Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
180/2000.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
PROVA PLENA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA TESTEMUNHAL
ADMISSIBILIDADE
FALSAS DECLARAÇÕES
PRESUNÇÕES LEGAIS
NULIDADE
ANULABILIDADE
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 03/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - Apesar da escritura notarial de habilitação de herdeiros ser um documento autêntico, o notário que a exarou não garante a veracidade nem a eficácia das declarações que lhe foram feitas, pelo que em relação a elas é admissível a prova testemunhal, salvo se deverem ser consideradas plenamente provadas por confissão extrajudicial. Ou seja, os actos e declarações que o notário atesta como tendo sido praticados, emitidos ou prestados perante ele terão o valor jurídico que lhes competir, podendo ser impugnadas pelos interessados, nos termos gerais de direito.
II - Provada a falsidade dessas declarações, o documento perde, consequentemente, a sua eficácia como fonte de prova dos factos cobertos pela presunção legal, mas não perde, por isso, a sua existência jurídica nem a sua validade.
III - Porque na formação dessa escritura não se preteriu qualquer formalidade que a lei exige, encontrando-se os efeitos da falsidade circunscritos à perda da força probatória do documento, os vícios apontados não geram a nulidade ou anulabilidade da escritura notarial de habilitação de herdeiros, pelo que, não sendo nula nem anulável, carece de qualquer fundamento a caducidade do direito invocado pela ré, com base na sua pretensa anulabilidade.
IV - Demonstrada a não existência do direito da ré sobre as fracções dos aludidos prédios, é falso o respectivo registo, o que implica a sua nulidade, deixando, consequentemente, de gozar da presunção prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA e marido BB; CC, viúvo; DD e mulher EE; FF e mulher GG; HH e mulher II; JJ, divorciado; KK, solteira; LL e mulher MM; intentaram a presente acção declarativa com processo ordinário contra NN, pedindo que:

a) – A ré seja condenada a reconhecer que não é herdeira de sua tia OO;

b) – Se declare a nulidade da escritura de habilitação notarial e do registo referidos nos 16º e 20º da petição inicial;

c) - A ré seja condenada a reconhecer que aos autores e restantes herdeiros testamentários de PP (identificado no artigo 7º da petição inicial) pertencem, na proporção de 1/16 para cada um deles, as fracções dos prédios identificados no artigo 3º da petição inicial.

Fundamentando a sua pretensão, alegaram, em síntese, que os autores foram herdeiros testamentários de PP, falecido em 22/09/1992, fazendo parte da herança do falecido diversos bens imóveis na proporção de ½, deixados em testamento por óbito de OO, sua mulher.

No inventário obrigatório, que correu termos, foram relacionados 5/8 desses prédios, cujas fracções foram adjudicadas aos autores.

Para além dos autores, existiram outros herdeiros testamentários.

Desde 28/09/1964 que a ré tinha registado em seu nome as restantes fracções dos referidos prédios, ou seja ½.

A ré teve conhecimento do testamento de sua tia OO, bem como do testamento de PP.

Não obstante, a ré promoveu escritura de habilitação notarial, onde figurava como única herdeira de sua tia, e constava que esta não tinha disposto dos seus bens.

Lavrada a referida escritura, a ré promoveu o registo em seu nome das referidas fracções, alegando a prescrição do imposto sucessório.

A ré actuou com manifesta má - fé, com declarações falsas, prejudicando os autores e restantes herdeiros.

Os autores requereram, ainda, a intervenção provocada dos restantes herdeiros, não autores:

QQ; RR; SS; TT; UU; VV; XX; ZZ;

A ré impugnou parcialmente os factos, alegando, nomeadamente, que não teve qualquer intervenção nos processos administrativos e judiciais descritos na petição.

Excepcionou a caducidade do direito invocado pelos autores.

Replicaram os autores, pugnando pela improcedência da excepção.

Admitido o chamamento, nos termos do disposto no artigo 235º, n.º 1 do C.P.C., foram citados todos os chamados mas nenhum apresentou articulado autónomo.

Foi proferido saneador que, entre o mais, relegou para final o conhecimento da invocada excepção.

