significado da sua atitude (tanto que saiu da diligência enquanto estavam a ser ditadas as alterações), foi-lhe ainda referido, por diversas vezes e pela Juíza que «a senhora não está a perceber a dimensão do problema» e por fim que «a sua postura hoje muda ou muda tudo».

A referência que houve na diligência às ideações de suicídio foi feita por parte da mãe, que disse que tinha ficado a saber por terceiros que a filha tinha falado disso a amigos e tinha feito buscas na internet quanto ao assunto, sem que mais tenha sido referido no sentido da existência de qualquer receio por parte da assistente acerca do risco para a vida da sua filha. A assistente bateu-se unicamente por dois objectivos: maior pensão por parte do pai e exclusão deste de contactos com a filha que fossem além do simples telefonema, o que deixa sem suporte a ora alegada preocupação sobre o risco de vida da filha.

Ora, o que está em causa numa regulação de responsabilidades parentais é, sem cedências, o superior interesse da criança, ou seja, a melhor forma de garantir o seu pleno desenvolvimento físico e psicológico, em harmonia, com afeto e segurança, instrumento essencial para a preparar para a vida.

Esta é a configuração legal adoptada pela Convenção sobre os Direitos da Criança, e pelo Código Civil Português.

O critério é sempre o mesmo: o do superior interesse da criança, conceito jurídico indeterminado dotado de força apelativa e tendência humanizante que adquire significado quando referido ao interesse de cada criança, «pois há tantos interesses da criança como crianças»(1) e que no caso tinha que ver unicamente com a necessidade de garantir uma relação com o pai, adequada à idade da jovem.

Esse superior interesse inclui, como pilar essencial, a manutenção de uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, que se alcança unicamente pelo livre convívio da criança com ambos, adaptando-se à maneira de ser de cada um – porque a adaptação ao mundo, feito de homens e mulheres e pessoas com diferentes formas de estar e opiniões, assim o exige – e convivendo com as respectivas famílias, - porque o passado ajuda a criar raízes, que são essenciais para o sentimento de segurança que permite o êxito no futuro. Este é o critério acolhido pelos artigos 1906º/7, do CC e 7º/1 e 9º/3 da Convenção sobre os Direitos da Criança e o critério que a lei impõe que seja seguido pelos Tribunais, naturalmente na pessoa dos Juízes a quem é atribuído o poder decisório no âmbito dos referidos órgãos de soberania.

Por outro lado, o poder paternal não é um conceito abstracto, indefinido, que possa ser exercido ao belo critério de cada um, numa perspectiva meramente egoística, de posse ou de manipulação. O Conselheiro Armando Leandro definiu-o, assertivamente, como o «conjunto de poderes-deveres, um poder funcional, irrenunciável e intransmissível que deve ser exercido altruisticamente, no interesse do filho, tendo em vista o seu integral e harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral» (2).

O que se debateu nesta conferência foi o interesse da jovem, por duas vias: aferir da necessidade de maior pensão por parte do pai, de modo a permitir que as suas (exclusivamente suas) necessidades fossem satisfeitas e regular os contactos de uma jovem de 13 anos com o pai, com quem nunca conviveu longe do controlo da mãe, pai que vivia a milhares de quilómetros, mas que tinha mantido o contacto (que a mãe permitia) com a filha.

Foi isto que foi explicado à mãe, mas ela não quis perceber; e é isto que, cinco anos e uma horrível tragédia depois, revela não ter percebido, continuando a centrar exclusivamente no prejuízo dos seus interesses pessoais - de domínio sobre a jovem, com exclusão do pai da vida da mesma - a actuação do Tribunal.

Sendo a mãe pessoa de formação escolar superior não se consegue vislumbrar o que a impeça de perceber que um ambiente normal e saudável para todas as crianças é, por regra, o de convívio equitativo com ambos os progenitores. Está em todos os manuais de psicologia infantil. Dispensamo-nos de repetir.

Ora, é manifesto que foi precisamente este particular interesse da jovem que levou a Juíza a tomar a decisão que tomou, no dia da conferência de pais, ponderando unicamente, como era sua obrigação por força das funções que desempenhava, os direitos e interesses da criança: de um lado o direito a conviver com o pai e do outro a tentativa de fazer progredir a integridade emocional que esse convício potenciaria, equacionando um projecto de aproximação gradual com o pai, sem a fiscalização da mãe. Fiscalização significa domínio e não encontramos fundamento nessa pretensão dominadora da mãe sobre o relacionamento entre filha e pai, afectando quer os direitos da filha quer a liberdade de acção do pai. Na persecução do desiderato supra mencionado, foi estabelecido um regime provisório que tendia precisamente a permitir o convívio entre pai e filha, sem a presença da mãe, fortemente contestatária desse relacionamento.

Partindo do princípio de que no caso não ocorria nenhuma excepção à regra de que o bem-estar dos filhos é a felicidade dos pais, o que se conclui da diligência é que a mesma visou adequar a vida da jovem aos seus interesses de convívio saudável e livre com o pai, de modo a promover a aproximação entre ambos, o que sendo benéfico para a filha seguramente era benéfico para a mãe que, seja dito, já se queixava da instabilidade emocional da mesma.

Aliás, repare-se que a recorrente nem consegue explicar por que motivo a alteração lhe causou prejuízo, para além do facto evidente de não se ter conformado com o desiderato de excluir o pai do relacionamento com a jovem.

Passando à questão decorrente da alteração provisória da regulação do poder paternal no sentido de a jovem ficar à guarda do pai, feita em .../.../2019, conforme do próprio texto resulta e é do inteiro conhecimento da assistente, ela deveu-se à necessidade de adequar a regulação das responsabilidades parentais à realidade. Estando a menor efectivamente à guarda do pai, com quem estava a residir na ..., desde ..., para onde foi com a previsão de estadia por três meses - aliás de acordo com o interesse que própria manifestou e está bem expresso nas cartas que escreveu e até com a vontade que a mãe demonstrou junto da CPCJ, como consta do relatório elaborado e, a crer no que a assistente refere, depois de esta ter requerido ao Tribunal a guarda pelo pai, a .../.../2019 – era imperioso atribuir judicialmente o exercício do poder paternal a quem o estava a exercer de facto.

Não tendo o Tribunal conhecimento de qualquer incapacidade do pai para o exercício do poder paternal, tendo a menor acompanhado o mesmo para a ... por sua livre vontade – como resulta claro dos escritos que fez e do próprio relatório social feito no Hospital onde esteve internada – não havia motivo para não se adequar a guarda à realidade, tanto mais que a menor estava a ser acompanhada clinicamente num hospital, onde estava internada desde .../.../2019, na sequência de uma auto-mutilação (que é diferente de uma tentativa de suicídio), tendo os pais sido notificados previamente para efeitos de contraditório.

