Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELENA MONIZ | ||
Descritores: | RELEVÂNCIA SOCIAL INTERESSE EM AGIR HOMICÍDIO QUALIFICADO ARMA DE FOGO MEIO INSIDIOSO FRIEZA DE ÂNIMO ESPECIAL CENSURABILIDADE ESPECIAL PERVERSIDADE MEDIDA CONCRETA DA PENA PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO PENA ÚNICA CÚMULO JURÍDICO PLURIOCASIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 03/03/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE O RECURSO | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA. DIREITO PROCESSUAL PENAL - JULGAMENTO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS. | ||
Doutrina: | - Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421, 291; Direito Penal Português (As consequências jurídicas do crime), Coimbra: Coimbra Editora, 2009 (2.ª reimpressão), § 314. - Figueiredo Dias/ Nuno Brandão, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial — Tomo I, Coimbra: Coimbra editora, 2012 (2.ª ed.), anotação ao artigo 132.º/§ 43. - Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português. Do procedimento (marcha do processo), Vol. III, Lisboa: UCP, 2014, 315. - Pereira Madeira, “Código de Processo Penal” — Comentado, António Henriques Gaspar e outros, Coimbra: Almedina, 2014, 1283, anotação ao artigo 401.º, notas 1 e 12, 1288, 1289. - Teresa Serra , Homicídio qualificado: tipo de culpa e medida da pena, Coimbra: Almedina, 1990, 107-109. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 1.º, AL. G), 370.º, N.ºS 1 E 2, 400.º, N.º 1, ALS. C), B), N.º2, 401.º, N.º 2. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 41.º, N.º3, 71.º, N.ºS 1 E 2, AL. D), 77.º, N.ºS 1 E 2, 132.º, N.º 1 E 2, AL. I) E J). REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E SUAS MUNIÇÕES, APROVADO PELA LEI N.º 5/2006, DE 23.02 (ALTERADA PELAS LEIS N.º 17/2009, DE 06.05, N.º 26/2010, DE 30.08, N.º 12/2011, DE 27.04, E N.º 50/2013, DE 24.07): - ARTIGO 86.º, N.ºS 1, AL. C), E 3. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 11-01-2007 (PROC. N.º 4691/06), SUMÁRIO DISPONÍVEL EM HTTP://WWW.STJ.PT/FICHEIROS/JURISP-SUMARIOS/CRIMINAL/CRIMINAL2007.PDF . -DE 31-03-2011 (PROC. N.º 361/10.3GBLLE – 5.ª SECÇÃO); DE 21-03-2013 (PROC. N.º 2024/08.0PAPTM.E1.S1); DE 12-03-2015 (PROCESSO 185/13). | ||
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Sumário : | I - O relatório social e o que dele consta é relevante em sede de determinação da pena (art. 370.º, n.º 1, do CPP), constituindo um elemento para auxiliar o juiz na determinação da medida da pena, para dar ao julgador elementos sobre as condições pessoais do arguido (art. 71.º, n.º 2, al. d), do CP). Uma vez que o arguido, em sede de recurso, não retira da arguição do desconhecimento do relatório social qualquer consequência em sede de determinação da medida da pena, apenas afirmando a existência de uma violação da lei, não retirando qualquer consequência concreta para aquilo que poderia ser relevante, ou seja, não demonstrando que aquela violação legal o prejudicou, inexiste interesse do mesmo em agir, nos termos do disposto no art. 401.º, n.º 2, do CPP. II - A utilização de uma espingarda para a prática do homicídio não integra o conceito de meio insidioso, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 132.º, n.º 2, al. i), do CP. A forma como o arguido utilizou esse meio (a espingarda), ou seja, a forma como atuou é que foi dissimulada, a justificar a qualificação decorrente da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP, revelando uma especial perversidade no modo como cometeu o crime, no modo como reflectiu sobre os meios a empregar e o modo como os devia empregar. III - Com efeito, ao levar uma arma consigo para local previamente combinado com o ofendido, tendo-se colocado numa posição que tomou de surpresa a vítima (detrás da porta do seu veículo, empunhando a espingarda, à espera da mesma para a atingir), impedindo-a de ter qualquer comportamento defensivo, verifica-se no caso frieza de ânimo, uma vez que houve uma atuação refletida e pensada de forma a surpreender o ofendido diminuindo (se não mesmo eliminando) a sua capacidade de defesa. IV - O princípio da proibição da dupla valoração vale também para os exemplos-padrão, previstos no art. 132.º, n.º 2, do CP, pelo que quando o modo de execução do facto criminoso fundamentar a culpa agravada e a especial censurabilidade e perversidade do deste, não deve o mesmo ser levado em consideração na determinação da medida concreta da pena. V - O comportamento do arguido decorre de uma humilhação prolongada no tempo provocada pela vítima e após um desafio da mesma, o que, não servindo para desculpar o arguido, dada a forma como atuou depois destes acontecimentos, também não permite afirmar que a sua conduta demonstre uma culpa agravada para além da decorrente da especial perversidade e censurabilidade demonstrada na prática do crime. O arguido entregou-se voluntariamente à GNR pouco tempo depois da prática dos factos, encontra-se inserido socialmente, tendo reconhecido a ilicitude dos factos praticados, pelo que se considera adequada a aplicação da pena de 16 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132.º, n.ºs 1 e 2, al. j), do CP, com a agravação decorrente do art. 86.º, n.º 3, do RJAM, em vez dos 17 anos e 6 meses de prisão aplicados pela 1.ª instância. VI - Tendo em conta a pena de 1 ano e 6 meses de prisão aplicada ainda ao arguido, em 1.ª instância, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. c), do RJAM, a moldura do concurso de crimes oscila entre o mínimo de 16 anos de prisão (pena parcelar mais elevada aplicada) e o máximo de 17 anos e 6 meses (soma das penas parcelares aplicadas). Os factos criminosos em causa evidenciam uma pluriocasionalidade sem que se possa reconduzir a uma personalidade fundamentadora de uma “carreira” criminosa. Atento o bem jurídico-criminal em causa as exigências de prevenção geral são fortes, sendo, contudo, menores as exigências de prevenção especial, face à inserção do arguido na sociedade, pelo que se julga como adequado fixar a pena única em 16 anos e 6 meses de prisão. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I Relatório 1. Na Comarca de ... (... - Instância Central – Secção Cível e Criminal — ...), foi julgado, em processo comum, com intervenção do tribunal de júri, no processo n.º 1118/14.8JAPRT, o arguido AA, e condenado, por acórdão de 10.04.2015, - pela prática de um crime de homicídio qualificado e agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. i) e j), todos do Código Penal (CP) e pelo art. 86.º, n.º 3, da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23.02 e posteriores alterações), na pena 17 (dezassete) anos e 6 (seis) meses de prisão, e - pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86.º, n.º 1, al. c) da referida Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23.02), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e - na pena única conjunta de 18 (dezoito) anos de prisão. Foi ainda condenado no pagamento do pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes BB, por si e em representação dos filhos menores CC e DD, em conjunto, da quantia global de 60.000 € (sessenta mil euros), a cada um dos três demandantes, a quantia de 30.000 € (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais, e aos demandantes, em conjunto, a quantia global de 220.708,22 € (duzentos e vinte mil setecentos e oito euros e vinte e dois cêntimos), a repartir entre os três demandantes em partes iguais (sobre as quantias referidos em a) e b), incidirão juros de mora à taxa de 4 % desde a data da prolação do acórdão e até integral e efetivo pagamento; sobre as referidas em c), desde a data da notificação até integral e efetivo pagamento).
2. Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 05.10.2015, negou provimento ao recurso. 3. Não conformado com a decisão, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões: « I. O Tribunal valorou e estribou a sua convicção no Relatório Social – documento este, de cuja existência nos autos nunca foi o arguido notificado. II. Tal documento não tem qualquer data de entrada no processo. Apenas se pode constatar que foi elaborado no dia 2 de Março de 2015. Mas a data em que chegou o mesmo aos autos nunca foi apurada. III. Em todo o caso, o arguido só dele soube, quando apreciou a decisão condenatória, porque depois de ter analisado o processo e ter apresentado a contestação, de nenhuma junção de documentos foi mais notificado. IV. Ao longo da audiência de julgamento nunca tal documento foi examinado ou sequer referido e, menos ainda, em momento algum foi o arguido informado da sua existência e consequente junção aos autos. V. O documento em causa serviu para dar como provado o facto 9, da matéria de facto dada como provada, fazendo a decisão -se uma citação do próprio documento. VI. O Tribunal validou assim, uma prova quer não foi apreciada em sede de julgamento; não foi contraditada, tratando-se, assim, de prova proibida por falta de contraditório (art. 165.º, n.º 2, do CPP) – princípio da proibição da valoração da prova. VII. Como refere o Ac. da Relação do Porto, de 18/06/2007, Proc. 0741423, Rel. Pinto Monteiro, “Um documento não lido nem examinado na audiência de julgamento não pode valer como prova, se a sua junção ao processo não foi notificada aos sujeitos processuais interessados e se estes depois da sua junção não tiveram acesso aos autos”. VIII. Não se tratou de uma simples junção aos autos, de um documento inócuo ou sem qualquer significado. O Relatório social – de cuja existência nunca foi o arguido notificado – foi valorado e tomado em conta para determinar uma parte da matéria de facto provada. Ficou, deste modo, inalienavelmente coartada, a possibilidade do arguido exercer o seu direito de contraditório. IX. Em causa está um rude golpe ao direito do exercício da contraditoriedade por parte do arguido (art. 327.º, n.º 2, do CPP). Trata-se de um princípio estrutural do direito adjectivo penal, com consagração constitucional (art. 32.º, n.º 5, da CRP). X. Como adverte Eduardo Correia, o princípio do contraditório traduz-se “ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido”. Por sua vez, o conselheiro Simas Santos (AC. STJ. 10/03/2005) sobre este assunto esclarece que a não notificação do arguido de documento ou provas carreadas para o processo, conduz à violação do princípio do contraditório. XI. No caso em apreço, o arguido nem soube da chegada aos autos do Relatório Social; não o pôde analisar nem, naturalmente, contraditar. XII. E não se trata de um mero procedimento adjectivo irrelevante. A decisão foi estribada no conteúdo de tal documento, nele incidindo o julgamento da matéria da facto com implicação directa na dosimetria penal aplicada. XIII. Para além da violação do citado art. 327.º, n.º 2, do CPP, em causa está a violação grave do princípio constitucional – que desde já se denuncia, para os devidos efeitos – sufragado no n.º 5, do art. 32.º, da CRP. XIV. Deve por isso, ser anulado o acórdão, notificado o arguido do Relatório Social e reaberta a audiência para o exercício do contraditório e determinação da pena a aplicar (art. 371.º, do CPP). Caso assim se não entenda, devem os autos ser reenviados para novo julgamento (cfr. art.426.º, n. 1, e 426.º A, do CPP). XV. Violadas ficaram as normas: art. 327.º, n.º 2; 355.º; 379.º, n.º 1, al. c); e 410.º, n.º 2, al. a), todos do CPP; dos arts. 32.º, n. 5, da CRP, art. 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948; art. 6.º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro. Da qualificação jurídica XVI. O arguido não concorda com a qualificação jurídica que foi feita ao crime por ele perpetrado, porquanto não foram provados factos que sustentem tal qualificação, devendo ser apenas agravado, pelo facto de ter sido praticado com arma de fogo (artigo 86°., nº. 3, da Lei nº. 5/2006, de 23/2). XVII. Analisando as circunstâncias qualificativas agravantes, previstas no n.º 2, alíneas i) e j), do art. 132.º, do CP, consta-se – embora com o máximo respeito por opinião contrária, e sem qualquer tentativa de branquear a gravidade do delito – que a conduta do arguido, embora censurável por ter utilizado arma de fogo, e nestes termos agravada, se não enquadra naquelas circunstâncias. XVIII. O meio insidioso não poderá ser assim um motivo, mas sim a utilização de um meio/instrumento dissimulado, de armadilha, de cilada (Acs. de STJ de 26/3/2008, p. 292/08, do Sr. Conselheiro Relator e de 27/5/2010, p. 58/08). In casu, o arguido pratica o crime já depois de largos anos de humilhação e ameaças constantes de EE; de momentos antes, ter sido ostensivamente provocado (por palavras e gestos, como era hábito do CC), ter sido publicamente insultado (“meu filho da puta”) e sobretudo desafiado (se tens ”tomates” |coragem| “vai ter à ponte”), aliás, insistentemente desafiado (“voltou a sair da carrinha e desafia-o de novo”) em pleno café da aldeia, perante, entre outras pessoas, a sua esposa e a dona do café que, conhecendo já os modos de Paulo Ferreira, ainda o tentou acalmar. XIX. Não que tudo isto, legitimasse o arguido a tomar a atitude que tomou; não. Mas no mínimo, é bem demonstrativo que o arguido não utilizou qualquer meio insidioso (para lá da arma de fogo); v.g., não o desafiou, não o provocou, não lhe fez qualquer espera, não lhe apareceu de forma sub-reptícia, nem o surpreendeu em lugar isolado! XX. A ideia fundamental da circunstância prevista no n.º 2, do artigo 132.º, al. j), do CP, é a da premeditação, pressupondo uma reflexão por parte do agente, da forma como prepara o crime, como pensa nele, reflete sobre o acto e mesmo assim decide matar. Ora não foi isto que se passou. A prova produzida é bem demonstrativa de que o arguido não premeditou o crime. XXI. A conduta do arguido resultou tão só da recorrente humilhação de que vinha a ser alvo por parte da vítima, cujo limite foi atingido nesse dia com a provocação de palavras e gestos, acrescida dos desafios, em momentos diferentes, que já não conseguiu resistir, nem mesmo com a oposição da esposa e da senhora do café. O arguido agiu precipitada e reactivamente, em resposta aos dois insistentes desafios, feitos publicamente. XXII. Pelas razões aduzidas, mantêm-se discordância sobre a qualificação jurídica dos factos, por se entender que a conduta do arguido, sempre censurável, não pode, contudo, enquadrar-se nas circunstâncias qualificativas do n.º 2, do artigo 132.º, al. i) e j), do CP – pese embora consubstancie a prática de um crime de homicídio agravado, p. e p. pelos art. 131.º, do CP, e art. 86°., n.º 3, da Lei das Armas. XIII. Seguindo a doutrina e a jurisprudência – nomeadamente, Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense, fls. 26 e segs. e acórdão do STJ, entre muitos o de 15/03/2007, p. 340/07 – o crime base é o homicídio simples, p. no art. 131.º, e o homicídio qualificado, uma forma agravada do homicídio simples, não se podendo considerar o contrário, isto é, que o homicídio simples é a uma atenuação do agravado. XIV. O crime de homicídio, não poderá ser qualificado só porque os factos provados, sem mais, possam fazer supor que estão preenchidos um ou mais dos exemplos padrão do n.º 2, do art. 132.º, do CP, sem que o homicídio seja qualificado só por isso. Para que a qualificação se verifique terá de ocorrer uma "imagem global do facto agravado" (neste sentido o Ac. do STJ de 8/10/2011. p. 88/09.9, 5ª sec. e toda a jurisprudência e doutrina aqui referidos) XXV. Ao decidir como decidiu, tribunal a quo violou as disposições dos artigos 131.°, 132.°, n.º 1 e 2, do CP, e artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas. XXVI. Se utilizados fossem os fundamentos justificativos das penas aplicadas (e confirmadas) por muitos dos Acórdãos mais recentes do S.T.J., chegava-se à conclusão certa de que a pena aplicada é desproporcional à medida da satisfação do sentimento jurídico da comunidade e às exigências de prevenção, razão pela qual se impõe a alteração da mesma, nos termos aludidos. XXVII. Disposições violadas:
