Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | VASQUES OSÓRIO | ||
Descritores: | RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LEGITIMIDADE CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO PROVA TESTEMUNHAL | ||
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Data do Acordão: | 12/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | Tem legitimidade para se constitui assistente em procedimento por crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelo art. 360º, nº 1 do C. Penal, a pessoa que, eventualmente, veio a ser prejudicada com a prestação de depoimento desconforme com a realidade. | ||
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Decisão Texto Integral: | RECURSO Nº 57/24.9YGLSB-A.S1-A.S1
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO No processo [inquérito] nº 57/24.9YGLSB-A.S1, que corre termos nos serviços do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Juiz de Direito AA, formulou queixa contra a Exma. Juíza Desembargadora BB, imputando-lhe a prática, em ... de ... de 2022, de um crime de difamação por, quando prestava depoimento como testemunha, sob juramento, no processo nº 1022/22.6..., que corre termos no Tribunal da Relação de Coimbra, no qual [o queixoso] figura como arguido, ter produzido afirmações atribuindo-lhe acções atentatórias da sua honra e consideração, e a prática de um crime de falsidade de testemunho, por ter a denunciada, ao atribuir-lhe tais acções, faltado conscientemente à verdade, com o propósito de beneficiar a queixosa do referido processo e de o prejudicar a si, relatando factos que não aconteceram. Na queixa apresentada, o queixoso qualificou os factos que imputa à denunciada como, concurso efectivo de crime de difamação, p. e p. pelos arts. 180º, nº 1, 182º e 183º, nº 1 do C. Penal, e de crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nºs 1 e 3 do mesmo código, afirmou que apenas teve conhecimento do teor do depoimento prestado pela denunciada em Janeiro de 2024, quando lhe foi disponibilizada a respectiva gravação, tendo junto prova documental para demonstração de que no referido mês foi informado pelo seu Ilustre Mandatário da disponibilização da referida gravação, e requereu a constituição como assistente. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto titular do inquérito pronunciou-se quanto à requerida constituição de assistente, i) no sentido de não estar demonstrada a legitimidade do queixoso para se constituir assistente, relativamente ao crime de difamação, por ser necessário apurar se o direito de queixa se mostra ou não, caducado, e por ser necessário averiguar se o depoimento prestado pela denunciada em diligência processual corresponde, ou não, ao cumprimento de um dever legal e à realização de um interesse legítimo, com a consequente inviabilização da imputação do crime, e ii) no sentido de, tendo o crime de falsidade de testemunho por bem jurídico tutelado o interesse do Estado na realização ou administração da justiça e não, um qualquer interesse particular, não pode o queixoso ser considerado, quanto a tal crime, ‘ofendido’, carecendo de legitimidade para se constituir assistente. Ouvida a denunciada, nada disse. * Em ... de ... de 2024, a Exma. Juíza Conselheira, em funções de juíza de instrução, proferiu o seguinte despacho: Nos presentes autos de inquérito, o Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito, AA, deduziu participação criminal contra a Exma. Sra. Desembargadora CC, pela prática dos crimes previstos e punidos nos artigos 180.º n.º 1, 182.º, 183.º e 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, tendo requerido a sua constituição como assistente. Juntou documento, procuração forense e comprovativo do pagamento da taxa de justiça. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, veio pronunciar-se sobre o requerido, aduzindo, em síntese, que o participante carece de legitimidade para intervir nos autos como assistente no que concerne ao crime de difamação, uma vez que se desconhece o contexto processual em que terão sido proferidas as expressões que imputa à denunciada, ignorando-se, outrossim, se a queixa apresentada é tempestiva. Mais diz, que atendendo ao interesse ou bem jurídico protegido pelo crime de falso testemunho (o interesse público do Estado na realização ou administração da justiça), não pode o queixoso considerar-se como ofendido, carecendo, assim, também de legitimidade para se constituir assistente relativamente a esse crime. Apreciando: Analisando a participação em causa verifica-se que nela o queixoso imputa à denunciada a prática de um crime de difamação (artigos 180.