Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SALVADOR DA COSTA | ||
Descritores: | SERVIDÃO SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES BOA-FÉ CULPA IN CONTRAHENDO | ||
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Nº do Documento: | SJ200310300033167 | ||
Data do Acordão: | 10/30/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL GUIMARÃES | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 492/03 | ||
Data: | 05/14/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | 1. É essencial à constituição das servidões que dela resulte alguma vantagem para os prédios servientes, mas ela é susceptível de se traduzir em mera comodidade para os respectivos titulares. 2. O direito de servidão predial pode ser constituído, inter alia, por contrato exclusivamente dirigido a esse fim, ou especialmente a outro fim dirigido, como é o caso do contrato de compra e venda de um prédio em que o alienante e o adquirente convencionam a servidão sobre o prédio alienado em proveito de outro da titularidade do primeiro. 3. A constituição das servidões voluntárias por destinação de um pai de família pressupõe a existência em dois ou mais prédios ou fracções, pertencentes ao mesmo dono, de sinais visíveis e permanentes reveladores de uma situação estável de serventia de um ou de alguns em relação a outro ou outros, a separação dos prédios em relação ao domínio e a inexistência no respectivo título documental declaração contrária àquela constituição. 4. Traduz-se em mera declaração de ciência - não em constituição de servidão por contrato - a declaração pelas partes em escritura de compra e venda de que os prédios rústicos seu objecto mediato tinham uma servidão de passagem de veículo de tracção animal e mecânica exercida pelo local onde então já existia a nascente um caminho com trilho definido. 5. Por não derivar de contrato ou negócio jurídico unilateral, não faz sentido a invocação da nulidade da constituição do direito de servidão predial por destinação do pai de família com fundamento na sua desnecessidade. 6. Agir de boa fé na contratação é fazê-lo com a lealdade, a correcção e a diligência exigível às pessoas normais face ao circunstancialismo concreto envolvente, no quadro do comportamento integral das partes, em critério da reciprocidade, tendo presente aquilo que é razoavelmente esperado pelas partes no desenvolvimento das negociações. 7. No quadro do conceito indeterminado de boa fé no âmbito da culpa in contraendo destaca-se a expressão clara, sem ambiguidades, das propostas e aceitações, o sério empenho na realização do negócio, o não dilatar negociações sabidas votadas ao malogro, e o operar a informação atempada da contraparte sobre algum facto dela desconhecido e que seja susceptível de obstar à conclusão do negócio. 8. Tendo ficado consignado no contrato de compra e venda de prédio onerado com servidão predial de passagem a pé e com carro de tracção animal e mecânica, que ele era alienado com as suas servidões, e conhecendo o procurador e pai do comprador a existência da referida servidão, não há fundamento para concluir no sentido da sua ocultação de má fé por parte dos vendedores. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I Na contestação, os réus invocaram que o prédio dos primeiros réus é encravado, que o caminho deixou de servir o lugar em causa há mais de vinte anos e que os autores, aquando da compra do prédio, sabiam da existência da servidão. Foi concedido aos réus D e E o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de preparos e de custas e, realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, da qual os autores apelaram. A Relação confirmou a sentença recorrida sob o fundamento de poderem ser criadas por contrato servidões mesmo que desnecessárias e de o dever de informar só recair sobre a parte se souber ou dever saber que a outra parte desconhece determinada qualidade ou circunstância com relevo para a formação esclarecida da vontade. Os apelantes interpuseram recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação: - a servidão em causa é originariamente desnecessária, por o prédio dominante não ser encravado; - a sua constituição é nula, por os recorridos F e G não haverem feito constar a sua existência do contrato de compra e venda do prédio; - se assim não for, visaram os recorridos F e G valorizar terrenos em detrimento dos recorrentes; - em razão disso, é de justiça a redução do preço em 500.000$ e a indemnização dos recorrentes em igual montante. Responderam os recorridos, em síntese de alegação: - a menção da servidão na escritura de compra e