Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B2446
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
DANOS MORAIS
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200410140024467
Data do Acordão: 10/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 6884/03
Data: 02/09/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. É adequada a indemnização de 20.000.000$00 (99.759,58 Euros) para ressarcir os danos patrimoniais futuros do lesado em acidente de viação que, tendo 18 anos, auferia, como operário fabril, um vencimento anual de 980.000$00 (que, dois anos depois, seria de 1.400.000$00) e que, em consequência das lesões sofridas, ficou com uma incapacidade parcial geral de 40% para o trabalho, mas com uma incapacidade total para o trabalho que antes exercia.
2. Justifica-se, em termos de equidade, a atribuição da indemnização de 5.000.000$00 (24.939,89 Euros) a um lesado que, com apenas 18 anos, saudável e alegre, sofreu fractura-luxação da anca direita e fractura exposta dos ossos da perna direita, esteve internado cerca de um mês, foi submetido a diversas intervenções cirúrgicas com o que teve e continuará a ter dores, podendo, a qualquer momento, ter necessidade de substituição ou extracção da prótese, quer por luxação, rejeição ou qualquer acidente, e ficou ainda definitivamente com dor e claudicação na marcha e incapacidade para a permanência de pé por períodos prolongados, não pode pôr-se de cócoras, não pode pegar em pesos, tem dificuldades em subir e descer escadas, não pode cruzar as pernas, tem dificuldade em conduzir veículos automóveis e não pode fazer trabalhos agrícolas, o que o impede de correr, dançar ou fazer desporto e o envergonha publicamente, situação que o leva a passar os dias em casa triste, melancólico e deprimido.
3. Se a indemnização foi concedida em decisão em que se recorreu ao critério de actualização do nº 2 do artigo 566º, nº 2, do Código Civil, os juros de mora devidos pelo lesante apenas se vencem a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" intentou, no Tribunal Judicial de Lousada, acção declarativa de condenação (responsabilidade civil emergente de acidente de viação), contra "B, Companhia de Seguros, SA" (actualmente "Companhia de Seguros ...., SA"), pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização na quantia de 26.060.000$00, acrescida dos respectivos juros legais, contados a partir da citação, bem como na quantia que se vier a liquidar em execução de sentença a título de gastos e prejuízos sofridos pelo demandante com eventuais operações à anca.
Alegou, em síntese, que, no dia 17 de Julho de 1998, pelas 21,30 horas, no Largo da Nossa Senhora da Aparecida, Lousada, ocorreu um acidente de viação, no qual intervieram os veículos de matrículas FLG, por si conduzido, e FQ, propriedade e conduzido pelo segurado da ré, C, acidente que ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo FQ e de que resultaram para o autor diversos danos de natureza patrimonial e não patrimonial.
Citada, a ré contestou, aceitando a responsabilidade do segurado pela ocorrência (acidente) mas impugnando os danos invocados pelo autor.
Saneado, condensado e instruído o processo, após julgamento foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 21.800.554$00 (108.740,70 Euros), a título de indemnização pelos danos sofridos com o acidente de viação dos autos, bem como na indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença no tocante à eventual necessidade de substituição ou extracção da prótese da anca esquerda.
Inconformados, autor e ré apelaram da sentença, vindo o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 9 de Fevereiro de 2004, a decidir:
a) - julgar improcedente o recurso de apelação deduzido pela ré seguradora;
b) - julgar parcialmente procedente o recurso de apelação deduzido pelo autor, revogando, em consequência, a sentença recorrida na parte em que condenou a seguradora demandada a pagar ao autor a quantia de 20.300.554$00 (101.258,73 Euros);
c) - condenar a ré seguradora, em resultado da procedência parcial da apelação do demandante, a pagar ao autor a indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, de 23.529.357$00 ou 117.363,93 Euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de sentença recorrida, até integral pagamento.
Interpôs, desta feita, a ré recurso de revista, pretendendo que a indemnização relativa aos danos patrimoniais futuros do autor (IPP) seja fixada em 10.500.000$00 (52.373,78 Euros).