º n.º 1, 182.º, 183.º do Código Penal) e de um crime de falso testemunho (art.º 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal). Refere que a mesma, no âmbito do proc. 1022/22.6..., onde o queixoso é arguido e é queixosa DD, divorciada, Juíza de Direito, prestou depoimento no dia ........2022, sob juramento, tendo afirmado que o denunciante afastou a queixosa do convívio com os colegas, por estes não terem categoria suficiente para se relacionarem com o mesmo e a queixosa, mais tendo dito que se recorda que no Tribunal da Comarca ..., o queixoso aparecia no gabinete da queixosa EE e discutia com ela. Esta ficava exasperada e irritada e o mesmo mantinha tom low profile, tratando a queixosa de forma cáustica. Referiu ainda que viu a queixosa em ... ou ..., com um casaco da malha vestido, tendo a mesma tirado o casaco após insistência da denunciada e esta visto que aquela apresentava nódoas negras nos braços. A queixosa confidenciou-lhe que as nódoas negras tinham sido provocadas pelo aqui queixoso, que lhe apertara os braços na sequência de uma discussão e a jogara contra a parede O ora queixoso afirma que tais factos são falsos, como a denunciada bem sabe, tendo esta faltado à verdade, a fim de beneficiar a queixosa, sua amiga de longa data e da qual foi formadora. Tais factos atacam a personalidade e o carácter do queixoso. E visam vexar, humilhar e denegrir a imagem e consideração pessoal e profissional do mesmo. Vejamos. Desde já se adianta que, no presente caso, considerando o disposto no art.º 68.º n.º 3 do Código de Processo Penal, é inequívoco estar em tempo o pedido de constituição como assistente por parte do queixoso. Acresce que nos termos do art.º 117.º do Código Penal, “O disposto nos artigos deste capítulo é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender de acusação particular”. E, por força do preceituado no art.º 115.º n.º 1 do mesmo diploma “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores (…)”. Ora, tendo o requerente invocado que apenas teve conhecimento do depoimento da denunciada em ..., na sequência da disponibilização da gravação do seu depoimento ocorrida em ..., tendo juntado, para o efeito, documento electrónico, mensagem original, datado de ........2024, a si dirigido, referente ao processo 1922/22.6... (Instrução), onde consta que “já recebemos o CD com a prova gravada”, e que poderia “reunir, caso pretendesse, com o Sr. Dr. FF”, tendo a participação em causa dado entrada nos serviços do Ministério Público deste Supremo Tribunal em ........2024, nada existindo nos autos que nos permita pôr em causa a versão dos factos tal como é apresentada pelo queixoso, é de concluir pela tempestividade da queixa apresentada, assistindo como tal legitimidade ao queixoso para se constituir como assistente nestes autos relativamente ao crime de difamação (art.º 113.º n.º1 do Código Penal e artigos 50.º n.º 1 e 68.º nº 1, do Código Processo Penal). Também lhe assiste legitimidade para se constitui como assistente quanto ao crime de falso testemunho (art.º 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal), porquanto, pese embora o bem jurídico tutelado pela norma seja o interesse do Estado na realização ou administração da justiça, com a sobredita incriminação, não deixa de também se tutelar o interesse particular dos sujeitos que intervêm no processo no sentido de ver acolhida a versão que corresponda à realidade, sendo essencial, para esse efeito, que os testemunhos de quem é chamado a depor correspondam à verdade. Acresce ainda que o testemunho falso, pode conduzir a uma decisão injusta com reflexos negativos na esfera jurídica de um dos sujeitos, tal como é invocado pelo denunciante, e inclusive na própria imagem do Estado enquanto administrador da justiça. Considera-se, por isso, o participante titular de interesse que a lei visa proteger com o crime de falsidade de testemunho, assistindo-lhe legitimidade para intervir nos autos como assistente (art.68.º n.º 1, al.ª a), do Código de Processo Penal). Assim, uma vez que o queixoso se encontra devidamente representado por advogado (art.