Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
| Relator: | RUI MACHADO E MOURA | ||
| Descritores: | NULIDADE PROCESSUAL NULIDADE DE ACÓRDÃO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO DECISÃO SURPRESA CONHECIMENTO OFICIOSO CONHECIMENTO EX NOVO QUESTÃO NOVA VOTO DE VENCIDO BAIXA DO PROCESSO TRIBUNAL RECORRIDO ADMISSIBILIDADE | ||
| Apenso: | | ||
| Data do Acordão: | 10/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA ANULADO ACÓRDÃO RECORRIDO DETERMINADO O ENVIO À RELAÇÃO A VOTO VENCIDO | ||
| Sumário : | I- A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal, o que quer dizer que os juízes que pretendam basear o seu acórdão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, devem, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição. II- Se porventura não o fizerem violam o princípio do contraditório a que alude o nº 3 do art.3º do C.P.C., violação essa que, sendo invocada pelas partes, constitui nulidade processual, a qual deve ser conhecida pelo STJ e, por via disso, declarar-se a nulidade do acórdão recorrido, ao abrigo do disposto nos arts.195º e 615º nº1 alínea d), ambos do C.P.C. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: AA instaurou acção declarativa, com processo comum, contra BB, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe: a) A quantia de 14 392,14€ de indemnização por danos emergentes; b) As quantias de 36 190,36€ e de 20 000€ de indemnização por lucros cessantes; c) A quantia de 10 000€ de indemnização por danos não patrimoniais. Alegou, em síntese, ter acordado com a R. a criação de uma empresa na área de produtos relacionados com o conceito de comércio justo, criando para o efeito a A. uma base de dados de 700 marcas; candidataram-se a medida de apoio do IAPMEI no âmbito do qual foram desenvolvendo o projecto comum denominado Fair Bazaar, auferindo, cada uma, bolsa mensal de 691,70€. Foram participando em programas de aprendizagem no terreno. De modo a poder concentrar-se plenamente no projecto comum, a A. despediu-se da empresa em que trabalhava e onde auferia 1 431,61€ mensais. A. e R. decidiram comercializar os produtos em loja experimental, tendo diversos fornecedores entregado, para o efeito, produtos à consignação, correspondendo a mais de 60 marcas e 1 000 produtos; esses fornecedores pagavam um fee para estarem presentes na Greenfest, o que possibilitou à A. e à R. arrecadarem, a esse título, 3 000€ e, com a venda dos produtos, em 4 dias, tiveram um lucro de 5 000€, o que levou a A. e a R. a decidirem montar uma loja física; para o efeito arrendaram um espaço, adquiriram computadores e outros materiais, despendendo cada uma, A. e R., 2 500€. Porque A. e R. ainda não haviam constituído uma sociedade, no contrato de arrendamento do espaço figurou como inquilina a sociedade VUMBA cujos sócios são o pai e tio da R.; sendo também através desta sociedade, VUMBA, que foram facturadas todas as vendas cujos resultados foram depositados numa conta bancária de que era titular a referida VUMBA. A exploração da loja física revelou-se de grande sucesso comercial; contrataram duas colaboradoras que passaram a assegurar o funcionamento diário da loja física. As vendas, entre Novembro de 2017 e Maio de 2018, acenderam a 90 000€ e, pelos fees das empresas fornecedoras, mais de 10 000€. Foi acordado entre A. e R. que constituíssem uma sociedade comercial em que cada uma teria o capital de 50%. Porém, a R., através do seu advogado, pretendeu seguir, somente ela, com o negócio e que a A. o abandonasse de imediato até ao dia 28/04/2018; nessa data a R. retirou todos os acessos de que a A. dispunha no Fair Bazaar. Posteriormente, a R. veio a constituir, sozinha, a sociedade Fair Bazaar e, posteriormente, procedeu a um aumento de capital com entreda de três novos sócios. Na sequência da não inclusão da A. na sociedade, teve esta um prejuízo decorrente da circunstância de se ter despedido da sua empregadora, de 11 742,14€ correspondente à diferença que auferiria na sua empregadora e o que auferiu da bolsa do IAPMEI, acrescida do prémio atribuído pelo IAPMEI, de 1 000€, acrescido ainda do vencimento acordado de 1 100€/mês que, entre 01/04/2018 e 15/05/2028 perfaz 1 650€, tudo num total de 14 392,14€. Os lucros esperados na loja física seriam de 72 380,72€, cabendo à A. a quantia de 36 190,36€. A este valor acrescem os lucros das vendas online que se estima serem de 20 000€/ano. A título de danos não patrimoniais, pelo sofrimento, frustração e humilhação pretende uma indemnização de 10 000€. Invoca, para fundar a sua pretensão indemnizatória, a violação, pela R., da expectativa e confiança que tinha na prossecução do negócio do Fair Bazzar, no rompimento da relação negocial, violação do dever de lealdade e infracção do disposto no artº 227º do CC. Devidamente citada para o efeito veio a R. apresentar a sua contestação, na qual impugna, no essencial, a factualidade invocada pela A. Afirma que o projecto lhe pertencia e pediu o registo da Fair Bazaar como marca europeia bem como o registo nacional da mesma marca em seu nome. A A. desrespeitou, em público, um fornecedor da Fair Bazaar. As relações entre a A. e a R. degradaram-se, colocando em causa que o projecto pudesse prossegui com ambas; por isso, acordaram que o projecto continuaria somente com a R., sendo que a A. foi adiando a formalização por escrito do acordo alcançado. Em 27/04/2018 a A. passou a exercer funções noutra Startup auferindo rendimentos por esse trabalho. E, em 15/05/2018, a A. comunicou formalmente à R. a cessação da relação profissional entre ambas. Foi elaborado despacho saneador, com indicação do objecto do pedido e temas de prova e, de seguida, realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença nos seguintes termos: - “Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Ré a pagar à Autora: a) O valor correspondente ao prémio no valor de 1.000,00 euros e à remuneração devida à Autora no mês de Abril e metade do mês de Maio de 2018, no valor unitário ilíquido de 1.100,00 euros, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento. b) O valor correspondente à margem de lucro projectada da empresa Fair Bazar à data de 15 de Maio de 2018, para o período de um ano, quantia essa a apurar em incidente de liquidação de sentença, até ao valor máximo de 56.190,36 (cinquenta e seis mil, cento e noventa euros e trinta e seis cêntimos) acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento; c) a quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros) a título de compensação devida pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, desde a presente data, até efetivo e integral pagamento; Absolvo a Ré do mais peticionado.” Inconformada com tal decisão dela apelou a R. para a Relação de Lisboa que, por acórdão datado de 26/9/2024, revogou parcialmente a sentença e condenou a R. a pagar à A. o valor correspondente a metade dos lucros líquidos da actividade da Fair Bazaar, na loja física e na loja online, mas apenas no período entre 15/05/2018 a 31/12/2018, a apurar em incidente de liquidação de sentença, até ao valor máximo de 56.190,36, sendo que, em tudo o mais, se manteve a sentença proferida na 1ª instância. Veio agora a A., mostrando-se