Também o autor recorreu, subordinadamente, de revista, pugnando pela fixação da indemnização na quantia de 24.939,89 Euros a título de indemnização por danos não patrimoniais, reportando-se este valor à data da citação (vencendo juros legais desde essa mesma data) e no montante de, pelo menos 20.000.000$00 (99.759,58 Euros) pelos danos resultantes da IPP.

Em contra-alegações pronunciaram-se ambas as partes pela negação da revista interposta pela contraparte.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
Os recorrentes findaram as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (e é, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

A recorrente principal:

1. A recorrente considera a quantia fixada para ressarcimento dos danos patrimoniais futuros previsíveis pela perda da capacidade de ganho do recorrido exagerada, injusta e desconforme à prática usual nos nossos tribunais.

2. Na fixação dos danos futuros previsíveis as instâncias socorreram-se do estudo elaborado pelo Exmo. Conselheiro Sousa Dinis intitulado "Dano Corporal em Acidentes de Viação".

3. Entende a recorrente que o critério preconizado no referido estudo se mostra inadequado ao apuramento rigoroso do designado "montante orientador", perfilando-se o recurso às tabelas financeiras como uma solução mais fiável para determinação daquele montante.

4. Por forma a evitar o enriquecimento indevido do lesado, deverão ser aplicadas na determinação do "montante orientador" regras de cálculo matemático-financeiro.

5. Pela aplicação das tabelas financeiras ao caso em apreço, obtém-se o montante de 8.421.016$00 (42.003,85 Euros).

6. Considerando o caso concreto, nomeadamente as sequelas anatómico-funcionais apresentadas pelo recorrido, entende-se que a quantia de 10.500.000$00 (52.373,78 Euros) constitui indemnização adequada ao ressarcimento integral do dano patrimonial futuro previsível sofrido pela perda da sua capacidade de ganho.

7. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 483°, 562º e 564°, nº 2, todos do Código Civil.

O recorrente subordinado:

1. O montante atribuído de 16.334.000$00 (81.473,65 Euros) a título de I.P.P., salvo melhor opinião, é manifestamente insuficiente para ressarcir o autor a este título.

2. No cálculo da indemnização devida deveria o tribunal a quo ter levado em conta que resultou para o autor incapacidade profissional total para além de uma I.P.P. geral de 40% o que o condena a uma situação de desemprego crónica e o impede de contribuir para sistemas de protecção social como faria caso não fosse o acidente.

3. Em virtude de se encontrar impedido de auferir um ordenado, já para não falar nas limitações na progressão na carreira e aumentos de produtividade, o valor da reforma a auferir no final da sua vida activa necessariamente será inferior ao que auferiria caso não fosse o sinistro o que faz com que os efeitos patrimoniais não cessem com o final da vida activa.

4. Ao valor encontrado não deve ser retirada qualquer percentagem sob o mote de o lesado receber de uma só vez o que levaria anos a receber porquanto o cálculo do montante indemnizatório é efectuado por forma a que o capital ora atribuído se ache esgotado no final da vida activa do lesado, ou seja, não pode o sinistrado viver exclusivamente dos juros vincendos sobre o capital indemnizatório.

5. Nestes termos, deverá o acórdão ser revogado atribuindo-se ao autor uma indemnização a título de I.P.P. de pelo menos 20.000.000$00 (99.759,58 Euros).

6. O tribunal recorrido atribuiu uma indemnização ao autor a título de danos não patrimoniais de apenas 17.500 Euros, valor que o recorrente considera manifestamente insuficiente para o ressarcir de todo o sofrimento passado, presente e futuro.

7. Tendo em conta a vasta matéria dada como provada, a função sancionatória da indemnização, o facto da esfera patrimonial do lesante se encontrar enriquecida com o capital seguro e que a função deste é justamente ressarcir os lesados, e bem assim que o agente que provocou as lesões ao recorrente agiu com culpa grave.

8. A que acresce o entendimento de que o miserabilismo indemnizatório deve constituir passado e não presente na esteira da mais recente jurisprudência sendo que, imbuídos da mesma, os nossos tribunais superiores têm vindo a atribuir valores indemnizatórios superiores para casos em tudo semelhantes.

