Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A1704
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: LIBERDADE DE EXPRESSÃO
LIBERDADE SINDICAL
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
DEVER DE INDEMNIZAR
CULPA
DOLO
Nº do Documento: SJ200405270017046
Data do Acordão: 05/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 9321/03
Data: 12/11/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A liberdade de expressão e o direito de liberdade sindical não são absolutos, devendo respeitar o direito ao crédito profissional, à honra e ao bom nome dos visados.
II - A informação deve ser rigorosa e verdadeira, devendo a notícia ser dada com contenção, para não afectar, além do necessário, a reputação alheia.
III - Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade, contanto que seja susceptível, perante as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida.
IV - O dever de indemnizar não depende de intenção ofensiva, bastando a mera culpa.
V - A invocação do cumprimento de um dever como causa justificativa do incumprimento de outro só releva se o respectivo sujeito não contribuiu culposamente para a impossibilidade de satisfação de ambos.
VI - Para haver culpa e obrigação de indemnizar, no caso de afirmação ou divulgação de factos susceptíveis de prejudicar o crédito ou o bom nome de alguém, basta, em princípio, que o agente queira afirmar ou difundir o facto, desde que conheça ou devesse conhecer a ilicitude ou o carácter danoso do mesmo facto.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 10-7-95, A, administrador hospitalar, instaurou a presente acção ordinária contra Sindicato dos Médicos do Sul e Ilhas, pedindo a condenação deste a pagar-lhe uma indemnização de montante não inferior a 10.000.000$00.
Para tanto, alegou, em síntese:
- O réu, por intermédio do seu Presidente, divulgou através da rádio, televisão e jornais, afirmações falsas sobre a competência e diligência da administração do Hospital Distrital de Évora, da qual o autor fazia parte, dizendo, além do mais, que tinha uma máquina avariada há vários meses e que, por incompetência e incúria, estava a provocar mortes de doentes perfeitamente evitáveis;
- Com tais declarações afectou a dignidade profissional e pessoal do autor, causando-lhe prejuízos não patrimoniais graves.

O réu contestou, dizendo:
Os factos publicamente denunciados pelo réu eram verdadeiros;
Não fosse a denúncia do réu, outras mortes teriam ocorrido;
Na petição inicial, o autor articula factos falsos e ofensivos da dignidade e bom nome do réu;
Em reconvenção, com base nesses factos alegados na petição, pediu a condenação do autor no pagamento de uma indemnização de 5.000.000$00 e, ainda, a condenação daquele como litigante de má fé.

Houve réplica.

Por despacho de fls 138, foi ordenada a apensação a estes autos da acção ordinária nº 514/95, intentada por B contra o Sindicato dos Médicos do Sul e Ilhas, por factos idênticos aos dos presentes autos, onde este autor pede a condenação do réu no pagamento de uma indemnização de 5.000.000$00, pelos danos não patrimoniais sofridos, e ainda em multa e indemnização, por má fé processual.

O réu também contestou e deduziu reconvenção em moldes similares, pedindo a condenação deste autor no pagamento da indemnização de 5.000.000$00 e em multa e indemnização, por litigância de má fé.

O autor replicou.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou as acções parcialmente procedentes, condenando o réu a pagar ao A a quantia de 18.000 euros e ao B o montante de 15.000 euros.

Apelou o réu, mas a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 11-12-03, confirmou a sentença recorrida.
Continuando inconformado o réu pede revista, onde resumidamente conclui:

1 - As declarações públicas do Presidente do Sindicato recorrente foram produzidas na sua qualidade de dirigente sindical.
2 - O mesmo detinha o conhecimento de factos que provocaram a morte de diversas pessoas, que lhe haviam sido transmitidos por um elemento do corpo clínico do Hospital Distrital de Évora (HDE).
3 - O Dr. C, enquanto Presidente do Sindicato, tinha o dever de promover a denúncia de tais factos, para alertar a opinião pública, em geral, e o poder político, em particular.
4 - E tinha o dever de promover a defesa dos médicos do HDE.
5 - Esta matéria de facto provada não permite fundar o dever de indemnizar, previsto nos arts 483 e 484 do Cód. Civil:
- em primeiro lugar, por ausência de qualquer facto ilícito, dado que o recorrente se limitou a exercer um direito e a cumprir um dever legal e estatutário;
- em segundo, por ter agido sem culpa.
6 - O Acórdão recorrido, ao deixar de discutir qualquer destas questões de direito e ao aderir ao julgado da 1ª instância, por via da emissão de juízos conclusivos, violou o dever de pronúncia que sobre ele impendia, tornando-o nulo - art. 668, nº1, ad. d) e 716, nº1, do C.P.C.
7 - Se assim não for entendido, o Acórdão recorrido, ao confirmar a procedência da pretensão indemnizatória deduzida, enferma de erro de interpretação e aplicação dos arts 483 e 484 do C.C., porque conflituante com a dimensão e valoração constitucionais da liberdade de expressão (art. 37, nºs 1 e 2 da C.R.P.) e com o método de superação de conflitos de direitos fundamentais aí previstos (art. 18 da C.R.P.).

