Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97A928
Nº Convencional: JSTJ00034795
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
ABUSO DE DIREITO
GERENTE
Nº do Documento: SJ199807090009281
Data do Acordão: 07/09/1998
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 720/97
Data: 11/20/1995
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL. DIR COM - SOC COMERCIAIS.
Legislação Nacional: CSC86 ARTIGO 260.
LULL ARTIGO 32 ARTIGO 77.
CCIV66 ARTIGO 220 ARTIGO 237 ARTIGO 253 ARTIGO 286 ARTIGO 334 ARTIGO 762 ARTIGO 875.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RP DE 1990/04/19 IN CJ ANOXV TI PAG236.
ACÓRDÃO RE DE 1992/05/14 IN CJ ANOXVII TIII PAG337.
ACÓRDÃO STJ PROC67535 DE 1979/02/22.
Sumário : I - Uma sociedade por quotas fica obrigada mediante a assinatura pessoal do gerente em nome da sociedade.
II - A assinatura com a firma social, feita pelo gerente, não vincula a sociedade.
III - Há "venire contra factum proprium" quando alguém exerce uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente.
IV - A proibição do "venire contra factum proprium" reconduz-se à doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjectivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.
V - A protecção jurídica inerente ao "venire contra factum proprium" também não tem lugar se, tendo-se confiado naquele facto, se descurou a observância de deveres de indagação.
VI - A tradição comercial, anterior ao Código das Sociedades Comerciais, no sentido da assinatura pelo gerente com a firma social não pode aproveitar seis anos após o início da sua vigência a uma entidade bancária, familiarizada com o movimento e processamento de títulos cambiários e perfeitamente conhecedora dos requisitos formais da respectiva validade.
VII - A proibição referida em IV não aproveita ao banco que recebe livranças que são nulas por nelas ter o gerente da sociedade promitente assinado com a firma social.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I