9. Deve atribuir-se ao autor a quantia de 24.939,89 Euros a título de indemnização por danos não patrimoniais, reportando-se este valor à data da citação (vencendo juros legais desde essa mesma data).

10. O acórdão recorrido violou entre outros, o disposto nos artigos 562º, 564º, 566º, 805º, todos do CC.

Mostra-se definitivamente fixada a seguinte matéria fáctica:

i) - no dia 17 de Julho de 1998, cerca das 21, 30 horas, no Largo da Nossa Senhora da Aparecida, ocorreu um embate em que intervieram os veículos FLG, propriedade de D, conduzido pelo autor, e o veículo FQ, conduzido por C, seu dono;

ii) - por contrato de seguro titulado pela apólice n° 010694192, a Companhia de Seguros B assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo pesado FQ;

iii) - o autor circulava no sentido Trovoada-Lousada, pela faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha, a velocidade inferior a 30 Km/h;

iv) - O FQ circulava no sentido Largo da Feira-Trovoada;

v) - no final da via por onde circulava o FQ havia um sinal de STOP, mas o condutor do FQ ao chegar à confluência da via, não parou e entrou no entroncamento pela faixa de rodagem esquerda, atento o seu sentido de marcha, tendo efectuado a perpendicular e vindo a embater com a frente esquerda do FQ no motociclo conduzido pelo autor e arrastando-o cerca de 4 metros para a frente;

vi) - o autor, por causa do embate, foi transferido de urgência para o Hospital de Penafiel e foi-lhe diagnosticada fractura-luxação da anca direita e fractura exposta dos ossos da perna direita;

vii) - em 22 de Julho foi-lhe efectuada osteossíntese do rebordo acetabular com parafusos e encavilhamento da tíbia com vareta de Ender;

viii) - o autor esteve internado desde o dia do acidente até 18 de Agosto, altura em que passou a ser seguido pelos serviços clínicos da ré;

ix) - nos serviços clínicos da ré efectuou duas intervenções cirúrgicas, sendo uma delas para lhe colocar uma prótese total da anca esquerda e para lhe retirar o material de osteossíntese dos ossos da perna, tendo tido alta clínica da ré em 5 de Setembro de 2000;

x) - o autor nasceu no dia 6 de Agosto de 1980:

xi) e é beneficiário do C.R.S.S. do Norte, mas tal instituição, até 4 de Maio de 2000, não lhe concedeu subsídio de doença;

xii) - o autor sofreu dores durante os tratamentos e operações;

xiii) - o autor era pessoa saudável e alegre;

xiv) - o autor pode a qualquer momento ter necessidade de substituição ou extracção da prótese, quer por luxação, rejeição ou qualquer acidente;

xv) - as sequelas apresentadas pelo autor traduzem-se numa incapacidade total para o exercício da profissão de operário fabril, profissão onde é necessário trabalhar de pé por longos períodos de tempo:

xvi) - o autor estava no início da sua carreira;

xvii) - o autor ficou inválido e impossibilitado de fazer quase tudo e com o risco de com qualquer esforço luxar a prótese;

xviii) - a ré pagou ao autor a quantia de 335.447$00 por despesas com transportes e outros encargos e a quantia de 1.330.000$00, a título de indemnização pelo acidente:

xix) - como sequelas definitivas resultaram para o autor:

- endoprótese da anca direita;

- dor na marcha;

- claudicação da marcha;

- incapacidade para a permanência de pé por períodos prolongados;

xx) - tais sequelas traduzem-se numa incapacidade geral permanente de 40%;

xxi) - o autor exercia a profissão de operário fabril e ganhava 70.000$00 mensais, durante 14 meses anuais;

xxii) - o seu salário do autor seria hoje de 100.000$00 mensais;

xxiii) - em despesas médicas gastou 20.000$00;

xxiv) - o autor não pode estar de pé muito tempo, não pode pôr-se de cócoras, não pode pegar em pesos, tem dificuldades em subir e descer escadas, não pode cruzar as pernas, tem dificuldade em conduzir veículos automóveis e não pode fazer trabalhos agrícolas;