Pelo falecimento de AA foi requerida a habilitação de BB, já co-autor, para com os mesmos autores e chamados prosseguirem os autos, vindo tal habilitação a ser deferida por sentença.

Realizada a audiência da discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, declarou que a ré não é herdeira de sua tia OO; julgou nulo o registo descrito em 16; declarou os autores e habilitados proprietários, na proporção de 1/16 para cada um deles, das fracções dos identificados prédios e julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade da escritura de habilitação de herdeiros descrita no artigo 16° da petição inicial, absolvendo, nesta parte, a ré do pedido.

Inconformada recorreu a ré para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão de 26/05/2011, negando provimento ao recurso, confirmou na íntegra a decisão recorrida.

De novo inconformada, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a absolvição dos pedidos contra ela deduzidos, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:

1ª - O regime aplicável à eventual dissonância entre a realidade e o que consta da escritura de Habilitação de Herdeiros, enquanto documento autêntico, não é o de nulidade, mas o de anulabilidade, o que quer dizer que a escritura de Habilitação de Herdeiros não é nula. Quando muito seria anulável.

2ª – O regime da anulabilidade segue o disposto no artigo 287° do Código Civil, que determina que a mesma só pode ser arguida dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento e, findo aquele prazo, cessa por caducidade o direito de arguir a anulabilidade e a invalidade sana-se.

3ª - No caso dos autos, de há muito, decorreu o aludido prazo de arguição, pelo que, se se verificasse essa situação, de há muito, se encontraria sanada, não operando, assim, a pretensão dos autores, ora recorridos.

4ª - Sanada a anulabilidade do acto, a Escritura de Habilitação tem força de documento autêntico (artigo 371º do C.C.), e dá suporte legal ao registo dos imóveis pertença da pessoa falecida a favor da herdeira habilitada, como é o caso, ora objecto de discussão.

5ª - Os prédios em questão estão registados definitivamente a favor da ré, na Conservatória respectiva, desde 29/12/1995.

6ª - O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

7ª - A função das inscrições registrais é definir a situação jurídica dos prédios e esta dispensa o titular inscrito de provar o facto em que se funda a presunção derivada do registo, isto é, o direito existe, e existe na titularidade do beneficiário do registo.

8ª – Em conformidade com o disposto no artigo 1268º, n.º 1 do C.C., a presunção da posse cede em confronto com a derivada do registo anterior ao início da posse.

9ª – “Se a presunção baseada na posse e, por isso, na publicidade espontânea que lhe está ligada, colidir com presunções de titularidade a favor de pessoa diferente, fundadas em registo predial (artigo 7º do C.R.P.) prevalece, por força da 2ª parte do n.º 1 do artigo 1268º do C.C., a titularidade assente na inscrição do facto constitutivo ou aquisitivo do direito, se anterior ao início da posse, podendo o possuidor, para demonstrar a antiguidade da sua posse, se titulada, invocar a presunção do n.º 2 do artigo 1254º” (Penha Gonçalves, Direitos Reais, 2ª edição, 1993, página 289).

10ª – No caso dos autos, os autores, ora recorridos, não alegaram um acto de posse sequer, não invocaram os seus requisitos (nem praticados por si nem por antecessores), não alegaram que estariam investidos na presunção do direito de propriedade e posse pelo decurso do tempo, nem invocaram a aquisição do direito sobre os ditos prédios, por usucapião, pelo que, precludida a presunção prevista nos artigos 1268°, n.º 1 e 1254º, n.º 2 do C.C., sendo o registo da propriedade dos ditos bens a favor da ré anterior a qualquer outra presunção não derivada do registo, prevalece, pois, o direito desta, que é válido e eficaz.

11ª – Ao decidir, como decidiu, o douto acórdão violou o disposto nos artigos 287º, 350º, n.º 1, 371º, 1268º, n.º 1 e 1254º, n.º 2 do Código Civil e artigo 7º do Código de Registo Predial.

Contra alegaram os autores, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

2.

As instâncias julgaram provada a seguinte matéria de facto:

1º - PP, natural de S... e residente na Rua ....., n.º....., em Alhos Vedros, concelho da Moita, outorgou, no dia 11 de Maio de 1979, no Cartório Notarial da Moita, (e exarado de folhas 00 verso a 00 verso do livro 00- T), testamento, onde deixa os seus bens a seus sobrinhos (alínea A).