O Banco A. instaurou execução ordinária, para pagamento de quantia certa contra B e mulher C, todos com os sinais dos autos, alegando ser legítimo portador de três livranças, no valor de 10000000 escudos, cada uma, subscritas a favor do exequente pela sociedade D, com o aval dos executados a favor da subscritora e que nenhum dos firmantes pagou quer no vencimento quer posteriormente.
O executado veio deduzir embargos, alegando, em síntese:
a) o facto de não constar das livranças dadas à execução, por ele avalizadas, a menção da qualidade de gerente de quem as assinou, como é exigido pelo artigo 260º, nº 4, do CSC;
b) visarem tais livranças, subscritas e entregues em branco, assegurar responsabilidade futura, não sendo possível, quando prestado o aval, determinar o âmbito e os limites dessa garantia.
Particularmente relevante a primeira referida irregularidade formal da subscrição dos títulos. Provindo a nulidade da obrigação avalizada de vício de forma, atinge, assim de igual forma a obrigação do avalista, inexistindo causa de pedir.
Após contestação do exequente/embargado, no sentido da improcedência total dos embargos, foi proferida decisão no saneador, a julgar os embargos procedentes, com todas as consequências legais, e, nomeadamente, a da execução não poder prosseguir contra o embargante.
Inconformado, o embargado deduziu apelação para a Relação do Porto, que, por acórdão de 19 de Junho de 1997, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão da 1ª instância.
É desse acórdão que o embargado traz a presente revista, oferecendo, ao alegar, as seguintes conclusões:
1. Desde a sua constituição, em 1964, a subscritora das livranças ajuizadas manteve com o Banco recorrente relações comerciais, intensas e regulares.
2. No âmbito dessas relações, a sociedade sempre se obrigou validamente, quer antes quer depois da entrada em vigor do CSC, exclusivamente com a assinatura da sua firma social, assinada pelo recorrido ou pela mulher, como gerentes da sociedade.
3. Já depois da entrada em vigor do CSC, a sociedade efectuou com o recorrente diversas operações bancárias, para a realização das quais assinou correspondência, contratos, propostas de desconto, cheques e livranças, designadamente as ora ajuizadas, sempre com a assinatura da sua firma social, assinada pelo gerente recorrido, conforme os autos sobejamente documentam.
4. Este procedimento, habitual e único, nas relações entre as partes, criou objectivamente no Banco recorrente a convicção, séria e fundada, de que poderia confiar, como de facto confiou, que o recorrido, ao avalizar pessoalmente as livranças ajuizadas, como gerente da sociedade, da forma como sempre fez, ao longo de tantos anos, com a assinatura da firma social da subscritora, o fazia com a intenção, firme e clara, de assumir validamente a obrigação do seu pagamento no vencimento e, consequentemente, de se considerar vinculado a não vir excepcionar e fazer valer, no futuro, a nulidade formal da subscrição, que ele próprio culposamente provocou.
5. As disposições legais sobre os requisitos da forma só serão de interesse e ordem pública quando aquela for exigida por razões de certeza e segurança do comércio jurídico.
6. Como as livranças ajuizadas não entraram em circulação, posto que não saíram e se mantiveram sempre no domínio restrito das relações imediatas entre as partes, não concorre, no caso, aquela exigência de certeza e segurança jurídicas.
7. E daí que haja de atender-se, acima de tudo, aos ditames da boa fé e do não abuso do direito, nas relações entre as partes.
8. O dever de proceder de boa fé, imposto pelos artºs 227º e 762º do CC, tanto na formação e conclusão do contrato, como no cumprimento da obrigação, tem de sobrepor-se correctivamente e não pode ser preterido, no domínio restrito das relações imediatas entre as partes, pela inobservância culposa pelo recorrido da nova forma legal de vinculação da sociedade, que o artº 260º do CSC veio estabelecer.
9. Ao estatuir uma nova forma legal das sociedades por quotas se vincularem, seguramente que o legislador não quis abranger e exonerar os devedores das obrigações contraídas da forma legal anterior, como sempre se vincularam, quer antes quer depois da entrada em vigor do CSC, perante o recorrente de boa fé.
10. Tanto mais que a nulidade formal da assinatura da sociedade nas livranças ajuizadas, por inobservância da forma legal daquela se obrigar, foi provocada, intencional e culposamente, pelo próprio recorrido, que a veio invocar depois.
11. De modo que a arguição daquela nulidade formal pelo recorrido constitui, nas circunstâncias concretas das relações entre as partes, um caso típico de "venire contra factum proprium" e de flagrante abuso de direito, nos termos do artº 334º do CC, que viola frontalmente os princípios fundamentais da boa fé, dos bons costumes e dos usos e práticas bancárias, que sempre adoptaram e respeitaram entre si, e choca até o próprio sentimento de justiça e da ética jurídica.
12. O douto acórdão recorrido fez, nas circunstâncias concretas do caso sub judice, uma interpretação e aplicação inadequadas do artº 260º do CSC, já que o mesmo deve ser enquadrado e julgado em conformidade e pela aplicação correctiva dos artigos 227º, 762º e 334º do CC.

