Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
266/07.5TATNV-D.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
MATÉRIA DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACÓRDÃO RECORRIDO
ACORDÃO FUNDAMENTO
Apenso:
Data do Acordão: 03/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: VERIFICADA A OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário :
I - Mau grado a diversidade dos tipos de crime em apreciação nos dois acórdãos (acórdão recorrido e acórdão fundamento), existe uma identidade de situação de facto no sentido que releva aqui: ambos os acórdãos da Relação, que deram origem aos acórdãos do Supremo agora em confronto, se haviam pronunciado sobre o caso julgado material; e em ambas as decisões da Relação havia sido mantida (ou seja, confirmada) a decisão da primeira instância no sentido de não ocorrer violação de caso julgado. E assim sucedeu, por em ambas as situações de ter considerado que os factos novos, conhecidos no(s) segundo(s) processo(s) não integravam o mesmo crime já conhecido no primeiro processo.

II - Assim, nos dois casos, a Relação confirmou uma decisão proferida na primeira instância, no sentido da inexistência de violação de caso julgado, o que, na perspectiva dos arguidos recorrentes para o Supremo, identicamente consubstanciaria nova violação de caso julgado material. E do(s) acórdão(s)s da Relação recorreram então para o STJ, tendo sido dada, por este, resposta dissonante sobre a (in)admissibilidade do recurso. Ou seja, sobre a admissibilidade de recurso de acórdão do tribunal da Relação que confirma decisão da 1.ª instância que julga não verificada a existência do caso julgado em matéria penal. O acórdão recorrido e o acórdão fundamento pronunciaram-se sobre uma mesma questão de direito, fazendo-o em sentido dissonante.

III - Aos pressupostos de natureza formal - a legitimidade do recorrente (art. 437.º, do CPP), a tempestividade do recurso interposto dentro do prazo de trinta dias contado da data do trânsito do acórdão recorrido (art. 438.º, n.º 1, do CPP) e o trânsito em julgado também do acórdão fundamento – aliam-se os pressupostos de natureza substancial. Constata-se a oposição de acórdãos, a identidade da legislação à luz da qual as duas decisões antagónicas foram proferidas e a identidade de base factual em apreciação em ambas as decisões.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

No Processo n.º 266/07.5TATNV, da Comarca ... (...), foi proferida sentença em que se decidiu, entre outros, condenar a arguida AA como co-autora de um crime continuado de fraude fiscal qualificada dos arts 103.º, n.º 1, al.s a) e c); 104.º, n.º 1, al.s d) e e), e n.º 2, do RGIT (actualmente art. 104.º, n.º 1, al.s d) e e), n.º 2, al. a), e n.º 3) na pena de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa pelo período de cinco anos, subordinada à condição de a arguida pagar, no período da suspensão, ao Estado Português, pelo menos a quantia de €40.000,00 correspondente a parte da prestação tributária em cujo pagamento foi também condenada.

Inconformada, recorreu para o Tribunal da Relação ..., que, por acórdão de 02.07.2019, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença.

Novamente inconformada, recorreu a arguida do acórdão da Relação ... para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por sua vez, por acórdão de 27.01.2021, rejeitou o recurso em matéria penal por legalmente inadmissível – art. 432º n.º 1 al.ª b), 400º n.º 1 al.ª e) e 420º n.º 1 al.ª b), todos do CPP – e rejeitou por dupla conforme o recurso em matéria cível - art. 400º n.º 3 do CPP e 671º n.º 1 e 3 do CPC.

Vem agora a arguida interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão de 27.01.2021 do Supremo Tribunal de Justiça, alegando que neste se apreciou e decidiu uma questão de direito em oposição com a de um outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 12 de Setembro de 2013, no processo n.º 29/07.8GEIDN.C1.S1.

A questão que coloca é a de saber se, do acórdão do Tribunal da Relação que confirmou decisão da 1ª instância que julgou não verificada a existência do caso julgado, é ou não admissível recurso, com esse mesmo fundamento, para o Supremo Tribunal de Justiça, por aplicação subsidiária da norma da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, ex vi do art. 4.º do CPP. E do modo como se apresenta colocada pela recorrente, a questão circunscreve-se ao caso julgado em matéria penal.

Assim, a arguida considera existir uma “oposição de julgados”, pelos seguintes fundamentos:

“1 - A arguida/recorrente tem o firme entendimento que o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, proferiu decisão que se encontra em oposição com o Acórdão do STJ, proferida no domínio da mesma legislação, qual seja o douto Acórdão de 12/09/2013 no Proc. n° 20/07.8GEIDN.Cl. SI antes transitado em julgado, consultável em www.dgsi.pt.

2 - Sendo certo que, o Acórdão recorrido está em contradição com o supracitado Acórdão do STJ (Acórdão fundamento), já transitado em julgado, tal como proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

3 - No dizer de Simas Santos e Leal Henriques, «dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas».

4 - A arguida está em prazo para, atendendo ao supra exposto e invocado, interpor o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência.