Manifestamente, mais uma vez, o que esteve em causa foi a salvaguarda do superior interesse da criança, permitindo, provisoriamente, a quem a tinha a cargo, tomar as decisões pertinentes a seu respeito. Acrescente-se que nunca o pai tinha deduzido em juízo qualquer oposição à manutenção de contactos com a mãe, a mãe e a avó já tinham visitado a menor e, segundo a descrição da mãe, essa visita tinha causado forte perturbação à jovem, a ponto de ter retirado e destruído documentos que a avó mantinha na mala de mão.

Manifestamente, o que estava em causa não era o interesse da mãe, mas o interesse da filha - no caso na continuidade do seu tratamento, porque a ideação de suicídio que já tinha manifestado aos colegas em ... tinha-se agravado, passando à mutilação e mais tarde desembocou na tentativa de suicídio.

A menor estava à guarda efectiva do pai, a ser acompanhada pelo equivalente ao Tribunal de menores em ... e em tratamento hospitalar. Só um motivo ponderoso poderia determinar a retirada da menor ao tratamento, na pressuposição natural de que era o caminho adequado para a sua recuperação. A satisfação da sua vontade de voltar para ... nunca esteve em causa, apenas foi entendido que naquele momento não era oportuno. Por isso a decisão teve a natureza de provisória.

Um internamento hospitalar, na lógica normal dos acontecimentos e segundo regras de experiência comum não acontece sem motivo ponderoso e perspectiva de que seja adequado a ultrapassar esse motivo relevante.

O interesse da mãe no bem-estar da filha incluía, ou devia incluir numa perspectiva objectiva de experiência comum, a sua recuperação clínica (sob pena de vir a cometer novos actos de suicídio, que tinha começado a idealizar em ..., onde, sob a orientação da mãe, já tinha frequentado diferentes clínicos por existência de perturbações emocionais) e foi isso que foi salvaguardado. Ninguém imaginava que em ambiente hospitalar a menor lograsse cometer suicídio. Provavelmente nem a mesma tinha essa intenção. As tentativas de suicídio em adolescentes frequentemente envolvem ambivalência quanto ao desejo de morte e normalmente são uma forma de chamada de atenção ou um pedido de ajuda, ainda que manifestados de forma desastrada.

Não se perspectiva, também nesta decisão, qualquer vislumbre de causar prejuízo a quem quer que fosse.

No que concerne à imputada retenção do recurso, saberá a assistente, porquanto devidamente assessorada por Mandatário Judicial, que os Juízes não guardam os processos nos seus gabinetes, não juntam expediente nem sabem quando ele entra. Essa gestão processual cabe exclusivamente à secção que, à medida que recebe expediente o tramita, abrindo conclusão ao Juiz (isto é, levando-o a despacho) nos casos que se impõe. Ora, o que se verifica é que o despacho que admitiu o recurso foi prolatado no preciso dia em que o processo foi concluso à Juíza, pelo que não lhe é imputável qualquer demora na tramitação do mesmo.

Analisada a prova disponível, verifica-se que o Tribunal recorrido se limitou a proferir as decisões que se impunham, face aos dados do caso, adequando-as áquilo que, objectivamente e em cada momento, se revelava como sendo do superior interesse da jovem e que não provocou demora alguma no recebimento do recurso.

Analisada toda a matéria de facto imputada como suporte do crime, verifica-se que, de per se, considerando apenas o respectivo elemento literal, não tem suporte para preencher o elemento típico da intenção de causar prejuízo.

Ora, o processo penal Português tem uma estrutura eminentemente acusatória, por força da qual o objecto do julgamento é, tão-somente, o objecto da acusação (artº 32º/5, CRP). São os termos da acusação que fixam os poderes de cognição do Tribunal e os limites do caso julgado. Não tendo os factos deduzidos no RAI aptidão para configurar a prática de um crime, está prejudicada a submissão da imputada a julgamento.

Pelo exposto, resta, em consonância aliás com o despacho de arquivamento, determinar declarar a inviabilidade de os factos constituírem crime e, em consequência, não pronunciar BB, determinando o arquivamento dos autos

***

Decisão:

Pelo exposto, não pronuncio BB e, em consequência, determino o arquivamento dos autos.

Custas pela assistente, com taxa de justiça de 4 ucs (artigo 8º/2 do RCP).

Direito

VIII. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Ora, analisadas as conclusões do recurso da decisão instrutória (não pronúncia) apresentadas pela assistente, verifica-se que importa decidir se a arguida deve ou não ser pronunciada pelo crime de abuso de poder que lhe era imputado no RAI.

Para além disso, coloca-se a questão prévia de saber se são ou não admissíveis os documentos que a assistente/recorrente protestou juntar no recurso (enviado pelo correio em ........2024) e que depois igualmente enviou pelo correio em ........2024.

Vejamos então.

i. Questão prévia da junção aos autos pela assistente/recorrente de prova documental após a decisão recorrida e, mesmo após a apresentação do recurso.

A recorrente veio juntar 31 documentos que protestou apresentar no recurso, invocando abstrata e genericamente que “a sua junção se tornou pertinente tendo em conta a matéria introduzida pelo ponto IV Apreciação da Decisão Instrutória ora posta em crise”.

Ora, como sabido, no processo penal, o regime relativo ao momento da junção da prova documental é autónomo do processo civil, estando previsto e regulamentado particularmente no art. 165.º do CPP.

Nos termos do art. 165.º, n.º 1, do CPP, os documentos devem ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo possível, obviamente no caso de prosseguir o processo penal, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.

Neste caso concreto, os documentos juntos (todos emitidos antes da prolação da decisão instrutória sob recurso), após anúncio na motivação de recurso são aqui irrelevantes para a decisão de recurso, tendo em atenção que este (o recurso) é do despacho de não pronúncia, sendo extemporânea a sua junção nesta fase (fase de recurso), face ao disposto no art. 165.º, n.º 1, do CPP.

Caso se tivessem alterado supervenientemente as circunstâncias que existiam no momento em que foi proferida a decisão instrutória (o que nem sequer decorre da documentação junta após a motivação de recurso, a qual já era conhecida da recorrente mesmo quando apresentou a queixa em ..., como se pode verificar desde logo pela data de emissão de cada um desses documentos, sendo que apenas um deles foi emitido em ........2019), deveria a recorrente ter dado conhecimento desses factos à Relação, para que a mesma pudesse proferir decisão sobre essa matéria (o que, porém, não fez).