xxv) - antes do embate o autor ajudava os pais aos fins de semana em trabalhos agrícolas;

xxvi) - se o autor fizer algum esforço pode luxar a prótese, o que o impede de correr, dançar ou fazer desporto;

xxvii) - o autor jogava futebol todos os fins de semana com os amigos;

xxix) - o autor passa os dias em casa triste, melancólico e deprimido, não pode conduzir motorizada, pois provoca-lhe dores, envergonha-se de andar a pé, pois manca;

xxx) - sofreu dores durante os tratamentos e operações e continuará a sofrer dores durante toda a vida;

xxxi) - o autor não se abeira das raparigas da sua idade, pois sente vergonha.

Está em causa, nos recursos interpostos, apenas a fixação das indemnizações atinentes aos danos atinentes à IPP do autor (danos patrimoniais futuros) e aos danos não patrimoniais por ele sofridos.

Para melhor compreensão do objecto dos recursos, retomaremos, no que respeita a tais aspectos, as decisões proferidas nos autos e as pretensões dos recorrentes (principal e subordinado).

No que concerne aos danos patrimoniais futuros, resultantes da IPP do autor, a sentença da 1ª instância entendeu ser adequada a indemnização de 16.334.000$00, que depois actualizou para 19.130.554$00 (certo que tomando em consideração não só este dano mas todos os de natureza patrimonial sofridos pelo autor).

O acórdão recorrido, considerando equitativo o montante fixado, confirmou, nessa parte, a decisão, apenas divergindo quanto à actualização da quantia indemnizatória, a que fez acrescer mais 2.786.003$00.
Pretende, agora, a ré recorrente que a indemnização a tal título concedida, não deve ultrapassar 10.500.000$00.
Em contrapartida, o autor sustenta que deve ser fixada a quantia indemnizatória de, pelo menos, 20.000.000$00.
Já quanto aos danos não patrimoniais fixaram as instâncias a indemnização em 2.500.000$00.
Defende o autor que tal indemnização deve ser de 5.000.000$00, reportada à data da propositura da acção e, portanto, acrescida de juros desde a citação.
No que concerne aos danos patrimoniais futuros, correspondentes à perda dos réditos que o autor continuaria a perceber e deixará de auferir por força da sua incapacidade parcial de 40% para o trabalho (tendo-se, naturalmente, em conta que a sua incapacidade para o trabalho específico que realizava é total), não obstante o respectivo cálculo se apresentar sempre muito difícil, dado assentar em dados altamente problemáticos, manifestamente influentes, tais como a sua idade, a data da sua reforma, a evolução do seu salário, a taxa de juro, o coeficiente de desvalorização da moeda, etc. (1), cremos que, a considerarmos que a decisão recorrida não procedeu (inicialmente) à actualização do valor indemnizatório encontrado (porquanto apenas procedeu, a posteriori, à respectiva actualização) seria bem mais ajustada a fixação do seu montante nos 20.000.000$00 (99.759,58 Euros) pretendidos pelo recorrente autor.

Determina o art. 566º do C.Civil que, sendo impossível a reconstituição natural, a indemnização, fixada em dinheiro, terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (nº s 1 e 2); devendo, caso não seja possível o apuramento exacto dos danos, o tribunal recorrer à equidade dentro dos limites que tiver por provados (nº 3). Assim, admite-se que, nesta matéria, "dificilmente captável através da rigidez dos instrumentos de prova, possa ser também a indemnização definida equitativamente, com recurso às regras de experiência e segundo o curso normal das coisas, sem esquecer, todavia, que se trata de matéria relativa ao nexo causal, a determinar segundo o método da causalidade adequada". (2)
E justamente se tem recorrido, na fixação concreta dos danos que constituem reflexo da perda de rendimentos futuros, à ajuda de tabelas financeiras que, atendendo ao tempo provável da vida activa do lesado, de forma a representar um capital reprodutor do rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual ao fim desse período, fixam um coeficiente determinante do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente. (3)

Sendo certo que na situação em apreço deparamos com uma vítima que viria a auferir, durante o resto da sua vida activa, o rendimento anual previsível de 980.000$00 (correspondente ao vencimento mensal de 70.000$00 durante 14 meses), vendo esse montante reduzido, se tomarmos em consideração apenas a sua incapacidade genérica para o trabalho de 40%, de 392.000$00.