Contra-alegando, o embargante conclui dizendo, em síntese, que as livranças em causa foram subscritas seis anos após a entrada em vigor do CSC e, sendo o Banco embargado uma instituição de crédito familiarizada com os títulos de crédito e conhecedora dos requisitos da respectiva validade, a prática anterior, contrária à lei, nas relações comerciais entre o Banco e a sociedade de que o embargante é sócio gerente, não justifica a falta daqueles requisitos legais. Por outro lado, nunca houve qualquer premeditação por parte do recorrido embargante que pudesse ter contribuído para a verificação daquela invalidade formal, não existindo sequer culpa sua na criação dessa invalidade, pelo que não ocorre abuso de direito por parte do embargante na invocação dessa invalidade.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Encontram-se provados os seguintes factos:
a) O Banco embargado é portador das três livranças, subscritas a seu favor, emitidas em 30.12.1992, no montante, cada uma, de 10000000 escudos, e com vencimentos mensais e sucessivos em 30/4, 30/5 e 30/6/93, de que há cópia autenticada a fls. 13 destes autos.
b) A subscritora nomeada nesses títulos é a sociedade D.
c) No lugar destinado à assinatura da subscritora, e por baixo do carimbo desta, as ditas livranças foram assinadas com a firma social da mesma.
d) Como do respectivo verso se vê, o embargante deu o seu aval à subscritora.
e) Apresentadas a pagamento, nenhum dos firmantes pagou essas livranças no vencimento, nem posteriormente.
III
1 - As conclusões da revista são em tudo semelhantes, embora algo mais desenvolvidas, às conclusões oferecidas com as alegações do recurso de apelação.
Posto que o recorrente já não põe em crise os fundamentos, agora constantes do acórdão recorrido, quanto à existência da invalidade formal dos títulos, a questão central que se coloca é a seguinte: Uma vez que a sociedade, nas suas relações comerciais com o Banco recorrente, sempre se obrigou, quer antes quer depois da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, exclusivamente com a assinatura da sua firma social, assinada pelo recorrido ou pela mulher, como gerente da sociedade, coloca-se o problema de saber se as regras da boa fé, que presidem à formação e desenvolvimento dos contratos, não impedirão o avalista, ora embargante, e sócio gerente da sociedade subscritora, de invocar o vício de forma decorrente do incumprimento do artigo 260º, nº 4, do CSC, uma vez que isso representaria uma situação de abuso de direito - constituindo exemplo típico do "venire contra factum proprium" -, violadora dos princípios da boa fé, dos bons costumes e dos usos e práticas bancárias.

2 - Como escreve Menezes Cordeiro, as ordens jurídicas da actualidade vivem, em teoria, dominadas pelo princípio da consensualidade na formação dos actos jurídicos: a simples exteriorização da vontade das pessoas, efectuada por qualquer meio idóneo, é suficiente para integrar as previsões normativas relacionadas com a autonomia privada. O Direito requer, contudo, em sectores delimitados, formas específicas, normalmente solenes, para a dimanação de declarações negociais. Quando a forma prescrita não seja assumida nas declarações das partes, o Direito nega-lhe, salvo raras excepções, o reconhecimento jurídico, cominando com a nulidade ( ) "Da Boa Fé no Direito Civil", Almedina, Coimbra, 1997, pág. 771.) - cfr. o artigo 220º do Código Civil, diploma a que pertencerão os dispositivos que se venham a indicar sem menção da respectiva origem.
Vem isto a propósito da vinculação da sociedade em actos escritos praticados pelos gerentes, conforme resulta do nº 4 do artigo 260º do CSC.
Como escreve J. Pinto Furtado, a vinculação da sociedade resulta de o acto ser praticado, na expressão do nº 1 do referido artigo 260º, "em nome" da sociedade, não se exigindo palavras sacramentais ou, sequer, a assinatura com a própria firma da sociedade.
"Obriga-a, portanto, prossegue o referido Autor, a mera assinatura pessoal do gerente "em nome" da sociedade - nome que não tem obviamente de ser invocado de forma expressa, podendo igualmente resultar das circunstâncias em que a assinatura pessoal foi subscrita ou o acto praticado" ( ) "Código das Sociedades Comercias, 4ª edição, Livraria Petrony, 1991, pág.244.).
Indispensável para a vinculação da sociedade é, na lição de Raul Ventura, a reunião de dois elementos: assinatura pessoal do gerente e menção da qualidade de gerente. Mencionar a qualidade de gerente implica a especificação da sociedade de que a pessoa invoca a gerência e esta especificação só está perfeita se o tipo de sociedade for tornado claro, o que resulta da própria firma social completa ( ) "Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Sociedades por Quotas", vol. III, Almedina, Coimbra, págs. 157 a 175, maxime, fls. 171.).
Dispõe o artigo 32º da LULL, aplicável às livranças - cfr. artigo 77º do citado diploma - que: "O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada". E acrescenta: "A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma".
Patenteando-se pelo título que a obrigação principal a garantir é nula por vício de forma, o aval acompanha a sorte da obrigação principal, sendo igualmente nulo.
Em face do disposto no artigo 260º, nº 4, do CSC, a assinatura com a firma social, feita pelo gerente, não vincula a sociedade ( ) Cfr., a título de exemplo, os acórdãos de 19-04.1990 e de 14.05.1992, da Relação do Porto e da Relação de Évora, publicados na C.J., Ano XV, Tomo I, pág. 236, e Ano XVII, Tomo III, pág. 337, respectivamente.).
No acórdão recorrido procedeu-se, com cópia de fundamentos, à explicação da existência do vício de forma que atinge as livranças ajuizadas.
O problema colocado pela presente revista não justifica que se retome essa temática, devendo, por isso, situar-se o enfoque na análise dos fundamentos alegados pelo Banco Recorrente acerca da verificação, ou não, no caso presente, da violação dos princípios da boa fé e da eventual ocorrência de uma situação de abuso do direito.