O tribunal de recurso, neste caso o Supremo Tribunal de Justiça não funciona como tribunal da 1ª instância (nem substitui a Relação), antes apenas conhece de recursos interpostos de decisões proferidas pela Relação, mesmo que proferidas em 1ª instância (e o que é certo é que sobre os documentos juntos após a apresentação do recurso não há qualquer decisão da Relação, tanto mais que a recorrente também não acionou qualquer mecanismo que exigisse uma apreciação desses documentos pela Relação, o que de algum modo se compreende uma vez que optou pela via do recurso do despacho de não pronúncia).

De resto, nem mesmo do teor dos documentos juntos resulta que haja qualquer erro a nível da decisão proferida sob recurso.

Isto para que se perceba que, nem ponderando o teor dos documentos em questão, considerando que todos eles, com exceção de um, estavam na disponibilidade da recorrente até antes de apresentar a queixa em ........2019 (não sendo sequer invocado o contrário, ressalvada a evidência do emitido em ........2019 como já acima se referiu), se poderia concluir pela sua relevância ou pertinência para, de alguma forma, poder ser aceite a sua junção aos autos na fase do recurso, tendo em atenção o objeto da decisão recorrida, delimitada pela fase da instrução e do próprio RAI.

Portanto, além de ser extemporânea a apresentação da referida prova documental, é ainda a mesma impertinente, isto é, irrelevante para a decisão deste recurso, tendo igualmente em atenção o objeto da própria fase da instrução, delimitada e definida também pelo RAI apresentado pela assistente e, vista a decisão final que sobre ela veio a recair, sendo que no recurso não podem ser agora apresentadas questões novas sobre as quais não foi proferida decisão pela Relação (até porque nem era esse o “tema” da instrução).

Com efeito, também importa ter presente que no recurso da decisão da Relação para o STJ a recorrente não pode colocar questões novas (como agora pretende suscitar com a junção desses documentos) uma vez que nessa parte não pode haver qualquer sindicância (não há decisão sobre essa matéria que não foi colocada para apreciação pela Relação quando realizou a instrução e proferiu a decisão instrutória para poder agora ser sindicada e, as questões novas colocadas, também não são de conhecimento oficioso para este STJ sobre elas se debruçar).

Assim, por inadmissibilidade legal, visto o disposto no art. 165.º, n.º 1, do CPP, não se admite a junção dos referidos 31 documentos apresentados pela recorrente na fase do recurso.

ii. Questão de mérito

Vejamos então se a decisão instrutória proferida pela Relação, no sentido da não pronúncia da arguida, deve ou não ser revogada.

Na perspetiva da recorrente a resposta terá de ser positiva e, em consequência, deve ser revogada a decisão impugnada e substituída por outra que pronuncie a arguida pelo referido crime de abuso de poder.

Na perspetiva do Ministério Público, secundada pelo Sr. PGA, a decisão recorrida de não pronúncia é de manter.

Vejamos então.

A instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do MP de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, do CPP).

Enquanto fase jurisdicional3, a instrução compreende a prática dos atos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

Não sendo a fase de instrução um complemento da investigação feita em inquérito4, o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme a sua convicção no sentido de que há uma possibilidade razoável de o arguido ter cometido o crime objeto da acusação.

Portanto, pronuncia o arguido quando “tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” (art. 308.º, n.º 1, do CPP).

A apreciação dos indícios nos termos do art. 308.º, n.º 1 e 283.º, n.º 2, do CPP é feita de acordo com os elementos probatórios apurados, constantes do inquérito e da instrução, exigindo um juízo de prognose do qual resulte “uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança”.

Como diz Germano Marques da Silva5, «não se basta a lei com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação».

Feitas estas breves considerações para se perceber o âmbito e finalidades da fase de instrução, importa agora averiguar sumariamente os pressupostos do crime de abuso de poder (art. 382.º do CP) que a recorrente entende dever ser pronunciada a arguida.

O crime de abuso de poder, previsto no art. 382.º do CP, estabelece:

O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Trata-se de um tipo subsidiário, na medida em que, como a própria disposição legal indica, só se aplica esta incriminação, na falta de outra mais específica, existindo uma relação de consunção entre ambas.

O bem jurídico protegido, como assinala OO6, até considerando a inserção sistemática (“no Capítulo IV – dos crimes cometidos no exercício de funções públicas, e dentro deste na Secção III – Do abuso de autoridade”), mostra que “Está em causa a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços. Corresponde esta exigência, de resto, a um princípio fundamental da organização do Estado consagrado constitucionalmente nos arts. 266.º, 268.º e 269.º-1 da CRP. Em particular o n.º 2 do art. 266.º refere que “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.”

Paulo Pinto de Albuquerque7 refere que o bem jurídico protegido “é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário (ver a anotação ao artigo 372.º) e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa”.

Assinala Paula Ribeiro Faria que, o preenchimento do tipo objetivo de ilícito tem lugar8 “através do abuso de poderes ou da violação de deveres pelo funcionário. Em ambos os casos terá que se tratar de poderes ou deveres inerentes à sua função.” E, mais à frente, de uma forma geral define o “abuso de poderes” “como uma instrumentalização de poderes (inerentes à função), para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo (ou melhor dizendo ilegítimas).” E dá como exemplo, o caso do “agente que excede os limites da sua competência, quanto à natureza dos assuntos que lhe são confiados, em razão do grau hierárquico, em razão do lugar e em razão do tempo (incompetência relativa)”, também “a conduta do funcionário que desrespeita formalidades impostas por lei, ou actua fora dos casos estabelecidos na lei (violação da lei)9”, e ainda “a actuação daquele que faz uso dos seus poderes para um fim diverso daquele para o qual eles lhe foram conferidos (desvio de poder, que apenas pode ter lugar estando em causa o exercício de poderes discricionários).”, assinalando que está excluída do tipo legal “a incompetência absoluta”, assim como “a usurpação de poderes” (…) uma vez que em ambos os casos estamos perante a total ausência de poderes por parte do agente (não pode sequer prefigurar-se uma situação de abuso de poderes).”10

Quanto à “violação de deveres” do funcionário, Paula Ribeiro Faria11 chama à atenção que se tratam “dos deveres funcionais, deveres que estão relacionados com o exercício da função, e que por regra só subsistem enquanto o funcionário está em actividade”, sendo certo que tanto “incluem deveres funcionais específicos impostos por normas jurídicas ou instruções de serviço, e relativos a uma função em particular”, como “deveres funcionais genéricos que se referem a toda a actividade desenvolvida no âmbito da administração do Estado.”