venda foi uma medida cautelar, por ela já estar constituída por destinação de pai de família, pelo que não foi constituída por contrato; - os recorrentes sabiam da existência da servidão constituída por destinação do pai família; - não há fundamento para a invocada nulidade nem para a redução do preço relativo ao contrato de compra e venda. II É a seguinte a factualidade declarada provada na Relação:1. Na escritura de doação e partilha outorgada no dia 9 de Julho de 1965 no Cartório Notarial de Cabeceiras de Basto, H e I, por um lado, e F, seu filho, por outro, declararam os primeiros doar ao segundo, com reserva de usufruto, sem qualquer ónus ou encargos, por força das legítimas paternas e maternas do donatário, vagando, porém, metade do usufruto de cada um dos prédios ao falecimento de cada qual, garantirem os doadores essa doação por força da sua quota disponível em tudo o que excedesse a legítima do donatário, e o último aceitar a doação do prédio rústico que é um bocado de monte, no sítio do Rio Cavês, por cima do Caminho que vai para Reboriça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 13.159, folhas 44 do Livro B-32 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2.410º; um bocado de monte por baixo do caminho que vai para a Reboriça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 13.160, folhas 44 do Livro B-32, inscrito na matriz rústica sob o nº. 2385; Vessada, chamada do Rio Cavês, no sítio deste nome, composta de Vessada do Rio de Cavês, Souto e Leira do Souto, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 13.161, a folhas 45 do Livro B-32, inscrito na matriz rústica sob os artigos 2392º, 2411º e 2316º; propriedade do Rio Cavês e Pedra do Bico, nos limites do lugar da Reboriça, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 19.485, a folhas 49 verso do Livro B-48, inscrita na matriz rústica sob os artigos 2379º, 2380º, 2388º e 2389º; propriedade do Poço, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 19.486, a folhas 50 do Livro B-48, inscrito na matriz rústica, sob os artigos 2390º e 2391º; sorte de mato nos Lagiais, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 19487, a folhas 50v, do Livro B-48 e inscrito na matriz sob o artigo 2769º. 2. F, J e L declararam, no acto mencionado sob 1, estar de acordo em fixar desde já o valor dos bens doados e a parte que a cada qual caiba nesse valor e que se efectuavam desde já os respectivos pagamentos, e o primeiro adquiriu os prédios sem qualquer ónus ou encargo. 3. Por escritura de compra e venda outorgada no dia 21 de Dezembro de 1988, F, G e I, por um lado, e, D, por outro, declararam, os dois primeiros vender metade da raiz e metade da propriedade plena, e a terceira metade do usufruto, e o último comprar esses direitos relativamente aos seguintes prédios: - prédio rústico denominado "... do Rio Cavês" ou um bocado do monte sito no Rio de Cavês, por cima do Caminho para Reboriça, com a área de 500 m2, a confrontar do Nascente e Poente com M e Caminho público, do Sul com o proprietário e do Norte com Caminho público, descrito na Conservatória do Registo Predial, com o nº. 19.485, a folhas 4 do Livro B-32, inscrito na matriz sob o artigo 2410º; - prédio denominado "... do Rio Cavês", com a área de 5.800 m2, a confrontar do Norte com N e Caminho público, do Poente com N e Caminho público, do Sul com herdeiros de O, do Nascente com P e outro, descrito na Conservatória do Registo Predial, com o nº. 13.161, a folhas 45 do Livro B-32, inscrito na matriz sob os artigos 2392º, 2411º e 2416º. 4. F, G e I declararam na escritura mencionada sob 3 que os prédios vendidos tinham uma servidão de passagem para veículo de tracção animal e mecânica, durante todo o ano, através da propriedade "...", sita no lugar do seu nome, Rio Cavês, exercida pelo local onde então já existia um caminho com trilho bem definido, isto é, pela nascente daquela propriedade, passando junto à casa dos vendedores. 