inconformada, interpor recurso de revista para o STJ, pedindo a revogação do acórdão da Relação supra referido e a repristinação da sentença proferida na 1ª instância - somente quanto à redução do período temporal a que deve respeitar a indemnização correspondente à margem de lucro da empresa Fair Bazaar (a apurar em incidente de liquidação até ao valor máximo de € 56 190,36). Ora, tendo em conta o valor da causa (não sendo possível apurar, por ora, o valor da sucumbência), a legitimidade da recorrente, a natureza e o conteúdo do acórdão recorrido e, bem assim, a tempestividade da impugnação, conclui-se pela admissibilidade do recurso de revista apresentado, nos termos do disposto nos arts. 629º nº 1, parte final, 631º nº 1, 671º nº 1 e 674º nº 1 alíneas a) e b), todos do C.P.C. Para o efeito apresentou a A. as suas alegações de recurso, terminando as mesmas com as seguintes conclusões: 1. A Revista deve ser admitida porque recaí sobre Acórdão do Tribunal da Relação, proferido sobre decisão da 1ª Instância que conheceu do mérito da causa e pôs termo ao processo, (ii) inexiste, quanto ao segmento decisório em crise, dupla conforme, nos termos do nº 3 do art.671º do CPC e (iii) verificam-se os pressupostos gerais de acesso ao terceiro grau de jurisdição. 2. Ao adoptar a tese da exoneração de sócio de uma sociedade civil, para determinação da base temporal sobre a qual será calculada a indemnização que a Recorrida foi condenada a pagar à Recorrente, que é totalmente nova face aos argumentos trazidos a juízo e à decisão da 1ª Instância, sem antes ter dado às partes a possibilidade de sobre a mesma se pronunciarem, o Acórdão recorrido violou o principio do contraditório, sendo, nessa parte, uma decisão surpresa e nulo nos termos dos art. 3º, nº 3 e 195º do Código Civil. 3. É Decisão-surpresa aquela solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever que fosse proferida. Como foi o caso. 4. O Tribunal da Relação errou ao decidir, com os fundamentos com que o fez, equiparar a comunicação da Recorrente à Recorrida de 15/05/2018 a uma declaração de exoneração de um sócio de uma sociedade civil e, consequentemente, limitar o período indemnizatório a entre 15/5/2028 e 31/12/2018, em aplicação do art. 1002º, nº 3 do CC (ex vi art. 36º, nº 2 do CSC). 5. Aquela incorrecta aplicação do Direito resulta totalmente incoerente e manifestamente incompatível com a correcção com que foram definitivamente fixados os factos provados pois que estes, sem margem para dúvidas, direccionam o interprete para um afastamento compulsivo da Recorrente pela Recorrida do negócio do Fair Bazaar, ao passo que a aplicação do Direito se move, não nos limites de um afastamento exógeno à vontade desta, mas antes como se de um querer da mesma se tratasse. 6. O Tribunal a quo manteve nos factos provados todos quantos são demonstrativos de que a Recorrente foi excluída do negócio por acto ilícito da Recorrida, e chegou a afirmar que: “Pois bem, aquele trecho de facto que a ré pretende ver eliminado traduz, a final, o motivo da interpelação: irreversibilidade do seu afastamento da Fair Bazaar e não uma desvinculação ad nutum por banda da autora, como a ré pretende fazer crer na sua contestação”. 7. Todavia, num salto coperniciano, desdisse-se quanto enunciou que “a comunicação da autora, de 15/05/2018 (doc. 29 da p.i.) – não obstante não ter sido uma saída inteiramente voluntária, ad libitum e ad nutum deve ser entendida como uma declaração de exoneração.” 8. Não podem existir sufismos: a saída não foi, nem inteiramente nem não inteiramente, voluntária. A Recorrente foi simplesmente excluída contra a sua vontade e de forma ilícita (em incumprimento contratual). 9. Sendo conhecidas as dificuldades da aplicação da teoria da diferença aos lucros cessantes de negócios de execução continuada e futura cuja duração não seja pré-determinada, abruptamente incumpridos pela outra parte, deveria, para o efeito, o Tribunal recorrido ter ponderado: a) Que, como é das regras da experiência comum, uma sociedade e um negócio são criados para durar por tempo indefinido, mas necessariamente longo; b) Que, continuasse este, a Recorrente teria direito aos lucros por todo o tempo em que o mesmo durasse; c) Que, não podendo ser estimada essa duração, nunca a mesma seria inferior a 5 anos pois ninguém constitui uma sociedade ou instala um negócio para durar por menos tempo. 10. Foi nesse circunstancialismo que, não obstante a duração previsível do negócio ser sempre superior a 5 anos, por conservadorismo, a Recorrente limitou os lucros cessantes ao período de 1 ano e, numa estimativa prudente, os calculou, para esse período temporal, em valores não inferiores a € 72.380,72. 11. A aplicação do Direito à matéria de facto processualmente adquirida, verificados que foram os demais requisitos da responsabilidade civil, consiste na definição do modo de cálculo do dano da Recorrente, com a extensão correctamente definida da indemnização pelo interesse contratual positivo que, o mesmo é dizer convocando a necessidade de aferir quais os danos que a Recorrente sofreu por ter celebrado o contrato, também apelidados de danos de cumprimento. 12. De acordo com os arts. 562º e 564º do Código Civil perante o enquadramento factual fixado e a determinação que a indemnização abrange o interesse contratual positivo, na tarefa de achar a base de cálculo dos danos que a Recorrente, o Tribunal a quo deveria ter-se movido no âmbito da equidade dentro daquilo que lhe não fosse possível determinar (o período referencial a considerar). 13. Tendo sido desenvolvido um negócio, projectada e comprometida a criação entre as partes de uma sociedade comercial destinada à obtenção de lucro, o dano corresponderá aos lucros que a Recorrente deixou de auferir com a exploração do negócio e, no seu cálculo, ou na definição da sua base de cálculo, devem concorrer as circunstâncias de o afastamento ter sido alheio à vontade da Recorrente, resultar de facto ilícito da Recorrida e de esta se ter apropriado unicamente para si de um negócio criado por ambas. 14. O instituto da exoneração de um sócio numa sociedade civil que rege o acto voluntário de um sócio, ou seja, o direito do sócio de se libertar de um contrato de sociedade e que corresponde à expressão de uma sua vontade libertadora/exonerativa, não é passível de ser aplicado a casos em que uma das partes é excluída de um negócio por vontade unilateral e ilícita da outra 15. O decidido não afronta apenas a factualidade consumada. Viola ainda as regras interpretativas que obrigam a sustentar que tanto maior será o quantum indemnizatório, ou a sua base, quanto maior for a intervenção e, sendo o caso, a ilicitude do agente na produção do dano. 16. Para o efeito, em abstracto, deveria ter sido ponderados, pelo menos, três hipóteses sistemáticas (i) o dano decorre de facto livre do lesado ainda que influenciado pela conduta do lesante; (ii) o dano ocorre por facto lícito do lesante e (iii) o dano ocorre por facto ilícito do lesante. 