Além disso, “O agente terá que actuar com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa”, sendo, por isso, irrelevante para a consumação do crime “a efetiva verificação do dano ou vantagem para o agente ou para terceiro (crime de mera conduta).”12

O tipo subjetivo, como explica Paula Ribeiro Faria, parece exigir o dolo específico13, “uma vez que assume relevância típica os fins particulares prosseguidos no caso concreto pelo funcionário (afasta-se a possibilidade de dolo eventual, uma vez que não é suficiente a conformação da vontade com um resultado possível, exigindo-se a orientação da conduta em ordem a atingir esse mesmo resultado).”

E o que é que sucede no caso dos autos?

Analisado o RAI, verifica-se que o assistente/recorrente, pugna pela pronúncia da arguida por um crime de abuso de poder p. e p. no art. 382.º do CP, essencialmente, por considerar que a mesma, enquanto juíza a exercer funções no Juízo de Família e Menores de ..., no âmbito do processo de alteração de regulação de responsabilidades parentais n.º 2704/15.4...-A ali pendente, abusou dos poderes inerentes às suas funções, com intenção de a (à recorrente) prejudicar, quando reverteu a guarda da menor/sua filha por despacho de ........2019, quando reteve recurso interposto desse despacho por um ano, apesar de ter o poder de ordenar a sua subida, uma vez que fora interposto em ........2019 e apenas subiu em ........2020, assim retirando-lhe a guarda da filha, como havia referido na conferência de pais em ........2018 e, quando manteve a referida decisão, não obstante as comunicações juntas aos autos pelas entidade homologa à CPCJ alemã, nomeadamente de ........2020, alertando para a situação grave da menor retirada do seu ambiente familiar em ..., com tentativas de suicídio.

Pois bem.

Vistas todas as provas existentes no inquérito e na instrução e, tendo presente que o objeto da instrução é delimitado pelo RAI, sobre o qual incidiu a decisão instrutória sob recurso (sendo irrelevantes as questões novas suscitadas no recurso), podemos desde já adiantar que a forma como a arguida se dirigiu à assistente na conferência de progenitores que ocorreu em ........2018, no âmbito do apenso de alteração de regulação das responsabilidades parentais n.º 2704/15.4...-A, não integra a prática de qualquer crime, nem indicia vontade de a prejudicar de qualquer modo, designadamente para beneficiar o pai da menor e, muito menos, ressalta ou indicia que tivesse intenção de prejudicar o interesse da menor.

Com efeito, não merece censura a análise feita na decisão instrutória sobre a forma como decorreu a referida conferência de progenitores de ........2018, depois de ouvida a respetiva gravação, melhor se percebendo como tudo se passou e que, ainda que se possa discordar e/ou mesmo discutir (em sede disciplinar, a que a assistente refere ter recorrido) os métodos utilizados pela arguida, para dirigir aquele ato judicial a que presidia, naquele contexto “ruidoso” em que tudo se passou, em espaço limitado (no gabinete), de todo o modo isso não significa que, essa forma de atuar (designadamente quando se dirigia aos intervenientes na diligência, considerando igualmente a atitude destes ao longo daquele ato e forma como tudo se ia desenrolando) constitua a prática de um ato criminalmente relevante ou a ameaça da prática de qualquer ato que visasse prejudicar a assistente (não havendo indício, como já se adiantou, de a arguida pretender de alguma forma prejudicar a menor).

De todo o modo, incumbe destacar que os Magistrados, nomeadamente quando dirigem atos processuais (como é o caso das conferências de progenitores), devem dirigir-se aos respetivos intervenientes com urbanidade, respeito, educação e, obviamente, quando se dirigem às partes ou sujeitos processuais envolvidos (no caso aos progenitores) observando ainda v.g. o princípio da igualdade em todas as suas vertentes, sem fazer qualquer tipo de discriminação, tendo em atenção o disposto no art. 4.º da Convenção de Istambul, a que ... aderiu e está vinculado.

A forma menos urbana ou mais autoritária, de tratar um dos progenitores (no caso a progenitora que, não era estrangeira e não precisava de interprete para se fazer entender, que fazia frequentes interrupções) ou o tom de voz mais alto usado para conduzir a diligência (como também se adianta na decisão recorrida), coloca a questão dessa solução adotada não ser a mais adequada ao caso, mas essa matéria só podia ser avaliado em termos disciplinares, não chegando contudo para integrar a prática de qualquer crime, designadamente, o tipo objetivo do crime de abuso de poder nos exatos termos em que lhe foi imputado no RAI, que delimita o objeto da instrução.

É certo que, não há dúvidas, como bem se escreve na decisão instrutória, que o que está em causa na regulação de responsabilidades parentais, assim como na alteração das responsabilidades parentais, é sempre o superior interesse da criança.

É pressuposto regra que os progenitores ou quem exerce funções parentais e que, portanto, tem as crianças a seu cargo, mantenha com eles uma relação de proximidade e de unidade familiar, contribuindo de forma decisiva para a sua educação e para o desenvolvimento da sua personalidade.

Quando o filho menor vive com os progenitores, só o interesse superior da criança (no caso de haver prejuízo significativo ou relevante) poderá justificar que, por decisão judicial (que pode ser revista quando se alterarem as circunstâncias), o tribunal a separe dos pais, como também decorre do artigo 1918.º do CC, artigo 36.º, n.º 6, da CRP14 e da própria Lei n.º 147/99, de 1.09 (LPCJP).

Mas, o direito à não separação dos pais e o direito à vida privada e familiar é de tal forma importante à luz do interesse superior da criança que inclusivamente são estabelecidas algumas exceções15.

Aliás, como escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira16, ainda que não exista “um conceito de família constitucionalmente definido”, o “direito à convivência” é “o direito dos membros do agregado familiar a viverem juntos”, sendo essa a manifestação mais relevante da “proteção da unidade da família”.

As relações familiares entre progenitores e filhos menores devem ser orientadas pela satisfação do superior interesse da criança (ver artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança17), ou seja, dando sempre prevalência ao bem-estar desta e no mínimo protegendo o seu direito a ter uma família e uma vida privada.

O superior interesse da criança deve ter por finalidade o seu crescimento e o desenvolvimento da sua personalidade de forma harmoniosa, sempre que possível (como é regra) no seio da família, mantendo a união e sã convivência com todos os elementos do agregado familiar, particularmente com pais e irmãos.