5. Por escritura de compra e venda outorgada no dia 15 de Setembro de 1989, F, por si e como procurador de G e I, e Q, em representação do autor, declararam, os dois primeiros vender metade da raiz e metade da propriedade plena e a segunda metade do usufruto, e o último comprá-los, sobre os seguintes prédios: - prédio do ..., composto por Monte de ..., ... e Leiras de ..., com a área de 5.000 m2, a confrontar do Norte com R, do Sul com S, do Nascente com T e do Poente com U, que faz parte da descrição da Conservatória do Registo Predial, com o nº. 19.485, a folhas 149 do Livro B-48, inscrito na matriz sob os artigos 2386º, 2388º e 2389º; - prédio do ..., composto por Leiras ... e Leiras ..., com a área total de 2 500 m2, a confrontar do Norte e Nascente com R, do Sul com Caminho Público e terras de V, do Poente com herdeiros de W, descrita na Conservatória do Registo Predial, sob o nº. 19.486, a folhas 50 do Livro B-48, inscrito na matriz rústica sob o artigo 2391º; - Um bocado do Monte, sito no Rio de Cavês, por cima do Caminho que vai para a Reboriça, terreno inculto com mato, com a área de 500 m2, a confrontar do Norte e Poente com X, do Sul e Nascente com o Caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial, com o nº. 00.108, freguesia de Cavês, e nela inscrito a favor de F e I sob G-1 e inscrito na matriz rústica sob o artigo 2410º. 6. Na escritura mencionada sob 5, os primeiros e a segunda outorgante declararam que os prédios eram vendidos com todas as suas áreas, servidões e demais pertenças, e que sobre eles não se encontrava registado qualquer ónus ou encargos. 7. Entre o prédio de C e o de D e E passa o Caminho da Reboriça, e a primeira e única menção à servidão em causa aparece na escritura mencionada sob 3 e 4. 8. Foi por esse Caminho da Reboriça que sempre, desde tempos imemoriais, se fez o trânsito de pessoas, gado e carros de tracção animal ou outra, até à construção do caminho referido sob 10. 9. O Caminho da Reboriça faculta aos prédios dos autores A e B e dos réus D e E o acesso à via pública. 10. Há mais de vinte anos que, na mesma ocasião em que foi construída uma estrada municipal que atravessou a referida Quinta ... para servir a referida aldeia da Reboriça, os réus F e G construíram um novo caminho para mais comodamente servir toda a Quinta. 11. O caminho mencionado sob 10 tem a largura de cerca de dois metros e meio, com início na referida Estrada Municipal junto a uma casa do irmão do autor A, atravessa a parte da Quinta ..., propriedade dos autores, no sentido Norte-Sul, e passa em frente à casa existente na parte da referida Quinta que hoje pertence aos autores, segue até ao Caminho Público situado a Nascente do prédio dos autores, onde existe uma abertura vulgarmente designada por portelo e atravessa o Caminho Público até outra abertura existente na parte poente da parte da Quinta vendida ao réu D, que é deficiente. 12. Desde a data da construção do caminho mencionado sob 10, há mais de vinte anos, até ao presente, todo o seu trajecto se tem mantido com trilho bem definido, com visíveis marcas de passagem de pessoas a pé e de veículos de tracção animal e mecânica. 13. No período de tempo em que as partes da Quinta ... vendidas ao réu D e ao autor pertenciam aos réus F e G, sempre estes utilizaram o caminho descrito sob 10, para passar a pé, com veículos de tracção animal e mecânica de e para a Quinta de ..., agora pertencente ao réu D. 14. Desde que o réu D adquiriu o prédio e até ao presente, sempre exerceu a servidão de passagem nos termos em que era exercida pelos réus F e G, passando a pé com veículos de tracção animal e mecânica. 15. Durante o ano de 1990, o pai do autor, Q, colocou um portão de ferro à entrada do caminho, junto à Estrada Municipal, e entregou uma chave ao réu D, para que este pudesse entrar e sair para a sua referida propriedade. 16. Em Julho de 1996, foi colocado um cadeado no referido portão e não foi dada chave dele ao réu D, e este rebentou o cadeado para poder passar. 17. No dia seguinte, foi colocado no mencionado portão um cadeado mais forte e foram soldadas as folhas e as mãos de força que o suportam, e o réu D rebentou novamente o cadeado e descravou as soldas, convencido de que estava a agir nos limites da acção directa de defesa da servidão de passagem. 18. Os autores e o seu antigo procurador nunca deduziram qualquer oposição à utilização da servidão de passagem a pé e com veículos de tracção animal através da referida propriedade. 19. O pai do autor, Q, seu procurador, sabia, antes de o primeiro ter adquirido a parte da Quinta ..., que a mesma tinha servidão de passagem. 20. O Caminho da Reboriça está cheio de silvas e o seu piso não permite o trânsito de veículos de tracção mecânica ou animal, e deixou, há mais de vinte anos, de ser utilizado pelos moradores da Reboriça e pelos proprietários do lugar. III As questões essenciais decidendas são as de saber se deve ou não ser declarada a nulidade da constituição da servidão de passagem de pessoas a pé e com veículos de tracção animal e mecânica e, subsidiariamente, se os recorrentes têm ou não direito a exigir dos recorridos F e G a redução de € 2.493,99 ao preço de compra dos prédios mencionados sob II 5 e indemnização de igual montante. Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e dos recorridos, a resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática. - regime legal geral relativo a servidões prediais; - constituição de servidões de passagem por contrato e por destinação de pai de família; - título de constituição da servidão em causa; - a constituição do direito de servidão em proveito do prédio dos recorridos D e E está ou não afectada de nulidade? - boa fé na formação dos contratos; - sanção legal para a venda de coisas oneradas; - têm ou não os recorrentes direito a impor aos recorridos F e G a redução do preço de venda dos prédios e a exigir-lhe indemnização? Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões. 1. A lei define a servidão predial como o encargo imposto num prédio, o chamado dominante, em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente, designado por serviente (artigo 1543º do Código Civil). Trata-se, pois, de uma restrição ao direito de propriedade sobre o prédio dito serviente, ao direito de gozo do respectivo proprietário, ou seja, implica um direito real limitado. É oponível não só ao proprietário do prédio serviente como também aos seus futuros adquirentes, de harmonia com o princípio da inerência. Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que lhe não aumentem o valor (artigo 1544º do Código Civil). É, assim, essencial à constituição de uma servidão que dela resulte alguma vantagem para o prédio dominante, ou seja, um proveito efectivo por via de um prédio serviente. A referida utilidade ou vantagem é susceptível de se traduzir em aumento do valor venal do prédio dominante, como é o caso da servidão de passagem num prédio serviente para àquele proporcionar maior comodidade (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Código Civil Anotado", vol. III, Coimbra, 1987, pág. 619). As servidões são indivisíveis e, consequentemente, se o prédio serviente for dividido entre vários donos, cada porção fica sujeita à parte da servidão que lhe cabia, e se for dividido o prédio dominante tem cada consorte o direito de usar a servidão sem alteração ou mudança (artigo 1546º do Código Civil). Às servidões legais, designadamente as que são constituídas em benefício de um prédio encravado, reporta-se o artigo 1550º do Código Civil. Prescreve, por um lado, que os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública nem condições que lhes permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos (nº. 1). E, por outro, gozar de igual faculdade o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio (nº. 2). Nele se prevê o encrave predial absoluto e o relativo, ou seja, por um lado, o prédio que não tem qualquer comunicação com a via pública, e o que dispõe de insuficiente comunicação, isto é, com ou só possível através da realização de obras de custo desproporcionado com os lucros ou vantagens derivados da sua exploração. A via pública a que se refere este artigo é aquela onde as pessoas possam circular livremente, por exemplo as estradas e os caminhos. Assim, envolvem as servidões legais, verificados que sejam os referidos pressupostos, o direito potestativo gerador da faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente da vontade do dono deste. Exercido que seja esse direito, designadamente por via de contrato ou de sentença judicial, logo a servidão passa de potência a acto, isto é, logo se transmuta de meramente legal em efectiva. Entre as servidões sobressai, pelo seu relevo económico e prático, a de passagem a pé ou de carro, ou seja, o poder conferido ao proprietário do prédio encravado de exigir o acesso à via pública através do prédio ou dos prédios vizinhos. Decorrentemente, no caso de divisão do prédio onerado com uma servidão de passagem, os donos das parcelas por ela operada continuarão a suportá-la. 2. Os modos de constituição das servidões são o contrato, o testamento, a usucapião ou destinação de um pai de família (artigo 1547º, nº. 1, do Código Civil). Tendo em conta o objecto do litígio, no caso vertente só relevam, no quadro dos títulos de constituição de servidões, o contrato e a destinação de um pai de família. O referido contrato, porque o direito real por ele constituído incide sobre imóveis, deve ser consubstanciado em escritura pública, e levado ao registo predial, sob pena de não produzir efeitos em relação a terceiros (artigos 2º, nº. 1, alínea a), e 5º, nº. 1, do Código do Registo Predial, e 80º, nº. 1, alínea a), do Código do Notariado). Pode tratar-se de um contrato exclusivamente destinado à constituição do direito de servidão ou especialmente dirigido a