17. Não podia o Tribunal recorrido ter escolhido a primeira das hipóteses elencadas, aquela em que o dano se produz por iniciativa do lesado ainda que influenciada pelo lesante, mas antes teria, ao percorrer o percurso que o levaria à determinação da base de cálculo temporal da indemnização, de ponderar os casos em que o dano ocorre por facto lícito do agente e, principalmente, e fixá-lo tendo em conta que decorreu de facto ilícito do lesante. 18. Mesmo já para os casos de cessação unilateral lícita de contratos duradouros como, por exemplo, o mandato ou a agência, a lei fornece parâmetros indicativos quanto ao período diferencial a considerar para cálculo da indemnização à parte que o vê cessado por iniciativa da outra. 19. No caso da agência, com semelhanças com o presente por, além do mais, num e noutro a Recorrente ter trazido aviamento para o negócio comum e a Recorrida dele ter passado a beneficiar em exclusivo, a lei define que a compensação equivalerá a 1 ano das remunerações que a parte lesada auferiria não fora a cessação. 20. Mesmo no patamar da cessação licita do contrato, que manifestamente não foi o caso, seria exigível divisar indemnização que tomasse por base período temporal superior à que foi conferida pelo Tribunal recorrido. 21. O subsídio interpretativo que advém dos regimes da cessação lícita daqueles dois contratos, obrigava a que, na aplicação da equidade a casos de cessação ilícita, também em razão da ilicitude, que justifica uma protecção de maior intensidade ao contraente lesado, o Tribunal a quo tivesse considerado um plus quanto ao período diferencial a considerar para cálculo da indemnização por lucros cessantes. 22. Tanto mais que a Recorrente, que se tinha despedido do emprego que tinha na Indie Campers para abraçar o negócio e exercia apenas aquela actividade, quando viu a sua participação abruptamente cessada de um dia para o outro ficou desempregada e sem auferir quaisquer rendimentos. 23. Era seriamente previsível que o negócio conjunto perdurasse por tempo indeterminado mas necessariamente longo e, consequentemente, a Recorrente auferisse dos lucros do mesmo por período bem superior ao 1 ano peticionado. 24. Errou, pois, o Tribunal a quo ao aplicar o instituto da exoneração e, em consequência, ao reduzir o período temporal a que deve respeitar a indemnização correspondente ao lucro do Fair Bazaar a que a Recorrente tem direito. 25. E violou, com isso, entre outros, o disposto nos artigos 4º, 562º, 564º, 566º e 1002º do Código Civil. 26. Feito que foi o “julgamento dentro do julgamento”, ou seja, tendo sido definitivamente fixado pelas instâncias que a Recorrente sofreu danos decorrentes de ter sido afastada do negócio, única actividade profissional que exercia à data, ficando desempregada e sem rendimentos, que a Recorrida enriqueceu pela apropriação para si do criado em conjunto com a Recorrente, que essa apropriação lhe permitiu recolher apenas para si própria os ganhos do negócio ao longo do tempo que, de outra forma pertenceriam também à Recorrente, bem como a ilicitude da conduta da Recorrida, o justo recurso à equidade obrigará a que seja concedida à Recorrente a indemnização nos termos por ela peticionada de forma, aliás, conservadora. 27. Termos em que, dando provimento ao presente Recurso, revogando o Acórdão na parte que ora recorre e substituindo-o por Douto Acórdão que reponha a decisão da 1ª Instância e condene a Recorrida a pagar à Recorrente, o valor correspondente à margem de lucro projectada da empresa Fair Bazar à data de 15 de Maio de 2018, para o período de um ano, quantia essa a apurar em incidente de liquidação de sentença, até ao valor máximo de 56.190,36 (cinquenta e seis mil, cento e noventa euros e trinta e seis cêntimos) acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, farão, como sempre, recta e sã Justiça. Pela R. foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção do acórdão recorrido. Foram colhidos os vistos junto dos Ex.mos Juízes Adjuntos. Cumpre apreciar e decidir: Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º nº 1 do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem. Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (art. 635º nº3 do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº4 do mesmo art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso. No caso em apreço emerge das conclusões do recurso apresentadas pela A., aqui recorrente, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões: 1º) Saber se o acórdão recorrido - ao adoptar a tese da data da “exoneração de sócio” de uma sociedade, para determinação da base temporal sobre a qual será calculada a indemnização que a R. foi condenada a pagar à A. (cfr. art.1002º nº 3 do Cód. Civil), ao invés de ter feito uso do recurso à equidade para o cálculo de tal indemnização ( cfr. art.566º nº3 do Cód. Civil) - violou o principio do contraditório, sendo, nessa parte, uma decisão surpresa e, por isso, sempre o referido aresto será nulo por força do disposto nos arts. 3º, nº 3 e 195º do Cód. Civil e 615º nº1 alínea d) do C.P.C.; 2º) Se assim não se entender, saber a indemnização não deve ser calculada tendo por base o valor correspondente à margem de lucro projectada da empresa Fair Bazar à data de 15 de Maio de 2018 (“exoneração de sócio” da A.) e terminando nesse ano civil (31/12//2018), mas antes tal indemnização ser calculada com base na equidade e aumentada para o período de um ano, a contar da referida data de 15 de Maio de 2018. Antes de nos pronunciarmos sobre a questão supra referida importa ter presente a factualidade que foi dada como provada nas instâncias, a qual, de imediato, passamos a transcrever: 1. A Autora tem 27 anos de idade, é de nacionalidade romena, licenciada em Economia, Finanças e Gestão pela Universidade de Bocconi em Milão, com um mestrado em Gestão Internacional (CEMS Master’s in International Management) pela Universidade Nova – School of Businees & Economics e pelo ESADE Businees School de Barcelona. 2. A Ré tem 31 anos de idade, é de nacionalidade portuguesa, licenciada em Gestão de Empresas pela Universidade Nova – School of Businees & Economics com uma pós-graduação em Gestão pela Universidade Católica de Lisboa – School of Businees & Economics. 3. Quando, entre Junho e Setembro de 2015, a Autora fazia o estágio curricular que era parte do Mestrado da Nova na empresa Gleam, uma Start-up promovida pela Faber Ventures, conheceu ali a Ré que trabalhava no respectivo departamento de Marketing em que a Autora colaborou durante o tempo em que lá esteve. 4. A convivência entre duas pessoas no mesmo departamento favoreceu a empatia e criou amizade entre ambas. 5. Em Setembro de 2015, a Autora foi realizar o primeiro semestre do último ano do Mestrado em Barcelona, donde regressou a Portugal para o concluir em Janeiro de 2016, tendo nessa altura vindo trabalhar para a empresa Indie Campers, S.A. como Responsável de Marketing numa altura em que a empresa que estava no início, cresceu e se internacionalizou. 6. Em Julho de 2016, Autora e Ré voltaram a encontrar-se, tendo a Ré falado com a Autora sobre a sua ideia de criar uma empresa no mundo do retail e moda. 7. Dessa conversa e contactos posteriores surgiu o projecto de criarem em conjunto e em comunhão de esforços, trabalhos e capitais uma actividade empresarial consistente na venda online de diversos produtos e objectos com os conceitos de comércio justo, tal como “Eco-friendly”, “Vegan”, “Bio”, “Zero Desperdício” e com características relacionadas ou relativas a mudanças climáticas, movimentos ambientais, capacitação das mulheres, com vista a repartirem, em partes iguais, os respectivos lucros, negócio que operaria sob a gíria Fair Bazaar. 