Os recorridos contra-alegaram em defesa do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Remete-se para os factos que foram considerados provados no Acórdão recorrido, ao abrigo dos arts 713, nº6 e 726 do C.P.C.
Com interesse para a apreciação do recurso, relativamente aos invocados pressupostos da ilicitude e da culpa, destacam-se os seguintes:

1 - Os autores eram membros do Conselho de Administração do Hospital Distrital de Évora, na altura das ocorrências que tiveram lugar na cidade de Évora, relacionadas com os doentes hemodialisados que se vieram a revelar através de diversos falecimentos desses doentes.

2 - O Presidente do Sindicato dos Médicos do Sul e Ilhas, Dr. C, nessa qualidade, aproveitando-se de toda uma série de factos vindos a público, no mês de Abril de 1993, a propósito dessas ocorrências, veio imputar aos elementos que, na altura, compunham a Administração do Hospital Distrital de Évora, condutas causadoras dos falecimentos então verificados.
3 - Fê-lo publicamente, através da rádio (C.M.R. - rádio), televisão (SIC RTP e TVI) e jornais, não se coibindo de afirmar nomeadamente a incompetência dos membros do Conselho de Administração e da sua incúria, ao não terem reparado a (falsa) avaria detectada, provocando as mortes de doentes hemodialisados.

4 - Assim, o Sindicato réu, pela voz do seu Presidente, afirmou repetidamente, no mês de Abril de 1993 que:
"... desde Janeiro que havia uma máquina avariada";
"... nunca foi mandada arranjar";
"... o que é uma situação de clara incompetência de gestão e da administração do hospital";
"... esta não vai conseguir esconder a realidade e a verdade";
"... está a brincar com a vida humana";
"... e está, deliberadamente, por incompetência e incúria, a provocar mortes perfeitamente evitáveis" (declarações no Jornal da Noite da SIC, no mês de Abril de 1993).

5 - Com efeito, através das suas intervenções, veio a verificar-se um cada vez maior interesse em manchar a imagem, a seriedade e a competência dos membros do Conselho de Administração do Hospital Distrital de Évora, com afirmações como as que se transcrevem, todas elas falsas e causadoras de repúdio, como aquelas que foram proferidas no Correio da Manhã rádio, em 1-4-93, consubstanciadas no saneamento (alegadamente) feito pela Administração do Hospital, de dois Directores de Serviço, de forma arbitrária, ligando-o à morte de oito hemodialisados, ocorridas em quinze dias.

6 - Tais afirmações foram produzidas através dos órgãos de comunicação social de cobertura nacional.