2º - Por óbito daquele correu termos na Repartição de Finanças da Moita o processo de liquidação de imposto sobre sucessões e doações n.º 6.193 do ano de 1992 (alínea B).

3º - Nesse processo foram relacionados como fazendo parte da herança de PP, entre outros, as fracções dos seguintes bens situados na freguesia de Santana da Serra, concelho de Ourique:

a) - 1/2 (METADE INDIVISA) do prédio rústico denominado “Á.........”, sito na freguesia de Santana da Serra, da freguesia da Castro Vende, com a área de 12,0350 hectares, confrontando do Norte e Nascente com AAA, Sul com BBB e do Poente com Barranco .... de DDD e AAA, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 400 da Secção M. da freguesia de Santana da Serra;

b) - 1/2 (METADE INDIVISA) prédio misto denominado “C..........”, sito na Freguesia de Santana da Serra, composto de cultura arvense e morada térreas que se compõe de três compartimentos destinados à habitação e cavalariça, com a área coberta de 115 m.2, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo n.º 1.104, e outra morada de casas térreas, que se compõe de três compartimentos de habitação, cavalariça e forno de cozer pão, a área coberta de 74 m.2, confrontando do Norte com AAA e BBB, Nascente com P........ de CCC e outros Pantaleão de CCC, Pantaleão de EEE, Casa ....... de FFF e Outro, Barranco da ........ de GGG e HHH, sul com Boga de CCC e do Poente com Barranco Bravo de III, B........ de JJJ, Toca do P..... de KKK, Courela .......... de LLL Mo......... de DD, Figueira de MMM e AAA, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo n.º 41 da secção N, com a área de 106,4125 hectares e 32 da Secção N, com a área de 750 m.2 da freguesia de Santana da Serra;

c) - 5/8 (CINCO OITAVOS) do prédio misto denominado “S........S”, sito na freguesia de Santana da Serra, de cultura arvense, prado e sobreiros, com a área de 53.4625 hectares e morada de casas térreas e forno de cozer pão, com a área coberta de 132 m.2, confrontando do Norte e Poente com terras da NNN, nascente com Sanguessuga de OOO, M.... de PPP, Portela da Fonte de PPP, Barranco da S......... de QQQ e Serro do G....de RRR e do Sul com S........ de GGG e Pé ..... de SSS, inscrito nas respectivas matrizes, rústica sob o artigo 47 da Secção CC e urbana sob o artigo 624, da freguesia de Santana da S.......;

d) - 1/2 (METADE INDIVISA) do prédio rústico denominado “M.................”, sito na freguesia de Santana da Serra, composto de cultura arvense e sobreiros, com a área de 17,7750, confrontando do Norte com M........ de GGG e Outro, Nascente com C..... de TTT, Sul com Estrada ... de UUU e Outro e R.... de OOO e do Poente com M....e VVV e M... Pequena de XXX, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º 12 da Secção GG (alínea C).

4º - Correu termos no Tribunal Judicial de Odemira o processo de inventário obrigatório com o n.º 00000 e posteriormente facultativo com o n.º 0000 e em que foi inventariado PP (alínea D).

5º - Nesse inventário foram relacionados 5/8 (CINCO OITAVOS INDIVISOS) dos prédios referidos no ponto 3º, alínea c) (alínea E).

6º - As fracções desses prédios foram adjudicadas aos herdeiros de PP, nestes se incluindo os ora autores, em comum e partes iguais, ou seja, na proporção de 1/16 (UM DEZASSEIS AVOS INDIVISOS) para cada um deles (alínea F).

7º - As fracções dos prédios atrás descritos pertenciam a OO, falecida em 17 de Março de 1975, no estado de casada com PP, por óbito do qual foi instaurado na Repartição de Finanças do Concelho da Moita o processo n.º 3.001 (alínea G).

8º - Aquela deixou testamento pelo qual, além dos legados, instituiu como usufrutuário e único e universal herdeiro do remanescente o marido PP (alínea H).