Simplesmente, não podem olvidar-se, na determinação do rendimento anual perdido, quer a situação de incapacidade absoluta do autor para o trabalho que vinha exercendo, com a consequente necessidade de se adaptar a nova profissão (o que, se atenta a sua pouca idade, não será impossível, todavia revela um prejuízo concreto muito superior) bem como o facto de o seu vencimento, se não fora o acidente, ser em Dezembro de 2000, de 100.000$00 mensais.
O que nos leva a ter que atender a uma perda de rendimento anual que se traduzirá numa percentagem francamente maior do que a que advém da sua incapacidade genérica de 40% para o trabalho, em nosso entender próxima dos 70%, que se traduzem numa diminuição efectiva dos seus rendimentos de 900.000$00 por ano (naturalmente teremos em consideração uma verba próxima da que corresponderia ao vencimento do autor daqui a dois anos).
Daí que, considerando correcta a previsibilidade de vida activa até aos 65 anos (o que nos permite considerar um período de 47 anos a partir de 1998), se nos afigure adequado recorrermos, para fixação da indemnização, a um critério dotado de certa flexibilidade, segundo o qual se atribua ao lesado uma quantia que elimine a perda dos rendimentos futuros, não em função da aplicação taxativa de qualquer tabela financeira, mas através da entrega "de uma quantia em dinheiro que produza o rendimento (fixo) mensal perdido, mas que ao mesmo tempo, lhe não propicie enriquecimento injustificado à custa do lesante, isto é, que na data final do período considerado se ache esgotada a quantia atribuída". (4)
Segundo se explicita no Ac. STJ de 05/05/94, (5) poderá, neste sentido, "usar-se como elemento de trabalho a seguinte fórmula:
onde C será o capital a depositar no primeiro ano; P a prestação a pagar anualmente (900.000$00), i a taxa de juro (no caso do acórdão referido, 7%) e no número de anos em que a prestação se manterá (47 anos)".
E, continuando a citar o mesmo aresto, "face à actual tendência de descida das taxas de juro, é mais prudente a utilização de uma taxa de referência de 7%, em vez da que se vem utilizando (9%)".

Acrescentando nós que, atenta a evolução da baixa da taxa de juros dos depósitos bancários, que tenderá sem dúvida a estabilizar nos anos futuros, se justifica, hoje em dia, o recurso à taxa de 3%, mais adequada à determinação do quantitativo correspondente ao capital a depositar.

Analisando, agora, a situação descrita nos autos, e aplicando a fórmula acima mencionada (considerando a taxa de juro de 3%), encontraríamos o capital indemnizatório (dispensámo-nos de indicar as operações aritméticas conducentes a esta conclusão) global de 22.522.237$00 (112.139,08 Euros).

Poderia, ainda, quantificar-se a indemnização através da aplicação de "uma regra de três simples
100 3 (taxa de juro) x 900.000$00 (diminuição anual) mas fazendo intervir no fim a equidade" (6), o que conduziria a um quantum de 22.500.000$00.

É evidente que as fórmulas utilizadas, tal como os demais critérios que têm sido propostos para o cálculo da indemnização pelos danos futuros decorrentes da perda de rendimentos do lesado não são infalíveis, apenas podendo ser consideradas como instrumento de trabalho, meros referenciais ou indiciários, que não podem substituir o prudente arbítrio do julgador baseado em critérios de equidade, no âmbito do nº 3 do art. 566º do C.Civil, com vista à obtenção da justa indemnização. (7)
Isto para já não assentar na posição radical dos que sustentam que "não há que fazer fé em cálculos aritmeticamente rígidos, eventualmente concebidos pela lei noutras matérias, mas ter em conta, designadamente, a culpa do lesante e as situações económicas deste e do lesado, privilegiando-se o papel da equidade com vista à solução justa para o caso concreto". (8)
Por isso, através da intervenção da equidade, é que se justifica, atentas as circunstâncias concretas em presença, e sempre com vista a uma solução equitativa (art. 566º, nº 3, do C.Civil) fazer variar, para mais ou para menos, o resultado da aplicação das fórmulas, tabelas financeiras ou regras aritméticas utilizadas como referência.