8. A partir dessa data, Autora e Ré trabalharam arduamente na definição e elaboração da ideia de negócio, da proposta de valor, do mercado alvo e do plano de negócios. 9. A Autora tomou a seu cargo a definição do conceito de negócio e da proposta de valor, tendo para o efeito realizado aprofundado estudo sobre a indústria de produtos sustentáveis, do negócio e do mercado potencial, analisado mercados, tendências e concorrência. 10. Tal trabalho da Autora permitiu, entre outros, concluir que os consumidores do mercado alvo tinham dificuldades em aceder aos produtos desejados, especialmente vestuário, tendo a Autora, para colmatar tal lacuna, construído uma base de dados com mais de 700 marcas que poderiam ser fornecedores do negócio no futuro para um universo de mercado potencial de mais de 50 milhões de pessoas. 11. Entre 7 e 9 de Outubro de 2016, Autora e Ré participaram num programa de aprendizagem (Bootcamp) promovido pelo IES- Instituto de Empreendedorismo Social com o apoio do INSEAD durante o qual tiveram a oportunidade de desenvolver a ideia de negócio, testar alguns dos dados já recolhidos e, no final, fazerem uma apresentação perante um júri de que receberam o respectivo feedback. 12. A participação nesse programa permitiu que ambas tivessem acesso a um programa de mentoria do IES – Instituto de Empreendedorismo Social durante 6 meses, a partir de Abril de 2017, sob a supervisão de CC (Community Manager & Impact Business Developer do IES) e sob a mentoria de DD (Value Chain & Logistics Expert). 13. Em finais de 2016, a Autora e a Ré candidataram-se ao Sistema de Apoio a Acções Colectivas – Promoção do Espírito Empresarial - Medida Startup up Voucher promovida pelo IAPMEI e destinada a promover o desenvolvimento de projectos empresariais por parte de jovens entre os 18 e os 35 anos, através de um conjunto de tipologias de apoio especificas, articuladas entre si e disponibilizadas ao longo do desenvolvimento do projecto empresarial nos termos do Regulamento anexo ao Despacho n.º 12777/2016 do Secretário de Estado da Indústria - Ministério da Economia Publicado no DR II Série de 24/10/2016 – (Projecto número 352 denominado Fair Bazaar) (doravante, a “Medida Startup up Voucher”). 14. Assim, durante um ano e ao abrigo da aludida medida, foram dando corpo ao seu projecto comum denominado Fair Bazaar, auferindo cada uma de uma bolsa mensal líquida de € 691,70 e neste, tendo em conta as fases de desenvolvimento do projecto empresarial e criação da empresa, receberam mentoria, assistência técnica no desenvolvimento económico e financeiro, de marketing e de criação de uma plataforma digital de vendas e apoio da incubadora empresarial Start-up Lisboa (http://www.startuplisboa.com/), em suma: a) No desenvolvimento da ideia, do conhecimento e/ou o desenvolvimento da aplicação de resultados de I&D, na produção de novos produtos e serviços; b) No desenvolvimento da tecnologia e do modelo de negócio; c) No desenvolvimento do plano de negócios e criação da empresa. 15. No desenvolvimento dessa medida, a equipa formada por Autora e Ré, além do trabalho diário no projecto, reunia-se mensalmente com a mentora do projecto (EE), apresentava pelo menos uma vez por mês um relatório a dar conta do trabalho realizado e da progressão do projecto, tendo em conta o calendário e objectivos estabelecidos, sendo que aquela mentora tinha também de, no mesmo período, elaborar um relatório sobre a evolução do trabalho da equipa e submetê-lo à Start-up Voucher. 16. Ainda no âmbito da medida Start-up Voucher: a) Em Maio de 2017, Autora e Ré organizaram um documentário denominado True Cost, para um evento que teve grande visibilidade pública com mais de 150 participantes e cobertura mediática, e que foi importante para dar a conhecer ao público o negócio Fair Bazaar e sensibilizar a comunidade sustentável; b) Entre Junho e Julho de 2017, sob a gestão da mentora EE, Autora e Ré participaram durante 6 semanas num novo programa de aprendizagem no terreno (Bootcamp) promovido pela Academia do Comércio em conjunto com a Start-up Lisboa e a SBI Consulting destinado a ser uma aceleradora de projectos dedicada ao comercio electrónico e de retalho e que foi também importante para refinar o conceito de negócio http://www.startuplisboa.com/startuplisboanews/academia-de-comrcio-abre candidaturas- paraprograma-de-aceleracao-de-projetos-de-comercio-em-lisboa). 17. De modo a poder concentrar-se plenamente no projecto comum, a Autora despediu-se, com efeitos a 31 de Março de 2017, do anterior emprego que tinha na empresa Indie Campers, S.A., onde, além de outros benefícios como seguro de saúde e acesso a ginásio, auferia € 1.046.57, pagos em 14 mensalidades acrescido de subsídio de alimentação no valor mensal de 159,06€ e de ajudas de custo relativas a Km que em março de 2017 ascenderam a 392,25. 18. A medida previa que cada uma das bolseiras, Autora e Ré, no final estivessem aptas a criar em conjunto uma empresa para a qual o IAPMEI, cumprido que fosse com sucesso o programa, contribuiria com o denominado “prémio de concretização” no valor de € 2.000, destinado à realização do capital social da empresa a constituir e a ser pago em data próxima à constituição da mesma. 19. Quando já tinham contactos com um número significativo de fabricantes, comercializadores e fornecedores dos produtos e artigos que projectavam vir a comercializar online, surgiu a oportunidade de disporem de um espaço de 200m2 num evento de economia e produtos sustentáveis a realizar no Estoril entre 28 de Setembro e 1 de Outubro de 2017, denominado Greenfest (http://bi-green.pt/greenfest-2017/). 20. Apesar de originalmente o seu projecto contemplar apenas as vendas online, depois de terem obtido incentivo dos mentores EE e FF, Autora e Ré decidiram testar o conceito de negócio e os produtos que projectavam vir a comercializar, durante o dito evento, numa loja experimental – também conhecida por “pop-up store”. 21. Conseguiram que os fabricantes e fornecedores em geral dos artigos e produtos que projectavam vender online lhes entregassem à consignação quantidades suficientes dos mesmos para dar corpo à “pop-up store” de vendas no Greenfest, tendo conseguido contratos com mais de 60 marcas para serem comercializadas naquele evento e cerca de 1000 produtos. 22. As marcas, além de lhes entregarem os artigos à consignação, pagavam um fee para estarem presentes no Greenfest, o que permitiu à Autora e à Ré arrecadarem a esse título, e ainda antes do evento começar, mais de € 3.000 (três mil euros). 23. Com alguma surpresa para ambas, a sua participação no Greenfest redundou num enorme sucesso, com o público que ali acorreu a ficar entusiasmado com a qualidade e diferenciação dos artigos e produtos colocados à venda por Autora e Ré, o que lhes permitiu que, nesses 4 dias, tivessem obtido uma facturação que não imaginavam, e que se saldou num lucro de cerca de 4.500,00 € (quatro mil e quinhentos euros). 