5 - Não existe Acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a referida questão e supra melhor explicitada e delimitada. Isto posto,

6 - Nas motivações e conclusões do Recurso interposto para este Supremo Tribunal de Justiça pela arguida/recorrente da, aliás douta, decisão proferida pela 2.ª Instância, que confirmou a condenação da arguida pela prática do crime de fraude fiscal qualificada, na forma continuada, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa pelo período de 5 (cinco) anos, subordinada à condição de a arguida pagar, no período da suspensão, ao Estado Português, pelo menos a quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros), foi invocado, como fundamento essencial, para a dedução do recurso, para o STJ a verificação nos autos das exceçoes de caso julgado e de autoridade de caso julgado - e, consequentemente a repetida violação do principio constitucional de "NE BIS IN IDEM".

7 - No modesto, mas firme entendimento da arguida/recorrente, os presentes autos configuram e evidenciam, um complexo de situações que se enquadram na figura da violação da excepção de caso julgado, na sua dupla vertente, logo e em primeira linha por força da contraposição com a citada douta Sentença proferida no Tribunal Criminal ... (Proc. n° 333/05.O...), a qual transitou em julgado em 31/01/2018 - cuja certidão judicial se encontra junta a fls._ autos-,

8 - E, por outro lado, configuram também e evidenciam uma situação de violação flagrante da excepção de Autoridade de caso julgado, quanto à factualidade respeitante à pretensa emissão e, ou, utilização de facturas falsas, quer pela sociedade L..., Lda., quer no que ao caso mais interessa, pela arguida/Recorrente, AA, a qual em qualquer das anteriores decisões judiciais, já transitadas em julgado, foi sempre absolvida da imputação do exercício da gerência de facto, quer de uma, quer de outra das sociedades comerciais. Sucede que,

9 - 0 STJ no seu, aliás douto, Acórdão de 27/01/2021, embora admitindo a existência de entendimentos diferentes dentro do próprio STJ quanto à questão decidenda, acaba por rejeitar o recurso declarando a inadmissibilidade legal de apresentar recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, por ofensa de caso julgado, pela aplicação subsidiária do previsto no art. 629° al. a) do CPC e considera, designadamente, que tendo sido suscitada perante a Relação a ofensa do caso julgado pela decisão da 1.ª Instancia, com conhecimento dessa concreta questão pelo Tribunal de 2.° instancia, ficou assegurado quanto a ele (caso julgado) o duplo grau de jurisdição, conforme do douto Acórdão que se encontra a fls. _ dos autos - ref. n.° ...28 - tudo bem se alcança.

10 - Em sentido diametralmente oposto e no que ao caso diretamente interessa, escreveu-se, em sentido oposto, neste Venerando Supremo Tribunal de Justiça e no douto Acórdão - ACÓRDÃO FUNDAMENTO - proferido no âmbito do processo n.° 29/07.8GEIDN.Cl. SI de 12/09/2013, na 5.a Secção, disponível em www.dgsi.pt/jstj, o seguinte:

(...) Como já se referiu antes, à luz das normas de processo penal, em matéria de recorribilidade, a decisão recorrida seria irrecorrível para o STJ. Desde logo por força da al. e) do n° 1 do art. 400.° do CPP. Portanto, a questão que se coloca em seguida é a de saber se é de aplicar a norma do art. 678.° n.° 1 do CPC, e, para além disso, se tal aplicação implica a possibilidade de um duplo grau de recurso.

Rigorosamente, a questão da recorribilidade para o STJ não se coloca já, aqui, dependente da aferição de uma violação de caso julgado, reclamando uma análise da factualidade apurada em dois arestos, com a invocada e eventual identidade "entre a admissibilidade e o objeto do recurso".

Importa apenas saber se, admitido um recurso cujo objeto era, entre o mais, a invocação da violação de caso julgado, uma vez decidido que não havia violação alguma, pode esta última decisão ser objeto de novo recurso, com o propósito, outra vez, do apuramento da mesma violação de caso julgado, já apreciada.

Por outras palavras, estando em causa a invocação de violação de caso julgado, poderá haver um duplo grau de recurso tendo por fundamento aquela violação? (...)

1.2.1. Em primeiro lugar, sufragamos a posição de quantos entenderam que o disposto no art. 678°, n° 2 al. a) do CPC, hoje, art. 629°, n° 2, al. a) do CPC (na redação da Lei 41/2013 de 26 de Junho, entrada em vigor a 1/9/2013), é aplicável subsidiariamente no processo penal, por força do art. 4° do CPP.

Pela voz de J. Alberto dos Reis se disse que se pretende, com aquela norma do processo civil, "assegurar, até ao extremo limite da hierarquia judicial, a observância das normas relativas à competência absoluta dos tribunais e ao respeito pelo caso julgado. Os interesses protegidos por estas normas são de ordem pública; elevou-se ao máximo a sua tutela" [3]. E se os interesses protegidos pela norma em questão são de ordem pública, não só são transponíveis para o processo penal, na ocorrência de lacuna, como se impõem por maioria de razão no processo penal, onde, para além da insistente busca da verdade material, cumpre acautelar com rigor a observância do princípio ne bis in idem, merecedor de consagração constitucional (art. 29.° n° 5 da CR).