9º - Da herança fazem parte ½ (METADE INDIVISA) dos prédios referidos nas alíneas a), b) e d) do ponto 3º e 5/8 (CINCO OITAVOS INDIVISOS) do prédio mencionado na alínea c) do ponto 3º) (quesito 1º).

10º - A ré teve conhecimento do testamento de sua tia OO (quesito 2º).

11º - E desde o falecimento desta que passou a dividir com PP designadamente a cortiça e de acordo com as fracções que pertenciam a ambos (quesito 3º).

12º - O que aconteceu desde a data de falecimento da sua tia OO até a data do óbito do tio PP (quesito 4º).

13º - A ré já tinha registadas a seu favor desde 28 de Setembro de 1964, relativamente aos prédios referidos no ponto 3º, (que corresponde à alínea C dos factos assentes) as fracções dos mesmos, ou seja, ½ dos referidos nas alíneas a), b) e d) e 3/8, do prédio referido na alínea c) [a referência o n. 4 é lapso manifesto], da mesma alínea (alínea I).

13º - A ré promoveu uma escritura de habilitação notarial por morte de sua tia OO, a qual foi outorgada em 9 de Agosto de 1995 no Cartório Notarial de S. Pedro do Sul, exarada de folhas 00 a 00 verso do livro de notas n.º0000-B (alínea J).

14º - Três testemunhas apresentadas pela ré, declararam que a dita OO não dispôs dos seus bens e que deixou como única herdeira a sua sobrinha, filha de um irmão pré-falecido (quesito 6º).

15º - Feita aquela habilitação notarial, a ré promoveu o registo em seu nome das fracções dos prédios referidas na alínea C) dos Factos Assentes (alínea M).

16º - Na requisição daquele registo apresentada na Conservatória do Registo Predial de Ourique em 29 de Dezembro de 1995, foi declarado que aquelas fracções lhe ficaram a pertencer por morte de D. OO (alínea N).

17º - Na mesma requisição refere-se que a apresentante não apresenta certidão do imposto sucessório por óbito da sua tia, em virtude de já se encontrar prescrito (alínea O).

18º - Aquela declaração feita na requisição do registo (alusiva à não apresentação da certidão do imposto sucessório) induziu em erro o conservador, levando-o a efectuar o registo (quesito 7º).

19º - Aquelas declarações prestadas perante Conservador podem prejudicar os autores (quesito 8º).

3.

Como resulta do disposto nos artigos 684º, n.º 3, 690º, n.º 1 e 660º, n.º 2 do CPC, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões retiradas das alegações dos recorrentes servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e, desse modo, delimitam o seu âmbito, ou seja, são apenas as questões que devem ser conhecidas no recurso e, desse modo, delimitam o seu âmbito, ou seja, são apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Assim, no caso em apreço, as questões a decidir são as seguintes:

1ª – ESCRITURA NOTARIAL DE HABILITAÇÃO DE HERDEIROS – NULIDADE OU ANULABILIDADE

2ª – A CADUCIDADE DO DIREITO INVOCADO PELA RÉ

3ª – A PRESUNÇÃO DO DIREITO DERIVADA DO REGISTO

4.

4.1. ESCRITURA NOTARIAL DE HABILITAÇÃO DE HERDEIROS:

A habilitação de herdeiros consiste na declaração de que os habilitandos são herdeiros do falecido, não havendo quem lhes prefira na sucessão ou quem com eles concorra, ou seja, revela quais são os sucessores de determinada pessoa falecida (de cujus, autor da herança), considerando as regras da vocação sucessória.

Especifica quais os destinatários das relações jurídico – patrimoniais do falecido, segundo as regras de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, atenta a ordem legal das classes respectivas, artigo 2133º do Código Civil, no que se refere à sucessão legítima.

É realizada através de escritura pública, mediante declaração de três pessoas, que o notário considere dignas de crédito, as quais deverão confirmar o teor dos factos que compõem substantivamente o acto inserto nesta escritura, constituindo documento bastante para proceder à transmissão da titularidade das situações jurídico - patrimoniais do de cujus para os seus sucessores e permitindo a prática dos actos indispensáveis em sede de registo predial, comercial e de automóveis, requeridos por qualquer dos herdeiros habilitados ou pelo cônjuge meeiro[1].