No caso de haver separação entre pais e filhos menores, a prevalência do superior interesse da criança significa que o tribunal vai compor de forma equilibrada os interesses em conflito (o que também exige maturidade e distanciamento dos progenitores em relação aos problemas pessoais que os separam) e, sendo possível, confere ao progenitor que não tem a guarda da criança, o direito de visitas de modo a satisfazer primordialmente os interesses do filho, para que este consiga continuar a ter uma vida familiar, necessária ao seu desenvolvimento, mesmo convivendo com os pais separadamente (quando, por exemplo, não é possível a guarda partilhada).

Ressalvados os casos de exceção (em que normalmente os progenitores se envolvem pessoalmente pelas razões que os dividem, não conseguindo distinguir o plano conjugal/marital daquele que se relaciona com o dos filhos), quando os tribunais regulam as responsabilidades parentais de forma equilibrada e ajustada (muitas vezes até mediante acordo dos progenitores) e os progenitores estão interessados em proteger, cuidar e educar os filhos de forma responsável, em geral as crianças crescem em bom ambiente familiar, adaptando-se à realidade social do dia a dia, chegando à vida adulta de forma saudável.

O mesmo já não se passa nos casos de exceção, designadamente quando há conflitos pessoais entre os progenitores (que normalmente carecem de ser tratados ou acompanhados para os resolverem), que por vezes deixam marcas/traumas nos filhos, à medida do seu crescimento (marcas/traumas esses que, muitas vezes se agravam, designadamente, quando os filhos padecem de doenças particulares).

Ora, neste caso concreto, a forma como decorreu a conferência de pais no dia ........2018 também evidencia os conflitos que existiam entre os progenitores por causa da menor, sendo manifesto que não conseguiam gerir (de forma amigável) quer o regime de visitas do pai, quer o pedido aumento de pensão de alimentos que fora feito pela mãe, com quem a menor vivia.

Para além de ter explicado aos progenitores a finalidade daquela conferência, porque a arguida, não conseguiu obter o consenso entre os progenitores nessas matérias que os dividiam, é que referiu que iriam ser notificados para alegar por escrito, o que não impediu a assistente de continuar a interromper e a contrariar todas as propostas de soluções apresentadas, como é explicado na decisão instrutória recorrida.

Aliás, como consta, de forma bem clara da decisão recorrida, “A assistente bateu-se unicamente por dois objectivos: maior pensão por parte do pai e exclusão deste de contactos com a filha que fossem além do simples telefonema, o que deixa sem suporte a ora alegada preocupação sobre o risco de vida da filha.

E, como se adianta mais à frente: “O que se debateu nesta conferência foi o interesse da jovem por duas vias: aferir da necessidade de maior pensão por parte do pai, de modo a permitir que as suas (exclusivamente suas) necessidades fossem satisfeitas e regular os contactos de uma jovem de 13 anos com o pai, com quem nunca conviveu longe de controlo da mãe, pai que vivia a milhares de quilómetros, mas que tinha mantido o contacto (que a mãe permitia) com a filha.

Foi isto que foi explicado à mãe, mas ela não quis perceber; e é isto que, cinco anos e uma horrível tragédia depois, revela não ter percebido, continuando a centrar exclusivamente no prejuízo dos interesses pessoais – de domínio sobre a jovem, com exclusão do pai da vida da mesma – a actuação do Tribunal.

Claro que, nada fazia prever o terrível desfecho deste caso (suicídio da menor em ........2020, na ...), mas o certo é que, na conferência de progenitores de ........2018, apesar de ter decorrido sob a direção da arguida, resulta da respetiva gravação, que a mesma visou (como se refere na decisão recorrida) “adequar a vida da jovem aos seus interesses de convívio saudável e livre com o pai, de modo a promover a aproximação entre ambos, o que sendo benéfico para a filha seguramente era benéfico para a mãe que, seja dito, já se queixava da instabilidade emocional da mesma.

Portanto, não se pode extrair da referida diligência processual (conferência de ........2018), realizada pela arguida, o mínimo de indícios desta, no exercício das suas funções, ter atuado no sentido de prejudicar a assistente, antes resultando que o que foi feito visou satisfazer o interesse da menor e o seu livre desenvolvimento, assegurando a convivência com ambos os progenitores, sendo no que respeita ao pai, uma aproximação e convívio gradual, sem fiscalização da mãe.

De resto, como é assinalado na decisão recorrida, no RAI a assistente nem conseguiu “explicar por que motivo a alteração lhe causou prejuízo, para além do facto evidente de não se ter conformado com o desiderato de excluir o pai do relacionamento com a jovem.”

É certo que nessa conferência, para além dos antecedentes existentes, no contexto atribulado e dificilmente controlável, em que tudo se passou dado o número elevado de intervenientes num espaço tão exíguo (gabinete) e constantes interrupções que estavam a ocorrer, melhor descritas no despacho recorrido (que bem se percebiam ouvindo a gravação da diligência), como aí igualmente se escreve, a progenitora teve mesmo de ser advertida pela Procuradora do MP presente que lhe disse que “considerava que ela estava a caminho de uma alienação parental, com prejuízo para a saúde da menor, e que se não alterasse a sua postura iria promover uma medida de promoção e proteção por considerar que «esta jovem está em perigo» e «o perigo vem da mãe». No seguimento a Juíza insistiu na possibilidade de vir a ser aplicada a medida que a Procuradora anunciara, e afirmou parte do que está escrito em 12 do RAI. Porque a mãe percebeu o significado da sua atitude (tanto que saiu da diligência enquanto estavam a ser ditadas as alterações), foi-lhe ainda referido, por diversas vezes pela Juíza «a senhora não está a perceber a dimensão do problema» e por fim que «a sua postura hoje muda ou muda tudo».”

E, porque não houve acordo dos progenitores nessa diligência, a arguida, no exercício das suas funções, determinou a notificação dos progenitores para alegarem e juntarem prova no prazo de 15 dias ao abrigo do art. 39.º, n.º 4, do RGPTC, quer no que tange ao objeto do presente apenso, quer no que tange ao objeto do autos principais, e, visando restabelecer os contactos da filha com o pai (portanto, tendo em atenção o superior interesse da menor), alterou provisoriamente o regime de regulação das responsabilidades parentais em vigor, fixando um regime de visitas específico para vigorar em ..., estabelecendo ainda uma visita a ter lugar na tarde do dia da diligência e um horário para contactos da jovem com o progenitor via Skype (cf. respetiva ata de ........2018).