1.2.2. O art. 629.°, n.° 2, al. a), do CPC, surge na sequência da norma do n° 1, onde se estabelece a regra base, em matéria de recurso cível, da recorribilidade em função do valor da causa. O legislador pretendeu garantir que, quando à luz das regras gerais de recorribilidade o recurso não fosse possível mesmo assim seria de admitir face à invocação da violação de caso julgado. Transpondo para a disciplina processual penal esta mesma ideia, dir-se-á que é exatamente quando a irrecorribilidade se impuser por força do disposto no art. 400.°, n° 1 do CPP, que cobra razão de ser a aplicação subsidiária do art. 629.°, n° 2, al. a), do CPC.

No caso em apreço, não se recorreu duas vezes à aplicação analógica do art. 678. °, n° 2, al. a) citado. A decisão da primeira instância era recorrível para a Relação, e a violação do caso julgado aflora como uma das várias questões apresentadas como fundamento de recurso. E porque o acórdão recorrido manteve a posição da primeira instância de acordo com a qual não ocorrera violação de caso julgado, por isso se recorreu para o STJ. A Relação reiterou a posição da primeira instância, e por isso, para o recorrente, ela mesma violou, nessa medida, o caso julgado.

Assim sendo, a aplicação excecional em termos de recorribilidade, da norma de processo civil, só deverá ter lugar no presente recurso, porque é possível considerar que o acórdão recorrido se traduz numa decisão que persiste na ofensa do caso julgado.

E por isso é que se considera, sem contradição, que o recurso para o STJ com o fundamento de violação de caso julgado, implica que essa violação seja do acórdão recorrido.

Não sendo essa a hipótese, não poderá haver recurso para o STJ, como se decidiu no acórdão de 8/3/2001 (P° 146/01-5). É que, ao contrário dos presentes autos, nesse caso, o acórdão recorrido da Relação confirmou a decisão da primeira instância no sentido de haver violação de caso julgado. Portanto, o recurso que se interpusesse para o STJ não se fundaria em ofensa de caso julgado, mas, muito pelo contrário, na não ofensa de caso julgado.

Como refere Rodrigues Bastos "se o fundamento do recurso é a ofensa de caso julgado, é então necessário que essa ofensa se impute à decisão recorrida. Se esta reconheceu que a decisão de um tribunal inferior ofendeu caso julgado, já não é operante o disposto no n° 2 [do art. 678.° do CPC] para abrir a via do recurso ordinário para outro tribunal". Pelo exposto, entendemos que o presente recurso é de admitir.(...)

11 - Neste douto Acórdão, para além de defender e sufragar a posição que o disposto no art. 678.°, n° 2 al. a) do CPC, hoje, art. 629.°, n° 2, al. a) do CPC é aplicável subsidiariamente no processo penal, por força do art. 4.° do CPP, também ficou assente que a aplicação excecional em termos de recorribilidade, da norma de processo civil, deverá ter lugar, porque é possível considerar que o acórdão recorrido (2.a instancia) se traduz numa decisão que persiste na ofensa do caso julgado.

12 - Ali se explicando que (...) o acórdão recorrido manteve a posição da primeira instância de acordo com a qual não ocorrera violação de caso julgado, por isso se recorreu para o STJ. A Relação reiterou a posição da primeira instância, e por isso, para o recorrente, ela mesma violou, nessa medida, o caso julgado. (...) - in Acórdão citado.

13 - Está assim, o aqui recorrido acórdão, em oposição com o citado acórdão, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no que tange, pelo menos, à concreta decisão respeitante à mesma questão fundamental de direito, designadamente, à admissibilidade do recurso penal para o Supremo Tribunal de Justiça pela aplicação subsidiária do art. 629.º n.° 2, al a), do C.P.C., incluindo as situações, como a presente, em que a Relação haja confirmado a decisão da 1.ª Instancia quanto ao conhecimento dessa questão (ofensa do caso julgado). Pois,

14 - No Acórdão recorrido que rejeitou o Recurso interposto da decisão proferida pela 2.ª instancia é expresso o entendimento que, embora admitindo a existência de entendimentos diferentes dentro do próprio STJ, é inadmissível o recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, por ofensa de caso julgado, pela aplicação subsidiária do previsto no art. 629.°, al. a), do CPC.

SEM PRESCINDIR E POR CAUTELA DE PATROCÍNIO,

15 - Nestes autos a arguida/Recorrente foi acusada e depois, infelizmente, condenada pela alegada prática de um crime de fraude fiscal qualificado, na forma continuada, (...), por, alegadamente, e enquanto gerente de facto da s..., Lda., ter, juntamente com os gerentes de direito dessa sociedade, BB, CC, seu irmão já falecido e DD, entre Janeiro e Novembro de 2004, determinado que aquela L..., Lda. emitisse  um rol de facturas relacionadas a fls. 4963 dos autos até 4973 dos autos, a favor da s..., Lda., sem que correspondessem a serviços efectivamente prestados e/ou materiais/sucata a ela fornecidos.

16 - Situa, por isso a acusação, a factualidade imputada à arguida no que concerne à sua alegada ligação, quer à L..., Lda., quer à R..., Lda., enquanto gerente de facto de uma das sociedades - coisa que a Sentença não esclarece com rigor - àquele dito período de Janeiro a Novembro de 2004.