24. Motivadas pelo sucesso obtido no Greenfest e até porque os clientes lhes perguntavam insistentemente onde podiam continuar a comprar tais produtos, e atendendo ao facto de (i) ainda disporem de alguns artigos em stock que lhes haviam sido entregues à consignação para o Greenfest, e cujo reenvio significaria um custo acrescido para os fornecedores, (ii) o site de vendas online ainda estar em desenvolvimento, não podendo através dele serem efetuadas vendas nem geradas receitas, e (iii) se aproximar o período do Natal, Autora e Ré decidiram por “mãos à obra” e montar uma loja física. 25. Para tal, a Autora visitou diversas localizações possíveis para a loja na cidade de Lisboa, até que decidiram tomar a utilização de um espaço com 42m numa prestigiada galeria comercial denominada Embaixada, sita no Largo ... . 26. Para pagar os 3 meses de renda adiantada exigidos, remodelar o espaço, adquirir móveis, computares, software de vendas, estacionário em geral, entre outros, utilizaram os lucros que haviam obtido no Greenfest. 27. Dado o carácter, ao início, experimental desta loja física e à semelhança do que havia sucedido no Greenfest, como entre Autora e Ré não havia ainda sido constituída a sociedade comercial projectada, os contratos de arrendamento e de fornecimento de mercadorias, produtos e serviços, de trabalho e outros foram celebrados em nome de uma sociedade comercial por quotas com a firma “VUMBA – Projectos e Investimentos Financeiros, Lda.” (doravante, a “VUMBA”), cujos únicos sócios são GG e HH, respetivamente, pai e tio da Ré, sendo também através dessa sociedade que foram faturadas todas as vendas efetuadas, quer no Greenfest quer na loja da Galeria Embaixada em Lisboa, pelo menos até meados de Maio de 2018 e depositados os respectivos valores e processados os respectivos pagamento através da conta bancária nº .........71 aberta junto do Banco Comercial Português, S.A. que apesar de titulada pela Vumba esteve exclusivamente afecta à actividade do Fair Bazaar. 28. Para o efeito, a VUMBA aditou ao seu objeto social o “comércio de todo o tipo de produtos para consumo, perecíveis ou não, nomeadamente roupas para pessoas ou animais de companhia, calçado, objectos de decoração e produtos de beleza, incluindo comércio através de plataformas electrónicas e comunicações de dados por via electrónica, serviços de publicidade e marketing, realização de eventos, cursos e seminários”. 29. Pela sua novidade, e dado o interesse crescente dos consumidores pelo sector sustentável em que actua, o negócio empreendido entre Autora e Ré despertou vivo interesse na comunicação social, com reportagens no Observador, Público, Negócios & Franchising e outros títulos. 30. Tendo Autora e Ré tido diversas intervenções públicas de divulgação do projecto e da loja. 31. A exploração da loja física na galeria Embaixada em Lisboa veio a revelar-se um enorme sucesso comercial e almejou uma invejável notoriedade pública. 32. Autora e Ré acordaram que o sucesso do negócio e a necessidade de se concentrarem na finalização do desenvolvimento do negócio de vendas online justificava a contratação de duas colaboradoras para a loja. 33. Foi assim que em finais de Novembro de 2017 e Janeiro de 2018, respetivamente, foram contratadas as funcionárias II e JJ, que passaram a assegurar o funcionamento diário do espaço comercial. 34. Isto permitiu que a Autora se pudesse dedicar mais aos conceitos de negócio e ao contexto de loja, contratos fornecedores, à comunicação e ao marketing, ao passo que a Ré, até pelo domínio da língua portuguesa, se concentrou nas áreas jurídica, financeira e administrativa do negócio. 35. O resultado das vendas efetuadas na loja entre Novembro de 2017 e Maio de 2018 ascendeu a mais de € 90.000,00 (noventa mil euros). 36. Pelo labor da Autora e em resultado do bom relacionamento desta com os fornecedores, não só estes entregavam e entregam os produtos à consignação, como pagam ao Fair Bazaar uma taxa (fee), por terem os seus produtos ali à venda, de € 50 e € 100 acrescido de IVA por mês cada, o que fez com que entre aquelas datas, o Fair Bazaar tenha recebido a título de fees, mais de € 10.000,00. 37. O apoio da Medida Start Up Voucher terminou em 31 de Março de 2018. 38. No cumprimento do respectivo regulamento, Autora e Ré elaboraram e entregaram o respectivo relatório final, redigido em Português pela Ré, atento ser esta a sua língua nativa, mas para que ambas colaboraram. 39. O acordado entre Autora e Ré era que, tão pronto terminasse a Medida Start up Voucher, constituiriam uma sociedade comercial em que ambas participariam em 50%. 40. Para o efeito, a própria Ré informou-se junto do IAPMEI sobre quando a sociedade poderia ser constituída e, perante a resposta daquele Instituto, comunicou à Autora, em 28 de Fevereiro de 2018, que podiam criar a sociedade comercial logo no dia 1 de Abril de 2018. 41. Em 2 de Abril de 2018, a Ré respondeu a um email da Autora de 29 de Março de 2018 – em que esta faz um ponto de situação sobre a evolução do negócio –, pronunciando-se apenas sobre o quarto e último ponto, a proposta de fixação do “salário” da Autora no valor de 1.500,00 euros (sendo os restantes, a constituição da sociedade, a transferência das responsabilidades da Autora no período da licença de maternidade e o alinhamento de visões e de estratégia), explicando porque entendia que este fosse fixado em € 1.100 mensais líquidos, conforme anteriormente acordado, dizendo preferir tratar dos restantes tópicos após o nascimento do seu filho. 42. Invocando o aproximar do termo da sua gestação, a Ré havia ajustado com a Autora que esta devia falar com o advogado que lhes tinha dado assistência nalguns assuntos jurídicos, o Sr. Dr. KK, para resolver a situação o mais brevemente possível, como era o declarado interesse de ambas. 43. Foi assim que a Autora se dirigiu ao escritório daquele ilustre causídico no dia 13 de Abril de 2018. 44. Logo no início da reunião, aquele distinto advogado comunicou à Autora que a Ré havia decidido prosseguir sozinha com o negócio do Fair Bazaar e pretendia que a Autora abandonasse o mesmo de imediato. 45. Sem explicar as razões da decisão que estava encarregue pela Ré de transmitir à Autora, o Sr. Dr. KK disse à Autora que estava ali numa posição de mediador, por forma a encontrar uma solução equilibrada entre Autora e Ré, que pusesse termo ao negócio conjunto. 46. Nessa reunião o Sr. Dr. KK propôs-lhe que aceitasse a sua mediação, define um prazo – 28 de Abril de 2018 –, até ao qual a Autora devia aceitar a mediação, sendo a sua saída do negócio uma decisão irreversível, e a outra alternativa a litigância. 47. No final da tarde do dia anterior, a Autora enviou uma comunicação à Ré no pressuposto da continuidade da sua relação negocial. 48. Em 16 de Março de 2018 o Dr KK tinha sugerido a ambas, a pedido da Ré, a redacção do objecto social e os Códigos de Actividade Económica (CAE) para a sociedade comercial a formalizar entre Autora e Ré. 49. Por achar que tudo não passaria de um mal-entendido ou de uma decisão imponderada e destemperada da Ré, e que a constituição da projectada sociedade comercial com a Ré ainda estava em condições de ir avante, bem assim, não lhe tendo sido apresentada qualquer proposta, entendeu não dever prosseguir com a mediação, para a qual não dispunha de qualquer apoio jurídico. 