7 - Os autores viram-se acusados pelo réu, perante a opinião pública, da prática ou omissão de condutas que, segundo ele, terão sido causadoras de pesadas perdas de vidas humanas.
8 - Fê-lo, sabendo o seu Presidente, como médico, que o pânico certamente poderia surgir no seio dos utentes e, apesar das suas consequências , aceitou os resultados.
9 - Fê-lo, sabendo da importância que, em momentos difíceis, como foram os ocorridos, têm a serenidade e a confiança a incutir em todos os doentes que diariamente se socorrem do hospital.
10 - Fê-lo, em suma, através da imprensa, com o intuito da sua divulgação pública e sabedor da gravidade de tais afirmações e dos danos irreparáveis que iria causar na imagem de todos aqueles que diariamente exercem, com toda a dignidade e competência, as funções que lhe foram cometidas, no âmbito da Administração hospitalar em que se integravam os autores.
11 - E, ao tê-lo feito publicamente, através da imprensa televisiva e radiofónica, perante milhões de pessoas, o réu era sabedor (porque não podia ignorar) que a garantia pública da honra, da credibilidade, da seriedade e da reputação dos autores (profissional da administração hospitalar e profissional de saúde) era essencial à estabilidade da administração hospitalar e, por essa via, da confiança e idoneidade que têm de reflectir perante os doentes e a população em geral.
12 - Provocou e agravou o medo, a insegurança, a desconfiança dos utentes e da população em geral no recurso aos serviços do Hospital Distrital de Évora e nos autores, como profissional de saúde e enfermeiro, provocando decisivamente, com as suas afirmações, um clima geral de repúdio e de condenação das pessoas que compunham o Conselho de Administração, além de ter fomentado publicamente a imputação ao Conselho de Administração e, como tal, aos respectivos elementos que o compõem, da prática de vários crimes de homicídio negligente.
13 - As declarações do Presidente do Sindicato, aqui réu, contra os membros do Conselho de Administração de que o autor A fazia parte desencadearam neste um estado de degradação física e emocional, provocando cansaço, uma ansiedade permanente e um estado nervoso constante.
15 - Tudo se reflectindo na impossibilidade de condução normal da sua actividade no seio do Hospital, como até aí.
16 - E originando os demais danos considerados provados e que aqui se dão por reproduzidos.
17 - As declarações do Presidente do Sindicato, ora réu, contra os membros do Conselho de Administração de que o autor B também fazia parte desencadearam neste alterações e perturbações nervosas, que obrigaram à sua medicação.
18 - E ainda provocaram alterações no seu equilíbrio psico-emocional, reflectido na sua actividade profissional e na constante perturbação física sentida.
19 - E determinaram os demais danos considerados provados e que aqui se dão por reproduzidos.
20 - O Sindicato dos Médicos do Sul e Ilhas achava-se na posse do conhecimento dos factos que provocaram a morte de diversas pessoas.
21- Tinha o dever de os denunciar publicamente para alertar a opinião pública, em geral, e o poder político, em especial.
22 - Também tinha o dever de defender e promover a defesa dos médicos do HDE.
23 - O Dr. C limitou-se a divulgar publicamente, na sua qualidade de dirigente sindical, factos ocorridos numa unidade hospitalar pública, que lhe haviam sido transmitidos por um elemento do corpo clínico daquela unidade.
24 - O inquérito nº 574/93-3ª, relacionado com os factos em questão, que correu trâmites no Tribunal de Évora, foi arquivado na parte que diz respeito à Administração do Hospital Distrital de Évora.

A questão a decidir consiste em saber se os factos provados não permitem fundar o dever de indemnizar os autores, por ausência de ilicitude e de culpa.

Vejamos:

1.
São pressupostos da responsabilidade civil: o facto voluntário do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao agente (culpa), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Como resulta da matéria provada, o facto consubstancia-se, in casu, num conjunto de declarações proferidas pelo réu, por intermédio do seu Presidente, através dos meios de comunicação social: os três canais de televisão nacionais, jornais e rádio.
Versam sobre a imputação de falta de competência e diligência profissional dos autores, que integravam o Conselho de Administração do Hospital Distrital de Évora, chegando a atribuir-se a morte de oito doentes, que recebiam tratamento de hemodiálise, a incúria e a conduta omissiva e negligente dos elementos que compunham a mesma Administração, designadamente por falta de reparação de uma máquina que se encontrava avariada há alguns meses.
Tais imputações, que se provou não corresponderem à verdade, afectam, directamente, a competência e a seriedade profissionais, o crédito, a honra, o bom nome e a imagem dos ora autores, face à comunidade e perante si mesmos, sendo certo que, dos factos considerados provados, não resultou apurada a propalada causa concreta das mortes dos doentes hemodialisados.
O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, limita-se a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, aos factos materiais que foram fixados pela Relação - art. 729, nºs 1 e 2 do C.P.C.
O recorrente não pode, agora, sindicar os factos que foram julgados provados pela 2ª instância - art. 722, nº2, 1º parte, do mesmo diploma.