17 - Ora, no processo comum (tribunal Singular) que sob o n.° 333/05.O... correu termos pelo Juízo Criminal ... - Juiz ... -, a arguida/recorrente, também ali constituída arguida, foi igualmente acusada pela alegada prática de um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos arts 103°, 104° n°l e 2 do RGIT.

18 - Também na acusação deduzida nesse processo - o qual igualmente envolvia outros arguidos - era imputado à arguida a emissão de facturas falsas, alegadamente emitidas pela sociedade L..., Lda., ali a favor e para serem integradas na sociedade A..., S.A. nos períodos e exercício fiscais de 2001 a 2004.

19 - Essa acusação, em suma, ali deduzida contra a arguida/Recorrente, e em que estavam igualmente incriminados o senhor BB, o senhor seu irmão (já falecido) CC e a senhora DD, tal qual aqui se passa, baseou-se no pressuposto de que as facturas emitidas, pela sociedade L..., Lda., nos anos de 2001, 2002, 2003 e ainda em 2004, tais como as que foram emitidas pela  sociedade R..., Lda, - no que ao caso aqui interessa - relativas aos anos de 2001 a 2004, não correspondiam a transações ou fornecimentos efectivos que aquelas tivessem prestado.

20 - Acresce que, nesse processo, cujo julgamento correu termos ao longo do ano de 2017, foi proferida douta Sentença Judicial em 19/12/2017, a qual transitou em julgado em 31/01/2018 - em data posterior ao do encerramento da audiência de julgamento, que teve lugar nestes autos ao longo do mesmo ano de 2017, mas anterior à data da prolação da Sentença aqui proferida e recorrida -a qual, muito justa e acertadamente, absolveu a arguida, tal como as sociedades ali também acusadas, designadamente, a S... Lda., daquele crime de fraude fiscal qualificada que, tal como nestes autos e reportado ao mesmo período de Janeiro a Novembro de 2004, ela e os demais arguidos tinham, também ali, como aqui, sido acusados.

21 - Ora, o cerne e essência dos factos imputados, quer do ponto de vista objectivo, quer do ponto de vista subjectivo, seja neste processo, seja naquele que correu temos no Tribunal Criminal ... são os mesmos.

22 - Tanto assim que, a acusação deduzida nestes autos, no que diz respeito ao ano de 2004, evidencia que as facturas, alegadamente falsas, da L..., Lda. que a arguida R..., Lda inseriu na sua contabilidade foram já objecto de julgamento no âmbito do processo assinalado - proc. n.° 333/05.... - onde foi proferida sentença que já transitou em julgado.

23 - Sentença essa que, repete-se, absolveu as arguidas - DD, AA, e as sociedades R..., Lda e L..., Lda., bem como os demais arguidos naquele processo - do crime de fraude fiscal que lhes vinha imputado.

24 -  Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando- se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuadamente diminuída que, um só juízo de censura, e não vários, é possível formular.

25 - O princípio "ne bis in idem", com assento no artigo 29.°, n.° 5 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime" é aplicável a todos os procedimentos de natureza sancionatória, trata-se de uma disposição que preenche o núcleo fundamental de um direito: o de que ninguém pode ser duplamente incriminado e punido pelos mesmos factos sob o império do mesmo ordenamento jurídico.

26 - A expressão "julgado" mais do que uma vez, não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase do julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo.

27 - A conduta da arguida/recorrente em análise nos presentes autos mais não traduz que uma continuação da conduta que esteve em apreciação no Processo n° 333/05.OIBRG correu termos no Juízo Criminal ..., no qual os arguidos foram absolvidos - por sentença já transitada em julgado - pela prática de um crime continuado de fraude fiscal qualificada - na forma continuada -, sendo que os presentes autos abarcam, o mesmo período de Janeiro a Novembro de 2004.

28 - E, atenta a unidade da imputação criminal, "(…) os factos imputados aos arguidos relativos às facturas de 2001 a 2004, são produto de uma única resolução criminosa, que envolvia quer a emissão das facturas falsas, quer a sua utilização na contabilidade dos arguidos, com vista a obter vantagens indevidas de IVA, IRC e de IRS, e abarcam todos os demais que daquela alegada decisão inicial são dependência e que terão interruptamente ocorrido entre 2001 e 2006.

29 - Tendo em conta o caso concreto, ou seja, os factos investigados nestes autos e os constantes do proc. n.° 333/05...., é notório, que tem-se em vista a apreciação dos mesmos comportamentos espácio temporalmente determinados, e com a mesma qualificação jurídica: crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada.

30 - Pelo que, esta situação configura a infracção à proibição do ne bis in idem ou, melhor dizendo, configura excepção de caso julgado.

Acresce dizer,

31 - Ainda que o C.P.P não regule directamente o instituto do caso julgado, o mesmo tem que se considerar consagrado e uma emanação do princípio ne bis in idem consagrado no ar. 29° da C.R.P..

32 - O caso julgado pressupõe a identidade do objecto do processo, tendo por referência os poderes de cognição do tribunal e os factos que constituem "o mesmo crime", na acepção jurídico-penal.