Cremos que, nesta medida, bem mais se justifica (fazendo variar para algo menos, atentas todas as circunstâncias em presença, os resultados aritméticos atingidos e tomando na devida conta a quantia de 1.300.000$00 que o autor já recebeu a título de indemnização pelo acidente) a fixação da indemnização, tal como pretende o recorrente, em 20.000.000$00 (99.759,58 Euros).
Indemnização esta já devidamente actualizada à data da sentença da 1ª instância e que, afinal, corresponde ao que, em sede de recurso, peticiona o recorrente.
Assim, neste aspecto, improcede o recurso da ré, procedendo, em contrapartida, o recurso subordinado do autor.
Já quanto aos danos de ordem não patrimonial - e apreciando, nesta parte, o recurso subordinado - resulta do art. 496º, nºs 1 e 3, do C.Civil que "na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito" e que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º, isto é, tomando em consideração o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Pode, por isso, dizer-se que "a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente". (9).
Mas, além desse carácter sancionatório - que de modo especial releva in casu atenta a culpa exclusiva do lesante - o objectivo da reparação dos danos morais é o de proporcionar ao lesado, através do recurso à equidade, "uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que" de algum modo, atenuem a sua dor: não consiste num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris". (10)
E, sobretudo, na fixação do montante dos danos patrimoniais - entendida esta indemnização como compensação destinada a facultar ao lesado uma importância em dinheiro apta a proporcionar-lhe satisfações que lhe façam esquecer ou mitigar o sofrimento físico e moral provocado pelo acidente (sofrimento passado, presente e futuro) - deve o julgador recorrer à equidade, tendo em atenção os critérios normativos constantes do art. 494º do C.Civil. (11)
Em suma, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (arts. 496º, nº 3 e 494º acima citados).
Sendo certo que, "quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. ... A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da juridicidade. ... A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto". (12)
Como ponderar, então, os danos não patrimoniais do recorrido, indemnizáveis nos termos do art. 496º, nº 2, do C.Civil?
Qual deverá ser, ainda através do recurso à equidade, a medida da compensação ou benefício de ordem material (a única possível) a atribuir ao autor?
A situação de facto que há-de suportar a decisão é, fundamentalmente, a seguinte:
- o autor sofreu fractura-luxação da anca direita e fractura exposta dos ossos da perna direita, tendo-lhe sido, em 22 de Julho, efectuada osteossíntese do rebordo acetabular com parafusos e encavilhamento da tíbia com vareta de Ender e tendo ficado internado no Hospital de Penafiel desde o dia do acidente até 18 de Agosto;

- nessa altura passou a ser seguido pelos serviços clínicos da ré, onde efectuou duas intervenções cirúrgicas, sendo uma delas para lhe colocar uma prótese total da anca esquerda e para lhe retirar o material de osteossíntese dos ossos da perna, tendo tido alta clínica da ré em 5 de Setembro de 2000;

- sofreu dores durante os tratamentos e operações e continuará a sofrer dores durante toda a vida;

- e pode, a qualquer momento ter necessidade de substituição ou extracção da prótese, quer por luxação, rejeição ou qualquer acidente;

- como sequelas definitivas resultaram para o autor endoprótese da anca direita, dor na marcha, claudicação da marcha e incapacidade para a permanência de pé por períodos prolongados;

- ficando a padecer de uma IPG (incapacidade permanente geral) de 40%;
- não pode pôr-se de cócoras, não pode pegar em pesos, tem dificuldades em subir e descer escadas, não pode cruzar as pernas, tem dificuldade em conduzir veículos automóveis e não pode fazer trabalhos agrícolas;

- ficou inválido e impossibilitado de fazer quase tudo e com o risco de com qualquer esforço luxar a prótese;

- o autor nasceu no dia 6 de Agosto de 1980, era pessoa saudável e alegre, estava no início da sua carreira de operário fabril, jogava futebol todos os fins de semana com os amigos;

- se o autor fizer algum esforço pode luxar a prótese, o que o impede de correr, dançar ou fazer desporto;

- o autor passa os dias em casa triste, melancólico e deprimido, não pode conduzir motorizada, pois provoca-lhe dores, envergonha-se de andar a pé, pois manca e não se abeira das raparigas da sua idade, pois sente vergonha.