Reportando-nos aos factos, ficou provado que, em 17 de Março de 1975, faleceu a OO, no estado de casada com PP.

Aquela deixou testamento pelo qual, além dos legados, instituiu como usufrutuário e único e universal herdeiro do remanescente o marido.

Em 11 de Maio de 1979, o referido PP outorgou, no Cartório Notarial da Moita, testamento, deixando os seus bens a seus sobrinhos.

O PP faleceu em 22/09/1992

No Tribunal Judicial de Odemira, correu termos o processo de inventário obrigatório com o n.º 191/92 e posteriormente facultativo com o n.º 193/95 e em que foi inventariado PP, tendo sido relacionados 5/8 (CINCO OITAVOS INDIVISOS) dos prédios referidos na Alínea B).

As fracções desses prédios foram adjudicadas aos herdeiros de PP, nestes se incluindo os ora autores, em comum e partes iguais, ou seja, na proporção de 1/16 (UM DEZASSEIS AVOS INDIVISOS) para cada um deles.

As fracções dos prédios atrás descritos pertenciam a OO.

A ré, que era sobrinha da OO, teve conhecimento do aludido testamento de sua tia a favor do marido mas, não obstante, promoveu uma escritura de habilitação notarial por morte da referida OO, a qual foi outorgada, em 9 de Agosto de 1995, no Cartório Notarial de S. Pedro do Sul.

As três testemunhas, apresentadas pela ré, declararam que a dita OO não dispôs dos seus bens e que deixou como única herdeira a sua sobrinha, filha de um irmão pré falecido.

Deste modo, a ré fez constar da referida escritura de habilitação de herdeiros factos que sabia serem falsos. Isto e, a ré tinha conhecimento do testamento de sua tia, beneficiando o cônjuge, e declarou com o testemunho de três outras pessoas ser a única herdeira.

Feita aquela habilitação notarial, a ré promoveu o registo em seu nome das fracções dos prédios referidos na alínea C) dos factos assentes, tendo declarado, na apresentação daquele registo na Conservatória do Registo Predial de Ourique, em 29/12/1995, que aquelas fracções lhe ficaram a pertencer por morte da OO.

Na mesma apresentação refere-se que a requerente não apresenta certidão do imposto sucessório por óbito da sua tia, em virtude de já se encontrar prescrito.

Neste contexto factual, aquela declaração feita na apresentação do registo (alusiva à não apresentação da certidão do imposto sucessório) induziu em erro o Conservador, levando-o a efectuar o registo, sendo certo que aquelas declarações prestadas perante o Conservador podem prejudicar os autores.

Temos, assim, que a ré promoveu a habilitação notarial referida, enquanto documento bastante para proceder à transmissão da titularidade das situações jurídico patrimoniais do de cujus para a sua esfera jurídica, na qualidade de sucessora da OO, como também para titular a aquisição mortis causa, pois, como herdeira habilitada, aquela escritura permitia-lhe a prática dos actos indispensáveis em sede de registo predial.

Pedem os autores a declaração de nulidade da escritura de habilitação notarial e do registo, por violação do disposto nos artigos 280º e 295º, porquanto a ré fez constar dessa escritura factos que sabia serem falsos.

Sustenta a ré que o regime aplicável à eventual dissonância entre a realidade e o que consta da escritura de habilitação de herdeiros, enquanto documento autêntico, não é o de nulidade, mas o de anulabilidade. Isto é, a referida escritura, segundo ela, não é nula, quando muito seria anulável, pelo que há muito decorreu o prazo de arguição (artigo 287º C.C.).

Assim, continua, “sanado o vício, a escritura de habilitação dá suporte legal ao registo dos imóveis que foram pertença da pessoa falecida a favor da herdeira habilitada”.

Estas as teses em confronto que importa dissecar.

No Código de Notariado não se prevê regime especial relativamente à nulidade material (ou anulabilidade) dos actos. Apenas os vícios formais são expressamente regulados (artigos 70º e seguintes do C.N.).

Estando assente que a ré fez constar da escritura de habilitação em causa factos que sabia serem falsos e que, com base nessa escritura, promoveu em seu nome o registo das fracções identificadas nos autos, a resposta à questão colocada pelos autores (nulidade) ou pela ré (anulabilidade) há-de ser encontrada na disciplina prevista no Código Civil.