O facto da mãe não concordar com tal decisão da Srª Juiz que presidiu a essa conferência de progenitores, nas circunstâncias e contexto em que tudo se passou, com todos os antecedentes conhecidos no processo e apensos, não significa que aquela Magistrada, aqui arguida, tenha feito um mau uso ou se tenha desviado dos poderes funcionais que lhe estavam confiados, nem tão pouco revela que tivesse atuado com excesso ou abuso dos poderes que lhe estavam confiados ou com desrespeito das formalidades que tinha de cumprir por força da lei.

Posteriormente, por intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Cascais (CPCJ de Cascais), a que a arguida é alheia, a mãe da menor aceitou e assinou um acordo de promoção e proteção com aplicação de medida cautelar de apoio junto dos pais, na pessoa do pai, por um período de 3 meses, com a finalidade de salvaguardar o bem-estar da menor e promover vínculos e laços afetivos com a família paterna.

Nesse acordo, assinado pela mãe em ........2019, foi aceite por esta que a jovem iria para a ... com o pai, ali vivendo com ele pelo referido período de tempo, o que veio a suceder.

Repare-se que, como é referido no despacho de arquivamento do inquérito do MP, “tal como decorre da informação social enviada pela CPCJ de Cascais ao juízo de Família e Menores de ..., juiz 4, a aplicação da referida medida cautelar, para além da concordância dos subscritores (progenitores), teve também a concordância da avó materna, a qual acompanhava de forma próxima a vivência da jovem. Ademais também a jovem manifestou muita vontade em ir para a ... viver com o pai.”

E, foi por isso, para regularizar aquela situação de facto em que a menor/jovem se encontrava (na ..., a quem tinha sido entregue ao pai, com quem estava a residir, na sequência da medida cautelar de apoio junto do pai) ainda em ..., que a arguida em ........2019 proferiu o despacho de alteração provisória ao abrigo do art. 28.º do RGPTC, das responsabilidades parentais da jovem, tendo em atenção a promoção de ........2019.

Portanto, ao contrário do que a recorrente refere, não se pode falar numa “reversão da guarda” ou que com o despacho proferido em ........2019, a arguida violou (abusando ou fazendo um mau uso) (dos) os seus deveres funcionais.

Com efeito, a arguida limitou-se a cumprir as normas legais aplicáveis ao caso, quando, naquelas circunstâncias, em que já havia uma situação de facto em execução do acordo de proteção celebrado em ........2019, estando a jovem na ... com o pai desde então (ou desde o dia seguinte), alterou provisoriamente, ao abrigo do art. 28.º do RGPTC, as responsabilidades parentais da jovem, tendo em atenção a promoção de ........2019 (como é evidente estando a jovem na ..., com o pai, havia que alterar o regime de guarda para o pai provisoriamente, pois não devia haver divergências como era lógico, desde logo tendo em atenção a distância que separava os progenitores e a jovem e tendo em vista a finalidade da guarda e os interesses da jovem que era preciso proteger e acautelar, não se compadecendo com os conflitos que existiam entre progenitores e principalmente com a distância ... que os separava).

Importa ter presente que a jovem foi para a ..., mesmo provisoriamente, não por decisão da arguida (designadamente, por qualquer despacho ou decisão de reversão da guarda), mas por acordo dos pais, que foi celebrado em ........2019, no âmbito da dita aplicação da medida de proteção.

Portanto, não se pode imputar à arguida a responsabilidade pela celebração desse acordo pelos progenitores celebrado em ........2019 e a aceitação de ambos no sentido da jovem ir para a ... com o pai.

Daí que, não sendo tal ato da responsabilidade da arguida, o facto de a mesma ter posteriormente proferido o dito despacho em ........2019, alterando provisoriamente, ao abrigo do art. 28.º do RGPTC, as responsabilidades parentais da jovem, tendo em atenção a promoção de ........2019, como diz o Sr. PGA, mesmo que se possa “entender ter sido errada (o que diga-se, está completamente por demonstrar, pois que – como igualmente resulta dos autos – tal decisão confirmou uma situação de facto já existente”) (…) nunca se pode concluir (nem está alegado sequer, recorde-se) que a arguida, no exercício das suas funções, tenha decidido como decidiu imbuída da vontade de violar flagrantemente as suas obrigações funcionais, ou seja, com o intuito, o dolo específico, de prejudicar a menor, que lhe cumpria defender no exercício do seu múnus.”

Tão pouco se pode afirmar, como alega a recorrente no RAI (objeto do despacho recorrido) que com tal despacho de ........2019 a arguida tivesse abusado dos seus poderes funcionais (fazendo um mau uso deles ou um uso desviante ou tivesse excedido os seus poderes ou mesmo desrespeitado as formalidades legais), designadamente, com intenção de prejudicar a assistente, mãe da menor.

De resto, não há qualquer indício da arguida ter obtido qualquer benefício para si ou para outrem.

O facto da mãe da jovem menor não se conformar com essa decisão de ........2019 também não significa que então a mesma decisão foi proferida em benefício do pai da jovem, com quem a mesma se encontrava de facto na ..., na sequência do dito acordo de ambos os progenitores.

Daí que nem sequer esteja indiciada a prática do imputado crime de abuso de poderes p. e p. no art. 382.º do CP, tal como configurado pela assistente no RAI.

Note-se, como consta da decisão recorrida, que “Não tendo o Tribunal conhecimento de qualquer incapacidade do pai para o exercício do poder paternal, tendo a menor acompanhado o mesmo para a ... por sua livre vontade como resulta claro dos escritos que fez e do próprio relatório social feito no Hospital onde esteve internada não havia motivo para não se adequar a guarda à realidade, tanto mais que a menor estava a ser acompanhada clinicamente num hospital, onde estava internada desde .../.../2019, na sequência de uma auto-mutilação (que é diferente de uma tentativa de suicídio), tendo os pais sido notificados previamente para efeitos de contraditório.

Manifestamente, mais uma vez, o que esteve em causa foi a salvaguarda do superior interesse da criança, permitindo, provisoriamente, a quem a tinha a cargo, tomar as decisões pertinentes a seu respeito.

Acrescente-se que nunca o pai tinha deduzido em juízo qualquer oposição à manutenção de contactos coma mãe, a mãe e a avó já tinham visitado a menor e, segundo a descrição da mãe, essa visita tinha causado forte perturbação à jovem, a ponto de ter retirado e destruído documentos que a avó mantinha na mala de mão.

Manifestamente, o que estava em causa não era o interesse da mãe, mas o interesse da filha – no caso na continuidade do seu tratamento, porque a ideação de suicídio que já tinha manifestado aos colegas em ... tinha-se agravado, passando à mutilação e mais tarde desembocou na tentativa de suicídio.