º 70.º, n.º 1, do CPP) e pagou a taxa de justiça devida (artigos 519.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais), admite-se o Dr. AA a intervir nos autos como assistente. Notifique. DN. * Inconformado com a decisão, recorre o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: 1.ª- Pelo queixoso é imputado à denunciada a prática de um crime de difamação, p. e p. nos artigos 180.º n.º 1, 182.º, 183.º nº 1, e de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. no artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código Penal. 2.ª- Os factos imputados ocorreram no âmbito do processo nº 1022/22.6... ..., a correr termos, na fase de instrução, no Tribunal da Relação de Coimbra onde o aqui queixoso é arguido, e onde a aqui denunciada, no dia ........2022, prestou depoimento como testemunha, sob juramento. [Quanto ao crime de difamação]: 3.ª- O queixoso requereu aqui a sua constituição como assistente tendo alegado que tomou conhecimento do depoimento em questão em ..., na sequência da disponibilização da gravação do depoimento da denunciada, juntando mensagem eletrónica com data de ...–...–2024, a si dirigida e proveniente de serviço de apoio ao seu advogado. 4.ª- O Ministério Público, quanto à admissibilidade de assistente, pronunciou-se no sentido de ser necessário esclarecer-se a data em que o requerente teve conhecimento dos factos. 5.ª- E que, embora o requerente tenha juntado a aludida mensagem eletrónica, resultava também da queixa subscrita pelo queixoso que o aludido processo se encontrava em fase de instrução, pelo que haveria que apurar “que fase é atualmente a dos autos, se o queixoso, ali arguido, teve acesso nalguma oportunidade processual aos autos para preparar algum tipo de defesa ou qual era o objeto do processo sobre o qual foi prestado o depoimento pela denunciada”, conforme foi requerido à Mma. Juiz de Instrução Criminal. 6.ª- A determinação do momento em que o exercício do direito de queixa se considera tempestivamente exercido ou extinto (momento do conhecimento pelo titular dos factos e dos seus autores) é o momento ou a data em que o titular desse direito teve conhecimento naturalístico dos factos, sendo suficiente o simples conhecimento naturalístico dos indícios. 7.ª- Nos crimes particulares, a constituição de assistente é pressuposto necessário para o desenrolar do procedimento criminal, mas é certo que a iniciativa do procedimento dependerá sempre de uma queixa válida e tempestiva, por se estar perante um pressuposto positivo da punição. 8.ª- Só assim se estará em condições de aferir os pressupostos de procedibilidade e de admitir o ofendido a intervir como assistente. 9.ª- A Meritíssima Juiz de Instrução, antes de decidir, deveria, ou através da consulta do processo ou através do próprio queixoso, obter as informações pertinentes para apurar se a queixa foi apresentada tempestivamente. 10.ª- Uma queixa apresentada para além do prazo legal, determina a caducidade do direito, de conhecimento oficioso e, se não assistir ao queixoso o direito de queixa, não lhe assiste legitimidade para ser assistente quanto ao crime de difamação. 11.ª- As diligencias promovidas são pertinentes e com relevância para a decisão de mérito (admissibilidade como assistente), importância essa que, aliás, veio a comprovar-se das posteriores diligências determinadas em fase de inquérito, entre elas, o acesso e seguimento dos autos n.º 1022/22.6... que corre termos na 5.ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra. 12.ª- Nestes termos, nesta parte, deve a decisão recorrida ser revogada por outra que determine que, tal como promovido, se apure “junto do queixoso ou do processo em causa, que corre termos na 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra, se estão verificados os pressupostos de procedibilidade referidos, designadamente a não caducidade do direito de queixa” sem prejuízo de se proceder à análise do inquérito 57/24.9... YGLSB, a que está apenso o presente incidente, no qual o acesso ao processo 1022/22.6... permitiu sustentar a verificação da caducidade do direito de queixa. [Quanto ao crime de falsidade de testemunho]: 13.ª- O ofendido é aquele que é diretamente atingido com a violação da norma podendo o mesmo constituir-se assistente sempre que o interesse violado esteja compreendido na esfera de proteção da incriminação. 