A escritura de habilitação notarial, ora em apreço, é um documento autêntico (artigo 363º, n.os 1 e 2 do C.C.) e como tal faz prova plena dos factos (declarações e outros) que neles são referidos como praticados pela autoridade ou oficial público documentador, bem como dos que nele são atestados como objecto da sua percepção directa, mas não daqueles que constituem objecto de ciência perante ele produzidos ou constantes de documentos que lhe sejam apresentados, nem tão – pouco dos que sejam objecto de apreciação ou juízos pessoais seus. É o que resulta do artigo 371º do Código Civil, que regula a força probatória dos documentos autênticos oficiais ou extra – oficiais.

Assim, quanto aos documentos autênticos, a autoridade ou oficial público não garante a veracidade nem a eficácia das declarações que lhe foram feitas, pelo que em relação a elas é admissível a prova testemunhal, salvo se deverem ser consideradas plenamente provadas por confissão extrajudicial. Ou seja, “os actos e declarações, que o funcionário atesta como tendo sido praticados, emitidos ou prestados perante ele, terão o valor jurídico que lhes competir, podendo ser impugnadas pelos interessados, nos termos gerais de direito (erro na declaração ou erro – vício, coacção, simulação, etc.)[2].

“Sendo a falsidade uma qualidade dum documento genuíno da qual resulta que a declaração por ele representada, ou certos factos por esta (directa ou indirectamente) representados, não são conformes com a realidade, por não se terem verificado, a consequência imediata da sua existência, para a qual aponta toda a nossa análise, consistirá na perda da eficácia probatória do documento quanto a essa declaração ou quanto a esses factos”.

“Assim, a presunção que, a partir da prova do facto representativo (o registo ou informação constante do documento), impõe que se considere provado o facto representado, ou outros por este representados, é afastada com a prova da não correspondência desse facto ou factos à realidade”.

“O documento perde, consequentemente, a sua eficácia como fonte de prova dos factos cobertos pela presunção legal. Mas não perde, por isso, a sua existência jurídica nem a sua validade[3]”.

Frequentemente confundem-se os conceitos de falsidade e de nulidade. Em regra, um documento é nulo quando na sua formação se preteriu qualquer requisito que a lei exige. É falso quando os actos ou factos que ele afirma terem-se passado não se passaram realmente. Como vimos, só haverá falsidade quando a falta de veracidade incide sobre aquilo que se considera plenamente provado. Efectivamente, se os actos documentados se realizaram ou não e se são ou não inválidos, são factos que os documentos não podem provar e que nada têm a ver com a falsidade. Sobre este assunto escreveu Alberto dos Reis: “lavrou-se uma escritura pública; observaram-se, na sua elaboração, todos os requisitos e formalidades que a lei exige; mas o notário declara ter-se passado na sua presença, um facto que na realidade se não passou. O documento é formalmente válido; mas tem de considerar-se falso. O inverso é igualmente possível. O notário exarou na escritura precisamente o que ocorreu; mas omitiu uma formalidade exigida por lei. O documento não é falso mas nulo[4]”.

Resulta, assim, do exposto que a ré, através das testemunhas, fez a aludida declaração perante o notário, tendo-se, porém, demonstrado que a mesma não era conforme à realidade, o que se traduz na perda da eficácia probatória da escritura notarial quanto a essa declaração ou quanto a esses factos.

Aqui não estamos a apreciar a falsidade do documento em si mas antes as declarações feitas perante o notário e que, feita a prova testemunhal, se comprovou serem desconformes com a realidade.

4.2.

CADUCIDADE DO DIREITO DOS AUTORES

A ré invocou a caducidade dos direitos arrogados pelos autores por já ter decorrido o prazo previsto no artigo 287º, n.º 1 do Código Civil, com referência à escritura de habilitação de herdeiros, porquanto, na óptica da ré, os vícios apontados não geram nulidade mas mera anulabilidade.

Decorre do que foi exposto que a apontada falsidade, atinente ao conteúdo da escritura, por desconformidade entre aquilo que as testemunhas disseram e a realidade, reflecte-se, unicamente, ao nível da sua eficácia probatória, nomeadamente para o efeito de partilhas e registo.