Pedido Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, Se assim não se entender, 4. A assistente, BB, ao abrigo do disposto no art. 413.º, n.º 1, do CPP, respondeu considerando, em súmula: - quanto à falta de notificação do relatório social e consequente alegada falta de contraditório: «Em suma, e conforme se conclui no Acórdão recorrido, o Recorrente teve todas as oportunidades de consultar com a antecedência devida e, caso assim o entendesse, de questionar este relatório ou inclusive requerer a sua leitura em audiência, conforme preceituado no art. 370.º n.º 3 do CPP, nos termos e para os efeitos do prescrito no art 371.º do mesmo diploma legal. Na decorrência do que se deixou exposto, reafirmamos vigorosamente a manutenção do douto Acórdão objeto de recurso, por não se mostrarem violadas as normas constantes dos artigos 327.º, n.º 2, 355.º, 379.º, n.º 1 al. c), 410.º n.º 2 al. a), todos do CPC, e art. 32.º n.º 5 da Lei Fundamental.» - quanto à qualificação jurídica do crime de homicídio: «Em suma, Verifica-se que no caso em apreço é incontornável a especial censurabilidade e perversidade que subjaz à atuação deste arguido, sendo assim suscetível de integrar a prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. no art. 131.º e 132.º n.º 1 e 2 als. i) e j) do Código Penal. Por fim, mais se acrescenta que o n.º 3 do art. 86.º da Lei das Armas (RGAM – Regime Jurídico das Armas e Munições) só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do art. 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de acionar efetivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do art.132.º, pelo que não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3, como vem decidindo de forma pacífica a nossa jurisprudência[1].» - quanto à medida da pena: «A pena aplicada ao arguido é, assim, justificada, compreensível, merecida e justa, impondo-se a sua manutenção face à matéria fáctica apurada e assente, a concreta culpa, no caso elevada, e personalidade do arguido que, como se sublinhou, nunca assumiu efetivamente a autoria dos factos pelos quais vem condenado ou sequer demonstrou qualquer tipo de arrependimento, quando bem sabe que agiu dolosamente e em circunstâncias que merecem, inclusive, a especial censurabilidade plasmada no tipo de homicídio qualificado. » 5. O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Guimarães, respondeu, tendo considerado que: - começa por salientar que, relativamente à violação do princípio do contraditório por não notificação do relatório social, à qualificação jurídica dos factos e à medida da pena, o arguido apresenta a mesma argumentação que já anteriormente apresentou na interposição do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, e sem que tenha apresentado “qualquer argumentação que coloque em causa” o entendimento daquele tribunal; - também relativamente ao entendimento do arguido de que não existem factos integradores da qualificação do homicídio com base no disposto no art. 132.º, n.º 2, al.s i) e j), do CP, ponto sobre o qual também se pronunciou o Tribunal da relação de Guimarães, entende que aquele se “limita a negar a existência daquelas qualificativas”, sem apresentar argumentos contra o que o Tribunal já decidiu; - e terminando com o entendimento de que a medida concreta da pena aplicada não merece “qualquer censura”, - concluindo que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido. 6. Uma vez subidos os autos, no uso da faculdade concedida pelo art. 416.º, n.º 1, do CPP, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Supremo Tribunal de Justiça apôs, apenas, “Visto (concordância com o entendimento expresso pelo Ministério Público – fls. 950 e ss). 7. Uma vez notificado o arguido nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, veio responder apenas na “parte da falta de contraditoriedade relativamente ao Relatório Social” reafirmando que a simples junção aos autos do relatório social sem que tivesse havido notificação, e sem que se tivesse procedido à sua leitura em audiência de discussão em julgamento, determina a sua não valoração, sendo nula a decisão que o tenha valorado, e inconstitucional a interpretação que admita a sua valoração sem o cumprimento do princípio do contraditório e, consequentemente, violando o disposto no art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP). 8. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.
II Fundamentação
1.1. Na decisão recorrida, são dados como provados os seguintes factos: «1. Desde há cerca de 6 anos que o arguido AA e o EE andam de relações cortadas, despoletadas, essencialmente, por o EE ter alardeado que manteve um relacionamento com a companheira do arguido, passando a existir entre os dois uma rivalidade e a envolverem-se em frequentes discussões. 2. Na manhã do dia 25 de Junho de 2014, por volta das 09H15, o arguido AA e EE encontraram-se no “Café ...”, sito na Estrada Nacional n.º 317, em Santulhão, Vimioso, e envolveram-se novamente em discussão, a pretexto, desta feita, do desaparecimento de um cão ao arguido, e em que este acusou o EE de lho ter roubado, exigindo que lho devolvesse. O EE, para além de negar ter praticado tais factos, desafiou o arguido para se encontrar com o mesmo na ponte de Izeda, dizendo-lhe “seu filho da puta”, se tens coragem (“tomates”) “vai ter à ponte”. Entretanto, saíram do café ... e, já no exterior, o EE desafiou novamente o arguido para se encontrarem na referida ponte de Izeda, junto do Rio Sabor, e que o esperava lá. 3. Então, e mau grado a intervenção da sua companheira e da dona do café, que tentaram em vão segurá-lo, chegando a companheira a colocar-se em frente á carrinha, o arguido entrou no seu veículo automóvel da marca Toyota, modelo Hilux, matrícula ....-AB, e, após se ter desviado daquela, dirigiu-se à sua residência, sita na Rua ..., onde parou para ir buscar uma espingarda caçadeira de tiro a tiro, de canos sobrepostos, de calibre 12 (para cartucho de caça), de marca Fias (Armi Sabatti), de modelo não referenciável, com o número de série 110413, fabricada por “Fabrica Italiana Armi Sabatti”, em Gardone, Itália e seis cartuchos de caça, de calibre 12 (quatro de marca Nobel Sport, um de marca U.E.E., e um de marca Fiocchi), que levou consigo com o intuito de tirar a vida a EE. 4. Com esse intuito, arguido seguiu, de imediato, pela EN 317, na direcção da Ponte do Izeda, junto do Rio Sabor e, já nas suas imediações, e entre as 9h27m e as 9h34m, viu, estacionado na berma do lado direito do seu sentido de marcha, o veículo automóvel da marca Mitsubishi, modelo L200, com a matrícula ....-VL, com o EE sentado no local do condutor, a aguardar pelo arguido. O arguido passou pelo referido veículo, mas não parou, antes continuou e foi virar, invertendo o seu sentido de marcha, a cerca de 300 m dali, já depois da ponte, num local onde existe uma berma larga, onde estacionou o seu veículo, do lado direito atento o seu sentido de marcha (após a inversão). Tal como previsto pelo arguido, o EE, ao ver a carrinha do arguido parada, arrancou em sua direcção, e quando já estava perto, abrandou e guinou para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, invadindo parte da berma, de modo a apresentar-se de frente para o arguido, mas descentrado para o lado direito, atento o seu sentido de marcha, e parou, a cerca de 8.80 m do veículo do arguido. Paulo Ferreira seguia na carrinha, desarmado. Nesse entretanto, quando viu a carrinha do EE a arrancar, o arguido, na execução do seu intuito de lhe tirar a vida, abriu a porta do condutor e deixou-a assim aberta, municiou a espingarda caçadeira com, pelo menos, um cartucho após o que, empunhando a referida espingarda, saiu da carrinha, e, baixando-se, contornou-a pela parte de trás e foi-se posicionar junto da porta do lado do passageiro. Quando o veículo do EE parou, à referida distância de aproximadamente 8,80 metros, o arguido, de forma inesperada, ergueu-se e apontou a referida arma caçadeira em direcção à cabeça de EE, que se encontrava ainda no interior do seu veículo, no lugar do condutor, pressionou o gatilho e disparou por uma vez aquela arma. 5. O projéctil perfurou o vidro do pára-brisas dianteiro do veículo e atingiu EE na parte frontal esquerda do crânio, provocando-lhe lesões cranioencefálicas, nomeadamente infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo e dos músculos temporais nas partes moles, fractura cominutiva, irregular, desalinhada, com afundamento, interessando a escama do osso temporal direito e esquerdo e a escama do occipital, prolongando-se internamente para a base do crânio, na abóbada dos ossos da cabeça, fractura cominutiva, com infiltração sanguínea dos topos, atingindo todos os ossos da base da cabeça, hemorragia subdural e subaracnoídea difusa bilateral das meninges, deformação, com laceração difusa, com fragmentos soltos do encéfalo, com fragmentos de plástico, compatível com bucha, na região occipital, fractura cominutiva do pavimento da órbita direito e esquerdo, do etmóide e do esfenóide, com infiltração sanguínea dos bordos dos ossos da face, infiltração hemorrágica do globo ocular esquerdo e infiltração hemorrágica das fossa nasais, seios maxilares, frontais e esfenoidais, que foram causa directa, necessária e adequada da sua morte. 