14.ª- O facto de o crime de falsidade de testemunho, p.p. pelo artigo 360.º, estar inserido no capítulo III do Título V, do Livro II do Código Penal «Dos crimes contra a realização da justiça» denota que o bem jurídico protegido é a realização da justiça. 15.ª- Neste tipo legal de crime, o interesse protegido pela incriminação é identificado como um interesse público, do Estado, na realização ou administração da justiça. 16.ª- As declarações das pessoas, sejam elas partes em processo civil, ou sejam testemunhas, peritos, assistentes ou partes civis no processo penal, constituem importantes meios de prova uma vez que levam ao processo informação na qual o tribunal se baseia e que interferem inquestionavelmente no próprio ato adjudicativo. 17.ª- Daí que, nesta norma, seja o interesse público do Estado na realização da justiça que se apresente como único e prioritário, não se vislumbrando algum outro interesse corporizado nas pessoas, ainda que subalternizado. 18.ª- Conclui-se, pois, que no crime de falsidade de testemunho, não é admissível a constituição como assistente devendo, assim, o despacho recorrido ser revogado por outro que, nesta parte, não admita a constituição como assistente. 19.ª- Foram violados os artigos 50.º, n.º 1 e 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e os artigos 113.º, n.º 1, 115.º n.º 1 e 2, e 117.º, do Código Penal. Pelo exposto, conforme o Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso. * O recurso foi admitido por despacho de ... de ... de 2024. * Não houve resposta ao recurso. * * Na vista a que se refere o art. 417º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto. * * Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência. Cumpre decidir. * * * * II. FUNDAMENTAÇÃO A) Factos provados Os factos a considerar são os que constam do Relatório que antecede. B) Factos não provados Inexistem factos não provados. * * * Âmbito do recurso Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso. Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência. Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso. Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes). Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são: - A ilegitimidade do queixoso para se constituir assistente, relativamente ao crime de difamação; - A ilegitimidade do queixoso para se constituir assistente, relativamente ao crime de falsidade de testemunho. * * Da ilegitimidade do queixoso para se constituir assistente, relativamente ao crime de difamação 1. Alega o Exmo. Procurador-Geral Adjunto – conclusões 3ª a 12ª – que o queixoso requereu a constituição como assistente por crime de difamação, afirmando ter tido conhecimento do depoimento prestado pela denunciada e que corporiza o referido crime, em Janeiro de 2024, sucedendo que, como aliás, havia promovido, se torna necessário averiguar o momento em que o queixoso teve conhecimento dos factos, devendo averiguar-se a fase em que o processo se encontra, se o queixoso – arguido no processo onde ao depoimento foi prestado – teve oportunidade processual para preparar algum tipo de defesa e qual era o objecto do processo sobre o qual foi prestado depoimento, pois, sendo a constituição de assistente, nos crimes particulares, pressuposto necessário para o desenrolar do procedimento, certo é que a iniciativa do mesmo dependerá sempre de uma queixa válida e tempestiva, pois, se não assistir ao queixoso a possibilidade de exercer o direito de queixa, pela caducidade do mesmo, carece o mesmo de legitimidade para se constitui assistente pelo que, não tendo a Mma. Juíza de instrução procedido à realização de tais diligências, conforme promovido, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene essa realização. Vejamos. a. A legitimidade para promover o processo penal compete, em regra, ao Ministério Público (art. 48º do C. Processo Penal), prevendo, no entanto, a lei, a possibilidade de ser auxiliado, na perseguição do crime, por particulares que têm com este [crime] uma especial relação, que lhes confere, também em regra, um interesse próprio na realização da justiça no caso concreto, os quais, enquanto sujeitos processuais, têm a designação de assistentes. O art. 