33 - Os presentes autos para além de configurarem, como supra já se explicou, uma situação de violação da excepção de caso julgado, proveniente da supracitada e douta Sentença proferida no Tribunal Criminal ..., a qual transitou em julgado em 31/01/2018, configuram também e evidenciam uma situação de violação flagrante da excepção de Autoridade de caso julgado, quanto à factualidade respeitante à pretensa emissão e, ou, utilização de facturas falsas, quer pela sociedade L..., Lda., quer no que ao caso mais interessa, pela arguida/Recorrente DD.

34 - Pelo que, tudo visto, é manifesto que o douto Acórdão do Tribunal da Relação, recorrido violou a força e a autoridade do caso julgado decorrente de tudo quanto foi decidido, quer no que diz respeito à questão de facto, quer no que diz respeito à questão de direito, decididas na douta Sentença absolutória, já transitada em julgado, e proferida no supra citado processo n° 333/05.... - aplicação conjugada do disposto nos arts. 2°, 29° n°5 e 32° da C.R.P. e arts. 576°, 577° al i), 578°, 580°, 581°, 619° e 620°. CP. Civil - ver doc. n° 1

Acresce ainda dizer,

35 - É entendimento da Recorrente e de parte da jurisprudência que a dupla conforme cede quando estiver em causa a cognição da questão da ofensa do caso julgado, ocorreu no acórdão fundamento.

36 - A autonomia dos recursos em processo penal, face aos recursos em processo civil, apenas significa que a sua tramitação unitária obedece imediatamente às disposições processuais penais, mas não exclui, por força do art. 4.° do CPP, em casos omissos, a aplicação subsidiária das regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal.

37 - Perante esta lacuna de regulamentação, tem o STJ entendido, embora admite-se, de modo não uniforme, que esta última norma tem aplicação no processo penal por força do disposto no art. 4° do C.P.P.

38 - A violação do caso julgado, como fundamento do recurso, nos termos do artigo 629.°, n.° 2, alínea a), fine, do CPC, constitui um motivo específico de admissibilidade de recurso fora de todos os pressupostos típicos e comuns de recorribilidade.

39 - Com esta natureza, constitui solução que responde a um princípio geral - respeito pelo caso julgado - sendo, por isso, compatível com a disciplina e o regime do processo penal.

40 - Assim, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, o Acórdão recorrido contraria corrente jurisprudencial do STJ, máxime a orientação jurisprudencial sufragada neste citado Acórdão do STJ - Acórdão fundamento - .

41 - É patente a contradição entre os Acórdãos sub judice sobre a mesma questão fundamental de direito e também não podem restar dúvidas que todos os citados Acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação. Pelo que,

42 - Salvo o devido respeito por melhor entendimento, a razão está do lado do acórdão fundamento e bem assim da doutrina e jurisprudência que vem alinhando o acertado entendimento supra explanado.

43 - Por conseguinte em obediência a tal entendimento, considera a Recorrente que o douto Acórdão recorrido, opera uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 4°, 400°, 432° e seguintes do CPP e do art. 629° n.°2 al. a) do CPC e ainda, arts. 2°, 20°, 29° n.°5 e 32° n.°s 1 e 5 da CRP.

44 - Impõe-se assim as questões "sub judice" sejam apreciadas, atenta a sua relevância geral em sede de realização da justiça e particular em sede de eficaz realização dos direitos subjectivos de modo a assegurar uma melhor aplicação do direito.

Nestes termos e com o douto suprimento de Vexas. Venerandos Conselheiros, deve ser conhecida e declarada a contradição entre os dois acórdãos - acórdão recorrido e acórdão fundamento - e determinado o prosseguimento do presente procedimento de recurso de fixação de jurisprudência, dando-se inteiro provimento ao mesmo e revogando-se o acórdão recorrido, com todas as devidas e legais consequências por ser de inteira, justiça.”

O magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso dizendo apenas:

“Após análise do referido recurso interposto, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos, concorda com o mesmo no segmento em que elenca, justifica e considera estarem preenchidos os pressupostos previstos no art. 437.º, do Código de Processo Penal, para a admissão do aludido recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.”

No Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo:

“5. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento no sentido de que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e, outros, de natureza substancial.

Entre os primeiros, a lei enumera: (i) a legitimidade do recorrente (ii) a interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar; (iii) a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se a houver; e (iv) o trânsito em julgado de ambas as decisões.

Entre os segundos: (i) que os acórdãos respeitem à mesma questão de direito (ii) sejam proferidos no domínio da mesma legislação, (iii) assentem em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto e (iv) que as decisões em oposição sejam expressas.

In casu, e como flui do que antecede, mostram-se preenchidos os requisitos formais: o acórdão fundamento e o acórdão recorrido transitaram em julgado, mostram-se certificados nos autos e a interposição do recurso pela arguida verificou-se dentro do prazo legal.

O mesmo acontece quanto aos requisitos substanciais.

Segundo a doutrina adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça, a oposição de julgados verifica-se quando:

a) - As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;

b) - As decisões em oposição sejam expressas;

c) - As situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.

No caso dos autos, a enunciada questão de direito constituiu em ambas as decisões objeto dos respetivos recursos e foi decidida, no domínio da mesma legislação, de maneira oposta.