6. Consciente de que havia provocado a morte de EE, o arguido voltou ao seu veículo e seguiu em direcção ao Café ..... Aí chegado, anunciou aos que aí se encontravam presentes, que já tinha “atirado” no EE e que este já “estava morto” e entregou-se à GNR, que, entretanto, tinha sido chamado ao local pela companheira do arguido, entregando, outrossim, a mencionada espingarda caçadeira Fias (Armi Sabatti), já sem qualquer munição introduzida, e o cartucho de caça de calibre 12, de marca FIOCCHI, de origem italiana, com corpo em plástico de cor castanha, sem qualquer inscrição perceptível, deflagrado do cano superior da referida espingarda, e que se encontravam no banco de passageiros da referida carrinha Toyota Hilux. 7. Realizada busca domiciliária, autorizada pelo próprio arguido, nesse mesmo dia, pelas 17h30m, verificou-se que tinha ainda, na sua posse, na gaveta da direita de um móvel na entrada da sua residência, uma pistola semiautomática, de marca Tanfoglio, de modelo GT28, originalmente de calibre nominal 8 mm e destinada essencialmente a deflagrar munições de alarme e/ou de gás lacrimogéneo, posteriormente transformada para disparar munições com projéctil de calibre 6,35 mm Browning (.25 ACP ou .25 AUTO na designação anglo-americana) sem número de série visível, fabricada por “Fratelli Tanfoglio”, em Gardone, na zona de Brescia, em Itália, apresentando as falsas inscrições “Astracal. 6 35”, municiada de carregador; e, na despensa da cozinha, uma espingarda caçadeira de tiro unitário simples, de calibre 12 (para cartucho de caça), de marca Investarm, de modelo 80, de origem italiana, com o número de série 193866. O arguido é titular da carta de caçador n.º ...., emitida em 9/12/2003 e com validade até 30/11/2014 e apenas possui registo/manifesto da espingarda caçadeira de marca Fias. 8. O arguido, ao inverter a marcha e ao parar a sua carrinha a cerca de 300 m do local onde estava a o EE, ao deixar a porta do lado do condutor aberta, ao contornar a carrinha pela parte de trás, ao posicionar-se junto da porta do lado do passageiro, e ao disparar só já quando a carrinha do EE tinha parado, a cerca de 8.80 m de distância, fê-lo com o propósito, concretizado, de não ser visto, mormente, com a arma na mão, e, assim, de surpreender o EE, não lhe dando, como não deu, qualquer possibilidade de reacção. Agiu na execução do propósito de tirar a vida de EE, utilizando para o efeito a espingarda caçadeira de marca FIAS que municiou e apontou à cabeça daquele para atingir os órgãos vitais que sabia aí conter. Conhecia ainda as características da espingarda caçadeira de marca FIAS (ARMI SABATTI) e sabia que a mesma, depois de municiada, podia ser utilizada para matar e que ao usá-la para tal fim, a sua conduta era punida de forma mais severa. Também sabia que apenas possuía registo/manifesto da espingarda caçadeira de marca Fias e que não podia deter as restantes armas, uma por ser transformada e não ser susceptível de registo e a outra por não possuir a respectiva licença, registo e manifesto, o que bem sabia por ser caçador e, não obstante isso, quis detê-las nas circunstâncias descritas. Em todas as condutas descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal. 9. À data dos factos, o arguido vivia com a companheira e filha, integrando o agregado, e ainda, a enteada, existido entre todos uma dinâmica harmoniosa e solidária. Viviam em casa própria, herança do arguido. Com a companheira, o arguido dedicava-se à pastorícia, apascentando 203 cabeças de gado caprino. O arguido é tido por pessoa afável e educada. Os familiares mostram vontade em ajudá-lo a recuperar-se. O arguido mostra-se inserido social, familiar e profissionalmente Do CRC do arguido, nada consta. O arguido não mostrou arrependimento. 10. A vítima, EE, nasceu a ...., pelo que à data da sua morte tinha 40 anos de idade. Era casado com a assistente e, do casamento, nasceram dois filhos, os ora co-demandantes CC (nascido a 8/9/2000) e DD (nascido a 5/4/2002). Tinha muita alegria de viver e era pessoa responsável, trabalhadora e muito ambicioso, querendo proporcionar aos filhos uma boa educação escolar e boas condições de vida. Dedicava-se, juntamente com a assistente, mas com grande predomínio dele, à agricultura, ao comércio agrícola, venda de ovinos e de cortiça, sendo que, pese embora a assistente estivesse colectada como produtora agrícola e parte dos pagamentos e dos subsídios serem feitos em nome dele, era, de facto, o falecido quem desempenhava o essencial da actividade, pois a assistente era escriturária na Santa Casa da Misericórdia de Algoso, auferindo um rendimento líquido mensal de 485 €. Por isso, era com o trabalho do falecido que era suportado o grosso das despesas com o agregado. 11. No ano de 2013, o casal facturou, em nome de um ou de outro, pela venda de cortiça, o preço total de 22.213,80 €. E, só de Janeiro a 25 de Junho, de 2014, o casal facturou, em nome de um ou de outro, pela venda de ovinos o preço total de 6.375 €. Nos anos de 2010 a 2014, o casal recebeu, no total, e referentes a subsídios pelos animais, em nome de um ou de outro, a quantia total de 100.380,83 €. 12. Por causa do referido em 10), com a morte do marido, a assistente viu-se na contingência de ter de vender o rebanho de 90 cabeças pelo preço de 3.0160 € e vendeu outrossim o tractor agrícola, de rastos, deixando de receber os respectivos subsídios. O disparo efectuado pelo arguido provocou, também, estragos na carrinha Mitsubishi, cuja reparação, suportada pela assistente, importou em 633,22 €. 13. A morte do EE, produzida nas circunstâncias descritas, causou na viúva e nos filhos um profundo abalo, uma fortíssima comoção e um desgosto e sofrimento dificilmente superáveis. A assistente não se consegue conformar com a morte do marido, tem ataques de choro e dificuldade em adormecer, tendo ficado alguns meses de baixa médica e tem acompanhamento psicológico. Os filhos são seguidos em psicologia, sendo que mantinham com o pai laços muito fortes de afecto. A assistente pagou pelo menos 75 € em consultas.» 1.2. Resultaram não provados os seguintes factos: « a) O arguido, depois de inverter a marcha, veio estacionar o seu veículo na mesma berma onde estava o veículo do EE e a uma distância de aproximadamente oito metros. b) O arguido municiou a espingarda caçadeira com todos os cartuchos que levava consigo. c) Como empregada da Santa Casa a assistente auferia 550 € mensais d) Os preços das vendas de cortiça e de animais correspondem ao lucro. e) O falecido era muito estimado e considerado na comunidade onde vivia, razão pela qual a sua morte inundou de tristeza todos os que com ele conviviam. f) A venda dos animais pela assistente foi feita por valores manifestamente inferiores aos habituais. g) O sofrimento da viúva e dos filhos pela falecimento do marido e pai é absolutamente inultrapassável. h) O EE anteviu que iria morrer, sofrendo em consequência angústia e terror, e sofreu indescritível dor física até expirar, sentindo a progressiva perda de sentidos dos seus órgãos vitais. i) O arguido não tinha intenção de tirar a vida ao EE.» A partir das conclusões do recurso interposto pelo recorrente ficam circunscritos os poderes de cognição deste tribunal, assim restrito às questões relativas ao conhecimento pelo arguido do relatório social, à qualificação jurídica do crime de homicídio e à medida da pena decorrente da alteração da qualificação jurídica do crime de homicídio. 1.1. O recorrente recorre invocando a falta de conhecimento do relatório social apesar de ter sido com base neste, segundo o recorrente, que se deu como provado a constante do facto 9 (“À data dos factos, o arguido vivia com a companheira e filha, integrando o agregado, e ainda, a enteada, existido entre todos uma dinâmica harmoniosa e solidária. Viviam em casa própria, herança do arguido. Com a companheira, o arguido dedicava-se à pastorícia, apascentando 203 cabeças de gado caprino. O arguido é tido por pessoa afável e educada. Os familiares mostram vontade em ajudá-lo a recuperar-se. O arguido mostra-se inserido social, familiar e profissionalmente. Do CRC do arguido, nada consta. O arguido não mostrou arrependimento.”). Nos termos do art. 1.º, al. g), do CPP, considera-se “«Relatório social» a informação sobre a inserção familiar e sócio-profissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborada por serviços de reinserção social, com o objectivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos nesta lei”. Este pode ser pedido pelo tribunal, nos termos do art. 370.º, do CPP, quando “considerar necessário à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada” (ou podem os serviços de reinserção social enviar ao tribunal tal relatório “quando o acompanhamento do arguido o aconselhar”, nos termos do n.