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa a todos assegura o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, particularizando o nº 7 do seu art. 32º que, [o] ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei. Tem a qualidade de ofendido o titular dos interesses que que a lei especialmente quis proteger coma incriminação (art. 113º, nº 1 do C. Penal). E é através da constituição como assistente que o ofendido poderá arrogar-se e exercer os poderes próprios de um sujeito processual, assumindo, pelos direitos e deveres que integram o seu estatuto, um papel de conformação constitutiva do desfecho do processo (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Direito Processual Penal, Os Sujeitos Processuais,, Gestlegal, 1ª edição, 2022, pág. 170-171) . O assistente é, portanto, um colaborador do Ministério Público, a quem, na dependência deste, e nos termos do respectivo estatuto processual, compete, além do mais, intervir no inquérito e na instrução, oferecer provas e requerer diligências necessárias, deduzir acusação independente da do Ministério Público, e interpor recursos das decisões que o afectem (art. 69º do C. Processo Penal. Desta forma se harmoniza o interesse do monopólio do Estado no exercício do jus puniendi, prevenindo-se os efeitos negativos de uma justiça penal provada, com a atribuição de um papel activo à vítima do crime, na respectiva perseguição penal (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, op. e loc. cit.). b. Em regra, pode ter a qualidade de assistente quem for ofendido, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos (art. 68º, nº 1, a) do C. Processo Penal. No caso de morte do ofendido sem ter renunciado à queixa, pode constituir-se assistente, o cônjuge sobrevivo não separado de pessoas e bens ou a pessoa que com ele vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se houverem auxiliado ou comparticipado no crime (art. 68º, nº 1, c) do C. Processo Penal). No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, pode constituir-se assistente o representante legal, e na sua falta, as pessoas acima indicadas, pela mesma ordem, ou na sua ausência, a instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o ofendido tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se houverem auxiliado ou comparticipado no crime (art. 68º, nº 1, d) do C. Processo Penal). Podem também constituir-se assistentes as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento (art. 68º, nº 1, b) do C. Penal). Porém, situações há em que a lei confere legitimidade para se constituir assistente a quem não é ofendido [nem com ele está, de alguma forma, relacionado]. Assim, para além das situações em que leis especiais conferem este direito (proémio do nº 1 do art. 68º do C. Penal), nos casos que tiverem por objecto crimes contra a paz e a humanidade, bem como, crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção, qualquer pessoa pode constituir-se assistente. Trata-se, como é sabido, da faculdade de intervenção popular como assistente, relativamente a crimes com danosidade social qualificada, em razão da qualidade dos respectivos agentes e/ou dos interesses que podem envolver (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, op. cit., pág. 192). Terminando este ponto, face à regra geral fixada, verificamos que a lei suporta o conceito de ofendido – visando a sua intervenção como sujeito processual, como assistente, portanto – no bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. Deste modo, terá legitimidade para se constituir assistente quem, no caso concreto objecto do processo, for portador do bem jurídico que a infracção visa tutelar; mas já não quem detiver interesse que a norma em questão não tutele senão de forma mediata ou reflexa (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, op. cit., pág. 181). c. O queixoso requereu a constituição como assistente por crime de difamação, que entende ter sido praticado pela denunciada em ... de ... de 2022 quando, ao prestar depoimento como testemunha, sob juramento, no processo nº 1022/22.6..., que corre termos no Tribunal da Relação de Coimbra, no qual aquele figura como arguido, produziu afirmações imputando-lhe acções que não existiram e que também considera atentatórias da honra e consideração que lhe são devidas, informando ainda o queixoso ter tido conhecimento do teor do depoimento em causa em ..., quando lhe foi disponibilizada a respectiva gravação. Entende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto recorrente que nos crimes particulares, a constituição de assistente é pressuposto necessário para o desenrolar do procedimento criminal mas é certo que a iniciativa do procedimento dependerá sempre de uma queixa válida, e por tal razão, antes de decidir a requerida constituição de assistente, a Exma. Juíza Conselheira, em funções de juíza de instrução, deveria, conforme promovido, ter obtido a informação necessária para se certificar da tempestividade da queixa apresentada. A qualidade de assistente não opera ope legis, em função da verificação de qualquer marco ou acontecimento processual. Pelo contrário, ela depende sempre de uma manifestação de vontade nesse sentido, expressa em requerimento apresentado nos autos (art. 68º, nº 3 do C. Processo Penal), nos tempos do processo indicados nas três alíneas deste nº 3, pretensão cuja decisão é sempre da competência de um juiz. Para além da tempestividade, o deferimento do requerimento depende ainda de o requerente estar representado por advogado (art. 70º, nº 1 do C. Processo Penal) e do pagamento da taxa de justiça, quando devida (art. 8º, nºs 1 e 5 do R. Custas Processuais). Não se suscita qualquer dúvida quanto a ter o crime de difamação com calúnia natureza particular (art. 188º, nº 1 do C. Penal), dependendo o procedimento criminal da apresentação de queixa pelo ofendido e da dedução de acusação particular (arts. 113º, nº 1, 117º e 188º, nº 1, todos do C. Penal). O direito de queixa extingue-se, por caducidade, decorridos seis meses sobre a data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tornou incapaz (art. 115º, nº 1 do C. Processo Penal). O direito de queixa exerce-se mediante a dedução da queixa portanto, o requerimento apresentado pelo ofendido no qual faz constar a sua vontade em que seja movido um processo penal por um ou mais crimes contra si cometidos. Resulta, assim, que a queixa se traduz num pressuposto de admissibilidade do processo, relativamente a crimes semipúblicos e particulares. A legitimidade do titular do direito de queixa para se constituir assistente pressupõe, pois, que o direito tenha sido exercido, mediante a apresentação da queixa, e que esta seja válida para suportar o procedimento (Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo I, 2021, Almedina, pág. 791). In casu, o queixoso apresentou a queixa pelo referido crime de difamação, nela requereu a constituição como assistente e dela fez constar que apenas teve conhecimento dos factos respectivos, em Janeiro de 2024, quando lhe foi facultada a gravação do depoimento da denunciada. Quando os autos foram apresentados à Exma. Juíza Conselheira, em funções de juíza de instrução, para apreciação da requerida constituição como assistente, nenhuma diligência tinha tido lugar visando a verificação da tempestividade da queixa, embora existisse promoção nesse sentido. Face aos elementos disponíveis nesse momento, a queixa era tempestiva pelo que, verificados que estavam os demais requisitos processuais, v.g., representação por advogado e pagamento da taxa de justiça devida, nada impedia a admissão do queixoso como assistente, relativamente ao crime de difamação. Do mesmo modo que, admitido o queixoso como assistente, nada impede que, na sequência de posterior averiguação, se venha a concluir pela intempestividade da queixa e necessária caducidade do exercício do respectivo direito, com as legais consequências. Em suma, improcede esta pretensão. * Da ilegitimidade do queixoso para se constituir assistente, relativamente ao crime de falsidade de testemunho 2. Alega o Exmo. Procurador-Geral Adjunto – conclusões 13ª a 18ª – que o crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução tem por bem jurídico protegido o interesse público do Estado na realização ou administração da justiça, nele não se descortinando outro interesse corporizado em pessoas, ainda que subalternizado, não sendo, por tal razão, admissível, relativamente a ele, a constituição como assistente. Vejamos. a. O crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução encontra-se inserido no Livro Segundo – Parte Especial, Título V – Dos crimes contra o Estado, Capítulo III – Dos crimes contra a realização da justiça, artigo 360º, do Código Penal, sendo comummente aceite que tem por bem jurídico tutelado a realização ou administração da justiça como função