À questão de saber se do acórdão do Tribunal da Relação, confirmativo de decisão da 1ª instância que julgou não verificada a existência de caso julgado, é, ou não, admissível recurso, com esse mesmo fundamento, para o Supremo Tribunal de Justiça, por força do disposto na norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do C.P.C., ex vi do artigo 4.º do C.P.P., o acórdão recorrido entendeu não ser admissível recurso, por não ser aplicável aos recursos em matéria penal o regime estabelecido nesse artigo 629.º, n.º 2, alínea) a), do CPC.

Já o acórdão fundamento, por seu turno, respondeu à mesma questão no sentido de que tal recurso é admissível, por aplicação subsidiária ao processo penal da norma do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do C.P.C., ex vi do artigo 4.º do CPP.

6. Assim, e pelo que antecede, afigurando-se verificados os requisitos formais e substanciais normativamente previstos nos artigos 437.º e 438.º, do C.P.P., entende-se que o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto deverá prosseguir, em conformidade com o disposto nos artigos 440.º, n.º 4, e 441.°, n.° 1, segunda parte, do CPP.”

Assegurado o contraditório, não houve resposta ao parecer.

Teve lugar a Conferência.

                                                              

2. Fundamentação

O recurso de fixação de jurisprudência encontra-se previsto no Capítulo I, do Título II, do Livro XIX do CPP, e os arts 437.º (Fundamento do recurso) e 438.º (Interposição e efeito) disciplinam os requisitos de natureza formal e substancial para a admissibilidade deste recurso extraordinário.

De acordo com estes preceitos legais, os requisitos formais do recurso de fixação de jurisprudência consistem na legitimidade do recorrente, na interposição tempestiva (no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido), na identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento, com menção da sua publicação se estiver publicado), no trânsito em julgado também do acórdão fundamento.

Da análise do processo resulta que o acórdão recorrido transitou em julgado no dia 24.06.2021 e o recurso foi interposto a 09.09.2021 (após férias judiciais de Verão). É tempestivo nos termos do art. 438.º, n.º 1, do CPP, pois o prazo de interposição é de trinta dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

Foi ainda interposto por quem tem legitimidade (a arguida – art. 437.º, n.º 5, do CPP), mostrando-se igualmente cumpridos os restantes requisitos formais.

Os requisitos substanciais consistem na existência de dois acórdãos que respeitem à mesma questão de direito e sejam proferidos no domínio da mesma legislação (sem ocorrência de alteração no texto da lei que regula a situação controvertida) e que assentem em soluções de sinal contrário sobre essa mesma questão de direito.

Relativamente ao requisito da oposição entre soluções de direito, o Supremo consolidou jurisprudência no sentido de que essa oposição tem de definir-se a partir de uma identidade de facto, de uma homologia encontrada nas situações de facto apreciadas em cada um dos dois acórdãos em confronto.

Assim, considerou-se designadamente no acórdão do STJ de 28/10/2020 (Rel. Augusto Matos) que “a oposição relevante de acórdãos ocorrerá quando existam nas decisões em confronto soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário”. E “ao mesmo tempo, as soluções de direito devem reportar-se a uma mesma questão fundamental de direito”.

E reiterou-se no acórdão do STJ de 21.04.2021 (Rel. Nuno Gonçalves), mantendo jurisprudência do Supremo há muito uniforme, que “o pressuposto material da identidade da questão de direito exige que: a. as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham consagrado soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; b. as decisões em oposição sejam expressas; c. as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões. Não pode haver oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respetivas decisões.”

Cumpre verificar, a pedido da recorrente, se ocorre  uma efectiva oposição de soluções sobre uma mesma questão de direito, ou seja, se existe oposição de decisões sobre a concreta questão problematizada no recurso.

Como o Senhor Procurador-Geral Adjunto delimitou no parecer, a questão respeita a saber se do acórdão do Tribunal da Relação, confirmativo de decisão da 1ª instância que julgou não verificada a existência de caso julgado, é, ou não, admissível recurso, com esse mesmo fundamento, para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto na norma da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, ex vi art. 4.º do CPP.

Precise-se ainda que a decisão de não verificação de caso julgado, proferida em primeira instância e confirmada pela Relação, na vertente que se encontra questionada no presente recurso extraordinário respeita apenas ao caso julgado penal. Precisão que cumpre consignar, atendendo a que no acórdão recorrido se decidiu rejeitar o recurso tanto em matéria penal, como em matéria civil. No entanto, quer do recurso ora interposto, nos termos em que a recorrente o delimitou, quer do acórdão recorrido, em que a rejeição do recurso com o fundamento agora questionado se circunscreveu à parte penal (a rejeição do recurso na parte relativa à condenação cível justificou-se ali à luz de fundamento e norma legal diversos) resulta muito claro que está em causa apenas a vertente do caso julgado em matéria penal.

Assim, o acórdão recorrido entendeu não ser admissível recurso, por não ser aplicável aos recursos em matéria penal o regime estabelecido nesse art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC. O acórdão fundamento respondeu à mesma questão de direito no sentido de que tal recurso é admissível, por aplicação subsidiária ao processo penal da norma do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, ex vi do art. 4.º do CPP.