3 - Voltando ao pensamento de Menezes Cordeiro, acompanhemos o que este Autor observa a propósito da temática agora em equação: "Não obstante as apregoadas justificações da forma legal, quando prescrita (...), o seu desrespeito não concita, aos níveis ético, psicológico e social, a reprovação enérgica que o Direito lhe conecta".
Adiante, e no seguimento do mesmo raciocínio, escreve o seguinte:
"A desconsideração comum pelos valores jurídicos associados à forma é agravada pelo arcaísmo dos regimes modernos, no tocante ao sistema da sua prescrição: oneram-se actos de relevo social e económico em regressão, enquanto outros, da maior importância, se mantêm consensuais.
"Pode, pois, falar-se de pressão sobre o dispositivo legal que prescreve as nulidades formais.
"No limite uma pessoa pode, com dolo até, induzir outra a celebrar um negócio sem a forma prescrita, retirar da aparência daí emergente os benefícios que lhe aprouver e, em qualquer momento que lhe convenha, alegar a nulidade" - ( ) Cfr. loc. cit., págs. 771 e segs.).
O certo, porém, é que a finalidade do legislador ao instituir a forma em certos negócios jurídicos e ao associar-lhe, em caso de inobservância, a nulidade, não é prosseguir os valores de reflexão, segurança e publicidade atribuídos ao formalismo clássico no direito. A finalidade do legislador foi a de igualar, sob a forma, todas as declarações negociais atinentes a certos sectores e uniformizar, sob a nulidade, todas as violações àquela regra.
Termos em que se acompanha Menezes Cordeiro quando reconhece que "a aplicação dos arts. 220º e 286º, bem como de todos aqueles que, com primado para o artº 875º, prescrevam formas legais para certos actos jurídicos não pode ser bloqueada" ( ) Menezes Cordeiro, pág. 792.).

4 - O que é primordial é a posição da pessoa contra quem se pretende fazer valer a nulidade formal. Esta posição equaciona-se em dois aspectos: a sua relação com o vício formal e as consequências para ela emergentes da nulidade, caso esta seja declarada.
Quanto ao primeiro, que, sobremaneira, agora interessa, deve entender-se a necessidade de boa fé subjectiva por parte de quem queira fazer valer a inalegabilidade, ou seja, de desconhecimento, aquando da "celebração" do contrato, da necessidade formal.
A boa fé subjectiva comporta aqui deveres de indagação e informação de intensidade acrescida, dada a rigidez das normas em jogo, e visto o conhecimento generalizado que existe da necessidade de formalidade para certos actos.
A evidência da falta de forma ou a negligência grosseira prejudicam sempre, pois, estando presentes, ou havendo conhecimento do vício, é razoável que o contratante corra o risco de ver declarado nulo o seu contrato ( ) Op. cit., págs. 783 e 784.).