do Estado (Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, obra colectiva, Parte Especial, Tomo III, 2001, Coimbra Editora, pág. 460) ou, mais simplesmente, a realização da justiça (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 1129; em sentido diverso, Helena Moniz considera que o crime tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório, no que à prova testemunhal respeita, assim o aproximando do crime de falsificação ou contrafacção de documento (Comentário Conimbricense do Código Penal, obra colectiva, Parte Especial, Tomo II, Vol. II, 2ª edição, 2022, Gestlegal, pág.28). b. Dando-se por reproduzido o que em 1., a., e b., que antecedem, se deixou dito, quanto à relação existente entre o bem jurídico, a qualidade de ofendido e a qualidade de assistente, a fim de evitar desnecessárias repetições, cumpre considerar que a lei, ao estabelecer a incriminação, pode visar a protecção de interesses supra-individuais ou colectivos e também de interesses individuais, mesmo os primeiros sejam o interesse prevalente. Para este efeito, ensinam Figueiredo Dias / Nuno Brandão (op., cit., pág. 186 e seguintes), deverá atender-se à teleologia da norma, perscrutando o bem jurídico, mas será ainda de levar em conta o conteúdo típico da infracção, dando relevo a interesses individuais cuja afectação constitua requisito do preenchimento do tipo-de-ilícito (objectivo ou subjectivo), convocando como suporte, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2003, de 16 de Janeiro (DR, I-A, de 27 de Fevereiro de 2003), que fixou jurisprudência no sentido de, no procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e púnico pela alínea a) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente, e nº 8/2006, de 12 de Outubro (DR, I, de 28 de Novembro de 2006), e o acórdão que fixou jurisprudência no sentido de, no crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art. 365º do Código Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador. Com efeito, continuam, a circunstância de à incriminação ser estranha qualquer função de tutela de interesses individuais, estando antes exclusivamente orientada para a protecção de um bem jurídico colectivo, não implica, contudo, necessariamente, a impossibilidade de existência de um particular ofendido. É que, relativamente a bens jurídicos colectivos que respeitem à sociedade em geral mas abrindo espaço para os particulares – ao contrário daqueles outros exclusivamente ligados ao Estado e de cujo interesse é este o único titular –, portanto, quando existam portadores individuais em que os bens jurídicos colectivos se objectivam e concretizam, devem os particulares, portadores individuais, ser qualificados como ofendidos e, consequentemente, ter legitimidade para se constituírem assistentes quanto aos crimes em questão, sendo exemplo destes, além de outros, o crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, tendo, portanto, legitimidade para se constituir assistente quem o depoente visou prejudicar (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, op. loc. cit.; no mesmo sentido, Pedro Soares de Albergaria, op. cit., pág. 790). Pois bem. Resultando da queixa apresentada que o seu autor, o queixoso, portanto, afirma expressamente que a denunciada faltou conscientemente ao dever de verdade no depoimento prestado em processo criminal, com o intuito de beneficiar a queixosa deste processo, em seu [do queixoso, arguido no mesmo processo] prejuízo, ao relatar factos que não aconteceram, não obstante ser a falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, como vimos, um crime que tutela um bem jurídico colectivo, ele inclui-se nos casos em que também abriga um interesse particular, direccionado, no caso concreto, para quem veio, eventualmente, a ser prejudicado com o depoimento prestado, portanto, o aqui queixoso, a quem deve ser, consequentemente, reconhecida legitimidade para se constituir assistente por tal crime. Em suma, improcede também esta pretensão. * * * * III. DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em negar provimento ao recurso e, consequência, confirmam o despacho recorrido. Recurso sem tributação, por não ser devida. * (O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal). * * Lisboa, 12 de Dezembro de 2024 Vasques Osório (Relator) Luís Teixeira (1º Adjunto) Celso Manata (2º Adjunto) |