50. A partir do dia 28 de Abril de 2018, a Ré (ou alguém por ela) retirou os acessos da Autora aos meios de trabalho de que esta dispunha no Fair Bazaar, tais como (i) o email ...@thefairbazaar.com, (ii) a conta de Instagram, (iii) a conta de acesso ao website onde estava a ser construída a plataforma de vendas online do Fair Bazaar – Shopify, (iv) a conta bancária dedicada ao negócio, e (v) aos relatórios de compras, vendas, demais custos e proveitos bem como à situação financeira do Fair Bazaar que foram retirados da plataforma Google Drive. 51. A colaboradora II afirmou falsamente via Facebook que a Autora não poderia intervir num evento sobre o negócio por estar fora do país. 52. Servindo-se do facto do Fair Bazaar estar incubado numa empresa da sua família, a Ré excluiu a Autora do negócio que ambas haviam construído, e passou a geri-lo e explorá-lo por si própria e em seu benefício exclusivo. 53. Percebendo que tal decisão era irreversível e que nada podia fazer para contrariar a posição da Ré, não restou à Autora outra alternativa a não ser notificar a Ré para a indemnizar das perdas e danos sofridos e fornecer-lhe prova cabal de que o seu nome ou os meios electrónicos e outros que a identificavam com o negócio não estavam a ser por si abusivamente utilizados 54. Conferiu-lhe um prazo para o efeito, até ao dia 31 de Maio de 2018. 55. A Ré nada respondeu, e não procedeu nem ao pagamento de qualquer indemnização nem à apresentação de qualquer evidência de não estar a usar o nome da Autora ou os meios que a identificavam com o negócio. 56. Posteriormente, veio a constituir a projectada sociedade sozinha, no dia 27 de setembro de 2018, sob a firma “FAIR BAZAAR – Plataforma Sustentável, Unipessoal Lda”., com o capital social de € 2.000,00 (dois mil euros) e com o objecto social que havia sido acrescentado à Vumba. 57. Já no passado dia 27 de Maio de 2019, procedeu a um aumento do capital, através da entrada de três novos sócios, LL, GG (pai da Ré) e a sociedade por quotas “LXMKU – Lisbon Marketing United, Lda.” 58. A Autora deixou o seu emprego na Indie Campers na expetativa da formalização da sociedade e continuação do negócio com a Ré, o que só não aconteceu por imposição unilateral da Ré. 59. Entre 01 de Abril de 2017 e 31 de Março de 2018, recebeu do IAPMEI, no âmbito da medida Start Up Voucher, uma bolsa paga em 12 mensalidades de € 691,70 cada (num total anual de € 8.300,40). 60. Por a Ré ter constituído a sociedade Fair Bazaar sozinha, excluindo a Autora da mesma, as partes deixaram de auferir o prémio de concretização que o IAPMEI lhe atribuiria no termo da medida Start up Voucher, e aquando da formalização da sociedade comercial entre ambas no valor de € 2.000. 61. Apesar de a 1ª Ré ter acertado com a Autora que ambas receberiam uma remuneração mensal líquida a partir de 1 de Abril de 2018 (após o fim do programa do IAPMEI) no valor de € 1.100, a verdade é que jamais este montante lhe foi pago. 62. As vendas online iniciaram-se após o seu afastamento do projecto. 63. A Autora, ao ter sido afastada do Fair Bazaar, ficou desempregada, sem auferir qualquer apoio social, dado que, sendo a medida Start-up Voucher remunerada através de Bolsa, não contempla descontos para a Segurança Social. 64. Só a partir de Agosto de 2018 tendo a Autora conseguido alguns trabalhos pontuais como free lancer. 65. Anteriormente ao projecto Fair Bazaar, a Autora tinha propostas aliciantes de trabalho. 66. O afastamento da Autora pela Ré do negócio Fair Bazaar causou à Autora sofrimento e frustração. 67. A Autora sentiu-se desprezada e psicologicamente desgastada, por ter ficado sem qualquer rendimento para fazer face às suas despesas. 68. A Autora sentiu-se profundamente humilhada perante a sua família, os seus amigos, demais pessoas com quem convive, assim como perante os responsáveis pela medida Start Up Voucher, pelo facto de ter sido forçada a deixar o Fair Bazaar, sem ter o que responder e quando a Ré se assume, falsamente, como única protagonista do negócio. 69. Por força da atitude da Ré, a Autora deixou de dormir bem de noite, teve insónias e sobressaltos constantes, deixou de ter gozo nos que eram os seus passatempos, interesses e hobbies. 70. Foi a Ré quem teve conhecimento da existência do programa Bootcamp, promovido pelo Instituto de Empreendedorismo Social e do programa start up voucher. 71. Na execução do seu projecto, em 04.05.2017, a A. e a R. organizaram o primeiro evento da Fair Bazaar em parceria com a Fashion Revolution e o Impact Hub, 72. Tendo ainda participado no programa Academia do Comércio um evento com a duração de um mês ocorrido em julho de 2017. 73. Com a realização de sucessivos eventos, mostrou-se necessária a abertura de conta bancária, a qual foi contratada junto do Banco Comercial Português em 07.09.2017. 74. Também em setembro do mesmo ano verificou-se uma participação da A. e da R. no Greenfest, 75. Por convite dirigido directamente à R. por MM, em conversa telefónica ocorrida em junho de 2017. 76. No evento foi realizado um desfile de moda, uma palestra e uma pop-up store, 77. Em 23.11.2017, a R. requereu em nome próprio, o registo da Fair Bazaar como marca europeia (cfr. doc. n.º 1 supra, n.º 21), 78. Os contratos de II e de JJ, bem como os contratos celebrados com fornecedores foram elaborados com a assessoria jurídica do advogado KK. 79. Em dezembro de 2017, além da exposição dos artigos na loja, a A. e a R. integraram o evento denominado “Festa de Natal da Embaixada”. 80- Sendo o advogado em questão (KK) um simples mediador entre a A. e a R. Apreciando, de imediato, a primeira questão recursiva suscitada pela A. – saber se o acórdão recorrido - ao adoptar a tese da data da “exoneração de sócio” de uma sociedade, para determinação da base temporal sobre a qual será calculada a indemnização que a R. foi condenada a pagar à A. (cfr. art.1002º nº 3 do Cód. Civil), ao invés de ter feito uso do recurso à equidade para o cálculo de tal indemnização ( cfr. art.566º nº3 do Cód. Civil) - violou o principio do contraditório, sendo, nessa parte, uma decisão surpresa e, por isso, sempre o referido aresto será nulo por força do disposto nos arts. 3º, nº 3, 195º e 615º nº1 alínea d), todos do C.P.C. – importa dizer a tal respeito que o nº 3 do citado art.3º estipula que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Com efeito, a norma supra referida veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do processo, trazendo para o nosso direito processual civil uma concepção mais alargada, com intuito de evitar a prolação das chamadas decisões surpresa., ou seja, aquelas decisões em que a solução dada a uma questão, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela parte e sem que esta tivesse obrigação de prever que viesse a ser proferida. Por isso, o dever de audição prévia à decisão existirá sempre que estiverem em causa factos ou questões de direito susceptíveis de virem a integrar a base de decisão, pelo que o juiz que pretenda basear a sua