outro fim, como é o caso do contrato de compra e venda de um prédio em que o alienante impõe a servidão sobre o prédio alienado em proveito de outro da sua titularidade. À constituição de servidões por destinação do pai de família reporta-se o artigo 1549º do Código Civil. Expressa o referido artigo que se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento. Três são, pois, os pressupostos de constituição de servidões por destinação de pai de família, designadamente a pertença ao mesmo dono de prédios ou de fracções dele, a existência de sinais visíveis e permanentes reveladores de uma situação estável de serventia em ambos ou só um deles, separação dos prédios em relação ao domínio sem declaração contrária à constituição da servidão no respectivo título documental, seja de compra e venda ou de partilha, por exemplo. Não se trata de uma servidão legal, mas voluntária, porque assenta no facto voluntário da colocação dos sinais que a revelem e que se constitui quando os prédios em causa passam a pertencer a proprietários diferentes. 3. No contrato de compra e venda celebrado no dia 21 de Dezembro de 1988, entre D, por um lado, e I, F e G, por outro, pelo qual o primeiro adquiriu o direito de propriedade sobre os prédios rústicos ... do Rio Cavês e ... do Rio Cavês, limitaram-se os últimos a declarar, naturalmente sem oposição do primeiro, terem aqueles prédios uma servidão de passagem de veículo de tracção animal e mecânica, exercida pelo local onde então já existia, a nascente daquele prédio, um caminho com trilho bem definido e junto à sua casa. Não obstante os seus limites legais ao conhecimento da matéria de facto, a tratar-se de uma declaração negocial relativa à servidão, podia este Tribunal sindicar a sua interpretação pela Relação, porque se trataria de fixar o seu sentido juridicamente relevante no âmbito dos artigos 236º, nº. 1, e 238º, nº. 1, do Código Civil (artigo 722º, nº. 1, do Código de Processo Civil). A Relação, ao invés do entendido na primeira instância, considerou que, desde que partes assentaram na existência de uma servidão com o aludido conteúdo, mesmo que constituída por destinação do pai de família, ela passou a ter natureza negocial e voluntária. Todavia, pela sua estrutura e contexto, a mencionada declaração de I, F e G não se traduz em declaração de vontade de constituição de qualquer servidão, mas em declaração de ciência sobre a sua existência. Importa, por isso, concluir que, na espécie, não ocorreu a constituição de servidão por contrato. Vejamos agora se estamos perante uma servidão de passagem constituída por destinação do pai de família. Os prédios confinantes de D e do recorrente pertenciam, antes da outorga, no dia 9 de Julho de 1965, do contrato de doação e partilha mencionado sob II 1, em propriedade plena, a H e I e, pelo referido contrato, passaram a pertencer a I e aos recorridos F e G. F e G construíram, entretanto, há mais de vinte anos, um caminho, com cerca de dois metros e meio de largura, com início na Estrada Municipal que atravessava a Quinta ..., seguindo até ao Caminho Público e atravessando-o. Entretanto, a referida Quinta foi vendida, parte aos recorridos D e E no dia 21 de Dezembro de 1988, e parte ao recorrente no dia 15 de Setembro de 1989, sem qualquer declaração de inexistência de servidão, e o caminho ficou marcado em ambas as partes daquele prédio, sempre com trilho bem definido e visíveis marcas de passagem de pessoas a pé e de veículos de tracção animal e mecânica. Perante este quadro de facto, importa assentar em que ocorrem, na espécie, os pressupostos de constituição de servidão por destinação de pai de família, designadamente a pertença pretérita aos mesmos donos de prédios ou de fracções dele, os sinais visíveis e permanentes reveladores de uma situação estável de serventia em ambos, a separação dos prédios em relação ao domínio e a inexistência de declaração nos contratos de compra de venda contrária à constituição da servidão. Decorrentemente, importa concluir que se está, na espécie, perante uma servidão de passagem a pé e de carro de tracção animal e mecânica, constituída por destinação do pai de família, onerante do prédio dos recorrentes, em proveito do prédio dos recorridos D e E. 4. Invoca o recorrente que a servidão em causa é originariamente desnecessária, por o prédio dominante não ser encravado e ser nula a sua constituição, além do mais por os recorridos F e G não haverem feito constar a sua existência do contrato de compra e venda do prédio. Atenta a estrutura das servidões, não faz sentido a afirmação da sua nulidade, certo que só o