º 2, do artigo referido). Começamos por salientar que esta mesma questão foi objeto do recurso interposto pelo recorrente para o Tribunal da Relação de Guimarães, pelo que consistindo numa decisão que não conhece a final do objeto do processo, parecia à primeira vista que não seria suscetível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP. Porém, antes da apreciação do ponto em questão cabe verificar se o arguido tem, por força do disposto no art. 401.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CPP, legitimidade e interesse em agir para interpor o presente recurso quanto a esta questão. Ora, verificamos que o arguido apenas pode interpor recurso das decisões que contra ele tenham sido proferidas, embora não possa recorrer se “não tiver interesse em agir” (art. 401.º, n.º 2, do CPP). Vejamos, então, o que sucedeu. O teor do relatório social[2] em questão é o seguinte: « I — Dados relevantes do processo de socialização Jorge Fernandes nasceu na freguesia Santulhão, esta situada a 17 km a sudoeste da sede do seu concelho/Vimioso, onde a população local sempre se dedicara maioritariamente à agricultura. É o único filho de um casal de situação socioeconómica e cultural muito humilde, em que ambos os progenitores se dedicavam às lides agrícolas e criação de gado ovino/caprino. O processo de crescimento e socialização de AA decorreu no agregado de origem e em contexto rural, cuja dinâmica familiar foi caracterizada pelo próprio e familiares como estável e funcional, tendo sempre beneficiado das condições necessárias ao seu pleno desenvolvimento. No meio sempre privou com os jovens da sua aldeia em ambiente informal e de forma globalmente harmoniosa. AA frequentou a escolaridade obrigatória em idade própria na freguesia de Santulhão concluindo a 45 classe do antigo sistema de ensino português. O seu percurso escolar foi marcado por algumas reprovações, insucessos que o mesmo não atribui a problemas de integração/adaptação mas sim ao desinteresse que demonstrara pelos estudos, já que sempre se reviu na atividade de agropecuária desenvolvida pela família. Aos 13/14 anos de idade, AA abandona definitivamente a escola e passa a trabalhar na pastorícia com o rebanho pertença da família, atividade à qual se dedicou desde então de modo regular. Os seus tempos livros eram passados sobretudo na freguesia, no café local onde convivia com os seus conterrâneos, amigos e conhecidos de forma adequada, adotando comportamento social enquadrado com a sua faixa etária. Por volta dos 19/20 anos de idade o arguido foi cumprir 12 meses de serviço militar obrigatório no Agrupamento Base de Santa Margarida (ABSM), contudo aos fins-de-semana voltaria sempre que podia a Santulhão para conviver com familiares e amigos. Findo tal período regressou ao meio de origem e retomou o trabalho anteriormente desenvolvido. AA encetou entretanto uma relação amorosa com FF, rapariga cerca de 5 anos mais nova e mãe solteira de GG (esta à data com 2 anos de idade), passando a viver em união de facto com a companheira e enteada em Santulhão. Depois com cerca de 24/25 anos de idade, o arguido, companheira e enteada deslocaram-se para Pamplona/Espanha à procura de melhores condições de vida, região onde nasceu a filha do casal, HH, atualmente com 19 anos de idade. Em Espanha, AA referiu ter trabalhado nos primeiros anos numa empresa de prefabricados e depois manteve sempre a mesma ocupação laborai noutra entidade patronal - empresa de obras públicas e sinalização de estradas e vias rodoviárias. Na sua trajetória de vida AA referiu ter na década de 90 um envolvimento com o sistema de administração da justiça penal (Processo n.° 8/93 — T. J. Vimioso) onde foi condenado pelo crime de "ofensas corporais agravadas", mas não se reviu nessa sanção penal. Contudo, em 2001 regressou a Portugal e apresentou-se voluntariamente para cumprir 8 meses de prisão efetiva que tinha pendente no âmbito do processo acima referido, tendo beneficiado de dois perdões e de liberdade condicional, regime que cumpriu sob a observância dos serviços de reinserção social. Após a resolução desta situação jurídico-penal regressou novamente a Espanha e manteve a mesma atividade laboral na sinalética de vidas rodoviárias. No ano de 2004, AA e família regressam definitivamente a Santulhão/Vimioso, com o objetivo de prestaram apoio familiar ao pai do arguido, já que sua mãe havia falecido em 2002 e o pai viria depois a falecer cinco anos mais tarde (2007/8). Nesta data o arguido e companheira assumem a atividade de pastorícia por conta própria (rebanho de gado caprino), sendo essa a principal fonte de rendimento para a sustentabilidade do agregado familiar e à qual se dedicaram com afinco até à existência do presente processo judicial. No meio social de residência o arguido beneficiava de uma inserção sociocomunitária ajustada, não lhe sendo associados comportamentos perturbadores da paz-social. Manteve durante algum tempo o hobby da caça do qual referiu se ter desligado por falta de tempo, já que a sua atividade laborai abarcava praticamente o seu quotidiano. II — Condições sociais e pessoais À data dos factos que deram origem ao presente processo judicial penal, AA vivia com a companheira e filha, integrando também este agregado familiar a enteada/GG, marido e filho destes, os quais o arguido sempre considerou como se tratasse de uma filha, genro e neto, existindo entre todos uma dinâmica familiar harmoniosa, coesa e solidária. Esta família residia em casa própria, herança de família do arguido, habitação onde desfrutavam das condições necessárias de comodidade e habitabilidade. Jorge Fernandes dedicava-se em conjugação de esforços com a companheira à pastorícia, referindo ter à data a seu cargo 203 cabeças de gado caprino, atividade que lhe ocupava praticamente todo o seu dia. O arguido sempre se reviu nesta atividade profissional, na qual cresceu junto do seu pai, extraindo os rendimentos necessários à manutenção e sustentabilidade da sua família, considerando vivenciar àquela data um modo de vida estável. Paralelemente ainda cultivava alguns produtos hortícolas para consumo doméstico em prédios rústicos da família. No meio de origem privava regularmente com conterrâneos, amigos e conhecidos sobretudo no "Café ...." em Santulhão, estabelecimento comercial onde jogava cartas e assistia a jogos televisionados, atividades próprias do contexto rural onde estava inserido, sendo aí conotado como um concidadão afável e de conduta proporcional, não lhe sendo conhecidos consumos abusivos de bebidas alcoólicas. Após a existência do presente processo judicial, o arguido deu entrada em 26-06-2014 como preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Bragança, onde nos primeiros tempos manifestou algumas dificuldades, especialmente ansiedade e preocupação, por um lado pela situação jurídico-penal em que se envolveu e ainda à preocupação acrescida com o bem-estar de sua família. Em ambiente prisional tem apresentando todavia um comportamento globalmente ajustado, não se envolvendo em situações/problema evidenciando uma postura colaborante e assertiva com os demais, cumprindo as regras inerentes ao estatuto coativo, respeitando as orientações das figuras de autoridade. Jorge Fernandes é visitado regularmente por conterrâneos, amigos/conhecidos e especialmente pelos familiares, demonstrando admiração e consideração por todos os elementos que o visitam e vinculação afetiva consistente pelo seu agregado familiar, que se tem automobilizado em esforços no sentido de o apoiar. A companheira, que se mostra emocionalmente vulnerável (toma medicação antidepressiva), assume ter cessado a atividade da pastorícia por não terem condições para prosseguir com essa ocupação que considera muito exigente/desgastante e só com o esforço e dedicação do arguido conseguiria manter. FF e arguido assumem que a família está a vivenciar alguns constrangimentos de ordem financeira, mas que têm superado com o auxílio de amigos, destacando em particular o apoio de uma conterrânea que cedeu alojamento gratuito à filha do casal, HH, para que a mesma desse continuidade à sua formação académica, encontrando-se a frequentar o 2° ano de licenciatura em enfermagem na Escola Superior de Saúde em Bragança. O arguido é observado pela comunidade como um cidadão afável, educado e aceite socialmente, sendo percetíveis manifestações de solidariedade para com o mesmo. Contudo a ocorrência dos factos colheu de surpresa toda a população, tornando-se um caso mediático, onde os residentes manifestam sentimentos de tristeza pelo acontecimento. Em termos pessoais o arguido mostrou em contexto de entrevista ser uma pessoa com um estilo comunicacional coerente, organizado e temperamento extrovertido. Denota capacidades de e análise e de descentração, revelando ter conhecimento das regras e normas necessárias à