5 - O Código Civil fere, no artigo 334º, determinados actos como abusivos. Prevê, para tanto, o titular que exceda manifestamente, no exercício do direito, limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico.
O artº 334º prevê a boa fé objectiva: não versa factores atinentes ao sujeito, mas antes elementos que, enquadrando o seu comportamento, se lhe contrapõem.
O abuso do direito serviu, além do mais, para dar cobertura à reprovação do venire contra factum proprium, bem como às ininvocabilidades de certas nulidades formais.
Trata-se de regulações típicas de comportamentos abusivos, de cujas existência e possibilidade no nosso ordenamento cabe agora cuidar.

6 - Vejamos, antes do mais, a exceptio doli. O dolo, em Direito Civil significa (também) "qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante" - artigo 253º, nº 1. A "exceptio doli generalis", utilizada como categoria dogmática actual, situa-se nesta área: é o poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor, por este ter incorrido em dolo.
Como explica Canaris, a propósito da doutrina da confiança, "o doloso provoca, na outra parte, a impressão de que o negócio é eficaz e assume, assim, a confiança desta: deve responder, pois, pela situação de confiança obtida". A base positiva da confiança está na prescrição geral da boa fé. - artigo 334º e, para as obrigações, também artigo 762º, nº 2 ( ) Apud Menezes Cordeiro, loc. cit., pág. 786.).
É esta uma das alegações produzidas pelo recorrente.
Como sustenta Menezes Cordeiro, o tipo regulativo do exercício indevido de direitos designado "exceptio doli generalis" é um tipo fluido, muito extenso, de compreensão escassa, que foi merecendo uma utilização decrescente por parte da jurisprudência e um certo desinteresse da doutrina.
Segundo este Autor, a admissão duma "exceptio doli generalis", no Código Civil, levantaria dificuldades. Não é que não existam, no Código, normas, que o Autor qualifica como "normas em branco" ou "cláusulas gerais", aptas a fundamentar , na lei, a exceptio. É o caso dos artigos 334º e 762º, nº 2. A dificuldade decisiva advém antes da não consagração, pelo legislador do Código Civil, de elementos mínimos capazes de possibilitar a confecção de um sistema coerente de excepções materiais ( ) Para maiores desenvolvimentos, veja-se loc. cit., pág. 739.).

6 - A locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Tal exercício é tido por parte da doutrina que o conhece como inadmissível. Como expressão da confiança, o venire contra factum proprium situa-se já numa linha de concretização da boa fé. É o que acontece com a recondução do "venire" à doutrina da confiança, que revela um estádio elevado nessa tarefa da concretização da boa fé. A confiança dá um critério para a proibição de venire contra factum proprium.
Os princípios que, à face do Direito civil português, permitem detectar a presença de um facto gerador de confiança podem ser induzidos das regras referentes às declarações de vontade, com relevância para a normalidade - artº 236º, nº 1 - e o equilíbrio - artº 237º. Significa isto que o quantum relevante de credibilidade para integrar uma previsão de confiança, por parte do factum proprium, é, assim, função do necessário para convencer uma pessoa normal, colocada na posição do confiante e razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo mesmo confiante na obtenção do factor a que se entrega. Assim se obtém o enquadramento objectivo da situação de confiança. Requere-se, porém ainda um elemento subjectivo: o de que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.
É que bem pode acontecer que, não obstante a presença de elementos objectivos suficientes para justificar a protecção da confiança, o beneficiário em potência, por razões específicas, não tenha de facto confiado na situação que se lhe oferecia. Não cabe então oferecer-lhe a protecção jurídica.
Ou que, tendo confiado, tenha desacatado (ou descurado) a observância de deveres de indagação que ao caso deviam caber. O que significaria que, apesar da verificação de tais elementos objectivos geradores da confiança, a mesma não "resistiria" aos cuidados de diligência resultantes do cumprimento do dever de indagação.