faz em relação ao respectivo acto constitutivo, naturalmente no caso de este se consubstanciar em contrato ou no negócio jurídico unilateral testamento. Em qualquer caso, a constituição de servidões, salvo as legais e por usucapião, de um prédio sobre outro, não depende da existência de uma situação de absoluta necessidade, bastando para o efeito a comodidade em relação ao dono do prédio dominante, designadamente na hipótese de constituição por contrato e fora do quadro das servidões legais. No caso vertente, a constituição do direito de servidão de passagem de pé e de carro em causa operou por via de actos materiais de construção de um caminho pelos primitivos donos dos prédios em causa, isto é, por destinação do pai de família, para mais comodamente servirem toda a Quinta ..., ou seja, sob motivação de comodidade na exploração daquele prédio rústico. Não tem, por isso, fundamento legal a alegação dos recorrentes no sentido da nulidade, em razão da sua desnecessidade, da servidão predial em causa. Tendo em conta o modo e o tempo da constituição da servidão em causa, por destinação do pai de família, a não inclusão do espaço do prédio vendido afecto à servidão e o fim desta na escritura do contrato de compra e venda celebrado entre o recorrente e os recorridos F e G, ao invés do que aconteceu na escritura do contrato de compra e venda celebrado entre os últimos e o recorrido D, não assume, como é natural, qualquer relevo no sentido da invalidade daquela servidão. A mesma irrelevância resulta também, como é natural, do facto de do registo predial concernente ao prédio vendido não constar a aludida servidão nem qualquer outro ónus ou encargo (artigos 2º, nº. 1, alínea a), e 5º, nº. 2, alínea b), do Código do Registo Predial). 5. A propósito da culpa na formação dos contratos, a lei estabelece que quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato, tanto nos preliminares como na formação dele, deve proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos causados à outra parte (artigo 227º, nº. 1, do Código Civil). O conceito de boa fé a que o referido normativo se reporta é ético-objectivo e o seu conteúdo variável ou flexível e adequado no confronto com as circunstâncias de cada tipo de situação. Agir de boa fé é fazê-lo com a lealdade, correcção, diligência e lisura exigíveis às pessoas normais face ao circunstancialismo envolvente, abrange o comportamento integral, segundo o critério da reciprocidade, ou seja, por via de comportamento devido e esperado às partes nas relações jurídicas respectivas. Dir-se-á, em síntese, por um lado, ser a boa fé uma exigência do direito imposta pela necessidade de impedir que a obrigação sirva para a consecução de resultados intoleráveis para as pessoas de consciência razoável. E, por outro, que age de boa fé quem o faz com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, por via de uma conduta honesta e conscienciosa, com correcção e probidade, sem os prejudicar nem proceder de modo a alcançar resultados não toleráveis por uma consciência razoável. No quadro do referido conceito indeterminado da boa fé, no âmbito da culpa in contraendo tem vindo a ser destacados tipos de comportamento, por exemplo, a expressão clara, sem ambiguidades, das propostas e aceitações, o sério empenho na realização do negócio, incompatível com o início ou prosseguimento de negociações sabidas ou previstas em termos de estarem votadas ao malogro, bem como a informação atempada da contraparte sobre algum facto dela desconhecido e susceptível de obstar à conclusão do negócio. Neste quadro, cada parte tem o dever de carácter geral de se esclarecer com vista formação da sua vontade negocial, mas sem prejuízo do dever de informação de cada uma em relação à outra quanto às circunstâncias que para uma são ou devem ser conhecidas e que ela sabe ou deve saber poderem ter influência na decisão da outra. Quem agir de má fé no âmbito dos preliminares do contrato sujeita-se a indemnizar a contraparte pelo interesse contratual negativo, ou seja, a reparar os danos que aquela não teria sofrido se não fosse a expectativa na conclusão do negócio frustrado ou da vantagem que teria obtido se aquela expectativa se não tivesse gorado (Ac. do STJ, de 10.5.2001, CJ, Ano IX, Tomo 2, pág. 71). 