Ora, qualquer pessoa goza dos direitos fundamentais à integridade moral e ao bom nome e reputação - arts 25, nº1 e 26, nº1, da Constituição da República.
O direito ao bom nome e reputação consiste essencialmente no direito de não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social, mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação.
Neste sentido, pode dizer-se que este direito constitui um limite para outros direitos, designadamente a liberdade de informação e de imprensa, consagrada nos arts 37 e 38 da Constituição.
Numa perspectiva de tutela juscivilística, escreve Capelo de Sousa (O Direito Geral da Personalidade, 1995, págs. 303/304):
A honra "abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem, em qualquer circunstância.
(...)
Em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, profissional ou político".
Versando sobre a tutela geral da personalidade, dispõe o art. 70, nº1, do C.C., que a lei protege todos os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
À responsabilidade civil por ofensas à personalidade física ou moral (art. 70, nºs 1 e 2, 1ª parte) são aplicáveis, em termos gerais, os arts 483 e segs do Cód. Civil.
Para além das duas disposições básicas da responsabilidade civil, constantes do nº 1, do citado art. 483 (violação dos direitos de outrem e violação de uma disposição destinada a proteger interesses alheios), a nossa lei recebeu uma série de previsões particulares que concretizam ou completam aquelas.
É precisamente o caso dos arts 484, 485 e 486 do Cód. Civil.
Aqui e agora, só importa considerar a previsão do art. 484.
Nele se preceitua:
"Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados".
A ofensa do crédito ou bom nome previsto nesta norma não é mais do que um caso especial de facto antijurídico definido no preceito precedente, pelo que se deve considerar subordinada ao princípio geral do art. 483, não só quanto aos requisitos fundamentais da ilicitude, mas também relativamente á culpabilidade (Ac. S.T.J. de 14-5-76, Bol. 257-131; Ac. S.T.J. de 17-10-00, Col. Ac. S.T.J., VIII, 3º, 78, este último também relatado pelo ora Relator).
Pires de Lima e Antunes Varela (código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 585/486), em comentário ao referido artigo, escrevem:
"Além das duas grandes directrizes de ordem geral fixadas no art. 483 sobre o conceito de ilicitude, como pressuposto da responsabilidade civil, o Código Civil trata, de modo especial, alguns casos de factos antijurídicos.
O primeiro é o da afirmação ou divulgação de factos capazes de prejudicarem o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa.
(...)
Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade, contanto que seja susceptível, perante as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou em que exerce a sua actividade".
Também Almeida Costa (Direito das Obrigações, 5ª ed, pág. 453), depois de considerar que um dos casos especiais de ilicitude, previstos no Código Civil, é o da ofensa do crédito ou do bom nome, ensina:
"Como se infere da lei, tem de haver imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais.
Parece indiferente, todavia, que o facto afirmado ou difundido seja verdadeiro ou não.
Apenas interessa que, dadas as circunstâncias concretas, se mostre susceptível de afectar o crédito ou a reputação da pessoa visada - pessoa singular ou colectiva, devendo considerar-se incluída nesta última categoria as sociedades ".
Menezes Cordeiro (Direito das Obrigações, Vol. II, pág. 348/350), depois de entender que a ofensa do crédito ou do bom nome está sujeito às regras gerais dos delitos, conclui pela responsabilidade de quem "com dolo ou mera culpa" violar o direito ao bom nome e a reputação de outrem.
E acrescenta:
"É indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom nome e a reputação de uma pessoa.
Por outro lado, a divulgação de um facto falso e atentório pode não constituir um delito, por carência, por exemplo, do elemento voluntário.
Por isso, a solução deve resultar do funcionamento global das regras da imputação delitual ".
Na jurisprudência, também este Supremo Tribunal (Ac. S.T.J. de 3-10-95, Bol. 450-424; Ac. S.T.J. de 27-5-97, Col. Ac. S.T.J., V, 2º, 102; Ac. S.T.J. de 3-3-99, Bol. 484-339; Ac. S.T.J. de 17-10-00, Col. Ac. S.T.J., VIII, 3º, 78) tem trilhado esta linha de rumo, ao decidir:
- o direito de livre expressão não é absoluto, devendo respeitar o direito à honra e ao bom nome;
- a afirmação ou divulgação de facto verdadeiro, se injustificada, é passível de sanção;
- o dever de indemnizar não está dependente de intencionalidade ofensiva;
- havendo mera culpa (para além dos demais pressupostos da responsabilidade civil), existe dever de indemnizar:
- tratar-se de dolo ou mera culpa apenas releva para a graduação da indemnização.
2.
O Sindicato recorrente sustenta que a matéria de facto provada não permite fundar o dever de indemnizar:

Em primeiro lugar, por ausência de qualquer facto ilícito:

- já que se limitou a exercer um direito, resguardado na liberdade de expressão do seu presidente e na justa causa específica inerente à sua qualidade de dirigente sindical, fazendo-o de modo legítimo, porque necessário, adequado e proporcional à gravidade da situação concreta e, portanto, em conformidade com o plano constitucional;
- e ainda a cumprir um dever, legal e estatutário;

Em segundo lugar, por ter agido sem culpa:

- já que o Sindicato recorrente cumpriu diligentemente o seu dever de informação; relatou, com verdade, os factos que lhe haviam sido transmitidos; o juízo crítico expendido sobre o Conselho de Administração do HDE mostrou-se adequado, pertinente e materialmente fundado; actuou com boa fé e desprovido de qualquer ânimo ofensivo do bom nome e reputação dos membros do referido Conselho de Administração; prosseguiu um fim inteiramente legítimo, de relevante interesse público.

Acrescenta ainda que o Acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia sobre esta matéria.

Mas sem razão.

O vício a que se reporta o art. 668, nº1, al. d), do C.P.C., traduz-se no incumprimento, por parte do tribunal, do dever de prescrito no nº2, do seu art. 660, não havendo omissão de pronúncia, mesmo que se não tome conhecimento de todos os argumentos apresentados, desde que se apreciem as questões suscitadas e necessárias à justa decisão da causa.
Ora, a Relação apreciou todas as questões essenciais à decisão e concluiu pela actuação ilícita e culposa do réu.
3.
Nem podia ser outra a decisão, diga-se, desde já.

Os conceitos de ilicitude e de culpa reflectem aspectos distintos da conduta do agente, ainda que intimamente relacionados.
A ilicitude encara o comportamento do autor do facto sob um prisma objectivo, enquanto violação de valores defendidos pela ordem jurídica (juízo de censura sobre o próprio facto).
A culpa pondera o lado subjectivo desse comportamento, ou seja, as circunstâncias individuais concretas que o envolveram (juízo de censura sobre o agente em concreto).
Já vimos que o art. 483, nº1, do C.C., indica as duas formas essenciais que a ilicitude pode revestir:
- violação de um direito de outrem;
- violação de preceito da lei tendente à protecção de interesses alheios.
Naquela primeira directiva (violação de direitos subjectivos) incluem-se especialmente as ofensas de direitos absolutos, de que constituem exemplos os direitos reais (arts 1251 e segs) e os direitos de personalidade (arts. 70 e segs).

Existem duas causas gerais, sem regulamentação expressa na lei civil, que afastam a ilicitude:
- o regular exercício de um direito;
- o cumprimento de um dever jurídico.
Este último apresenta-se normalmente como uma obrigação legal, ou seja, tendo a lei como fonte directa.
Pires de Lima e Antunes Varela (Cód. Civil Anotado, Vol. I, , 4ª ed., pág. 486) também comentam que a afirmação ou divulgação de um facto pode não ser ilícita, "se corresponder ao exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever, como se for feita em depoimento de parte ou de testemunha, num inquérito oficial".

Com efeito, a pessoa que viola um direito alheio no exercício de um direito próprio, não actua, em princípio, ilicitamente.
Importa, no entanto, atender à doutrina do art. 335 do C.C.:
- havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder, na medida do necessário, para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (nº1);
- se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior (nº2).
De igual modo, não se verifica, em princípio, responsabilidade dos que actuam no cumprimento de um dever jurídico.
Existindo colisão de deveres que recaiam sobre a mesma pessoa, caberá ao agente dar prevalência ao mais importante.
Mas "a invocação do cumprimento de um dever como causa justificativa do incumprimento do outro só releva se o respectivo sujeito não contribuiu culposamente para a impossibilidade de satisfação de ambos" (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., pág. 456).

Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a censura ou reprovação do direito.
A conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.
Para haver culpa, "no caso de afirmação ou divulgação de factos susceptíveis de prejudicar o crédito ou bom nome de alguém, basta, em princípio, que o agente queira afirmar ou difundir o facto, pouco importando que ele soubesse ou não que, em consequência disso, o lesado perderia um negócio vantajoso ou uma colocação rendosa ou veria desfeito o seu noivado. Desde que o agente conheça ou devesse conhecer a ilicitude ou o carácter danoso do facto, é justo que sobre ele recaia o encargo de reparar os danos efectivamente causados por esse facto" (Antunes Varela, Das Obrigações em (Geral, Vol. I, 7ª ed., pág. 559, nota de rodapé).

Pois bem.

A liberdade de expressão, consagrada no art. 37, nºs 1 e 2, da Constituição, e a qualidade sindical do réu, não podem justificar as ajuizadas declarações do seu Presidente, acobertando-se na invocação de que o Sindicato réu se limitou a exercer um direito e a cumprir um dever estatutário, agindo sem culpa.
A liberdade de expressão e a qualidade sindical não permitem que se ofenda, culposamente, os direitos da personalidade de qualquer cidadão.
A circunstância do Presidente do Sindicato réu deter o conhecimento de factos que provocaram a morte de várias pessoas, nos termos que apenas lhe haviam sido transmitidos por um elemento do corpo clínico do HDE, não justifica a conduta do mesmo réu, face à factualidade que resultou apurada.
Na verdade, perante os factos provados, o réu não cumpriu diligentemente o seu dever de informação, não contactou previamente o Conselho de Administração do HDE, nem cuidou de averiguar se a causa das mortes que lhe foi transmitida correspondia à realidade, como podia e devia.
O direito de informar e de defesa dos interesses dos médicos que incumbe ao Sindicato réu não é um direito absoluto que conduza à sua total impunidade.
A informação prestada deve ser rigorosa e verdadeira, para não se defraudar o direito do público a ser informado e não se impedir a plena formação da opinião pública.
A informação deve ser colhida em fontes idóneas, para ser garantida a verdade da informação que se veicula, de modo especial quando é divulgada pelos poderosos meios da televisão, da rádio e dos jornais.
Deve haver adequação ao meio, dando-se a notícia com contenção, para não afectar, além do necessário, a reputação dos visados.
Por isso, não pode afirmar-se que o juízo crítico expendido sobre a actuação e a competência do Conselho de Administração do HDE, de que os autores faziam parte, se mostre adequado, pertinente ou materialmente fundado, tanto mais que não resultou provada a propalada causa das mortes, nem que estas fossem directamente imputáveis a incompetência e incúria dos membros do Conselho de Administração ou à falta de reparação de qualquer máquina que se encontrasse avariada há vários meses.
O réu, representado pelo seu Presidente, sabia que as suas afirmações iriam ser ouvidas ou lidas por milhões de pessoas e que eram susceptíveis de prejudicar o crédito e a reputação dos membros da administração do HDE.
Tendo tomado conhecimento dos factos em questão, incumbia ao réu denunciá-los junto das entidades públicas competentes (órgãos do Ministério Público ou com tutela sobre a administração do HDE), para que tais factos fossem averiguados e se evitassem mortes futuras.
Mesmo que se entenda que o réu tinha o dever de os comunicar ao público, então tinha a obrigação de os noticiar sem denegrir e ofender, de forma directa e ostensiva, o crédito profissional e o bom nome dos autores, enquanto membros do Conselho de Administração do HDE, bastando-lhe informar que tinham falecido oito doentes enquanto recebiam tratamento de homidiálise no HDE, e que isso, eventualmente, podia estar relacionado com a existência de equipamento avariado.
Tudo noticiado com contenção, sem imputações ou juízos de valor peremptórios sobre a conduta da corpo administrativo do Hospital e sem afirmações categóricas sobre a relação de causalidade entre a incompetência e a incúria dos membros da administração e a morte dos doentes, que afinal não resultaram provados.
Consequentemente, em face de tudo o que ficou exposto, é de concluir pela ilicitude e pela culpa do réu, não se mostrando violado o segmento constitucional da dimensão e valoração da liberdade de expressão (art. 37, nºs 1 e 2, da C.R.P.), nem o método de superação de conflitos de direitos fundamentais (art. 18 da C.R.P.).
Justifica-se, pois, a obrigação de indemnizar.

Os autos não evidenciam má fé, processual ou substancial, do recorrente, no presente recurso.

Termos em que negam a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 27 de Maio de 2004
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce Leão