Cumpre, pois, fixar o montante indemnizatório (melhor, compensatório) equivalente ao dano resultante das sequelas de ordem física e psíquica de que o autor ficou a padecer, e que o diminuíram em definitivo (aqui englobado, obviamente, o denominado dano biológico), olhando ao quadro fáctico supra referido (atendendo, sobremaneira, às angústias, dores e incómodos que o autor sofreu, às sequelas definitivas com que ficou, enfim, à necessidade de encarar a vida de modo diferente, adaptando-se a uma situação claramente limitativa e que dificulta a sua liberdade de movimentação e de relacionamento), e sem esquecer que, in casu, se não conhece, em concreto, a situação económica do lesante e do lesado.

É verdade que já há muito o Supremo Tribunal de Justiça vem reconhecendo que "se torna necessário elevar o nível dos montantes dos danos morais, perante o condicionalismo económico do momento, e o maior valor sentimental que hoje se atribui, felizmente, à vida humana". (13)
Aliás, hoje em dia, assiste-se a uma corrente jurisprudencial que visa afastar critérios miserabilistas de fixação desta espécie de danos, pautando-se por uma justa, naturalmente mais elevada, fixação dos montantes indemnizatórios, a que não está alheia também a constatação do facto de os prémios de seguro serem frequentemente actualizados em função do maior risco assumido pelas seguradoras. (14)
Perante a situação descrita, e tendo em consideração todos os elementos presentes nos autos, de que, como é evidente, se destaca a culpa concreta e exclusiva do causador do acidente, cremos que a justiça equitativa será atingida através da atribuição ao autor de uma indemnização de 5.000.000$00, mais consentânea com o quadro de sofrimento que subjaz na situação em apreço. (15)

Montante que nos assegura uma compensação justa e conforme com a orientação, nesse âmbito, da jurisprudência nacional. (16)

Merece, pois, também nesta parte, provimento o recurso subordinado interposto pelo autor.

Sustenta, por último, o autor que os juros relativos à indemnização atribuída pelos danos não patrimoniais são devidos desde a data da citação.

Não é, no entanto, razoável tal entendimento.
Foi claramente definido pelo Supremo Tribunal de Justiça (17) que "sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação".
E resulta, sem qualquer dúvida, do acórdão recorrido que na parte em que fixou a indemnização pelos danos não patrimoniais essa decisão é actualizadora, nos termos do art. 566º, nº 2, do C.Civil (cfr. fls. 228 vº) - nós próprios assim o entendemos.
Donde, como é óbvio, estamos perante uma decisão actualizadora, à qual, por isso mesmo, é aplicável a doutrina do Acórdão Uniformizador nº 4/2002.
Consequentemente, os juros moratórios relativos à indemnização pelos danos não patrimoniais começam a contar-se, como no acórdão recorrido se decidiu, desde a data da sentença da 1ª instância e não, como pretende o recorrente, desde a data da citação da ré.
Assim, nesta parte, nada há que censurar ao acórdão recorrido, improcedendo, naturalmente, o recurso.

Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré "Companhia de Seguros B, SA";
b) - julgar procedente o recurso subordinado interposto pelo autor A;
c) - alterar o acórdão recorrido na parte em que fixou os montantes indemnizatórios relativos aos danos não patrimoniais e patrimoniais advindos da IPP sofridos pelo autor;
c) - fixar agora essas indemnizações nas quantias de 5.000.000$00 (24.939,89 Euros) e de 20.000.000$00 (99.759,58 Euros) respectivamente para os danos não patrimoniais e para os patrimoniais resultantes da IPP;
d) - condenar a ré recorrente nas custas da revista que interpôs, bem como a suportar as do recurso subordinado.
f) - as custas devidas na acção (nas instâncias) serão suportadas na proporção de 90% pela ré e 10% pelo autor (sem prejuízo do apoio judiciário de que este goza).