6. Expressa a lei ser anulável o contrato por erro ou dolo, verificados os requisitos legais da anulabilidade, se o direito transmitido estiver sujeito a algum ónus ou limitação que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria (artigo 905º do Código Civil). Entre os referidos ónus e limitações é susceptível de se contar a existência de uma servidão. Atenta a alegação dos recorrentes, vejamos agora a estrutura jurídica dos conceitos de dolo e de erro sobre o objecto do negócio em geral. A lei caracteriza o dolo como qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, e a dissimulação pelo declaratário ou terceiro do erro do declarante (artigo 253º, nº. 1, do Código Civil). Mas exclui da categoria de dolo ilícito, além do mais, a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou das concepções dominantes no comércio jurídico, ou seja, o que é correntemente designado por dolus bonus (artigo 253º, nº. 2, do Código Civil). O erro e a ignorância são figuras próximas, consubstanciando-o primeiro na falsa concepção que uma pessoa tem sobre uma coisa, e a segunda na pura falta de conhecimento. A propósito do erro sobre o objecto do negócio, expressa a lei que ele torna o negócio anulável se o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro (artigo 251º do Código Civil). Embora verificada a situação de erro ou dolo, se as circunstâncias mostrarem que, sem esses vícios, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante dos ónus ou limitações, além da indemnização que no caso competir (artigo 911º, nº. 1, do Código Civil). Resulta, no fundo deste normativo a validade do contrato de compra e venda, não obstante o erro do comprador e ou o dolo do vendedor e os ónus ou limitações relativamente às coisas vendidas, no caso de o primeiro, se as conhecesse, ter comprado a coisa por preço inferior, e o direito do primeiro a exigir do segundo a redução do preço em correspondência com a respectiva desvalorização e indemnização do prejuízo que haja. 7. Pretendem os recorrentes a redução em € 2.93,99 no preço dos prédios objecto mediato do contrato de compra de venda celebrado com os recorridos F e G, essencialmente por terem adquirido o imóvel em causa na convicção de que sobre ele não incidia qualquer ónus ou encargo. Afirmam, para o efeito, que F e G ocultaram nesse negócio, de má fé, a existência da servidão, visando dolosamente obter o duplo efeito de fazerem constar no contrato de compra e venda do prédio celebrado com os recorridos D a servidão sobre o prédio que ao recorrente iam vender e de a omitirem no contrato de compra e venda consigo celebrado, valorizando o primeiro sem desvalorização do segundo. A este propósito, importa ter em conta, por um lado, que na escritura de compra e venda em causa ficou inserida a declaração de que o referido prédio era alienado com as suas servidões. E, por outro, que a pessoa outorgante naquela escritura em representação do recorrente, pai dele, sabia da existência da aludida servidão, e que o recorrido D, desde que adquiriu o prédio a F e a G sempre exerceu a servidão de passagem nos termos em que era exercida pelos últimos, passando a pé e com veículos de tracção animal e mecânica. Aliás, no decurso do ano seguinte à data do contrato de compra e venda em causa, o referido Q, pai do recorrente, colocou um portão de ferro à entrada do aludido caminho de servidão e entregou uma chave ao recorrido D, para este poder entrar e sair para o seu prédio. Perante este circunstancialismo, não era exigível aos recorridos mais explícita informação sobre a oneração do prédio vendido com a servidão a favor dos recorridos D e E do que aquela que ficou a constar do texto da escritura de compra e venda, nem há fundamento legal para a conclusão de se estar perante a sua dolosa ocultação. Acresce que o ónus de prova de que os recorridos F e G agiram no contrato de compra e venda em causa com dolo, ou de que o recorrente estava então em erro sobre a existência da servidão em causa, ao último incumbia (artigo 342º, nº. 1, do Código Civil). E os factos provados não revelam, no quadro do contrato de compra e venda em causa, o erro do recorrente nem o dolo dos recorridos F e G, certo que o primeiro não cumpriu o respectivo ónus de prova. Em consequência, não ocorrem os pressupostos de anulação do contrato de compra e venda em causa, nem da redução do preço convencionado, nem da indemnização a que se reportam, além do mais, os artigos 227º, nº. 1, 905º, 908º, 909º e 911º do Código Civil. Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de se manter o a decisão recorrida, embora sob algo diversa motivação. Vencidos no recurso, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil). IV Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantém-se a decisão recorrida e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas respectivas.Lisboa, 30 de Outubro de 2003 Salvador da Costa Ferreira de Sousa Armindo Luís |