decisão em questão não suscitada pelas partes mas oficiosamente levantada por si, “ex novo”, deverá, antes de mais - isto é, previamente à prolação da decisão - notificar as partes a sobre ela tomarem posição, atento o estipulado no citado art.3º nº 3 do C.P.C. Na verdade, como afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Pires de Sousa antes de decidir, o juiz deve facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria, o que poderá evitar decisões precipitadas ou, no mínimo, decisões que surjam contra a corrente do processo ou contra as expectativas que legitimamente foram criadas quanto à sua evolução no sentido da prolação de uma decisão de mérito. O mesmo se verifica quando está em causa uma diversa qualificação jurídica dos factos: sendo esta legítima, ao abrigo do art.5º nº3 do C.P.C. não dispensa a necessidade de o juiz auscultar as partes, na medida em que uma diversa qualificação jurídica pode contender com a posição que cada uma adotou no processo, interferindo na tutela dos respectivos interesses. (…) Essa obrigação vigora também em sede de recursos. Sem embargo das normas que especialmente vinculam os Tribunais Superiores ao acatamento do contraditório (arts.654º nº 1 e 655º nº 1), este deve ser observado nos termos gerias que emergem do art.3º nº 3, sempre que exista o risco de um resultado surpreendente para alguma das partes. Dever especialmente relevante nos casos em que a Relação (…) divirja da qualificação jurídica das partes – cfr. C.P.C. Anotado, Vol. I, 2ª ed., págs.22/23. Ora, no caso em apreço, não era previsível que o acórdão recorrido enveredasse pela posição jurídica que seguiu - na parte em que equiparou o afastamento da A. do negócio do Fair Bazaar a uma exoneração de sócio numa sociedade civil, limitando o período indemnizatório entre 15/5/2028 (data da comunicação da A. à R.) e 31/12/2018, por aplicação do disposto no art.1002º nº 3 do Cód. Civil - pois tal solução jurídica jamais foi articulada pelas partes, nomeadamente pela A., a qual sempre sustentou que o cálculo de tal indemnização devia ser fixada pelo período de um ano, a contar de 15/5/2018 e com recurso à equidade – cfr. art.566º nº3 do Cód. Civil. Além disso, tal solução jurídica do aresto sob censura também não foi sufragada na sentença da 1ª instância, nem, tão pouco, fez parte das alegações da R. no recurso de apelação que interpôs para a Relação, ou, sequer, das contra alegações ao recurso de apelação apresentadas pela A. Deste modo, ao equiparar o afastamento e exclusão da A. do negócio da Fair Bazaar a uma exoneração de sócio numa sociedade, forçoso é concluir que o aresto recorrido constitui uma verdadeira “decisão surpresa” que, por compreender, efectivamente, a violação do princípio do contraditório, constitui uma nulidade processual, nos termos do nº 1 do art.195º do C.P.C., onde se estipula que: a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Neste sentido, aliás - e em caso idêntico ou similar ao dos presentes autos - pode ver-se o Ac. do STJ de 2/5/2024 (Relator Ataíde das Neves), disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, foi afirmado o seguinte: - (…) como ensina Lebre de Freitas (in Introdução ao Processo Civil. Conceitos e princípios gerais, 2ª ed., Coimbra Editora) o princípio do contraditório materializa-se em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição. Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão dos fundamentos de direito em que ela vá assentar, sendo o mesmo o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa (Ibidem, págs. 111 a 115). É, ainda, uma decorrência do princípio do contraditório a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o nº 3 do referido artigo 3º do CPC. Decisão-surpresa é a solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever fosse proferida. A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3 do art. 3º do CPC, em casos de manifesta desnecessidade. Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas. Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão. Ensina também Lopes do Rego (in Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I. Coimbra, 2004, Almedina, pág 32), que “A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº 3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”. Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori” possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico. Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo. Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, pretendeu-se reforçar e aproveitar a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios. Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influir ativamente na decisão (Ac. do STJ de 04/05/99, proc. nº 99057) A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam. Assim, como afirma o Acórdão do STJ de 15/10/2002 (proc. nº 02A2478), “uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem”. Há decisão surpresa se o juiz, inesperadamente e afastando-se do enquadramento factual e jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução mais correta para a decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão nos termos entendidos pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos (Ac. do STJ de 27/9/2011, proc. nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1), só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta desnecessidade. A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº 1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”. Dada a relevância, exposta, do contraditório, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que a sua inobservância constitui uma omissão grave e representa uma nulidade processual. E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º nº 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º nº 1), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, nada obstará, assim nos parece, que a mesma seja invocada, mesmo quando não invocada naquele prazo perante a 1ª instância, possa ser arguida e conhecida em sede de recurso. Como refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, p. 26) “sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do artº 615 nº1 d). Afinal, nesses casos, designadamente quando o juiz aprecie uma determinada questão que traduza uma decisão surpresa, sem respeito pelo princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3, a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual emergente da omissão do acto, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata no recurso que seja interposto de tal decisão.” Ou seja, por outras palavras, apesar de a nulidade em causa, de não audição prévia das partes (art. 3º nº 3 do CPC) em relação à nova configuração jurídica sob a qual entende o Juiz decidir a causa, não ter sido invocada perante o tribunal que a cometeu, nos termos do art. 199º nº 1 do CPC, não fica precludido o direito de a mesma ser invocada no recurso, por via da nulidade da sentença, por o tribunal ter conhecido de objecto diverso do pedido e não configurado pelas partes. Quer isto dizer que a nulidade em causa nos presentes autos, proferida que foi a decisão surpresa, apenas podia ser invocada no recurso interposto da sentença, como foi. Como é evidente, o conhecimento oficioso de questões não suscitadas pelas partes deve garantir, a todo o passo, o cumprimento do princípio do contraditório, evitando a prolação de decisões surpresa. Neste sentido, pronunciou-se, de forma particularmente cristalina, o acórdão do STJ de22-02-2017– proc. n.