7 - Passados em revista os princípios teóricos fundamentais aplicáveis às temáticas em jogo nestes autos - a ininvocabilidade de nulidades formais, a "exceptio doli", o "venire contra factum proprium" -, é o momento de subsumir a realidade fáctica verificada no caso sub judice àqueles princípios.
Diga-se, desde já, que a factualidade apurada permite concluir que não assiste razão à fundamentação desenvolvida pelo recorrente. Com efeito, não é possível, perante os factos, concluir que o embargante violou os princípios da boa fé ou que, no exercício de um eventual venire contra factum proprium, incorreu em prática de abuso do direito.
Senão vejamos:

a) As livranças ajuizadas foram subscritas em 1992, ou seja, seis anos após a entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais. Assim sendo, não é relevante alegar a "tradição comercial", que vinha do tempo anterior à entrada em vigor do CSC, como pretensa justificação de uma "prática" que era contrária a um diploma cuja vigência remontava há seis anos.
b) Tanto mais que o Recorrente não é alguém impreparado ou desconhecedor na matéria. Trata-se de uma instituição bancária familiarizada com o movimento e processamento de títulos cambiários e perfeitamente conhecedora dos requisitos formais da respectiva validade.
c) Não foi provada a existência de "dolo", no sentido acima exposto, por parte do embargante/recorrido, quanto à invalidade formal dos títulos subscritos, ou quanto à intenção de se furtar ao cumprimento da obrigação subjacente.
d) Tendo havido acordo, ao longo de anos, entre o Banco recorrente e a sociedade de que o recorrido era sócio gerente, na alegada modalidade de subscrição, é manifesto não se poder afirmar que a irregularidade formal que afecta os títulos é exclusivamente de imputar ao embargante ou que foi provocada por ele.

Atento o exposto, não só não é possível afirmar a existência do alegado venire contra factum proprium, por parte do recorrido, em termos de configurar uma actuação com manifesto "abuso de direito", como, pelo contrário, parece possível, perante a evidência da falta de forma legal, prefigurar a existência de negligência por parte do Recorrente, tendo presente a sua inevitável "expertise" na matéria, já evidenciada.
O que é relevante, não só para excluir a procedência da exceptio doli, mas também a da desejada inalegabilidade (ou ininvocabilidade) da nulidade resultante do vício de forma ( ) Sendo que o vício de forma a que se reporta o artº 32º da Lei Uniforme é o que se torna perceptível pela simples inspecção do título - cfr. o Acórdão deste STJ de 22 de Fevereiro de 1979, Processo nº 67535.
Acresce que tal nulidade, além de arguível pelo recorrido, é, de ofício, cognoscível pelo tribunal. Acerca da impossibilidade de afastamento da nulidade do negócio por falta de forma, sendo esta de conhecimento oficioso, pode ver-se o Acórdão deste STJ de 16.04.1996, no processo nº 88421.
Também, pelas razões expostas, não há justificação para se dar acolhimento ou guarida à tutela da confiança, ao amparo da figura do "venire contra factum proprium" ( ) Veja-se, sobre a matéria, J. Baptista Machado, "Tutela da confiança e «venire contra factum proprium»", na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 117, nºs 3725 a 3729, e Ano 118, nºs 3730 a 3737.). O Recorrente não tem razão, posto que, se, nas circunstâncias descritas, confiou, como alega ter acontecido, forçoso é concluir que tal só se pode ter ficado a dever à circunstância de ter desacatado - ou descurado - a observância de deveres de indagação, atenção ou cuidado que ao caso cabiam.
Resulta de todo o exposto que não é merecedora de procedência a tese do recorrente segundo a qual o embargante/recorrido teria violado os princípios da boa fé, dos bons costumes e dos usos e práticas bancárias.
Improcedem, pois, as conclusões do Recorrente, não tendo o acórdão recorrido violado os artigos 227º, 762º e 334º do Código Civil.


Termos em que se nega provimento à revista, confirmando-se o acórdão impugnado.
Custas pelo Banco recorrente.
Lisboa, 9 de Julho de 1998.
Garcia Marques,
Ferreira Ramos,
Aragão Seia.