vida em sociedade, bem competências para delinear um projeto de vida futuro enquadrado socialmente. III — Impacto da situação jurídico-penal AA tem vivenciado este confronto com o sistema judicial penal com ansiedade, angústia e grande desconforto. Reconhece que a sua vida está presentemente condicionada aos diferentes níveis e que obrigatoriamente se irão repercutir no apoio à sua família, em particular no auxílio à formação académica da filha HH, que sempre ambicionara proteger e propiciar. O arguido verbaliza interesse em colaborar com o sistema de administração da justiça penal no sentido do apuramento da verdade e responsabilidades, acreditando numa decisão célere, de modo a poder projetar o seu futuro. Em abstrato, e relativamente à natureza dos factos subjacentes ao presente processo, reconhece a ilicitude dos mesmos formulando um juízo de censura, reconhecendo ainda a existência de vítimas bem como os danos sofridos por estas. Quando abordado sobre questões como "o direito à vida" considera ser esse um valor supremo, fundamental e inviolável que deve ser protegido. Relativamente ao impacto do presente processo na sua inserção sociofamiliar, os familiares do arguido denotam grande sofrimento e receio face à existência do presente processo judicial. Verbalizam vontade em apoiá-lo incondicionalmente como têm vindo a fazê-lo até ao momento presente, estando todos eles expetantes quanto à decisão final do autos, mas exteriorizam vontade em reconstituir e recuperar a harmonia e bem-estar que sempre caraterizou aquela família. O presente processo judicial teve forte impacto na comunidade de residência do arguido, por tratar-se de uma prática criminal que obsta o valor supremo do direito à vida Na sua maioria as fontes contactadas criticam veemente a ocorrência dos factos e contextualizam-na em questões passionais e desavenças entre os envolvidos, tendo o arguido verbalizado localmente para alguns conterrâneos que andava há muito tempo a ser importunado pela vítima. Contudo não nos foram referidos sentimentos de antagonismo associados ao arguido no meio de residência, onde o mesmo continua a dispor aceitação da sua rede social de influência. IV — Conclusão AA denotou ao longo da sua trajetória de vida, estabilidade aos vários níveis destacando-se o apoio familiar, hábitos de trabalho regulares e conduta social ajustada. Contudo abandonou precocemente as aprendizagens curriculares, em detrimento do exercício profissional na área da agropecuária, sendo esta a sua atividade de eleição e enquadrada com as suas expetativas de vida, tendo porém investido numa incursão durante algum anos em Espanha, com vista a melhorar as condições socioeconómicas da sua família. Sempre apresentou postura adequada no exercício das suas responsabilidades parentais, com preocupação pelo exercício laborai e promovendo sentimentos de coesão e entreajuda no seio familiar. Apesar de no passado ter acusado confronto com o sistema de administração da justiça penal, o arguido beneficiou de uma rede social de influência positiva e alargada, mantendo comportamento normalizado, interagindo com cordialidade com os seus conterrâneos e amigos em contextos de convivência comum. Denota ter competências necessárias para delinear objetivos e estratégias adequadas à vida em sociedade, evidenciando capacidade de análise critica. Em meio prisional tem mantido comportamento e interação adequada com todos os interlocutores naquele contexto. Pelo exposto, parece-nos estar em presença de um cidadão com competências pessoais, sociais usufruindo de retaguarda familiar, que não obstante reconhecer em abstrato a natureza do crime e ilicitude de tal prática criminal, deverá assumir maior consciencialização face ao valor jurídico em causa.» (fls. 557 e ss) Com base neste “relatório social e nos depoimentos de II, JJ,LL, MM, NN, OO e PP que abonou a personalidade do arguido” o tribunal a quo deu como provado o constante do facto provado 9 — isto é, ficou provado com quem o arguido viva à data dos factos, ficou provado que a dinâmica familiar era “harmoniosa e solidária”, que a casa onde vivia era do arguido que a tinha herdado, que o arguido e a companheira se dedicavam à pastorícia (com 203 cabeças de gado caprino), que o arguido é pessoa “afável e educada”, que os familiares têm “vontade em ajudá-lo a recuperar-se”, que o arguido está inserido “social, familiar e profissionalmente”. Para além disto, resulta ainda do facto provado 9 que do CRC do arguido nada consta — ou seja, neste ponto do facto provado o elemento que esteve na sua base foi não o relatório social, mas o CRC. E consta ainda daquele facto provado que o “arguido não mostrou arrependimento”. Porém, no que a este ponto diz respeito o tribunal foi muito claro ao referir na fundamentação da matéria de facto que “para afirmar a ausência de arrependimento, ponderou-se que o arguido negou o essencial: a intenção de matar pelo que não reconhece o mal do crime — note-se aliás, que o relatório social não deixa de aludir à necessidade do arguido “assumir maior consciencialização face ao valor jurídico em causa”. Ou seja, quanto a este ponto da matéria de facto provada verifica-se que o decisivo não foi o constante do relatório social, mas sim o facto de o arguido ter negado a intenção de matar, isto é, não foi o relatório social que serviu para formar a convicção do tribunal. Até porque o relatório social em parte alguma se refere ao arrependimento do arguido. Na verdade, o relatório social afirma expressamente que “[e]m abstrato, e relativamente à natureza dos factos subjacentes ao presente processo, [o arguido] reconhece a ilicitude dos mesmos formulando um juízo de censura, reconhecendo ainda a existência de vítimas bem como os danos sofridos por estas. Quando abordado sobre questões como "o direito à vida" considera ser esse um valor supremo, fundamental e inviolável que deve ser protegido.” E mesmo na conclusão do relatório social — onde se refere expressamente que “[p]elo exposto, parece-nos estar em presença de um cidadão com competências pessoais, sociais usufruindo de retaguarda familiar, que não obstante reconhecer em abstrato a natureza do crime e ilicitude de tal prática criminal, deverá assumir maior consciencialização face ao valor jurídico em causa” — não podemos retirar a ilação, a partir do ali descrito, de que o arguido não mostra arrependimento. Ou seja, o facto provado de que o arguido não mostrou arrependimento não teve por base o relatório social, mas sim, como o tribunal a quo afirma, o facto de o arguido ter negado, aquilo que o tribunal considerou como essencial, a intenção de matar. Serve tudo isto para mostrar que o relatório social permitiu a prova de factos favoráveis ao arguido — inserido social, familiar e profissionalmente, afável, educado, bem visto socialmente e com apoio familiar. Ora, assim sendo, vejamos se podemos afirmar estarem os pressupostos para a interposição do recurso, nesta parte, preenchidos. Na verdade, o CPP consagrou como requisito da admissibilidade do recurso, para além da legitimidade, o interesse em agir. “Trata-se, em suma, de, por esta via, assegurar uma ligação do recorrente ao objecto do processo por forma a permitir que o desfecho do litígio satisfaça um interesse concreto assente ou relacionado directamente com o concreto objecto da causa”[3]. Legitimidade e interesse em agir constituem dois “pressupostos processuais autónomos”[4], pelo que pode haver legitimidade sem interesse em agir — “não obstante a verificação do pressuposto da legitimidade, o direito de recorrer não está automaticamente adquirido”[5]. Pois, “o autor pode ser titular da relação material litigada e ser consequentemente a pessoa que, em princípio, tem interesse na apreciação jurisdicional dessa relação, e não ter, todavia, em face das circunstâncias concretas que rodeiam a sua situação, necessidade de recorrer à acção. “Uma coisa é, de facto, a titularidade da relação material litigada, base da legitimidade das partes; outra substancialmente distinta, a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir””[6]. Sendo certo que se trata “sempre de um interesse concreto, juridicamente relevante, relevância esta a aferir em relação aos concretos termos da causa, nunca de uma abstracção, como seria um recurso interposto apenas para que fosse efectuada «uma boa aplicação da lei», aferição aquela que terá sempre em vista o interesse concreto e concretizável, que a decisão aportará ao recorrente”[7]. Vejamos, então, qual o interesse concreto que está subjacente ao recurso interposto pelo arguido quanto a este ponto. Sabendo que o relatório social e o que dele consta será relevante em sede de determinação da pena (tal como decorre do disposto no art. 370.º, n.