A menor estava à guarda efectiva do pai, a ser acompanhada pelo equivalente ao Tribunal de menores em ... e em tratamento hospitalar. Só um motivo ponderoso poderia determinar a retirada da menor ao tratamento, na pressuposição natural de que era o caminho adequado para a sua recuperação. A satisfação da sua vontade de voltar para ... nunca esteve em causa, apenas foi entendido que naquele momento não era oportuno. Por isso a decisão teve a natureza de provisória.

Um internamento hospitalar, na lógica normal dos acontecimentos e segundo regras de experiência comum não acontece sem motivo ponderoso e perspectiva de que seja adequado a ultrapassar esse motivo relevante.

O interesse da mãe no bem-estar da filha incluía, ou devia incluir numa perspectiva objectiva de experiência comum, a sua recuperação clínica (sob pena de vir a cometer novos actos de suicídio, que tinha começado a idealizar em ..., onde, sob a orientação da mãe, já tinha frequentado diferentes clínicos por existência de perturbações emocionais) e foi isso que foi salvaguardado. Ninguém imaginava que em ambiente hospitalar a menor lograsse cometer suicídio. Provavelmente nem a mesma tinha essa intenção.

As tentativas de suicídio em adolescentes frequentemente envolvem ambivalência quanto ao desejo de morte e normalmente são uma forma de chamada de atenção ou um pedido de ajuda, ainda que manifestados de forma desastrada. Não se perspectiva, também nesta decisão, qualquer vislumbre de causar prejuízo a quem quer que fosse.”

Agora quanto ao recurso interposto pela progenitora da decisão proferida em ........2019, verifica-se que o despacho que admitiu o recurso foi proferido no mesmo dia em que o processo foi concluso à juíza (em ........2019), aqui arguida, daí não se extraindo qualquer responsabilidade na demora da sua tramitação.

Despachado o processo pela arguida (quando proferiu o despacho de admissão do dito recurso) incumbia à secção cumprir o mesmo e tramitar o processo.

Não há indícios na prova recolhida em sede de inquérito e de instrução que a arguida tivesse de alguma forma retido o processo ou imposto aos funcionários da secção o atraso que veio a ocorrer com a subida do recurso à Relação, o que apenas sucedeu em ........2020.

Ao contrário do que a assistente alega no RAI não ficou demonstrado, nem está minimamente indiciado que a arguida tivesse ordenado que o recurso apenas subisse em ........2020 (com efeito, nem a arguida tinha qualquer poder de reter o recurso ou ordenar aos funcionários que apenas subisse ao tribunal superior um ano depois do despacho que proferiu, quando o admitiu).

O facto de anteriormente a arguida ter referido que um eventual recurso da sua decisão (como bem diz o Sr. PGA) «“não teria efeito suspensivo dessa decisão, mas meramente devolutivo, não pode ser qualificado sequer como qualquer espécie de “ameaça”, pois que é resultante das normas legais aplicáveis.»

Portanto, não foi a arguida que, com as suas decisões, provocou de alguma forma a demora na remessa do recurso ao tribunal superior, não havendo indícios que tivesse sido responsável por esse facto (subida do recurso em ........2020).

Para além disso, da prova existente nos autos, não resulta que perante os dados concretos existentes no processo, mesmo depois de ter sido proferida aquela decisão provisória de ........2019 (que conformou a situação de facto já existente como acima se referiu e foi explicado na decisão recorrida), apesar das demais informações que vieram a ser conhecidas no processo, designadamente a de ........2020 (referida no artigo 30.º do RAI), a arguida tivesse por finalidade outros fins que não fossem os de garantir o superior interesse da criança (não havendo qualquer evidência que com a sua atuação se tivesse desviado dos seus poderes funcionais ou deles tivesse abusado para obter benefícios e/ou tivesse agido com intenção de causar prejuízos à mesma menor ou à assistente).

Analisada assim toda a prova existente nos autos, podemos concluir que não há indícios da prática pela arguida do crime de abuso de poder p. e p. no art. 382.º do CP que lhe era imputado no RAI, uma vez que não há quaisquer indícios que permitam considerar preenchidos os respetivos tipos objetivo e subjetivo, como acima se demonstrou.

Também não há o mínimo de indícios que a denunciada tivesse abusado dos poderes que lhe estavam conferidos ou que tivesse violado os seus deveres, ambos inerentes à sua função enquanto magistrada e titular daquele processo e apensos.

Ou seja, não há qualquer indício de ter havido “violação da lei” ou “desvio do poder” (antes pelo contrário, a denunciada atuou no estrito exercício das suas funções, não as exorbitando, nem usurpando poderes de outrem, cumprindo estritamente os deveres funcionais que lhe cabiam no âmbito das suas funções).

E, não se verificando a prática dos elementos objetivos do crime de abuso de poder que foi imputado à denunciada, também é verdade que não há o mínimo de indícios quanto aos seus elementos subjetivos (ou seja, não há quaisquer indícios de que a denunciada tivesse agido com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou sequer de ter a intenção de causar prejuízo a outra pessoa, designadamente, à menor ou à assistente).

Ou seja, a conduta da denunciada/arguida não evidencia o imputado crime de abuso de poder.

Mesmo conferindo toda a prova documental junta ao inquérito e à instrução, não se evidencia qualquer conduta da arguida que seja penalmente censurável.

Quanto a eventual responsabilidade disciplinar, que a recorrente refere ter recorrido, terá de ser apreciada no local próprio, que é o competente para o efeito e que não se confunde com responsabilidade criminal.

Aliás, a recorrente/assistente no recurso que junta com o RAI relata episódios da menor, designadamente quando tenta agredir a mãe, antes do acordo celebrado em ........2019 e, bem assim, depois de já estar na ..., episódios esses que, na sua perspetiva, lá teriam ocorrido, inclusive de, a dada altura, a menor já não querer ficar com a mãe e manifestar vontade de ficar na ... num lar de jovens, chegando a acusar a avó (injustamente) de a ter arranhado na mão, o que teria levado o hospital a restringir as visitas da avó
à menor
18.

Portanto, independentemente da análise do recurso, que não nos cabe aqui, verifica-se que era uma situação problemática e de difícil resolução, que tinha de ser ponderada e não decidida de forma precipitada, tendo em vista o interesse da criança e a doença de que padecia, mas não se evidenciando a existência de indícios, pelos motivos supra expostos, que do que foi alegado no RAI a arguida tivesse cometido o crime de abuso de poder que lhe foi imputado.

Em suma, não merece censura a decisão de não pronúncia sob recurso, que apreciando o RAI decidiu arquivar os autos, tal como anteriormente já fora decidido pelo MP em sede de inquérito.