Lisboa, 14 de Outubro de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Ac. STJ de 26/05/93, in CJSTJ Ano I, 1, pag. 130, maxime pag. 132 (relator Fernando Fabião).
(2) Dario Martins de Almeida, in "Manual de Acidentes de Viação", 2ª edição, Coimbra, 1980, pags. 115 e 116.
(3) Cfr. Acs. STJ de 18/01/79, in BMJ nº 283, pag. 275 (relator Abel de Campos); e de 17/10/2000, no Proc. 2152/00 da 6ª secção (relator Azevedo Ramos).
(4) Ac. STJ de 04/02/93, in CJSTJ Ano I, 1, pag. 128 (relator Costa Raposo), que utiliza a fórmula elaborada pela Universidade Católica.
(5) CJSTJ Ano II, 2, pag. 86 (relator Costa Raposo).
(6) Conselheiro Sousa Dinis, "Dano Corporal em Acidentes de Viação", in CJSTJ Ano IX, 1, pag. 9. De acordo com esta regra encontraríamos um capital de 30.000.000$00, a que haveria depois que fazer um desconto tendente a evitar um enriquecimento injusto provocado pelo recebimento imediato daquele montante (cerca de ¼, ou seja, 7.500.000$00), atingindo-se, assim, a quantia indemnizatória de 22.500.000$00.
(7) Acs. STJ de 13/12/2000, no Proc. 2891/00 da 2ª secção (relator Abílio Vasconcelos); de 15/03/2001, no Proc. 303/01 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); de 08/03/2001, no Proc. 409/01 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida; de 04/07/2002, no Proc. 1960/02 da 7ª secção (relator Araújo Barros); e de 19/09/2002, no Proc. 2298/02 da 2ª secção (relator Moitinho de Almeida).
(8) Ac. STJ de 30/02/2001, no Proc. 3617/00 da 1ª secção (relator Ribeiro Coelho).
(9) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pag. 578.
(10) Fernando Pessoa Jorge, "Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil", in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, 1972, pag. 375.
(11) Ac. STJ de 11/01/00, no Proc. 888/99 da 1ª secção (relator Silva Graça).
(12) Dario Martins de Almeida, in "Manual de Acidentes de Viação", pags. 103 e 104 (e autores aí citados).
(13) Ac. STJ de 10/01/68, in BMJ nº 173, pag. 167.
14) Vejam-se, como exemplos significativos desta tendência evolutiva, os Acs. STJ de 28/03/00, no Proc. 222/00 da 1ª secção (relator Lemos Triunfante), de 16/05/00, no Proc. 328/00 da 2ª secção (relator Simões Freire), de 27/06/00, no Proc. 408/00 da 1ª secção (relator Garcia Marques), de 21/09/00, no Proc. 2033/00 da 6ª secção (relator Tomé de Carvalho), e de 14/11/00, no Proc. 2639/00 da 1ª secção (relator Lemos Triunfante).
(15) Note-se que no Ac. STJ de 28/05/2002, no Proc. 1435/02 da 6ª secção (relator Afonso de Melo) se entendeu que o Supremo "pode sindicar o quantum indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido quando seja manifestamente arbitrário face às circunstâncias expressas na motivação; doutro modo, não deve sobrepor-se ao juízo equitativo da Relação, pois os juízos equitativos são próprios das instâncias".
(16) Cfr. Acs. STJ de 18/01/2001, no Proc. 3777/00 da 7ª secção (relator Nascimento Costa); de 20/06/2002, no Proc. 1507/02 da 2ª secção (relator Joaquim de Matos); e de 09/01/2003, no Proc. 4018/02 da 2ª secção (relator Loureiro da Fonseca).
(17) Ac. Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2002, de 9 de Maio de 2002, in DR IS-A de 27/06/2002.