º 1512/07.0TBCSC.L1.S1, ao deixar escrito que “caso a interpretação e aplicação das regras de direito a considerar, sempre com respeito pelo quadro factual que desenha o litígio, não coincida com a solução jurídica que as partes perspectivaram como caminho para alcançar as suas pretensões, o tribunal deve garantir previamente a estas a possibilidade de se pronunciarem, assegurando, desta forma, o contraditório e evitando indesejáveis decisões-surpresa (art. 5.º, n.º 3, do CPC)”. Foi esta também a solução que recentemente foi adoptada no Ac. do STJ, de 17-3-16 (Rel. Fonseca Ramos), no proc. 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1, onde se refere que “a decisão-surpresa alegada e verificada quanto ao acórdão da Relação constitui um vício intrínseco da decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão que assentou a sua decisão em dois fundamentos que não foram previamente considerados pela recorrente, que foram decisivos para a decisão e sobre os quais, antes, deveriam ter sido ouvidos recorrente e recorridos”. Ora, voltando agora ao caso em apreço, é nosso entendimento que, atentas as razões e fundamentos explanados no aresto supra transcrito, deveriam os Juízes Desembargadores ter observado o princípio do contraditório, na sua vertente de proibição de decisões surpresa, ouvindo previamente as partes em relação à diferente configuração jurídica que vislumbraram mais acertada para a prolação do acórdão recorrido, ou seja, relativamente à questão de terem efectuado o cálculo da indemnização peticionada com base na equiparação do afastamento da A. do negócio do Fair Bazaar a uma “exoneração de sócio” numa sociedade, limitando o período indemnizatório entre 15/5/2028 (data da comunicação da A. à R.) e 31/12/2018, por aplicação do disposto no art.1002º nº 3 do Cód. Civil (ao invés do que tinha sido sufragado pela A., a qual sempre sustentou que o cálculo de tal indemnização - por ter sido afastada e excluída pela R. do negócio do Fair Bazaar - devia ser fixada pelo período de um ano, a contar de 15/5/2018, com recurso à equidade, nos termos do disposto no art.566º nº3 do Cód. Civil). Pelo exposto, importa, pois, declarar verificada a nulidade do acórdão recorrido invocada pela A. e determinar a baixa dos autos à 2ª instância, para aí - em momento prévio à prolação de novo acórdão, na sua vertente de Direito - serem ouvidas as partes em relação ao novo enquadramento jurídico feito pelo Tribunal da Relação, nos termos acima elencados, sem prejuízo de, para além disso, aquele Tribunal, no pleno exercício dos seus poderes de gestão processual (cfr. art.7º do C.P.C.), poder intervir como bem entender, em ordem à boa decisão da causa. Assim sendo, e em suma, concluímos que procede a revista interposta pela A. e, por via disso, declaramos nulo o acórdão recorrido, por violação do disposto nos arts.3º nº 3, 195º e 615º nº 1 alínea d), todos do C.P.C., ficando prejudicado o conhecimento da segunda questão recursiva levantada pela A., uma vez que, por força do estatuído no art.679º, não tem aqui aplicação o disposto no art.665º nº 1, ambos do C.P.C. *** Finalmente, atento o estipulado no nº 7 do art.663º do C.P.C. passamos a elaborar o seguinte sumário: - A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal, o que quer dizer que os juízes que pretendam basear o seu acórdão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, devem, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição. - Se porventura não o fizerem violam o princípio do contraditório a que alude o nº 3 do art.3º do C.P.C., violação essa que, sendo invocada pelas partes, constitui nulidade processual, a qual deve ser conhecida pelo STJ e, por via disso, declarar-se a nulidade do acórdão recorrido, ao abrigo do disposto nos arts.195º e 615º nº1 alínea d), ambos do C.P.C. Decisão: Pelo exposto acordam os Juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o presente recurso de revista e, em consequência, declara-se nulo o acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos à 2ª instância, para aí, em momento prévio à prolação de novo acórdão, na sua vertente de Direito, serem ouvidas as partes em relação ao novo enquadramento jurídico feito pelo Tribunal da Relação, nos termos acima elencados, sem prejuízo de, para além disso, aquele Tribunal, no pleno exercício dos seus poderes de gestão processual (cfr. art.7º do C.P.C.), poder intervir como bem entender, em ordem à boa decisão da causa. Custas pela R., ora recorrida. *** Lx., 2/10/2025 Rui Machado e Moura (Relator) A. Barateiro Martins (1º Adjunto) – (Declaração de voto vencido) Fátima Gomes (2ª Adjunta)
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Vencido, nos termos da seguinte: Declaração Entendo – como refere o Conselheiro Lopes do Rego, citado no Acórdão da Conferência da Relação – que não se deve “banalizar” a atuação do art. 3.º/3 do CPC e que não se tem de convidar as partes a pronunciar-se sobre toda e qualquer desvio ao enquadramento legal que as partes hajam dado às suas pretensões. Repare-se no caso: A revista tem como estrito objeto a indemnização pelos lucros cessantes, mais exatamente, discute-se tão só se o seu cálculo, a efetuar em incidente de liquidação, deve ter em atenção o lapso de tempo de 1 ano (como pediu e pretende a A. e foi decidido na sentença) ou o lapso de tempo de 7 meses e meio (como foi decidido no acórdão recorrido). Diz a A./recorrente – e é aqui que vê a violação do princípio do contraditório e a nulidade de acórdão do art. 615.º/1/d) do CPC – que tal indemnização foi pedida com referência ao período de um ano, com base na equidade, e que, no acórdão sob recurso foi decidido limitar esse período a sete meses e meio, mediante a aplicação das regras do art. 36º do CSC e das relativas às sociedades civis. Mas tal “limitação” não resulta de uma qualquer mudança surpreendente de enquadramento legal, sucedendo apenas, como é explicitamente referido no acórdão recorrido, que “não se alcança qual o fundamento de ter sido utilizado o critério do período de um ano para cálculo da indemnização por perda de lucros” (acrescentando-se mesmo que “a autora não o explica e a sentença não o esclarece”), razão pela qual, a seguir, se construiu uma fundamentação jurídica que pudesse dar suporte ao lapso de tempo pelo qual fosse devida a indemnização pelos lucos cessantes. Ora, assim como quando a parte não fundamenta de direito o tribunal não tem de a convidar a pronunciar-se sobre o direito aplicável, também quando o tribunal entende que a fundamentação que invoca está “errada” não tem de a convidar a pronunciar-se sobre o direito que pensa ser o “certo”. Em ambas as hipóteses, o que ficará sob escrutínio é a decisão de mérito do tribunal, pelo que entendo que o acórdão recorrido não incorre na nulidade que lhe é imputada e conheceria do fundo da revista. l., 02/10/2025 António Barateiro Martins |