º 1, do CPP), e sabendo que o relatório social constitui um elemento para auxiliar o juiz na determinação da medida da pena, para dar ao julgador elementos sobre as “condições pessoais do arguido” (cf. art. 71.º, n.º 2, al. d), do CP), isto é, fatores decisivos na determinação da medida da pena, então a ser relevante numa qualquer decisão apenas o é já não na questão da culpabilidade do agente, mas na questão da determinação da sanção. Ora, verificamos que o arguido, na sua interposição do recurso, não retira da arguição do desconhecimento do relatório social qualquer consequência em sede de determinação da pena; apenas pretende afirmar a existência de uma violação da lei, sem que mostre qualquer interesse concreto afirmando, por exemplo, que a pena aplicada ao arguido foi desajustada, desproporcional ou excessiva em função do que consta daquele relatório que desconhecia. E já não retirou quando interpôs o recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães (“Não vêm questionadas as penas parcelares de prisão nem a pena única fixadas, para o caso de se manter intangível, como se mantém, a matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido, a subsunção jurídica operada também no acórdão recorrido, e a opção pela escolha da pena detentiva no que concerne ao crime de detenção de arma proibida”). E assim também foi no recurso agora interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, apesar de considerar que o relatório serviu de base ao facto provado 9 — e já vimos que nem em relação a tudo o incluído naquele facto provado resultou do relatório social — não retira daqui qualquer consequência concreta para aquilo que poderia ser relevante — a determinação da pena do homicídio qualificado ou para a determinação da pena única. Aliás, apenas se refere à pena aplicada como sendo “desproporcional” depois de ter contestado a qualificação jurídica do crime de homicídio, sem que sequer tivesse aludido ao que consta do relatório social, em tudo favorável ao arguido. O recorrente apenas pretende dizer que houve uma violação legal, sem ter demonstrado que aquela violação legal o prejudicou. Pois, a simples afirmação de que não pôde contradizer o documento, que em tudo lhe é favorável, não é o bastante para que se possa afirmar que existia em concreto um interesse em contradizer o relatório. O que pretendia o arguido – contraditar o relatório que afirma que o ele tem “uma inserção sociocomunitária ajustada”, que não lhe são “associados comportamentos perturbadores da paz-social”, que estava integrado no âmbito familiar onde havia uma “dinâmica familiar harmoniosa, coesa e solidária”, que exercia a “pastorícia” tendo a “seu cargo 203 cabeças de gado caprino”, que era um “concidadão afável”, que não lhe são “conhecidos consumos abusivos de bebidas alcoólicas”, que é “um cidadão afável, educado e aceite socialmente”, que tem “competências para delinear um projeto de vida futuro enquadrado socialmente”, que “verbaliza interesse em colaborar com o sistema de administração da justiça penal”, que formula sobre os acontecimentos um “juízo de censura”, reconhecendo a “existência de vítimas bem como os danos sofridos por estas”? Ora, não existindo em concreto qualquer interesse na arguição da violação legal a não ser o interesse em afirmar aquela violação em vista a uma boa aplicação da lei[8], não podemos considerar que o pressuposto processual do interesse em agir se verifique. Assim sendo, improcede nesta parte o recurso interposto, por falta do pressuposto processual “interesse em agir”, segundo o disposto no art. 401.º, n.º 2, do CPP. 2. Entende o recorrente que o homicídio praticado não deverá ser qualificado (tendo por base o disposto no art. 132.º, n.º 1 e 2, al. i) e j), do CP), devendo apenas ser agravado em função da utilização de arma de fogo (de harmonia com o disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02) (conclusão XVI e ss). Considera não só que a qualificação decorrente do art. 132., n.º 2, al. i), do CPP, não se verifica dado que o arguido, para além da arma de fogo, não utilizou qualquer outro meio insidioso, como, no que respeita à qualificação constante da al. j) do mesmo artigo, que tem como ideia fundamental a premeditação, também não se encontra preenchida dado que entende que não houve premeditação pois apenas reagiu à provocação, insulto e duplo desafio da vítima, constituindo, portanto, uma conduta reativa a uma humilhação. Da matéria de facto provada resulta de forma evidente que o arguido matou o ofendido, integrando, pois, um crime de homicídio. Porém, entendeu-se que a morte foi “produzida em circunstâncias que [revelaram] especial censurabilidade ou perversidade”, portanto com uma culpa qualificada a partir do meio insidioso utilizado e porque atuou “com reflexão sobre os meios empregados”. Integra a qualificação do homicídio aquele que utiliza veneno ou qualquer outro meio insidioso. Isto é, constitui meio insidioso “todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno — do ponto de vista pois do seu carácter enganador, traiçoeiro, sub-reptício, dissimulado ou oculto, “elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida” (Ac. do STJ de 15-02-2002)”[9], ou seja, o agente atua com “aproveitamento consciente pelo agente da ingenuidade e da incapacidade da defesa da vítima no momento do início da execução”[10]. Da matéria de facto provada constatamos que o arguido, depois de discussão com o ofendido e depois de este o ter desafiado para se encontrarem na ponte (facto provado 2), o arguido dirigiu-se para este local, não sem antes passar pela sua residência para ir buscar uma “espingarda caçadeira tiro a tiro, de canos sobrepostos, de calibre 12” (facto provado 3) que levou consigo; dirigiu-se para a ponte e após ter passado pelo ofendido continuou a sua marcha tendo vindo a estacionar mais à frente (após inversão de marcha, pelo que estacionou voltado de frente para o local onde estava o ofendido) (cf. facto provado 4); o ofendido dirigiu-se na sua carrinha para o local onde estava o arguido e, no entretanto, o arguido ”na execução do intuito de lhe tirar a vida, abriu a porta do condutor e deixou-a assim aberta, municiou a espingarda caçadeira (...), empunhando a referida espingarda, saiu da carrinha, e, baixando-se, contornou-a pela parte de trás e foi-se posicionar junto da porta do lado do passageiro” (facto provado 4). “Quando o veículo do EE parou, à referida distância de aproximadamente 8,80 metros, o arguido, de forma inesperada, ergueu-se e apontou a referida arma caçadeira em direcção à cabeça de EE, que se encontrava ainda no interior do seu veículo, no lugar do condutor, pressionou o gatilho e disparou por uma vez aquela arma.” (facto provado 4). Os danos daqui resultantes foram causa direta da morte do ofendido (facto provado 5). Tendo em conta a matéria de facto provada, verificamos que o arguido matou o ofendido com a espingarda depois de ambos previamente terem combinado encontrar‑se naquele local e para o qual foi o arguido desafiado pelo ofendido. O meio utilizado foi a arma, pelo que teremos que concluir, para que possamos afirmar uma culpa qualificada, que o meio utilizado assume “características análogas à do veneno — do ponto de vista pois do seu carácter enganador, traiçoeiro, sub-reptício, dissimulado ou oculto, “elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida” (Ac. do STJ de 15-02-2002)”[11]. Ora, não consideramos que assim seja. O meio utilizado foi uma espingarda não se tratando da utilização de um meio enganador, dissimulado. Ora, tal como afirma o Tribunal da Relação de Guimarães “É incontestável, face à factualidade dada como provada, que houve efectivamente uma espera por parte do arguido, pois que que ficou a aguardar, escondido, a chegada da vítima junto de si, com a espingarda caçadeira pronta a disparar (qual verdadeiro caçador que aguarda, emboscado, pela presa de caça) e, que, quando esta se aproxima, na sua viatura, e está a aproximadamente a 8,80 metros de distância, e sem esta ter a mínima possibilidade de defesa, dispara um tiro contra ela. O comportamento do arguido foi traiçoeiro (...)”. Ora, contrariamente ao entendido pelo tribunal a quo isto não é o bastante para que se possa afirmar ter sido utilizado um meio insidioso. O que houve foi um comportamento dissimulado do arguido; a forma como utilizou esse meio, ou seja, a forma como atuou é que foi uma forma dissimulada, a justificar, pois, a qualificação decorrente da al. j), do art. 132.º, do CP, revelando uma especial perversidade no modo como cometeu o crime, no modo como refletiu sobre os meios a empregar e o modo como os devia empregar, mas não consideramos que a qualificação decorrente do art. 132.º, n.º 2, al. i), do CP esteja preenchida. Entendemos, pois, que a qualificação decorrente do disposto no art. 132.º, n.