Ambos os acórdãos – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento – abordaram a mesma temática na fundamentação da decisão, e fizeram-no efectivamente consagrando diferentes e opostas soluções de direito.

Assim sendo, a oposição ocorre realmente aqui.

Tendo o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência de assentar em julgados explícitos que abordem de modo oposto a mesma questão de direito, no sentido amplo que se enunciou e que exige uma similitude de base factual relevante para a decisão, da leitura do recurso, completado pelo acesso aos acórdãos recorrido e fundamento, resulta que ocorre a oposição.

Com efeito, da leitura dos dois acórdãos, na dupla vertente de “acórdão de facto” e de “acórdão de direito”, constata-se que, por um lado, existe coincidência de bases factuais relevantes para a decisão, e, pelo outro, os dois acórdãos seguem opostas soluções de direito.

No acórdão recorrido, pode ler-se:

“da admissibilidade do recurso em matéria penal: As recorrentes, com argumentação sincrónica, reclamam a admissão do respetivo recurso invocando como fundamento a ofensa de caso julgado, demandando amparo no preceituado no art. 629°, n.º 2, al. a) do CPC, que, na alegada ausência de regulamentação na copilação processual penal, têm por aplicável aqui, através da remissão genérica constante do art. 4.º do CPP. Convocam também o disposto nos artigos 2º, 20º, 29º nº 5 e 32º nº 1 e 5º da Constituição Como este mesmo Tribunal e secção – e com o mesmo relator - sustentou e aqui se repete, a autonomização dogmática e metodológica do regime dos recursos processo penal, em matéria criminal,  em relação à lei adjetiva do processo civil, foi uma das preocupações do legislador do vigente CPP, informado pelo ideário de estabelecer um sistema integrado - e completo - de soluções potenciadoras da “economia processual numa óptica de celeridade e de eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico”, de modo a obviar “ao reconhecido pendor para o abuso dos recursos”. “Complementarmente, procurou simplificar-se todo o sistema, abolindo-se concretamente a existência, por regra, de um duplo grau de recurso.”

E mais adiante prossegue-se:

“Sendo o fundamento do recurso a ofensa de caso julgado, é então necessário que essa ofensa seja imputada à decisão recorrida. Se esta reconheceu que a decisão de um tribunal inferior ofendeu caso julgado, se já conheceu da questão da violação do caso julgado, não se abre a via do recurso ordinário para outro tribunal.

6 - Se a questão da violação do caso julgado pela decisão da 1.ª instância foi já suscitada perante a Relação que dela conheceu, foi assegurado quanto a ela o duplo grau de jurisdição, pelo que a invocação da violação do caso julgado não pode abrir a via de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o que conduz à rejeição do recurso - n.º 1 do art. 420.º do CPP.

É a situação ali contemplada, precisamente, a que aqui, neste processo, está em causa. A violação do caso julgado não é imputada ao acórdão recorrido, nem, evidentemente, podia ser uma vez que se limitou a confirmar a decisão condenatória, tendo para tanto de julgar improcedente a exceção e/ou o efeito do caso julgado que os recorrentes lhe opunham. Ou, nos termos do aresto citado, tendo sido suscitada perante a Relação a ofensa do caso julgado pela decisão da 1ª instância, com o conhecimento dessa concreta questão pelo Tribunal de 2ª instância ficou assegurado quanto a ele o duplo grau de jurisdição, não podendo o mesmo fundamento servir para fundar recurso em 2º grau perante o STJ.

Deste modo, também a essa luz, sempre o vertente recurso das arguidas teria de rejeitar-se.

Conclui-se, por isso, pela inadmissibilidade legal do recurso das arguidas na parte em que visam o reexame da respetiva condenação penal. Com a consequente rejeição em obediência ao disposto nos artigos 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª e) do CPP – cfr arts. 420º n,º 1 al.ª b) e 414º n.º 2 da mesma compilação normativa.”

Neste processo, a arguida/recorrente fora condenada por um crime de fraude fiscal qualificado na forma continuada, e defendera em recurso que, tendo sido acusada por crime de  fraude fiscal qualificada dos mesmos arts. 103.° e 104.° n.°s 1 e 2 do RGIT noutro processo, do qual fora anteriormente absolvida por acórdão transitado em julgado, ocorreria violação de caso julgado (material) por os factos novos integrarem a mesma continuação criminosa já conhecida naquele primeiro processo.

Já no acórdão fundamento considerou-se:

“estando em causa a invocação de violação de caso julgado, poderá haver um duplo grau de recurso tendo por fundamento aquela violação?

1.2.1. Em primeiro lugar, sufragamos a posição de quantos entenderam que o disposto no art. 678.º, nº 2 al. a) do CPC, hoje, art. 629.º, nº 2, al. a) do CPC (na redação da Lei 41/2013 de 26 de Junho, entrada em vigor a 1/9/2013), é aplicável subsidiariamente no processo penal, por força do art. 4.º do CPP.