Improcede, pois, o recurso, sendo certo que não foram violados os princípios e normas invocadas pela assistente/recorrente.

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Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça individual em 5 (cinco) UC`s.

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado.

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Supremo Tribunal de Justiça, 19.06.2024


Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)
Pedro Branquinho Dias (Adjunto)
Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta) junto a seguinte declaração de voto:

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Declaração de voto:

Voto a decisão de não pronúncia da Arguida por entender que, não obstante se mostrarem preenchidos os elementos objetivos do tipo legal que lhe é imputado, se não mostram suficientemente indiciados os respetivos elementos subjetivos e, nessa medida, se não ter verificado o crime em causa nestes Autos.

Considero que o preenchimento dos elementos objetivos se verifica na diligência judicial em si mesma considerada – a Conferência de Pais – e não no teor ou conteúdo da decisão dela resultante.

Ou seja, entendo que a circunstância da decisão que veio a ser proferida ser favorável ou desfavorável às pretensões da Assistente é irrelevante para efeitos de preenchimento do crime dos Autos, não apenas por não ser da competência material deste Supremo Tribunal a apreciação do seu teor, mas pela circunstância de ser o facto da Conferência de Pais, em si mesma considerada, o momento material da prática, ou da não prática, do crime em questão nestes Autos.

Assim é o facto de aquela ter sido conduzida num crescendo de conflito entre a Assistente e a Arguida, de que os diversos incidentes descritos no RAI são demonstrativos, que materializa uma conduta da Arguida que, em violação dos seus deveres funcionais, infligiu sofrimento de natureza psicológica à Assistente.

Sofrimento este, que face à dimensão e intensidade do comportamento da Assistente, não podia ter sido ignorado pela Arguida.

É a inflição deste sofrimento psicológico o facto que causa prejuízo à Assistente e não o teor da decisão que veio, posteriormente, a ser proferida, a qual, se reitera, não é pertinente para responder à questão de saber se se mostra, ou não, preenchido o elemento típico relativo ao prejuízo causado à Assistente.

E é este mesmo sofrimento psicológico que é uma forma de exercício de violência, tal como este conceito se mostra definido na al. a) do artigo 3º da Convenção de Istambul, e cuja prática se mostra vedada pelo disposto no artigo 5º da mesma Convenção.

Pelo que considero que, “in casu” os elementos típicos objetivo do crime de abuso de poder se mostram verificados.

Contudo, o mesmo já se não pode afirmar quanto ao seu elemento subjetivo - a Arguida ter agido com o intuito deliberado de causar prejuízo à Assistente -, seja a título de dolo inicial seja a título de dolo subsequente, por inexistirem nos Autos indícios suficientes onde possa assentar um juízo da verificação de factos que o possam preencher.

Nesta medida, considero ser adequado não pronunciar a Arguida pela prática do crime que lhe é imputado.

___________________




1. Vide Maria Clara Sottomayor, “Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio”, págs. 33 e 34.

2. Vide Armando Leandro “Poder Paternal: Natureza, Conteúdo, Exercício e Limitações. Algumas Reflexões de Prática Judiciária” em Temas de Direito de Família, Ciclo de Conferências Organizado pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados.

3. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 128, citando Jorge Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 16, refere: “A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por sua vez, Carlos Adérito Teixeira, «”Indícios suficientes”: parâmetro de racionalidade e “instância” de legitimação concreta do poder-dever de acusar», in Revista do CEJ (2004) nº 1, p. 160, entende que «apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de probabilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo».

4. Assim, entre outros, Ac. do TC nº 459/2000, DR II de 11/12/2000.

5. Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 183.

6. PAULA RIBEIRO FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, Tomo III, p. 774-775.

7. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2022, p. 1330.

8. PAULA RIBEIRO FARIA, ob. cit., pp. 775-776.

9. Aqui apela à «definição empregue por MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 501: A violação da lei é o vício de que enferma o acto administrativo cujo objecto, incluindo os respectivos pressupostos, contrarie as normas jurídicas com as quais se devia conformar.”

10. Com uma posição diferente, v.g. admitindo a incompetência absoluta e também a usurpação de poderes, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., p. 1331.

11. PAULA RIBEIRO FARIA, ob. cit., p.776.

12. PAULA RIBEIRO FARIA, ob. cit., p.779.

13. Com posição distinta, admitindo qualquer modalidade do dolo, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., p. 1331.

14. Dispõe o n.º 6 do artigo 36.º (família, casamento e filiação) da CRP que “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.

15. Por exemplo, a nível da pena acessória de expulsão de estrangeiros, quando o condenado estrangeiro comete determinado tipo de crime no Estado da residência, onde tinha efetivamente a seu cargo filho menor de nacionalidade portuguesa (assim procurando a lei, com tal exceção, evitar o desamparo da criança de nacionalidade portuguesa, que é efetivamente sustentada e educada pelo progenitor condenado, cidadão estrangeiro, mas não de Estado membro da União Europeia – artigos 151.º e 135.º, n.º 1, al. b), ressalvada a situação prevista no seu n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4.07. No caso dos cidadãos de Estados-membros da União Europeia (para quem vigora a regra da livre circulação e residência de pessoas) rege a Lei n.º 37/2006, de 9.09 (que estabelece o regime em que pode ocorrer o afastamento do território nacional nos artigos 22.º a 28.º).

16. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra: Coimbra Editora, 4ª ed. Revista, 2007, pp. 856 a 858.

17. Artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança

  1 - Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.

  2 - Os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a proteção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.

  3 - Os Estados Partes garantem que o funcionamento de instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo e asseguram que a sua proteção seja conforme às normas fixadas pelas autoridades competentes, nomeadamente nos domínios da segurança e saúde, relativamente ao número e qualificação do seu pessoal, bem como quanto à existência de uma adequada fiscalização.

18. Percebe-se, também, o teor da comunicação da entidade homologa à CPCJ alemã de ........2020, junta com o RAI, que além do mais conclui referindo que se intensificam “as dúvidas se será benéfico para a evolução da CC que a sua custódia permaneça com o pai. Existe um sentimento cada vez mais forte de que o comportamento do progenitor é determinado por motivos de necessidades pessoais. Possivelmente, seria mais adequado conceder a custódia da jovem a uma pessoa neutra, fora da família. É algo que poderíamos providenciar, contanto que V. Excelências assim o decidissem. É nossa opinião que seria para a própria CC um grande alívio se uma pessoa neutra assumisse a custódia, pelo menos até que a sua situação de vida se estabilizasse, por exemplo, durante seis ou doze meses.”