º 2, al. i), do CP, não se verifica dado que o arguido não utilizou meio dissimulado, atuou sim de forma dissimulada a justificar a qualificação decorrente da aplicação do art. 132.º, n.º 2, al. j), do CP). Na verdade, a “frieza de ânimo” é suscetível de indiciar uma culpa agravada decorrente de uma especial censurabilidade ou perversidade. Ora, no presente caso o arguido não só levou uma arma consigo para o local previamente combinado com o ofendido, como se colocou numa posição que tomou de surpresa a vítima impedindo‑a de ter qualquer comportamento defensivo, pois nem teve tempo de se aperceber da atuação do arguido. Assim sendo, e ainda que possamos concluir que não houve uma reflexão sobre o modo de atuar durante um largo período anterior à sua prática, houve uma atuação refletida e pensada de forma a apanhar de surpresa o ofendido diminuindo (se não mesmo eliminando) a sua capacidade de defesa. Pelo que consideramos, tendo em conta os factos provados, verificada a especial censurabilidade e perversidade decorrente do disposto no art. 132.º, n.º 1 e 2, al. j), do CP. Assim sendo, procede o recurso interposto pelo arguido na parte em que se entende não ser de aplicar a qualificação decorrente do disposto no art. 132.º, n.º 2, al. i), do CP. Todavia, mantém-se o entendimento de que se trata de um homicídio qualificado em virtude de uma culpa agravada pela especial perversidade e censurabilidade decorrente do preenchimento do disposto no art. 132.º, n.º 2, al. j), do CP. 3.1. Em consequência, cumpre determinar a pena a aplicar ao crime de homicídio qualificado nos termos do art. 132.º, n.ºs 1 e 2, do CP, agravado pelo uso de arma decorrente do disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02; assim sendo, e porque a moldura geral abstrata do crime de homicídio qualificado é entre 12 e 25 anos anos de pena de prisão, teremos que partir de uma moldura abstrata entre 16 anos e 25 anos de prisão (decorrente da agravação de 1/3 imposta por aquele art. 86.º, n.º 3, e do limite geral da pena de prisão decorrente do disposto no art. 41.º, n.º 3, do CP). A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tomadas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração). Ora, no presente caso, não devendo a pena ultrapassar o limite imposto pela culpa, deve cumprir as exigências de prevenção geral e especial atenta a gravidade do crime cometido. É certo que não podemos levar novamente para a determinação da medida concreta da pena os mesmos elementos que estiveram na base da qualificação do comportamento ilícito — a frieza de ânimo demonstrada no modo de execução do crime —, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração. Na verdade, “não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português (As consequências jurídicas do crime), Coimbra: Coimbra Editora, 2009 (2.ª reimpressão), § 314). Poderá ser outra a conclusão quando nos referimos às circunstâncias que integram o exemplo-padrão no caso do homicídio qualificado? A esta pergunta responde-nos Teresa Serra (Homicídio qualificado: tipo de culpa e medida da pena, Coimbra: Almedina, 1990, p. 107-109): “deve ou não valer, no domínio dos exemplos-padrão, o princípio da proibição do duplo aproveitamento? Procedem ou não aqui razões idênticas às que se verificam na formação de molduras penais através de elementos típicos? As respostas não podem deixar de ser afirmativas: a proibição do duplo aproveitamento deve valer igualmente para os exemplos-padrão. E deve ser assim porque procedem aqui razões idênticas às que se verificam na formação da moldura penal com recurso a elementos típicos: se a circunstância fundamenta uma moldura penal modificada, essa mesma circunstância não deverá já concorrer para a graduação da medida da pena. (...) [Assim] a valoração, a que o juiz não pode subtrair-se, deverá efetuar-se numa esfera bastante mais limitada, recorrendo essencialmente às circunstâncias generalizadoras constantes do n.º 2 do artigo 132.º, que depois não deverão ser tomadas em consideração na graduação da pena concreta”. Assim, o modo de execução do facto criminoso fundamentar a culpa agravada e a especial censurabilidade e perversidade do facto não deve ser levado em consideração na determinação da medida da pena. Estamos perante um crime de homicídio qualificado praticado após uma discussão com a vítima, com a qual estava de relações cortadas desde há cerca de 6 anos (facto provado 1), resultado de esta “ter alardeado que manteve um relacionamento com a companheira do arguido (idem), e depois de a vítima o ter desafiado para se encontrar com ele na Ponte da Izeda (facto provado 2). Ou seja, o comportamento do arguido decorre de uma humilhação prolongada no tempo provocada pela vítima e após um desafio da vítima no café Teixeira. Se isto não serve para desculpar o arguido, dada a forma como atuou depois destes acontecimentos, também não nos permite afirmar que a sua conduta demonstre uma culpa agravada para além da decorrente da especial perversidade e censurabilidade demonstrada na prática do crime. Isto é, entendemos que o limite da culpa concreta do arguido coincide com o limite da moldura geral abstrata aplicada ao caso — 16 anos de prisão. Pena que se impõe, igualmente, pelas elevadas exigências de prevenção geral presentes no caso. E, ainda que aquela pena não possa ser ultrapassada, deve ainda salientar-se que as exigências de prevenção especial não impõem a necessidade de uma pena maior. Na verdade, o arguido começou por voluntariamente se ter entregado à GNR pouco depois da prática dos factos (facto provado 6), colaborou com a investigação tendo autorizado a busca domiciliária (facto provado 7), e revela-se inserido socialmente, tendo já reconhecido a ilicitude dos factos e a censura que eles merecem, pelo que ainda que se entenda que tem que tomar consciência do bem jurídico que violou, não decorre daí quaisquer exigências acrescidas de socialização do arguido. De tudo isto, entende-se como adequada a pena de 16 anos de prisão. 3.2. Uma vez que o arguido vem igualmente punido, em concurso de crimes, pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86.º, n.º 1, al. c) da referida Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23.02), com uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão (e relativamente ao qual não interpôs recurso), cabe agora, atenta uma análise global dos factos praticados e da personalidade do arguido, determinar a pena única conjunta. Nos casos de concurso de crimes, a determinação da pena única conjunta tem que obedecer aos critérios específicos determinados no art. 77.º do Código Penal. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem todavia exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP). A partir desta moldura é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados deve proceder-se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique"[12]. Na avaliação da personalidade ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime, ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva). No presente caso a moldura do concurso de crimes oscila entre um mínimo de 16 anos de prisão (pena concreta mais elevada aplicada ao arguido) e 17 anos e 6 meses (decorrente da soma das penas parcelares aplicadas ao arguido). Ora, começamos por salientar que no presente caso não se demonstra qualquer “carreira” criminosa, nem se vislumbra o inicio de uma carreira criminosa. Os factos criminosos analisados nos presentes autos evidenciam uma pluriocasionalidade sem que se possa reconduzir a uma personalidade fundamentadora de uma “carreira” criminosa. Atento o bem jurídico-criminal lesado são fortes as exigências de prevenção geral. Porém, são pequenas as exigências de prevenção especial atenta a clara inserção do arguido na sociedade, pelo que entendemos como adequada a pena de 16 nos e 6 meses de prisão efetiva.
III Conclusão Nos termos expostos acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA, condenando o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo art 132.º, n.ºs 1 e 2, al. j), do CP, com a agravação decorrente do disposto no art. 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02 (alterada pelas Leis n.º 17/2009, de 06.05, n.º 26/2010, de 30.08, n.º 12/2011, de 27.04, e n.º 50/2013, de 24.07), na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão e, em cúmulo jurídico com a pena de 1 (um) ano e 6 (meses) de prisão em que vinha condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida (nos termos do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23.02), na pena única conjunta de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva.
Nos termos do art. 513.º, n.º 1, do CPP, não é devida taxa de justiça.
Supremo Tribunal de Justiça, 3 de março de 2016 Os juízes conselheiros, (Helena Moniz) (Nuno Gomes da Silva) ------------------- |