Pela voz de J. Alberto dos Reis se disse que se pretende, com aquela norma do processo civil, “assegurar, até ao extremo limite da hierarquia judicial, a observância das normas relativas à competência absoluta dos tribunais e ao respeito pelo caso julgado. Os interesses protegidos por estas normas são de ordem pública; elevou-se ao máximo a sua tutela” [3]. E se os interesses protegidos pela norma em questão são de ordem pública, não só são transponíveis para o processo penal, na ocorrência de lacuna, como se impõem por maioria de razão no processo penal, onde, para além da insistente busca da verdade material, cumpre acautelar com rigor a observância do princípio ne bis in idem, merecedor de consagração constitucional (art. 29.º nº 5 da CR) [4].

1.2.2. O art. 629.º, nº 2, al. a), do CPC, surge na sequência da norma da norma do nº 1, onde se estabelece a regra base, em matéria de recurso cível, da recorribilidade em função do valor da causa. O legislador pretendeu garantir que, quando à luz das regras gerais de recorribilidade o recurso não fosse possível, mesmo assim seria de admitir face à invocação da violação de caso julgado. Transpondo para a disciplina processual penal esta mesma ideia, dir-se-á que é exatamente quando a irrecorribilidade se impuser por força do disposto no art. 400.º, nº 1 do CPP, que cobra razão de ser a aplicação subsidiária do art. 629.º, nº 2, al. a), do CPC.

No caso em apreço, não se recorreu duas vezes à aplicação analógica do art. 678.º, nº 2, al. a) citado. A decisão da primeira instância era recorrível para a Relação, e a violação do caso julgado aflora como uma das várias questões apresentadas como fundamento de recurso. E porque o acórdão recorrido manteve a posição da primeira instância de acordo com a qual não ocorrera violação de caso julgado, por isso se recorreu para o STJ. A Relação reiterou a posição da primeira instância, e por isso, para o recorrente, ela mesma violou, nessa medida, o caso julgado.  

Assim sendo, a aplicação excecional em termos de recorribilidade, da norma de processo civil, só deverá ter lugar no presente recurso, porque é possível considerar que o acórdão recorrido se traduz numa decisão que persiste na ofensa do caso julgado.

E por isso é que se considera, sem contradição, que o recurso para o STJ com o fundamento de violação de caso julgado, implica que essa violação seja do acórdão recorrido.”

Neste processo, o arguido fora condenado por um crime de dano do art. 212.°, n.° 1, do CP, e defendera no recurso que havia sido já condenado pelo mesmo crime por acórdão transitado em julgado,  e que ocorreria violação de caso julgado (material) por as condutas descritas na acusação integrarem fracções da mesma continuação criminosa pela qual o arguido fora condenado naquele primeiro processo.

Constata-se assim que, mau grado a diversidade dos tipos de crime em apreciação nos dois casos, existe uma identidade de situação de facto no sentido que releva aqui: ambos os acórdãos da Relação, que deram origem aos acórdãos do Supremo agora em confronto, se haviam pronunciado sobre o caso julgado material; e em ambas as decisões da Relação  havia sido mantida (ou seja, confirmada) a decisão da primeira instância no sentido de não ocorrer violação de caso julgado. E assim sucedeu, por em ambas as situações de ter considerado que os factos novos, conhecidos no(s) segundo(s) processo(s) não integravam o mesmo crime já conhecido no primeiro processo.

Assim, nos dois casos, a Relação confirmou uma decisão proferida na primeira instância, no sentido da inexistência de violação de caso julgado, o que, na perspectiva dos arguidos recorrentes para o Supremo, identicamente consubstanciaria  nova violação de caso julgado material. E do(s) acórdão(s)s da Relação recorreram então para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido dada, por este, resposta dissonante sobre a (in)admissibilidade do recurso. Ou seja, sobre a admissibilidade de recurso de acórdão do Tribunal da Relação que confirma decisão da 1ª instância que julga não verificada a existência do caso julgado em matéria penal.

Em suma, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento pronunciaram-se sobre uma mesma questão de direito, fazendo-o em sentido dissonante.

De tudo resulta que, aos pressupostos de natureza formal - a legitimidade do recorrente (art. 437.º, n.º , do CPP), a tempestividade do recurso interposto dentro do prazo de trinta dias contado da data do trânsito do acórdão recorrido (art. 438.º, n.º 1, do CPP) e o trânsito em julgado também do acórdão fundamento – aliam-se os pressupostos de natureza substancial. Constata-se a oposição de acórdãos, a identidade da legislação à luz da qual as duas decisões antagónicas foram proferidas e a identidade de base factual em apreciação em ambas as decisões.

Conclui-se, assim, pela verificação de oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, determinando-se, por isso, o prosseguimento do recurso (arts. 441.º, n.º 1, e 442.º do CPP).


3. Decisão

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar verificada a oposição de julgados entre o acórdão recorrido, proferido no Processo n.º 266/07.5TATNV.E1.S1, pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 27.01.2021, e o acórdão fundamento, proferido no Processo n.º 29/07.8GEIDN.C1.S1, pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 12 de Setembro de 2013, ordenando-se o prosseguimento do recurso, nos termos do artigo 441.º do CPP.

Sem tributação.

                                                            

Lisboa, 16.03.2022


Ana Barata Brito, Relatora

Maria Helena Fazenda, Adjunta