Assim, porque na sua formação não se preteriu qualquer formalidade que a lei exige, encontrando-se os efeitos da falsidade circunscritos à perda da força probatória do documento, os vícios apontados não geram a nulidade ou anulabilidade da escritura de habilitação de herdeiros, pelo que, não sendo nula nem anulável, carece de qualquer fundamento a caducidade do direito invocado pela ré (artigo 287º C.C.).

4.3.

A PRESUNÇÃO DO DIREITO DERIVADA DO REGISTO

Ao contrário do que se estipula para o acto notarial acima apreciado, no Código de Registo Predial comina-se com a nulidade o registo falso, ou seja, o registo de inscrição dum facto que nunca se verificou.

Atendendo ao que ficou provado, o registo que a ré promoveu é nulo por ser esta a cominação prevista no artigo 16.º, alínea a) do Código de Registo Predial.

Nessa situação, a ré não pode beneficiar da presunção derivada do registo das fracções dos prédios a que procedeu a seu favor, na conservatória, nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial, segundo o qual o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

É que o registo foi feito exactamente com base na escritura notarial, agora impugnada, significando a impugnação da escritura exactamente a impugnação dos factos com base nos quais foi celebrado o registo.

A impugnação desses factos, traduzida na alegação da sua não verificação ou da sua não correspondência com a realidade, não pode deixar de abalar a credibilidade do registo e da sua eficácia prevista no artigo 7º do C.R.P., que é precisamente a presunção de que existe um direito cuja existência é posta em causa através da presente acção.

Daí que, impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado se tem de haver esse mesmo registo, não podendo valer contra os autores a referida presunção, que a lei concede no pressuposto da existência do direito registado.

Se o registo já se encontra lavrado, como é o caso, os autores impugnantes apenas terão de pedir o seu cancelamento (artigo 8º CRP).

O princípio da boa - fé registral não pode, só por si, justificar a solução oposta, sobretudo porque a escritura de justificação é um meio de suprir a falta de um título para registo.

Demonstrado que não existe o direito da ré sobre as fracções dos aludidos prédios, é falso o respectivo registo, o que implica a sua nulidade (artigo 16º, alínea a), deixando, consequentemente, de gozar da presunção prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial.

Concluindo:

1ª – Apesar da escritura notarial de habilitação de herdeiros ser um documento autêntico, o notário que a exarou não garante a veracidade nem a eficácia das declarações que lhe foram feitas, pelo que em relação a elas é admissível a prova testemunhal, salvo se deverem ser consideradas plenamente provadas por confissão extrajudicial. Ou seja, os actos e declarações que o notário atesta como tendo sido praticados, emitidos ou prestados perante ele terão o valor jurídico que lhes competir, podendo ser impugnadas pelos interessados, nos termos gerais de direito.

2ª – Provada a falsidade dessas declarações, o documento perde, consequentemente, a sua eficácia como fonte de prova dos factos cobertos pela presunção legal, mas não perde, por isso, a sua existência jurídica nem a sua validade.

3ª - Porque na formação dessa escritura não se preteriu qualquer formalidade que a lei exige, encontrando-se os efeitos da falsidade circunscritos à perda da força probatória do documento, os vícios apontados não geram a nulidade ou anulabilidade da escritura notarial de habilitação de herdeiros, pelo que, não sendo nula nem anulável, carece de qualquer fundamento a caducidade do direito invocado pela ré, com base na sua pretensa anulabilidade.

4ª – Demonstrada a não existência do direito da ré sobre as fracções dos aludidos prédios, é falso o respectivo registo, o que implica a sua nulidade, deixando, consequentemente, de gozar da presunção prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial.

5.

Pelo exposto, negando a revista, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 1 de Março de 2012


Granja da Fonseca (Relator) *
Silva Gonçalves
Ana Paula Boularot
________________________________

[1] Vide José Alberto Gonzalez e Rui Januário, Direito e Prática Notarial, páginas 18 e 19.
[2] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, página 227.
[3] Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, página 154 a 157.
[4] Código de Processo Civil Anotado, volume III, nota 1 ao artigo 533º.